Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1777/18.2T8BCL.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: ABANDONO DO POSTO DE TRABALHO
REQUISITOS
PROCESSO DISCIPLINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- O abandono do posto de trabalho pressupõe a prova de um elemento objectivo constituído pela ausência ao trabalho e de um subjectivo constituído pela intenção do trabalhador não retomar o trabalho, propósito que se extrai de factos concludentes que, com toda a probabilidade, o revelem.

II- Não é idónea à prova da intenção de não retomar o trabalho, a conduta do trabalhador, motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, que fica em casa a aguardar instruções do empregador, após a prestação do último serviço, o qual não concluiu, porque o empregador não atendeu diversas chamadas por si efectuadas por motivo relacionado com o trabalho de carga, nem as retribuiu.

III- Se a conduta do trabalhador não assume significado inequívoco quanto ao seu propósito de extinguir o contrato de trabalho e o empregador entende que aquele não cumpriu os seus deveres contratuais, mormente de obediência e de assiduidade, então deve recorrer a processo disciplinar.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTOR/RECORRIDO- I. G.
RÉ/RECORRENTE X Transportes Unipessoal, Ld.ª.

Pede o autor que seja declarada a ilicitude da cessação do contrato de trabalho promovida unilateralmente pela ré com base em falsa invocação de abandono de trabalho e, consequentemente, seja esta condenada em indemnização por despedimento ilícito em substituição da reintegração, além de outros créditos que por via do presente recurso não estão contestados (tendo ainda, quanto a estes, havido redução do pedido operada em sede de audiência final), tudo acrescido de juros de mora.

Alega, na parte que ora interessa ao recurso, que trabalhou para a ré como motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, mediante acordo e conforme …- …/…, do pagamento de €600/retribuição, de €105,82/prémio TIR e €337,50/cláusula 74º, de €20,00 diários por cada dia em território Espanhol e de €40,00 diários por cada dia em qualquer outro país estrangeiro; o período normal de trabalho seriam 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, com descanso ao sábado e domingo; embora sendo o sábado dia de descanso complementar, frequentemente era-lhe solicitava-lhe a realização de transporte de mercadorias no referido dia; em 2-09-2017, sábado, a ré empregadora solicitou ao autor e este acedeu num transporte de mercadorias que supostamente seria de curta duração, em dois clientes; no decurso da viagem, foi-lhe solicitado a passagem num terceiro cliente- a Y Transitários SA- para levantar uma nova carga, no que o autor acedeu; chegado às instalações da Y, pelo funcionário da empresa foi-lhe dito que para aquele dia não existia qualquer carga para a ré; o autor tentou entrar em contacto, por diversas vezes, com a sua entidade patronal na pessoa do Sr. C., não tendo este nunca atendido as chamadas, nem retribuído as mesmas; o autor permaneceu no cliente cerca de 3 horas na expectativa que a sua entidade patronal atendesse os telefonemas constantemente efetuados, ou os retribuísse, sem sucesso; dado que a situação não era inédita, o autor cumpriu as orientações habituais, deixando o reboque nas instalações da Y e dirigiu-se com o tractor para as instalações da ré, onde o deixou aparcado, por volta 1h da manhã de domingo; o autor ficou a aguardar novo contacto da ré empregadora para saber em que dia e hora deveria retomar a sua prestação de trabalho, uma vez que estaria dependente do serviço de transporte solicitado à sua entidade patronal; nos dias que se seguiram o autor não foi contactado pela sua entidade patronal, o que o autor não estranhou pois que era normal que um trabalhador quando prestasse serviço em dia de descanso complementar gozasse tal descanso em falta imediatamente no primeiro dia útil seguinte, desde que não existisse trabalho afecto ao trabalhador; era ainda procedimento comum da entidade patronal que quando não existisse contacto com o trabalhador por mais que um dia, que este se considerasse no gozo de férias até novo contacto; entretanto recebeu uma carta da ré datada de 15-09-2017, a comunicar a denúncia do contrato de trabalho por abandono, o que o autor logo contestou, por carta registada com AR, datada de 22-09-2017.

A ré contestou, alegando, em suma, que: no dia 2-09-2017, o trabalhador sem qualquer explicação ausentou-se do seu local de trabalho e deixou por cumpriu a função que lhe estava destinada pela empregadora para aquele dia; a cliente (Y) insatisfeita com a situação comunicou à ré o sucedido, bem como os inerentes prejuízos de não ter feito o transporte da mercadoria; o trabalhador a partir de então não voltou a contactar a empresa, não mais apareceu ao trabalho e não lhe fez qualquer comunicação da sua ausência; por isso comunicou-lhe o abandono de trabalho. Termina a ré deduzindo pedido reconvencional contra o autor, nos termos do qual se deverá declarar e reconhecer a licitude da resolução do contrato de trabalho operada por abandono (além de outros pedidos não admitidos).

Procedeu-se a julgamento, respondeu-se autonomamente à matéria de facto e proferiu-se sentença.

DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO): decidiu-se do seguinte modo:

Assim e nos termos expostos, julga-se a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, sendo improcedente e, consequentemente, decide o Tribunal:---

a) declarar ilícito o despedimento de I. G. levado a cabo por X Transportes Unipessoal, Ld.ª em 15.09.2017;---
b) condenar a X Transportes Unipessoal, Ld.ª a pagar a I. G.:-
a. as retribuições que deixou de auferir desde 04 de Junho de 2018 até ao trânsito em julgado da presente decisão, à razão de € 600,00 (seiscentos euros) mensais;---
b. a quantia, a liquidar posteriormente, de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros) [€ 600,00€ x 3 meses], a que acrescerá a quantia diária de € 1,64 (€ 600,00/ 365 dias) até ao trânsito em julgado da presente sentença, a título de indemnização em substituição da reintegração, descontado do valor correspondente ao montante das retribuições que o autor tenha obtido com a cessação do contrato e não obteria sem esta, nos termos do disposto no art.º 390.º do Código do Trabalho;---
c. a quantia líquida de € 663,23, por conta da prestação de trabalho do mês de Junho de 2017;---
d. a quantia total líquida de € 1.544,15, por conta da prestação de trabalho do mês de Agosto de 2017;---
e. a quantia ilíquida de € 521,66, por conta do mês de Setembro de 2017, considerando a data da cessação do contrato (18/09/2017);---
f. a quantia de € 480,00 a título dos dias que percorreu e/ou permaneceu num qualquer país estrangeiro durante o mês de Junho de 2017;---
g. a quantia de € 500,00 a título dos dias que percorreu e/ou permaneceu num qualquer país estrangeiro durante o mês de Junho de 2017;---
h. a quantia de € 1.154,80, a título retribuição de férias e subsídio de férias proporcional ao tempo de trabalho prestado ao longo do ano de 2017, sem prejuízo do desconto dos valores entretanto pagos como duodécimos nos meses de Junho, Agosto e Setembro do mesmo ano;---
i. a quantia de € 577,40 a título de subsídio de natal proporcional ao tempo de trabalho prestado ao longo do ano de 2017, , sem prejuízo do desconto dos valores entretanto pagos como duodécimos nos meses de Junho, Agosto e Setembro do mesmo ano;---
j. a quantia de € 114,38 a título crédito formação profissional.---
c) absolver a X Transportes Unipessoal, Ld.ª do demais contra si peticionado;---
d) absolver I. G. do pedido reconvencional contra si deduzido por X Transportes Unipessoal, Ld.ª.---
Custas da acção por autor e ré, na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo da isenção legal de que o primeiro beneficie.---
Custas da reconvenção pela ré.---
Valor da acção: € 8.181,52.---

A EMPREGADORA RECORREU – APRESENTOU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:

A. Temos A confissão em juízo do trabalhador/autor.
B. Este em depoimento de parte disse e por isso confessou. (gravação – das declarações em julgamento 10.45.01 ver)
C. Está aqui claramente o que o autor fez – abandonou o trabalho. D. Então não atendem telefones e ele deduz que está de férias.
E. O local do início dos seus trabalhos era na empresa – como é lógico basta ver o contrato doc junto aos autos.
F. Ele – o trabalhador/autor diz mesmo que o trabalho era sempre com início e fim no estaleiro.
G. O autor ficou com cartão de gasóleo nas férias? – para que queria o cartão? H. Vemos a sua confissão – “pensava” que estava de férias.
I. Mas agora basta um funcionário pensar que está de férias? E pode faltar e depois receber indemnização por ter abandonado o trabalho?
J. Pelos vistos pela sentença do tribunal a quo pode.
K. As consequências desta prova são simples – abandono do trabalho e consequentemente a sentença só teria de condenar no pagamento do mês de agosto que aliás foi confessado.
L. Se a confissão do autor não serve para efeitos de prova – então o seu depoimento é totalmente inócuo.
M. Não pode nem podia o tribunal a quo não ouvir esta confissão e proferir tal sentença.
N. Simples – teria de ter em conta a confissão e dar como provados os factos relativos ao abandono.
O. Por isso, mal julgada a matéria de facto dada por provada e outra dada por não provada.
P. Estes pontos provados:
“3.19. Sucede que nos dias que se seguiram o autor em momento algum foi contactado pela sua entidade patronal, o que o autor não estranhou pois que era normal que um trabalhador quando prestasse serviço em dia de descanso complementar gozasse tal descanso em falta imediatamente no primeiro dia útil seguinte, desde que não existisse trabalho afecto ao trabalhador em causa.---“
Q. Aqui o juiz a quo confunde e pensa que por ter direito ao descanso complementar podia ficar a pensar que estaria de férias.
R. 3.20. “Era ainda procedimento comum da entidade patronal que quando não existisse contacto com o trabalhador por mais que um dia, que este se considerasse no gozo de férias até novo contacto.---“
S. Não há uma prova sobre este facto – NUNHUMA PROVA. T. Devia ser dado por não provado.
U. Provado devia ser o facto do abandono – para isso bastava a confissão do autor. V. Foi violado o artigo 403 do CT.
Nestes termos deverá o Recurso em apreço ser procedente, consequentemente, ser julgado improcedente os pedidos referente ao despedimento ilícito.
Fazendo-se assim Inteira Justiça.

CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ: defende a manutenção da decisão recorrida.
O Ministério Público emitiu parecer defendendo a manutenção da decisão recorrida, pese embora deva ser dada como não provada a matéria do ponto 3.20, o que, contudo, em nada interfere na decisão.
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art. s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)):

1- Impugnação da matéria de facto;
2- Despedimento ilícito (informal) versus abandono do posto de trabalho.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A- FACTOS

Na primeira instância foram julgados provados os seguintes factos (transcrevendo-se a negrito os factos da matéria de facto impugnados para facilitar a leitura):
3.1. Por acordo celebrado entre autor e ré, o primeiro obrigou-se a prestar a atividade de motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, sob a ordem, direcção, autoridade e fiscalização da segunda, mediante o pagamento retribuição convencionada com a ré e, nos termos da Convenção Coletiva de Trabalho Vertical celebrada com a … – …, de € 600,00 (seiscentos euros) a título de retribuição mensal ilíquida, € 105,82 (cento e cinco euros e oitenta e dois cêntimos) a título de prémio TIR e € 337,50 (trezentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos) nos termos da cláusula 74º.---
3.2. O acordo referido foi celebrado verbalmente no dia 01 de Março de 2017, com vista à prestação de trabalho por tempo indeterminado, com início de vigência na referida data.---
3.3. Além das quantias referidas, autor e ré acordaram que o primeiro auferiria ainda a € 20,00 (vinte euros) diários por cada dia que percorresse e/ou permanecesse em território Espanhol e € 40,00 (quarenta euros) diários por cada dia que percorresse e/ou permanecesse num qualquer outro país estrangeiro.---
3.4. Foi ainda acordado entre as partes que o pagamento da retribuição se faria até ao dia 8 do mês seguinte ao da prestação de trabalho a que respeitava.---
3.5. A ré solicitou, entretanto, ao autor que assinasse dois escritos, ambos denominados de “contrato de trabalho a termo certo”, um datado de 31 de Março de 2017, fazendo menção de início de vigência no dia 3 de Abril de 2017 e término no dia 2 de Outubro de 2017, e outro datado de 30 de Maio de 2017, fazendo referência ao início de vigência no dia 1 de junho de 2017 e término a 30 de Novembro de 2017.-
3.6. Na altura, a ré não esclareceu o autor relativamente à finalidade da subscrição de tais escritos.-
3.7. Mais foi acordado entre autor e ré que o período normal de trabalho seriam 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, sendo que o sábado era dia de descanso complementar e o domingo dia de descanso obrigatório.---
3.8. A ré, embora sendo o sábado dia de descanso complementar, frequentemente solicitava ao trabalhador a realização de transporte de mercadorias no referido dia.---
3.9. No primeiro sábado do mês de Setembro de 2017, concretamente dia 2, a ré empregadora solicitou ao autor um transporte nacional de mercadorias, solicitação esta que o autor acedeu em realizar.---
3.10. Para o efeito a ré empregadora informou o autor que seria uma viagem de curta duração, cerca de três a quatro horas, onde passaria por dois clientes apenas, não sendo assim necessário a este último precaver-se com roupa e comida, como habitualmente fazia, pois em breve regressaria a casa.---
3.11. Já no decurso da viagem, o autor recebeu um telefonema da ré empregadora dando-lhe conta que teria de passar pelas instalações da Y Transitários SA, onde estaria uma nova carga disponível para levantar, o que o autor acedeu em realizar.---
3.12. Uma vez chegado às instalações da Y, o autor dirigiu-se ao escritório da referida empresa – como era habitual – questionando o funcionário que aí se encontrava a trabalhar se existia alguma carga cujo levantamento e transporte estivessem destinados para ele enquanto motorista da ré empregadora.---
3.13. Pelo funcionário foi-lhe dito que deveria existir algum equívoco, uma vez que para aquele dia não existia mais qualquer carga e/ou transporte que estivesse destinado ao autor na qualidade de motorista da ré empregadora.---
3.14. Perante tal resposta o autor tentou entrar em contacto por diversas vezes com a sua entidade patronal na pessoa do Sr. C., contacto esse que se frustrou pois que o mesmo nunca lhe atendeu as chamadas ou sequer as retribuiu.---
3.15. Em face de tal situação o autor decidiu aguardar cerca de duas a três horas nas instalações da Y na expectativa que a sua entidade patronal atendesse os telefonemas constantemente efetuados, ou os retribuísse, sem sucesso.---
3.16. O autor, e dado que a situação não era inédita, decidiu cumprir as orientações que ele e os demais motoristas da ré empregadora haviam recebido para quando uma situação como esta acontecesse.---
3.17. Em conformidade, o autor deixou o reboque nas instalações da Y, e dirigiu-se com o tractor para as instalações da respectiva entidade patronal, onde o deixou aparcado, sendo que à hora que aí chegou – por volta da 1h da manhã de domingo – já aí não se encontrava ninguém com quem pudesse falar para esclarecer o sucedido.---
3.18. Entretanto, o autor regressou a casa, ficando assim a aguardar novo contacto da ré empregadora para saber em que dia e hora deveria retomar a sua prestação de trabalho, uma vez que estaria dependente do serviço de transporte solicitado à sua entidade patronal.-
3.19. Sucede que nos dias que se seguiram o autor em momento algum foi contactado pela sua entidade patronal, o que o autor não estranhou pois que era normal que um trabalhador quando prestasse serviço em dia de descanso complementar gozasse tal descanso em falta imediatamente no primeiro dia útil seguinte, desde que não existisse trabalho afecto ao trabalhador em causa.---
3.20. Era ainda procedimento comum da entidade patronal que quando não existisse contacto com o trabalhador por mais que um dia, que este se considerasse no gozo de férias até novo contacto.---
3.21. Por via postal registada com AR, datada de 15 de Setembro de 2017, a ré comunicou ao trabalhador a intenção de denunciar o contrato de trabalho por abandono.---
3.22. O autor impugnou o conteúdo da referida carta, comunicando-o à ré à réempregadora que tudo isto não passava de um estratagema, a coberto de um manto de legalidade, por via postal registada com AR, datada de 22 de Setembro de 2017.---
3.23. A ré é devedora ao autor das seguintes quantias:---
i) a quantia líquida de € 663,23, por conta da prestação de trabalho do mês de Junho de 2017;---
ii) a quantia total líquida de € 1.544,15, por conta da prestação de trabalho do mês de Agosto de 2017;---
iii) a quantia ilíquida de € 521,66, por conta do mês de Setembro de 2017, considerando a data da cessação do contrato (18/09/2017);-
iv) a quantia de € 480,00 a título dos dias que percorreu e/ou permaneceu num qualquer país estrangeiro durante o mês de Junho de 2017;---
v) a quantia de € 500,00 a título dos dias que percorreu e/ou permaneceu num qualquer país estrangeiro durante o mês de Junho de 2017;---
vi) a quantia de € 1.154,80, a título retribuição de férias e subsídio de férias proporcional ao tempo de trabalho prestado ao longo do ano de 2017, sem prejuízo do desconto dos valores entretanto pagos como duodécimos nos meses de Junho, Agosto e Setembro do mesmo ano;-
vii) a quantia de € 577,40 a título de subsídio de natal proporcional ao tempo de trabalho prestado ao longo do ano de 2017, , sem prejuízo do desconto dos valores entretanto pagos como duodécimos nos meses de Junho, Agosto e Setembro do mesmo ano;---
viii) a quantia de € 114,38 a título crédito formação profissional.---

B – RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

O recurso sobre a matéria de facto incidirá sobre os concretos pontos de factos identificados pela recorrente - 635º, 4, 639º, 1, 640º, 1, CPC.
A regra legal em sede de modificabilidade da decisão de facto é a de que o tribunal superior deve alterar esta decisão se os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diferente – art. 662º do CPC. A utilização de tal vocábulo aponta para um especial grau de exigência imposto à segunda instância na modificação da decisão de facto. O que também se relaciona com o facto de, no ordenamento jurídico português, vigorar a regra da livre apreciação da prova e subsequente fixação da matéria de facto por parte do julgador, a efectuar segundo a sua prudente convicção, salvo se a lei exigir formalidade especial - art. 607º do Cód. Proc. Civil. Pese embora a reapreciação da prova em segundo instância não deva ser meramente formalista, contudo deve ter presente este princípio. Mormente quando incide sobre prova testemunhal, face à ausência de imediação. Finalmente, a reapreciação de prova não equivale a novo julgamento, devendo, com referência à matéria impugnada, circunscrever-se aos casos de clara desarmonia entre a prova disponível e a decisão tomada, a incongruências ou outras anomalias que claramente sobressaiam. Ou seja, o julgador do tribunal superior tem de estar bem seguro de que a prova foi mal apreciada e, só nessa circunstância, a deve modificar.

No caso concreto:

Basicamente a ré discorda da decisão do tribunal a quo na parte em que considerou provado que o autor não foi contactado pela ré nos dias subsequentes a 2-09-2017, o que este não estranhou em virtude de ser normal o gozo de descanso no dia útil subsequente à prestação de trabalho suplementar ao sábado (3.19) e, ainda, de ser procedimento comum da ré que, quando não existisse contacto com o trabalhador por mais de um dia, este se considerasse no gozo de férias até novo contacto (3.20).
Invoca como concreto meio de prova a confissão do autor quanto ao ponto 3.19 e a falta de prova quanto ao ponto 3.20.
Ora, quanto ao ponto nº 3.19, das declarações do autor não resulta a dita confissão de factos contrários aos provados, de resto não reduzida a escrito como a lei impunha caso houvesse confissão- 463º, 1, CPC. Tais declarações apenas podem assim ser valoradas segundo o principio geral de livre apreciação da prova conforme a prudente convicção do julgador – 607º, 5, CPC
Ouvidas as declarações do autor, confirmadas pela sua companheira, a testemunha V. V., que o acompanhou no dia dos factos por ser sábado, resulta confirmado o ponto nº 3.19, concordando-se com a juiz a quo nesta parte. A ré, na pessoa do Sr. C., manteve-se incontactável a partir de certa altura no próprio sábado, não respondendo aos diversos telefonemas do autor que o pretendia inquirir sobre o facto de o cliente lhe dizer que não havia carga. O que, após ter estado à espera 2/3 horas, o levou a regressar com o tractor, deixando o atrelado no cliente. Das suas palavras, confirmadas pela referida testemunha que se afiguram espontâneas e credíveis, resulta também que tentou contactar a ré, quer na pessoa do Sr. C., quer da sua secretária, nos outros dois dias seguintes, nunca tendo sido atendido, sendo normal o gozo de descanso no primeiro dia útil (segunda-feira) subsequente ao sábado. Este último facto, foi, de resto, confirmado pelo gerente de facto da ré, C., na parte referente à necessidade legal de descanso de 45h subsequentes a trabalho prestado. Mais resultou das declarações do autor e da testemunha que o autor aguardava indicação da ré sobre o serviço de transporte a fazer. Assim sendo, além de inexistir a confissão que a ré pretende, da prova resulta confirmada a matéria do ponto 3.19.
Quanto ao ponto 3.20, este, efectivamente, não tem suporte na prova feita. O único facto que o autor referiu nas suas declarações foi que já havia falado em alguns dias de férias com a ré (na pessoa do Sr. C.) e que, a partir de certa altura, dada a falta de contacto, se convenceu de que a ré queria que as fosse gozando até ser contactado e haver serviço. Assim, nesta parte, elimina-se este facto da matéria provada.

C - ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes (2) e já decididas as questões de prova, a única questão a decidir é a de saber se a cessação do contrato ocorreu por abandono do posto de trabalho pelo autor, como foi excepcionado pela ré e a quem competia o ónus desta prova (342º, 2, CC)
Ficou demonstrado que a ré, por carta datada de 15-09-2017, declarou ao autor que considerava que o contrato de trabalho cessou por abandono do posto de trabalho – ponto 3.21.

Segundo o art. 403º do CT:

1 - Considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de não o retomar.
2 - Presume-se o abandono do trabalho em caso de ausência de trabalhador do serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência.
3 - O abandono do trabalho vale como denúncia do contrato, só podendo ser invocado pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida deste.
4 - A presunção estabelecida no n.º 2 pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência.

A doutrina e jurisprudência tem salientado que o abandono de trabalho é constituído por dois elementos:

a) Elemento objectivo que é integrado pela ausência ou falta ao trabalho. Mas, as faltas que relevam são somente as injustificadas;
b) Elemento subjectivo referente à intenção de não retomar o trabalho retirada de factos concludentes que com toda a probabilidade revelam essa intenção, independentemente do tempo de ausência.

Importa ter em atenção que a ausência do trabalhador pode radicar em inúmeras causas, legítimas, ou ilegítimas, por violadoras de deveres contratuais como desobediência a ordens referentes ao posto de trabalho, à tarefa a desempenhar, etc…
Ora, dentro destas razões, somente relevam aquelas que demonstrem, inequivocamente, que o trabalhador quer extinguir o contrato e que é esse o seu propósito (3). Assim, um motivo inidóneo para justificar uma ausência ao trabalho não significa necessariamente que o mesmo é revelar da intenção de querer extinguir o contrato. Se a ausência ao trabalho, face às circunstâncias concretas em que ocorre, não é reveladora dessa intenção de abandono, então o empregador terá de recorrer a processo disciplinar com fundamento em faltas injustificadas ou por violação doutro dever que ao caso caiba.
Têm sido dados como exemplos de situações fácticas reveladoras desta intenção a circunstância de o trabalhador começar a trabalhar para outra entidade empregadora em moldes incompatíveis com a continuação da prestação de trabalho, o facto de se ausentar para o estrangeiro, o facto de levar todos os pertences da empresa que normalmente ali estão e são necessários à prestação laboral, etc…
Finalmente importa referir que, ainda que a ausência do trabalhador não seja acompanhada de factos concludentes da intenção de não retomar o trabalho, a lei estabelece uma presunção de abandono de trabalho, findos que estejam dez ou mais dias úteis de faltas injustificadas, presunção que poderá ser afastada pela prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da causa da ausência. Esta presunção integra um mecanismo complementar que tem especial relevo em casos mais ambíguos ou em que são mais fracos os factos concludentes e capazes de comprovar a intenção de não voltar ao trabalho.
No caso dos autos, da conjugação dos factos provados, sobressai logo a ideia da inexistência de factos capazes de demonstrar que o autor quisesse extinguir o contrato.
Na verdade, é até muito duvidoso que a falta de comparência no estaleiro da ré integre uma falta injustificada, face ao conjunto de factos provados, mormente 3.18 (nem sequer posto em causa pela ré) onde consta: “Entretanto, o autor regressou a casa, ficando assim a aguardar novo contacto da ré empregadora para saber em que dia e hora deveria retomar a sua prestação de trabalho, uma vez que estaria dependente do serviço de transporte solicitado à sua entidade patronal. E também face ao provado no ponto 3.19 onde consta “Sucede que nos dias que se seguiram o autor em momento algum foi contactado pela sua entidade patronal, o que o autor não estranhou pois que era normal que um trabalhador quando prestasse serviço em dia de descanso complementar gozasse tal descanso em falta imediatamente no primeiro dia útil seguinte, desde que não existisse trabalho afecto ao trabalhador em causa”.
Repare-se que nenhuma prova foi feita quanto à necessidade de o autor se apresentar diariamente a horas normais de expediente no estaleiro da ré. O que não se estranha face à profissão de motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, conduzindo de dia e de noite, e face ao modo como decorre da matéria provada que o trabalho poderia ser solicitado, por telefone e a qualquer hora. Também nenhuma prova a ré fez de que o autor estivesse incontactável ou de que não atendeu o telefone.
Por outro lado, como já referimos, também não existem factos concludentes da intenção de o autor não retomar o trabalho. Dos factos provados resultou que o autor, em 2-09-2017 (Sábado), não conseguiu efectuar a carga e que a ré não lhe atendeu o telefone (num espaço de cerca de 3 horas), por diversas vezes, nem retribuiu as chamadas. Assim, o facto de a partir de certa altura não voltar a contactar a entidade patronal, ficando à espera que esta o fizesse, não é seguramente revelador do seu propósito de extinção do vínculo laboral.
Finalmente, quanto à alegada presunção de abandono do posto de trabalho, a mesma não pode operar. Em primeiro lugar, pelos motivos supra referidos quanto ao facto de não se poder concluir pela natureza de falta injustificada. E, em segundo lugar, ainda que assim fosse, como bem refere o Ministério Público no seu parecer, à data da sua invocação, em 15-09-2017, ainda não haviam decorrido 10 dias úteis após a falta. Efectivamente, tendo o autor trabalhado no sábado e até à 1h de Domingo, dias de descanso complementar e obrigatório, só estaria obrigado ao trabalho na terça-feira, como de resto o gerente de facto da ré no seu depoimento admitiu. Pelo que os 10 dias úteis não estavam ainda alcançados.
Assim sendo, se a ré entendia, como consta na decisão de comunicação de abandono de posto de trabalho, que o autor desobedeceu, que abandonou precocemente a tarefa que tinha em mãos sem continuar a esperar após a 1h de domingo e não lhe deu mais satisfações, então o apropriado seria recorrer a um processo disciplinar.
Tudo para concluir que o contrato de trabalhou cessou unilateralmente por iniciativa da ré, com invocação não comprovada de abandono de posto de trabalho, o que equivale a despedimento ilícito (porque informal, à margem do seu procedimento), com as inerentes consequências indemnizatórias conferidas na sentença recorrida.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do Cód. de Proc. Civil, acorda-se em;

a) Julgar não provado o ponto 3.20 dos factos provados, o qual se elimina;
b) No mais, negar provimento ao recurso de apelação interposto pela ré empregadora confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da ré recorrente.
Notifique.
Guimarães, 17-12-2019

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


Sumário – artigo 663º n.º 7 do C.P.C

I- O abandono do posto de trabalho pressupõe a prova de um elemento objectivo constituído pela ausência ao trabalho e de um subjectivo constituído pela intenção do trabalhador não retomar o trabalho, propósito que se extrai de factos concludentes que, com toda a probabilidade, o revelem.
II- Não é idónea à prova da intenção de não retomar o trabalho, a conduta do trabalhador, motorista de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, que fica em casa a aguardar instruções do empregador, após a prestação do último serviço, o qual não concluiu, porque o empregador não atendeu diversas chamadas por si efectudas por motivo relacionado com o trabalho de carga, nem as retribuiu.
III- Se a conduta do trabalhador não assume significado inequívoco quanto ao seu propósito de extinguir o contrato de trabalho e o empregador entende que aquele não cumpriu os seus deveres contratuais, mormente de obediência e de assiduidade, então deve recorrer a processo disciplinar.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.
2. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
3. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 19ª ed., p. 687-690.