Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2148/22.1T8GMR.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
REMUNERAÇÃO MENSAL MÍNIMA GARANTIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O ponto i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239º do CIRE, ao excluir do rendimento disponível que o insolvente deve entregar ao fiduciário, o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», tem subjacente o principio constitucional da dignidade da pessoa humana.
II – Nessa medida, tal valor deve ter como referencial mínimo o valor da Remuneração Mensal Mínima Garantida, que contêm em si a ideia de que é o mínimo considerado necessário para uma sobrevivência digna.
III - A partir daí, aquele principio manda que o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» seja encontrado casuisticamente, tendo em consideração a singularidade de cada devedor e do seu agregado familiar (não obstante as dificuldades de tal tarefa), não olvidando, que, como manda o n.º 3 do art.º 8º do CC, deverão ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, por forma a dar cumprimento ao principio da igualdade plasmado no art.º 13º n.º 1 da CRP.
IV – Neste sentido, devem ser tidos em consideração o número de elementos do agregado familiar, a sua idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos auferidos e todas e quaisquer circunstâncias relevantes do caso concreto.
Decisão Texto Integral:
Tribunal recorrido: J 2 do Juízo de Comércio ... - Tribunal Judicial da Comarca ....
Recorrente AA
*

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

AA veio requerer fosse declarado insolvente e requerer a exoneração do passivo.
Alegou para tanto quer nasceu em 1985, é divorciado, vive em casa arrendada, pagando de renda € 450,00, paga uma pensão de alimentos ao filho, no montante de € 200,00, trabalha como tecelão, auferindo € 850,00, acrescido de subsídio de refeição, tem as dividas que indica, não tem possibilidade de com as suas obrigações vencidas.

Por sentença de 22/04/2022 foi declara a insolvência do requerente.

A 09/06/2022 o Sr. Administrador de Insolvência apresentou Relatório nos termos do art.º 155º do CIRE onde, além do mais consta que o agregado familiar do insolvente é constituído apenas pelo próprio, é divorciado, tem um filho, a quem paga uma pensão de alimentos de € 200,00, encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga € 450,00 mensais a titulo de renda e que deveria ser permitida a exoneração do passivo restante.

Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do art.º 236º do CIRE, nenhum credor se tendo pronunciado.

A 13/09/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Com vista à decisão do pedido de exoneração do passivo restante, e com vista a determinar, no caso de deferimento liminar, o rendimento disponível do insolvente que se considera cedido ao fiduciário, importa apurar qual a sua situação económica e outros factos que se consideram relevantes e que não foram invocados pelas partes.

Assim sendo:
» Pesquise nas bases de dados da Segurança Social, informação sobre se a Insolvente se encontra ali inscrito, se recebe algum subsídio, pensão, reforma ou qualquer outra prestação social, se se encontra a fazer descontos, a que título, por que montante e por conta de que vencimento;
» notifique a insolvente para, em 10 dias, indicar e juntar aos presentes autos os comprovativos das suas despesas que considera relevantes (despesas com habitação, saúde, etc).

A 15/09/2022 veio o insolvente dizer que:
- trabalha na empresa que indica, exercendo funções com a categoria profissional de “Tecelão”, auferindo mensalmente o vencimento de €850,63, que constitui o seu úncio rendimento;
- é divorciado desde Abril de 2022, tendo um filho;
- tem as seguinte despesas:
A – Pensão de alimentos ao filho menor no valor de €200,00 euros;
B – Contrato de arrendamento no valor mensal de €450,00 euros;
C – Consumo de gaz e electricidade no valor médio mensal de €66,90 euros;
D – Consumo de água no valor médio mensal de €32,17 euros;
E – Despesa mensal com telefone e internet mensal de €29.89 euros;
F - Despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal, no valor médio mensal de €180,00 euros;
G – Despesa com seguro de saúde no valor mensal de €28,49 euros.
- e conclui que que o minimamente necessário à sua sobrevivência e do seu filho menor é a quantia de pelo menos salário mínimo e meio.

Juntou documentos.

Notificados os credores, nada disseram.

A 22/09/2022 foi proferido o seguinte despacho:
“ O despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante é proferido quando não haja motivo para indeferimento liminar nos termos do art. 238º do CIRE.
O despacho inicial determina a abertura, nos três anos posteriores ao encerramento do processo, do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível a um fiduciário, e da imposição de um conjunto de obrigações (cfr. Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., Maria do Rosário Epifânio, pgs. 379 e ss).
Os factos e a prova a produzir tem que ser levada aos autos pelo administrador de insolvência e credores, pois sobre eles recai o ónus de prova nos termos do art. 342º do Cód, Civil, aplicando-se a regra geral do ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito e sobre o devedor o ónus da alegação e prova dos factos extintivos daquele direito.
No caso em apreço não se verifica nenhuma das circunstâncias que nos termos do art. 238º do CIRE imporiam o indeferimento liminar deste pedido, pelo que, deve ser proferido o aludido despacho inicial de admissão do pedido de EPR do requerente AA.
Nomeia-se Fiduciário o Sr. Administrador de Insolvência.

Cumpra o disposto no art. 247º do CIRE.
*
O despacho inicial determina a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante o prazo de 3 anos (art. 239º, nº2 do CIRE).
A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo abrangidos por quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao Fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº2 do Cód. Civil, dado que a cessão de rendimento constitui uma hipótese legalmente prevista. (cfr. Direito da Insolvência, 8ª ed., Luís Menezes Leitão, p. 369).

No caso em apreço há que considerar a seguinte factualidade:

- O insolvente encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga a quantia de 450,00€ mensais a título de renda.
- exerce funções de tecelão na empresa “E... - Indústria de Etiquetas, Lda.”, auferindo o Vencimento mensal de 850,00€, acrescido dos respetivos subsídios e descontos.
- Tem um filho menor a quem paga mensalmente uma pensão de € 200,00.
Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve fixar-se em € 730 mensais, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade.
Excluem-se da exoneração os créditos previstos no artigo 245.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique.”

O insolvente interpôs recurso, pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que conceda rendimento disponível não inferior a €987,45 por mês,. Tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – O Tribunal a quo, no despacho ora recorrido, não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de fixação do montante de €730,00 (setecentos e trinta euros) que considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade,
2 - Não se pronunciou sobre questões objecto do pedido, nomeadamente, quanto ao montante do rendimento disponível que se reputa como minimamente necessário à sua sobrevivência e do seu filho menor.
3 - Foram alegados e provados, pelo aqui recorrente, no requerimento de resposta ao douto despacho com a referência Citius ...61, as despesas que considera relevantes e necessárias para assegurar o sustento minimamente digno do Insolvente e do filho menor.
4 – Ora, a renda de casa e a pensão de alimentos (€450,00+€200,00) perfazem a quantia de €650,00 euros.
5 – Do rendimento disponível fixado em €730,00 euros o insolvente tem que pagar a renda da habitação (€450,00) e a pensão de alimentos do filho (€200,00), pelo que, o remanescente disponível que lhe resta para as restantes despesas mensais são €80,00 euros (€730,00- €650,00),
6 - Estes €80,00 euros não chegam para pagar na totalidade das outras despesas fixas, nomeadamente, com água, electricidade e gaz, que somados perfazem a quantia mensal de €99,07 euros (€66,90+€32,17).
7 - Fora estas despesas fixas, o insolvente (como qualquer pessoa) tem mais despesas, nomeadamente, com alimentos, produtos de higiene pessoal, roupa, que por muito poupado que seja, nunca serão inferiores, mensalmente, a €180,00 euros.
8 - Salvo o devido e melhor respeito, o Tribunal à quo, não tem em consideração todos os factos, pelo que, se impugna a decisão sobre a matéria de facto relativamente ao segmento da decisão em que só considera a seguinte factualidade:
“No caso em apreço há que considerar a seguinte factualidade:
- O insolvente encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga a quantia de 450,00€ mensais a título de renda.
- exerce funções de tecelão na empresa “E... - Indústria de Etiquetas, Lda.”, auferindo o vencimento mensal de 850,00€, acrescido dos respetivos subsídios e descontos.
- Tem um filho menor a quem paga mensalmente uma pensão de € 200,00.
Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve fixar-se em € 730 mensais, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade. “
9 - O Tribunal a quo, não se pronuncia sobre todos os factos alegados, mas também não fundamenta os motivos de facto e de direito, que levam a chegar ao montante de exclusão no valor de €730,00 euros, pelo que padece de nulidade, nos termos da alínea d) do n.º 1, artigo 615.º do CPC.
10 - A decisão sobre o rendimento disponível, deveria ter em conta o seguinte:
A - O vencimento anual do insolvente, acrescido dos subsídios de Natal e de Férias, isto é, €850x14=€11.900,00 euros, dividido por 12 meses, €991,66 euros, subtraindo os impostos a pagar em sede de IRS, obtendo o rendimento líquido final.
B – As despesas que assegurem a subsistência com a mínima dignidade isto é:
B.1- Pensão de alimentos ao filho menor no valor de €200,00 euros; (doc. ... junto com a P.I.)
B.2 – Contrato de arrendamento no valor mensal de €450,00 euros; (doc.... junto com orequerimento)
B. 3 – Consumo de gaz e electricidade no valor médio mensal de €66,90 euros; (doc. ... junto com o requerimento)
B. 4 – Consumo de água no valor médio mensal de €32,17 euros; (doc. ... junto com o requerimento)
B. 5 – Despesa mensal com telefone e internet mensal de €29.89 euros; (doc. ... junto com o requerimento)
B. 6 - Despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal, no valor médio mensal de €180,00 euros;
B.7 – Despesa com seguro de saúde no valor mensal de €28,49 euros. (doc. ... junto com o requerimento)
Totais despesas fixas:
--------------------------------------------------- €987,45 euros
11 - Os montantes acabados de referir, necessários e essenciais, devem ser excluídos da cessão de rendimentos, sob pena de colocar em causa a sobrevivência do devedor.
12 - O montante de exclusão previsto no artigo 239.º n.º 3 alínea b), foi violado pelo despacho agora recorrido, porquanto, não tem em conta a totalidade das despesas necessárias e essenciais ao sustento minimamente digno, sendo, por isso, nulo.
13 - Porquanto, de acordo com os cálculos acabados de demonstrar, o douto despacho não assegura outras despesas (alimentação, gaz, electricidade, água, saúde), para o sustento minimamente digno do devedor/insolvente e do seu agregado, quando fixa em €730,00 euros, o limite que assegura a subsistência, quando foi demonstrado que o montante mínimo que assegura a subsistência do devedor é de pelo menos €987,45 euros.
14 - A ratio legis do artigo 239.º n.º 3 alínea b), correspondente excepção (...) "é a salvaguarda do quantitativo monetário necessário à sobrevivência humanamente condigna dos insolventes, em concretização do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de Direito, vertidos nas disposições conjugadas dos art.rs 1.°, 59.°, n." 2 aI. a) e 63.°, n.rs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional."
15 - Perante o exposto, conclui-se que o douto despacho viola o montante que o assegura a subsistência do devedor, que é de pelo menos €987,45 euros, de molde a garantir o sustento minimamente digno do agregado familiar.
16 - Ao decidir como decidiu fez o Mmº Juiz “a quo” errada interpretação e aplicação, entre outros, do disposto nos artigos 239.º e 241, do CIRE.

Não consta dos autos tenham sido apresentadas contra alegações.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Assim, são duas as questões a decidir:

- saber se a sentença é nula á luz do disposto no art.º 615º n.º 1, alínea d) do CPC;
- se há deficiência na decisão de facto;
- se  o montante excluído do rendimento disponível, fixado na decisão recorrida em € 730 mensais, é, ou não,  adequado  ao sustento  minimamente digno da insolvente  e do seu agregado familiar.

3. Da nulidade da decisão recorrida

O art.º 617º do do CPC, aplicável aos despachos ex vi do nº 3 do art.º 613º do mesmo, dispõe:
“1. Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento…
(…)
5. Omitindo o juiz o despacho previsto no nº 1, pode o relator, se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o previsto no nº 6”.

O Sr. Juiz, no despacho que admitiu o recurso, não se pronunciou quanto á nulidade invocada.

Porém, este tribunal entende não ser indispensável a baixa do processo, pelo que se passará a conhecer da questão suscitada

O recorrente invoca que o tribunal a quo não se pronuncia sobre todos os factos alegados, mas também não fundamenta os motivos de facto e de direito que levam a chegar ao montante de exclusão no valor de € 730,00, pelo que padece de nulidade nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

Dispõe o art.º 615º do CPC:

1. É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter ( cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

A alínea d) do n.º 1 do art.º 615º contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

A primeira está correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”

O normativo tem em vista as questões essenciais, ou seja, o juiz deve conhecer todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente (desde que existam elementos de facto que as suportem), sob pena da sentença ser nula por omissão de pronúncia.

As questões essenciais não se confundem com os argumentos invocados pelas partes nos seus articulados. O que a lei impõe, sob pena de nulidade, é que o juiz conheça das questões essenciais e não os argumentos invocados pelas partes (sendo abundante a jurisprudência em que esta questão é suscitada, a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 21/01/2014, proc. 9897/99.4TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jst).

Feito este excurso impõe-se apreciar.

Em primeiro lugar, o facto de, eventualmente, o tribunal a quo não se ter pronunciado quanto a determinados factos, não constitui nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.

É que as questões essenciais que a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC impõe que o juiz conheça, não se confundem com “factos”.

Como refere Alberto dos Reis, in CPC Anotado, 1984, pág. 145: “Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.”

E como decidido pelo Ac. do STJ de 23/07/2017, processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido”: são situações que “não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC”.

Destarte e quando muito, estar-se-á perante uma deficiência da matéria de facto, patologia a suprir nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC.

Em segundo lugar a alegação de que o tribunal não fundamenta os motivos de facto e de direito que levam a chegar ao montante de exclusão no valor de € 730,00, não se enquadra, manifestamente, na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º.

A não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão é fundamento de nulidade previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

Esta alínea b) está correlacionada com o disposto:
- no art.º 205º n.º 1 da CRP - que dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei;
 - no art.º 154º do CPC - que dispõe, no n.º 1, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas e no n.º 2 que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo, quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade;
- e especificamente, no que respeita à sentença, com o disposto no art.º 607º do CPC – cujo n.º 3 dispõe que nos fundamentos, deve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes e cujo n.º 4 dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

Este n.º 4 tem em vista a fundamentação/motivação da decisão de facto, que tem de ser incluída na sentença e tem em vista possibilitar o controlo da decisão, dada a possibilidade que as partes têm de recorrer da matéria de facto, cumpridos que sejam os requisitos do art.º 640º do Código de Processo Civil.

Como referia Alberto dos Reis  In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, p. 172/173 “A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser. Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça. A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge”.

Mas a situação prevista nesta alínea b) só se verifica quando exista uma falta absoluta de fundamentação, não quando se trate de:
a) fundamentação deficiente, no sentido de não estar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, situação que segue o regime do art.º 662º n.º 2, alínea d) do CPC;
b) ou fundamentação medíocre, insuficiente, incompleta, não convincente ou contrária à lei, em que poderá haver erro de julgamento de facto, a constituir, por isso, objecto de recurso de impugnação da matéria de facto, salvo as situações em que esteja pura e simplesmente em causa a aplicação de normas de direito probatório material (cfr. Abranges Geraldes, Recursos em processo civil, Almedina, 6ª edição, pág. 333-334).

Ainda Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, 140, a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão e utilizando a locução “motivação” no sentido de “fundamentos de facto e de direito”, locução que restringimos à justificação da decisão da matéria de facto, afirmava: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.

Na jurisprudência e a titulo meramente exemplificativo e por recente, o Ac. do STJ de 02/03/2021,  processo 835/15.0T8LRA.C3.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - “Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.

O tribunal a quo consignou na decisão recorrida:
No caso em apreço há que considerar a seguinte factualidade:
- O insolvente encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga a quantia de 450,00€ mensais a título de renda.
- exerce funções de tecelão na empresa “E... - Indústria de Etiquetas, Lda.”, auferindo o Vencimento mensal de 850,00€, acrescido dos respetivos subsídios e descontos.
- Tem um filho menor a quem paga mensalmente uma pensão de € 200,00.
Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dev fixar-se em € 730 mensais, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade.

Destarte, ainda que de uma forma assaz sucinta, o tribunal a quo especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, pelo que também não se verifica a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

Improcede portanto, in totum, a invocada nulidade da decisão recorrida.

4. Fundamentação de facto

Os factos a considerar são os que constam do Relatório do presente Acordão e ainda:
- O insolvente encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga a quantia de 450,00€ mensais a título de renda.
- Exerce funções de tecelão na empresa “E... - Indústria de Etiquetas, Lda.”, auferindo o Vencimento mensal de 850,00€, acrescido dos respetivos subsídios e descontos.
- Tem um filho menor a quem paga mensalmente uma pensão de € 200,00.
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5. Deficiência na decisão de facto

O recorrente alega que o tribunal a quo não se pronunciou quanto a alguns dos factos alegados no requerimento de 15/09/2022.

No requerimento inicial o requerente não indicou quaisquer despesas.

Por despacho de 13/09/2022 foi ordenada a notificação do insolvente para  “”indicar e juntar aos presentes autos os comprovativos das suas despesas que considera relevantes (despesas com habitação, saúde, etc).”.

Os factos necessários à fixação do rendimento indisponível devem ser alegados no requerimento em que é formulado o pedido de exoneração do passivo.

Neste sentido, o Ac. da RL de 12/12/2013, processo 3339/12.9TJLSB-D.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl em cujo sumário consta:
2. - A alegação das necessidades do devedor e seu agregado familiar – em termos de composição da despesa e respectivos montantes, que suporta – e o oferecimento da respetiva prova, em ordem a obter a fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, devem ter lugar aquando da formulação do pedido de exoneração do passivo restante a que alude o art.º 236.º, n.º 1, do CIRE;

Mas o mesmo pode ser objecto de despacho de aperfeiçoamento.

Neste sentido o Ac. desta RG de 04/04/2019, processo 3074/13.0TJVNF-G.G1 em cujo sumário consta ( sublinhado nosso):  
3- A invocação das necessidades do devedor e o oferecimento da respetiva prova, em ordem a obter a fixação do montante referido atrás, deve ser feita no pedido de exoneração do passivo restante (sem prejuízo da possibilidade deste sofrer despacho de aperfeiçoamento e de convite de apresentação de elementos probatórios que o completem (face à natureza do processo) ou da sua posterior alteração, existindo factos novos a atender.

O despacho de 13/09/2022 só pode ser entendido como despacho de aperfeiçoamento, por um lado e como despacho à luz do principio do inquisitório ( art.º 11º do CIRE).
 
O insolvente, por requerimento de 15/09/2022, veio alegar as seguintes despesas:

C – Consumo de gaz e electricidade no valor médio mensal de €66,90 euros;
D – Consumo de água no valor médio mensal de €32,17 euros;
E – Despesa mensal com telefone e internet mensal de €29.89 euros;
F - Despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal, no valor médio mensal de €180,00 euros;
G – Despesa com seguro de saúde no valor mensal de €28,49 euros.

Estes factos não foram considerados na decisão recorrida.

Dispõe a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

A decisão de facto será deficiente se houver “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso” (Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 352).

Os montantes invocados pelo insolvente sob as alíneas C), D) E) e G) não foram impugnados.
E estão comprovados pelos documentos juntos com o requerimento de 15/09/2022, que não foram impugnados, pelo que existem elementos disponíveis para esta Relação suprir a referida deficiência.
Mas com a seguinte limitação: os documentos juntos não permitem demonstrar que os quantitativos referidos sob as alíneas C) e D) correspondem a valores médios de consumo.
Relativamente às despesas ali elencadas apenas é possível considerar provado que no período de 20/07/2022 a 18/08/2022 o insolvente despendeu €66,90 em gaz e electricidade e relativamente ao período de 16/07/2022 a 16/08/2022 despendeu €32,17 em água.
A despesa com telefone e internet no valor mensal de €29.89 corresponde ao valor de um pacote acertado previamente e o valor do seguro de saúde é fixado previamente.
Quanto às despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal, no valor médio mensal de €180,00, o recorrente não juntou quaisquer documentos comprovativos, pelo que não é possível considerar provado o referido.

No entanto e como é normal, qualquer pessoa, salvo casos excepcionais, que ninguém invocou, tem despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal.

Em face e ao abrigo do disposto no art.º 662º n.º 2, alínea c) do CPc adita-se à fundamentação de facto os seguintes factos:

- No período de 20/07/2022 a 18/08/2022 o insolvente despendeu €66,90 em gaz e electricidade.
- No período de 16/07/2022 a 16/08/2022 o insolvente despendeu €32,17 em água.
- O insolvente despende mensalmente telefone e internet €29.89.
- O insolvente tem despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal.
- O insolvente despende mensalmente seguro de saúde no valor mensal de €28,49 euros.

6. Direito

6.1. Da exoneração do passivo restante

Dispõe o art.º 235º do CIRE:
Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.

Na exposição de motivos do DL 53/2004, de 18 de Março e que aprovou o CIRE, refere-se no ponto 45:

“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos ..., e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
(…)”

A este respeito explica Alexandre Soveral Martins in Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2016, 2ª edição, pág. 583-584, que o regime da exoneração do passivo restante “faculta […] ao devedor (e, muitas vezes á sua família) a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeira equilibrada.”

Catarina Serra in Lições de Direito da insolvência, Almedina, 2021, 2ª edição, pág. 611, distingue dois modelos de insolvência das pessoas singulares:

a) o modelo do “fresh start”  em que “a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma poder retomar, com tranquilidade a sua vida”;
b) o modelo do “earned start“ ou reabilitação, o qual “ assenta ainda no “fresh start” mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dividas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, dever-lhe-á ser concedido o benefício” – e conclui que a lei portuguesa se aproxima do último.

Como refere Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 10ª edição, pág. 323, “através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento dos credores, ou decorridos cinco anos [a obra em referência é anterior à alteração do art.º 235º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o período de cessão de 5 para 3 anos] após o encerramento do processo, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou decurso desse prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem [até ao limite do prazo de prescrição que pode atingir 20 anos (art.º 309º do CC)], são declaradas extintas”.

A exoneração do passivo restante não é concedida de imediato, mas apenas decorrido o prazo de três anos e cumpridas escrupulosamente as obrigações impostas, demonstrando o devedor ser merecedor, a final, da concessão do benefício.

Como refere Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 384 “ o despacho inicial [de exoneração do passivo restante] determina a abertura, nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo, [a obra em referência também é anterior à alteração do art.º 235º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o período de cessão de 5 para 3 anos] do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível a um fiduciário e da imposição de um conjunto de obrigações.”

Para a sua concessão a final torna-se “necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência” – cfr.  Ac. RP de 07/10/2010, processo. 2329/09.3 TBMAI-A.P1.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos - designado período da cessão - adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos e ao cumprimento de outros deveres, adoptando nesse período um “comportamento pautado pela lisura para os credores”, esforçando-se por merecer a concessão daquele beneficio (cfr. Ac. da RP de 14/06/2011, processo 4196/10.5TBSTS.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp)

Assim, o art.º 239º n.º 2 do CIRE dispõe que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário.

Ou seja: durante o período de 3 anos o devedor fica obrigado ceder o seu rendimento disponível.

O n.º 3 do art.º 239º dispõe que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor…

Mas também estabelece a exclusão desse rendimento disponível:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Conforme decorre do disposto nos nºs 2 e 3, o rendimento disponível é o montante a ceder ao fiduciário, depois de excluídos os montantes a que se refere o n.º 3.
Destarte, no despacho inicial e nomeadamente tendo em consideração o disposto no art.º 239º, n.º 3, alínea b) i), deve ser fixado o montante que, de entre todos os rendimentos do insolvente, o mesmo não está obrigado a entregar ao fiduciário, por ser o “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, pois toda restante parte dos rendimentos deve ser entregue ao fiduciário.

Mas então coloca-se a questão da determinação “Do que seja razoavelmente necessário para … o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…”

E para tanto não se pode, desde logo, deixar de atentar que o mesmo tem subjacente o principio constitucional da dignidade pessoa humana, que embora referido no art.º 1º da CRP como constituindo a base da República Portuguesa é, na realidade um «vector axiológico estrutural da própria Constituição» ( Ac do TC nº 28/2007, de 17/0172007, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070028.html), na medida em que reconhece a pessoa humana como um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto da ‘validade’ das respectivas ‘normas’.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 859, a exclusão prevista na alínea i) decorre da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular.

A norma não especifica um montante mínimo do rendimento disponível excluído da cessão, limitando-se, por um lado, a indicar um conjunto de conceitos indeterminados para que o tribunal, face às circunstâncias do caso concreto, encontre tal valor: “ Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…”  e a fixar um tecto máximo – “três vezes o salário mínimo nacional” –, que poderá ser ultrapassado mediante “decisão fundamentada do juiz em contrário”.

A fixação de um tecto máximo nos referidos termos tem várias implicações: desde logo o legislador entende que acima do seu valor já não estará em causa o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…”; em segundo lugar, se o valor máximo é fixado por referência ao salário mínimo nacional, o valor mínimo não poderá deixar de ter o mesmo referencial, ou seja, nunca poderá deixar de ser considerado como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o valor correspondente a um salário mínimo nacional.

Assim e quanto à utilização do salário mínimo nacional como referencial para o limite mínimo, refere-se no Ac. do STJ de 02/02/2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
IV - Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.

E isto na linha do Ac. do TC n.º 117/2002, de 23/04/2002, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020177.html, acórdão que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição.

Muito embora a concreta questão dos autos seja diferente, afirmou-se ali, com relevância para os presentes, citando o Ac. do mesmo TC n.º 318/99:
“Porém, assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também, uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário.”

E da lavra do Ac. n.º 117/2002:
“Como se afirmou no acórdão nº 318/99 e resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir "a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador" (acórdão nº 318/99).”

Por outro lado o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, porque tem subjacente o principio da dignidade da pessoa humana, contido no principio do Estado de Direito, deve ser encontrado em face da situação concreta de cada devedor e do seu agregado familiar, das suas circunstâncias particulares, da sua singularidade, não obstante as dificuldades que encerra a prudente consideração de cada caso, não olvidando, que, como manda o n.º 3 do art.º 8º do CC, deverão ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, por forma a dar cumprimento ao principio da igualdade plasmado no art.º 13º n.º 1 da CRP.

Isto mesmo vem sendo afirmando pela jurisprudência:

- o já citado Ac. do STJ de 02/02/2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - II - O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar…”.
- o já citado Ac. da RG de 17/05/2018. processo nº 4074/17.7T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg refere:  - “I - O critério geral e abstrato de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no art. 239º, n.º 3, al. b), i., do CIRE, terá que ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do “princípio da dignidade humana”;
- o Ac. do STJ de 09/02/2021, processo 2194/19.2T8ACB-B.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - “III. O montante do rendimento não abrangido pela cessão ao fiduciário há-de ser fixado casuisticamente, tendo em conta o que seja necessário para o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» (art. 239.º, n.º 3, al. b), subal. i) do CIRE). O legislador usou um conceito indeterminado, que permite atender às particularidades das situações da vida e alcançar uma “individualização” da solução”;

Assim, deve ser tido em consideração o número de elementos do agregado familiar, as condições pessoais do devedor e de cada um dos membros do seu agregado familiar, tais como, idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos auferidos, independentemente da sua natureza. 

Neste sentido, o já referido Ac. da RL de 12/12/2013, processo 3339/12.9TJLSB-D.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl em cujo sumário consta:
4. - Para aferição do rendimento indisponível deverá ter-se em conta as condições pessoais e de vida do insolvente e agregado, nos moldes em que apuradas, designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde, não devendo, em condições de normalidade, esse rendimento ser inferior a um salário mínimo nacional.

Mas importa afastar aqui uma ideia: a fixação o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não visa assegurar ao devedor ou ao seu agregado familiar a  manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência.

Uma vez que o vector fundamental da norma é o da dignidade da pessoa humana, a fixação daquele valor tem em vista os gastos necessários à subsistência, ao custeio das necessidades primárias -  despesas relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica - e não referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos.

Assim:
- o Ac. da RC de 31/01/2012., processo 1255/11.0TBVNO-A.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc5. O critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos).
- o Ac. da RP de 25/09/2012, processo 3057/11.5TBGDM-E.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp:
I - No instituto da exoneração do passivo restante está em causa determinar o estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, e não necessariamente manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência. A situação de insolvência tem como primeira consequência a impossibilidade de manutenção do anterior nível de vida.
II - A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
- o Ac. desta RG de 19/03/2013, processo 363/12.5TBCMN-B.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg: III- Cabendo ao Tribunal, caso a caso, determinar o que seja razoavelmente necessário para a satisfação das necessidades básicas do insolvente, no âmbito do referido juízo importa atentar que não se exige porém que o devedor mantenha o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma sua existência condigna.
- o Ac. da RE de 04/12/2014, processo  1956/11.3TBSTR-I.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg: V - O montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período da cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta.

Além disso, a fixação o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não obriga a que sejam atendidas todas as despesas comprovadas pelo insolvente.

Como refere o Ac. da RC de 31/01/2012, processo 131/11.1T2AVR-D.C1 II – O critério para determinar a quantia necessária para sustento minimamente digno não reside no que o devedor/insolvente diz que precisa para o seu sustento mas antes no que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo, independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até gerou a situação de insolvência – ou se pretende manter.

Por outro lado e como refere o Ac. do STJ de 02/02/2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
“Jogam-se nesta norma [ art.º 239º, n.º 3, b) i) ] dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos requerentes da exoneração; outro, na lógica da “segunda oportunidade” concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos.”

A exclusão da cessão ao fiduciário do valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar comprime os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos.
No entanto, tal compressão está justificada á luz do principio da dignidade da pessoa humana.
Mas, muito embora assim seja, em concreto tal compressão há-de ser adequada, necessária e proporcional à salvaguardada desse principio.
           
Assim:

- o já citado Ac. da RP de 25/09/2012, processo 3057/11.5TBGDM-E.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp:
II - A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
- o também já citado Ac. desta RG de 17/12/2020, processo 2142/12.0TBBRG.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg:
IV - A determinação desse valor indisponível tem de ser efetuada pelo juiz mediante ponderação casuística das circunstâncias particulares do devedor, tendo em conta o princípio da dignidade humana e os princípios constitucionais de proibição do excesso e da adequação, necessidade e proporcionalidade, sopesando sempre os interesses antagónicos em confronto do insolvente e dos credores.
V – Por isso, o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos tem que ser comprimido na medida do que seja necessário, adequado e proporcional à salvaguardada do sustento minimamente digno do insolvente e respetivo agregado familiar visto que assim o impõe o respeito pela dignidade da pessoa humana.

Em face de tudo o exposto, a exoneração do passivo restante, implica sacrifícios para o devedor, um maior rigor no orçamento familiar, com uma redução das despesas ao mínimo indispensável para o seu sustento e respetivo agregado familiar, de  forma a que os credores  possam ver seus créditos satisfeitos em alguma medida e se justifique  o perdão da dívida findo o período de cessão de rendimentos.

6.2. Em concreto

O tribunal recorrido fixou o rendimento indisponível em € 730,00.

O recorrente pretende que se fixe o rendimento indisponível na medida das suas despesas, que computa em € 987,45.

Vejamos

Em primeiro lugar e como já ficou referido supra, entendemos que o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar deve ser fixado por referência ao salário mínimo nacional rectius, retribuição mínima mensal garantida ou seja, 1 RMMG, 1,23, 1,50, consoante o caso concreto demandar, a fim de que tal valor tenha um referencial de actualização conhecido, sem necessidade de uma intervenção do tribunal.
           
Entretanto, no passado dia 22 de dezembro, foi publicado o Decreto-Lei n.º 85-A/2022 que fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida em € 760, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023.

Resulta da factualidade provada que:
- O insolvente encontra-se a residir em casa arrendada da qual paga a quantia de 450,00€ mensais a título de renda.
- Exerce funções de tecelão na empresa “E... - Indústria de Etiquetas, Lda.”, auferindo o Vencimento mensal de 850,00€, acrescido dos respetivos subsídios e descontos.
- Tem um filho menor a quem paga mensalmente uma pensão de € 200,00.
- No período de 20/07/2022 a 18/08/2022 o insolvente despendeu €66,90 em gaz e electricidade.
- No período de 16/07/2022 a 16/08/2022 o insolvente despendeu €32,17 em água.
- O insolvente despende mensalmente telefone e internet €29.89.
- O insolvente tem despesas com alimentação, vestuário e higiene pessoal.
- O insolvente despende mensalmente seguro de saúde no valor mensal de €28,49 euros.

Ao longo das suas alegações e conclusões o recorrente refere, por diversas vezes, o seu “agregado familiar”.
           
Muito embora se encontre uma definição de agregado familiar no art.º 4º do DL 70/2010, de 16/06, basta-nos o entendimento comum da expressão: o “agregado familiar” de uma pessoa supõe que o mesmo integra várias pessoas, que vivem em economia comum, como seja o cônjuge ou pessoa em união de facto, os pais daquela pessoa e do cônjuge ou unido de facto, os filhos daquela pessoa.

Se o recorrente coabita com alguma daquelas pessoas em economia comum, nomeadamente partilhando despesas, não foi alegado por ninguém.

Como tal, há-de entender-se que vive sozinho.

Já acima ficou dito a fixação o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não obriga a que sejam atendidas todas as despesas comprovadas pelo insolvente.
Apenas o que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo.

O recorrente tem duas despesas relevantes: a renda de casa e a pensão do filho menor, constando expressamente da matéria de facto que o mesmo paga a referida pensão mensalmente.

As despesas relativas a habitação, alimentação, vestuário, higiene pessoal, gaz, electricidade e água, sendo essenciais para uma vivência condigna, são inerentes a qualquer pessoa.
Importa, no entanto, não olvidar o actual quadro de inflação, em que tais despesas sofrem um incremento acentuado.

O mesmo já não se pode dizer das despesas com telefone e internet e seguro de saúde, tanto mais quanto cumpre ao insolvente ajustar as suas despesas ao nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta.

Neste contexto, não podemos deixar de considerar que o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor não pode deixar de ser fixado em 1,25 RMMG vezes doze meses.
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7. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª secção da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão, que se substitui por outra que fixa o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor em 1,25 RMMG vezes doze meses.
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Custas pelo recorrente, que, sem qualquer oposição tirou proveito do recurso – art.º 527º, n.º 1, parte final, do CPC.
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Notifique-se
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Guimarães, 02/03/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos:  Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
José Fernando Cardoso Amaral