Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2725/20.5T8VNF-D.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: CIRE
RECLAMAÇÃO E VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

1. De acordo com o nº2, alínea b), do artº 146º, do CIRE, a reclamação de créditos só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.
2. Com a sentença de qualificação de insolvência que condenou o insolvente, aqui recorrente, ao pagamento aos credores do montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo administrador de insolvência que não fossem pagos pelo produto da liquidação do ativo, referido na sentença recorrida, não houve a constituição de qualquer crédito (que já existia), sequer uma novação do mesmo, houve antes um alargamento de responsabilidade na liquidação do débito, por cujo pagamento integral, nos moldes supra referidos, e a despeito da insolvência, ficou o aqui recorrente obrigado.
3. Tendo sido prolatada sentença condenatória do recorrente ao pagamento da quantia ora reclamada, em momento anterior à sua declaração de insolvência, o momento processual azado para reclamar tal crédito era o prazo de seis meses posteriores ao trânsito em julgado da sentença declarativa da insolvência.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

COOPERATIVA AGRÍCOLA …, C.R.L., veio interpor ação de verificação ulterior de créditos por apenso ao processo de insolvência n.º 2725/20.5T8VNF relativo a C. C..
Foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 146.º do CIRE.
Houve lugar a contestação.
A Autora pronunciou-se quanto à matéria excetiva.

Foi prolatado saneador-sentença com o seguinte dispositivo:

a) Decido julgar inverificada a exceção perentória inominada, decorrente da inadmissibilidade legal da verificação ulterior de créditos.
b) Decido julgar, desde já, procedente o pedido deduzido pela Autora e, consequentemente, reconheço-lhe um crédito no valor de € 145.650,72.
Custas pelo Réu.
Registe e notifique.

Inconformado com a decisão, o insolvente recorreu, formulando as seguintes conclusões:
a) – Nos termos do artigo 146º, n.º 2, alínea b) do CIRE, a ação de verificação ulterior de créditos deve ser instaurada no prazo de 6 meses após o trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, ou no prazo de 3 meses após a constituição do crédito, caso termine posteriormente.

b) – Já haviam sido ultrapassados os 6 meses contados do trânsito da sentença de declaração de insolvência quando foi instaurada a presente ação.

c) – O crédito invocado pela A. constituiu-se no momento da notificação às partes da sentença proferida em 16/12/2019.

d) – Com a prolação de tal sentença o R. ficou desde logo obrigado a pagar à A. o crédito que esta detinha sobre Sociedade Agro-Pecuária A. C. & Irmão, Lda., pelo que é nesse preciso momento que o crédito reclamado nestes autos nasce.

e) – A A. tinha todas as condições para reclamar o crédito nos termos do artigo 128º do CIRE, sendo que a circunstância de a liquidação do ativo da Sociedade Agro-Pecuária A. C. & Irmão, Lda. não estar concluída não era impedimento à reclamação.

f) – Nos termos do artigo 14º, n.º 5 do CIRE e do artigo 647º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o recurso da sentença proferida no âmbito do apenso de qualificação de insolvência tem efeito meramente devolutivo.

g) – A interposição de recurso não obsta à produção de efeitos da sentença, daí entender-se que a constituição do crédito reclamado nestes autos ocorreu em 16/12/2019.

h) – O crédito invocado pela A. é anterior à sentença de declaração de insolvência, pelo que a presente ação deveria ter sido instaurada nos seis (meses (1)) subsequentes ao trânsito em julgado da mesma, o que não sucedeu.

i) - A decisão do Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14º, n.º 5 e 146º, n.º 2, alínea b) do CIRE e 647º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS
e nos demais que Vossas Excelências doutamente suprirão será feita JUSTIÇA.
Não houve contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
A questão a decidir é, assim, a de saber se a reclamante instaurou a presente ação para verificação ulterior de créditos dentro do prazo previsto no artº 146º, nº2, alínea b), do CIRE, ou seja no prazo de três meses que se seguiram à constituição do respetivo crédito.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

a) Nos autos principais, foi proferida sentença, em 15/9/2020, transitada em julgado;

b) Os presentes autos deram entrada em juízo em 9/6/2021;

c) A Sociedade Agro-Pecuária A. C. & Irmão, Lda., foi decretada insolvente, por sentença no âmbito do processo 5474/17.8T8VNF, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 4.

d) Correu termos o incidente de qualificação de insolvência, no processo 5474/17.8T8VNF-B, cuja sentença qualificou como culposa a insolvência da Sociedade Agro-Pecuária A. C. & Irmão, Lda., declarando afetada pela mesma A. A. e C. C. e condenando-os no pagamento aos credores do montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo senhor administrador da insolvência, que não fossem pagos pelo produto da liquidação do ativo, confirmada por acórdão de 13/7/2021, transitado em julgado;

e) A autora tem reconhecido o crédito de 145.599,72€.

f) Por sentença proferida a 19 de abril de 2021, no âmbito do processo 5474/17.8T8VNF-D, foi julgada extinta a liquidação do ativo da Sociedade Agro-Pecuária A. C. & Irmão, Lda., não tendo a autora recebido qualquer quantia pelo produto da liquidação do mesmo.
g) Foi intentada ação executiva contra os sócios, na qual se peticionou os créditos reconhecidos, pelo Sr. Administrador de Insolvência no valor total de:
• 92.202,36€ (noventa e dois mil duzentos e dois euros e trinta e seis cêntimos) de capital;
• 52.029,81€ (cinquenta e dois mil e vinte e nove euros e oitenta e um cêntimo) de juros desde a citação (13/04/2010) até 19/10/2017;
• 51,00€ (cinquenta e um euros), correspondente à taxa de execução;
• 74,97€ (setenta e quatro euros e noventa e sete cêntimos), correspondente a honorários Fase 1 A.E.;
• 1.037,13€ (mil e trinta e sete euros e treze cêntimos), correspondente a honorários de A.E.;
• 204,00€ (duzentos e quatro euros), correspondente a taxa de justiça do processo de insolvência, e ainda os juros desde 20/10/2017 até efetivo e integral pagamento e taxa de justiça devida na execução intentada (51,00€).

h) A autora não foi avisada da lista de todos os credores reconhecidos ou não reconhecidos, pela senhora administradora de insolvência.

i) Não tendo rececionado qualquer carta registada por parte da senhora administradora.
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B. Fundamentos de direito.

Nos termos do artº 146º, do CIRE, findo o prazo das reclamações é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidas no processo de insolvência (…).
De acordo com o nº2, alínea b), do citado preceito, a reclamação de créditos só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.
Sendo líquido o decurso do prazo de 6 meses, como aliás a sentença recorrida decidiu, a questão coloca-se em termos de apuramento de quando é que o crédito da reclamante se constituiu, nos termos e para os efeitos de eventual subsunção à previsão normativa do artº 146º, nº2, alínea b), do CIRE, parte final. Terá o crédito sido reclamado constituído dentro do prazo de 3 meses subsequentes à respetiva constituição?
A sentença recorrida considerou que o prazo relevante era o do trânsito em julgado da sentença de qualificação de insolvência, ocorrido em 13 de julho de 2021, e onde foi decidida a condenação do insolvente no pagamento dos créditos reconhecidos na lista do administrador de insolvência que não fossem pagos pelo produto da liquidação do ativo.
Tendo a presente ação sido proposta em 6 de junho de 2021, antes do referido trânsito em julgado, concluiu o Tribunal recorrido pela tempestividade da reclamação.
A despeito da natureza jurisprudencialmente controvertida do prazo de 3 meses previsto no artº 146º, nº2, alínea b), parte final, do CIRE, o STJ tem entendido que o referido prazo reveste a natureza de prazo processual e não de prazo de caducidade. - cfr. AcSTJ de 10/05/2021, processo nº 261/18.9T8AMT-E.P1.S1, disponível, bem como os demais infra citados, em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, vide ainda o AcRG de 16 de dezembro de 2021, processo nº 227/15.0T8PRG-X.G1.
Significa isto que não há que ponderar o regime decorrente das Lei nº 1-A/2020 e Lei nº 4-B/2021.
“Nos termos do artº 1º, nº1, do CIRE, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
A verificação do passivo obedece ao regime previsto nos artºs 128º a 140º do CIRE, correndo por apenso ao processo de insolvência, procedendo-se à reclamação dos créditos perante o administrador da insolvência (artº 128º, nº2), tratando-se assim de uma fase processual destinada à repartição do produto da liquidação que terá de assegurar a plena igualdade no exercício de direitos pelos diversos reclamantes.
A oportunidade processual para a reclamação de créditos pelos credores da insolvência encontra-se subordinada ao cumprimento do prazo designado para o efeito na sentença que declara a insolvência, até ao máximo de 30 dias, conforme resulta do artº 128º, nº1, conjugado com o artº 36º, nº1, alínea j), ambos do CIRE.
Decorrido este prazo, a lei concede ainda a possibilidade de reclamação e verificação ulterior de créditos da insolvência, através do expediente processual especialmente previsto no artº 146º, do CIRE.”- AcSTJ supracitado.
Nos presentes autos resulta provado (alínea g), e na sequência de documento junto com a petição inicial, que foi intentada ação executiva em 5 de maio de 2021 contra os sócios, entre os quais o aqui recorrente. Da análise do requerimento de execução de sentença resulta que por sentença datada de 16/12/2019, foram os executados A. A. e C. C. condenados a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo senhor administrador de insolvência, no total de €145.650,72.
Foi ainda pedido o pagamento de juros desde 20/10/2017 até efetivo pagamento.
Ora, parece-nos inequívoco que o crédito da autora se constituiu, pelo menos, com a sentença condenatória de 16/12/2019, razão pela qual discordamos da sentença recorrida que fixou o momento relevante como o do trânsito em julgado da sentença de qualificação de insolvência.
“Com efeito, definido o direito de crédito com uma permissão normativa de aproveitamento de uma prestação, a estrutura da obrigação entendida no sentido estatuído no artº 397º do Código Civil, será a situação jurídica pela qual o credor tem direito a uma prestação do devedor ou, mais detalhadamente, a situação jurídica pela qual uma pessoa – o credor – é destinatário duma permissão jurídico-privada de aproveitamento de uma conduta-prestação a que outra pessoa – o devedor – se encontra adstrito” – Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I volume, pág. 227, apud AcRP de 2/06/2014, processo nº 495/12.0TBVFR-F.P1.
Ora, nos termos já supra expostos, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal (artº 1º, nº1, do CIRE), ao qual se aplicam subsidiariamente as normas do processo civil que não contrariem o presente diploma (artº 17º, nº1, do CIRE), sempre a autora deveria ter reclamado o seu crédito dentro dos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência.
Com a sentença de qualificação de insolvência que condenou o insolvente, aqui recorrente, ao pagamento aos credores do montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo administrador de insolvência que não fossem pagos pelo produto da liquidação do ativo, referido na sentença recorrida, não houve a constituição de qualquer crédito (que já existia), sequer uma novação do mesmo, houve antes um alargamento de responsabilidade na liquidação do débito, por cujo pagamento integral, nos moldes supra referidos, e a despeito da insolvência, ficou o aqui recorrente obrigado.
Encontra-se, assim, ultrapassado quer o prazo de 6 meses relativamente ao trânsito em julgado da sentença de insolvência quer o invocado prazo de 3 meses relativamente à data da constituição do crédito (aliás anterior àquele trânsito).
Temos assim de concluir que a ação foi interposta extemporaneamente, o que consubstancia uma exceção dilatória inominada de falta de tempestividade da presente ação por falta de cumprimento do respetivo legal (neste mesmo sentido vide o AcRG de 16 de dezembro de 2021, processo nº 227/15.0T8PRG-X.G1).
Cremos, assim, que assiste razão ao recorrente, impondo-se, por isso, a procedência do recurso por si interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando a sentença recorrida;
mais acordam em julgar verificada a exceção dilatória inominada de falta de tempestividade na propositura da presente ação de verificação ulterior de créditos e, em consequência, em absolver os réus da instância, julgando esta extinta.
Custas em ambas as instâncias pela recorrida/autora.
Notifique.
Guimarães, 3 de março de 2022.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relator - Fernando Barroso Cabanelas;
1.ª Adjunta – Maria Eugénia Pedro;
2.º Adjunto – Pedro Maurício.


1 - Acrescento nosso, atento o manifesto lapso de omissão.