Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2053/06-1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: CRIME
LENOCÍNIO
CONSTITUCIONALIDADE
PRISÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 170° do Código Penal, por violação dos artigos 41° (liberdade de consciência) e 47° nº 1 (liberdade de profissão), conjugados com o nº 2 do artigo 18°, todos da Constituição da República Portuguesa, questão essa que não é nova.
II – Com efeito, a questão da conformidade com a Constituição Portuguesa da norma contida no artigo 170°, nº 1 do Código Penal que pune o crime de lenocínio foi primeiramente apreciada no Ac. do Tribunal Constitucional nº 144/04, da 2ª secção em que o tribunal se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade (DR ll, nº 92, de 19 de Abril de 2004).
III – No citado aresto foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, não só do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18°, nº 2, mas também dos artigos 41º (liberdade de consciência) e 47°, nº 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República.
IV - Distinguiram-se então as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluiu-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que tal norma prevê.
V – Posteriormente, o mesmo juízo de constitucionalidade tem vindo a ser reafirmado, pelo Tribunal Constitucional: Acórdão nº 196/04, de 23 de Março de 2004, acórdão nº 303/04, de 5 de Maio de 2004, e acórdão nº 170/06, de 6 de Março de 2006, considerando-se que o citado artigo 170°, nº 1 não viola o disposto no artigo 18°, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
VI – Perante esta corrente jurisprudencial, firme e recente, do Tribunal Constitucional, que sufragamos, e não se vislumbrando argumentos, fundamentos ou circunstâncias que não tenham já sido anteriormente ponderadas, é evidente que improcede a arguida inconstitucionalidade.
VII – O crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 170°, nº 1 do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado, é cominado em abstracto “com a pena de prisão de seis meses a 5 anos”.
VIII – Ora, considerando a culpa do arguido, muito elevada, quer pela organização do sistema prestativo e remuneratório da prostituição, quer pela repetição dos proveitos daquela actividade, as prementes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste domínio e todas as demais circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depõem contra ele ou a seu favor (artigo 71°, nº 2 do Código Penal) nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, também elevado dada a estrutura empresarial com que foi levada a cabo a actividade delituosa do arguido, a dimensão e organização que o negócio apresentava, o número de prostitutas envolvidas, a intensidade do dolo, dolo directo intenso, o mau comportamento anterior do arguido, conclui-se que a pena de prisão de dois anos se revela necessária, adequada e proporcional.
IX - Por outro lado, o arguido não admitiu de qualquer forma a prática dos factos, não demonstrou qualquer arrependimento e já fora anteriormente condenado pela prática de um crime de lenocínio numa pena de prisão suspensa, tendo praticado os factos em análise nos presentes autos em pleno decurso do prazo de suspensão, o que é revelador de um profundo e total desprezo pela aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução.
X – É, por conseguinte, manifesto que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não se mostram suficientes para realizar de forma adequada as finalidades da punição (cfr. artigo 50º do Código Penal), pelo que seria totalmente impensável a suspensão da execução da pena, à qual sempre se oporiam inultrapassáveis considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
I- Relatório
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No 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, no âmbito do Processo Comum Singular nº 59/05.4PEBRG, os arguidos:

1) NUNO A..., casado, desempregado, nascido no dia 13 de Outubro de 1977, natural da freguesia de S. Vicente, concelho de Braga, filho de Lúcio Ribeiro da Costa e de Maria das Dores Gaio Caridade, residente no Bairro das A..., Bloco 6, 2.º, direito, em Braga, titular do bilhete de identidade n.º 116347...;
2) VERÍSSIMO M..., divorciado, empresário, nascido no dia 08 de Abril de 1969, natural da freguesia de S. João do Souto, concelho de Braga, filho de José G... e de Maria da C..., residente na Travessa Dr. F... Machado Owen, n.º 17, 1.º, direito, em Braga, titular do bilhete de identidade n.º 84452...;
3) ANTÓNIO J..., casado, empregado de balcão, nascido no dia 03 de Outubro de 1976, natural da freguesia de Sequeira, concelho de Braga, filho de José M... e de Maria R..., residente no Lugar do A..., freguesia de Morreira, concelho de Braga, titular do bilhete de identidade n.º 113624...;
4) MANUEL A..., divorciado, desempregado, nascido no dia 23 de Setembro de 1976, natural da freguesia de S. João do Souto, concelho de Braga, filho de Francisco F... e de Teresa S..., residente no Lugar da M..., freguesia de Lomar, concelho de Braga, titular do bilhete de identidade n.º 118406...;
Foram acusados da prática, em concurso efectivo e em co-autoria material, de 3 (três) crimes de lenocínio, previstos e puníveis pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.

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A final, veio a ser proferida sentença, em 9 de Junho de 2006, que decidiu, para além do mais, (transcrição):
a) Condenar o arguido NUNO A..., pela prática, em co-autoria material com os restantes arguidos, de um crime de lenocínio previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C.P., na pena de 02 (DOIS) anos de prisão efectiva;
b) Condenar o arguido VERÍSSIMO M..., pela prática, em co-autoria material com os restantes arguidos, de um crime de lenocínio previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C.P., na pena de 01 (UM) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 03 (TRÊS) anos, subordinada ao dever de proceder ao pagamento da quantia de 1.000,00€ (MIL EUROS) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, no prazo máximo de 06 (SEIS) meses a contar da data do trânsito em julgado da presente decisão, devendo disso fazer prova no presente processo mediante a junção do competente recibo;
c) Condenar o arguido ANTÓNIO J..., pela prática, em co-autoria material com os restantes arguidos, de um crime de lenocínio previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C.P., na pena de 01 (UM) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 03 (TRÊS) anos, subordinada ao dever de proceder ao pagamento da quantia de 1.000,00€ (MIL EUROS) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, no prazo máximo de 06 (SEIS) meses a contar da data do trânsito em julgado da presente decisão, devendo disso fazer prova no presente processo mediante a junção do competente recibo;
d) Condenar o arguido MANUEL A..., pela prática, em co-autoria material com os restantes arguidos, de um crime de lenocínio previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C.P., na pena de 01 (UM) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 03 (TRÊS) anos, subordinada ao dever de proceder ao pagamento da quantia de 1.000,00€ (MIL EUROS) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, no prazo máximo de 06 (SEIS) meses a contar da data do trânsito em julgado da presente decisão, devendo disso fazer prova no presente processo mediante a junção do competente recibo;
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Inconformado com esta sentença, o arguido NUNO A... dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
I - Deve considerar-se, senão parcialmente descriminalizada, inconstitucional a norma vertida no n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, por violar o preceituado nos artigos 41º e 47º n.º1, conjugados o n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
II - Presente tal facto, a decisão condenatória que ao mesmo atenda deve ser revogada, por aplicação de norma inconstitucional.
III – O arguido Nuno deverá ser, pelo exposto, absolvido.
IV – Sufragado entendimento díspar, dever-se-à atender à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenação do arguido a 2 anos de prisão efectiva, assim como, a erro na apreciação da matéria de facto.
V - Dos meios de prova valorados não resulta indubitável incriminação do recorrente.
VI - As declarações dos arguidos, os depoimentos das testemunhas, a prova documental não certificam que o recorrente Nuno tivesse qualquer participação ou comungasse do incentivo ao exercício da prostituição, ou qualquer espécie de lucro da actividade alegadamente desenvolvida no "reservado".
VII - Não resultou provado que fosse o proprietário do estabelecimento. Figurava de um contrato de arrendamento comercial como fiador, unicamente. Daqui não pode ilidir-se a co-autoria material de qualquer crime.
VIII - Não se determinou que fosse o responsável e/ou gerente do estabelecimento "L... da Noite", que anotasse cartões, repartisse percentagens, tivesse participação no fomento do exercício da prostituição.
IX - O arguido era um mero empregado de mesa no bar, conforme atestado por diversas testemunhas.
X - Alterne e prostituição/actos sexuais de relevo não são conceitos coincidentes.
XI - A ausência de prova relativamente aos factos referidos consolida insuficiência de prova e erro na sua apreciação.
XII - A presunção de inocência e o princípio de in dubio pro reo não foram considerados.
XIII - Mediante a existência de dúvidas reconheciveis relativamente aos factos supracitados, deveria o Tribunal a quo, ter apelado a estes princípios norteadores, o que não sucedeu.
XIV - Na dúvida optou-se por culpabilizar o recorrente, condenando-o.
XV - O recorrente considera que os factos globalmente valorados e considerados para a sua condenação a 2 anos de prisão efectiva não resultaram provados na audiência de julgamento.
XVI - A pena de prisão em que o arguido foi condenado, pela prática de crime de lenocinio, p. e p. pelo art. 170, n.º1 do CP, mostra-se desajustada face a todo o exposto.
XVII - Preconiza-se que ao arguido seja aplicada uma pena de prisão por tempo inferior perante a inviabilidade de diferente solução legal.
XVIII - Interpretação diversa resulta numa clara violação dos artigos 40.°, 70.° e 71°, n.º1 e n.º2 do Código Penal e do art. 170, n.º1 »

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O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 378.
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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu pugnando doutamente pela manutenção do julgado e consequente improcedência do recurso.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral-Adjunto emitiu igualmente douto parecer pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Foi cumprido o artigo 417º, n.º2 do Código de Processo Penal (CPP), não tendo sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com o formalismo aplicável.
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II- Fundamentação


1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo:
A) Factos provados (transcrição):
a) Os arguidos exploram de facto um bar com o nome de “L... da Noite”, sito no Edifício E.., na Rua Manuel C..., Loja .... A Cave, em B....;
b) Esse bar é frequentado por prostitutas e por homens que as procuram para manter relações de sexo mediante pagamento;
c) Nessas situações, os possíveis clientes dirigem-se às prostitutas que ali trabalham e são por estas convidados a acompanhá-las a um anexo do bar sito na loja 12 do mesmo edifício, que entretanto foi transformada de modo a acolher diversos quartos de cama onde as prostitutas mantêm relações sexuais com os clientes mediante pagamento que é efectuado pelos clientes aos arguidos e do qual estes entregam uma parte à prostituta guardando outra;
d) Nomeadamente, no dia 01 de Outubro de 2005, cerca das 01.00 horas, MARLENE preparava-se para manter relações de sexo num dos quartos da loja 12 referida com J.... BOAVIDA mediante o pagamento de quantia não concretamente apurada, da qual se destinava uma parte aos arguidos;
e) Também nessa altura, no mesmo local e num quarto ao lado, MARLI mantinha relações de sexo de cópula com JOÃO C..., o qual pagou quantia não concretamente apurada ao arguido ANTÓNIO J... para comprar a utilização do corpo de MARLI, tendo-o acompanhado até à porta da loja 12, que abriu, para que a prostituta e o cliente pudessem entrar para manter aquelas relações;
f) Ainda na mesma altura e noutro dos quartos da loja 12, JOANA mantinha relações de cópula sexual com HORÁCIO G..., o qual pagara ao arguido ANTÓNIO J... a quantia de 30,00€ para esse efeito;
g) Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente;
h) Sabiam que as suas condutas não lhes eram permitidas;
i) Agiram em comunhão de esforços e de intentos, na execução de um plano traçado entre todos que consistia na utilização do bar para a frequência de prostitutas que angariassem clientes para manter relações de sexo com elas mediante pagamento e na recepção de uma parte desse pagamento;
j) Sabiam que não podiam organizar desde modo o exercício da prostituição daquelas pessoas e receber dinheiro para tal;
k) O arguido NUNO A... é casado;
l) Encontra-se desempregado;
m) Completou o 6.º ano de escolaridade;
n) No âmbito do processo comum singular n.º 733/02.7PBBRG do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por sentença datada de 17 de Março de 2003, relativamente a factos praticados no dia 27 de Março de 2002, transitada em julgado no dia 28 de Abril de 2003, o arguido foi condenado na pena de 06 (seis) meses de prisão, suspensa pelo período de 18 (dezoito) meses, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do C.P., e pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do C.P.;
o) A pena supra referida foi declarada extinta nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do C.P., por despacho datado de 10 de Janeiro de 2005;
p) No âmbito do processo comum singular n.º 149/03.8TABRG do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por sentença datada de 16 de Março de 2005, relativamente a factos praticados em 2002, transitada em julgado no dia 08 de Abril de 2005, o arguido foi condenado na pena de 01 (um) ano de prisão, suspensa pelo período de 02 (dois) anos, pela prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C.P.
q) O arguido VERÍSSIMO M... é divorciado;
r) Explora um café desde o dia 28 de Abril de 2006;
s) Completou o 11.º ano de escolaridade;
t) Tem dois filhos menores;
u) Nada consta do seu certificado de registo criminal;
v) O arguido ANTÓNIO J... é casado;
w) Tem um filho menor;
x) Completou o 6.º ano de escolaridade;
y) Trabalha com os pais como empregado de balcão;
z) Nada consta do seu certificado de registo criminal;
aa) O arguido MANUEL A... é divorciado;
bb) Encontra-se desempregado;
cc) Completou o 7.º ano de escolaridade;
dd) Tem dois filhos menores;
ee) No âmbito do processo comum singular n.º 626/99 do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por sentença datada de 01 de Fevereiro de 2000, transitada em julgado no dia 18 de Fevereiro de 2000, relativamente a factos praticados no dia 04 de Dezembro de 1998, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de oitocentos Escudos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do C.P.;
ff) No âmbito do processo comum singular n.º 651/00 do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por sentença datada de 05 de Fevereiro de 2001, transitada em julgado no dia 20 de Fevereiro de 2001, relativamente a factos praticados no dia 11 de Abril de 1999, o arguido foi condenado na pena de 475 dias de multa, à taxa diária de quinhentos escudos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do C.P.;
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B) Factos não provados (transcrição)

«Resultaram não provados todos os demais factos constantes da acusação (assim se rectificando o manifesto lapso de escrita constante da sentença recorrida decorrente da omissão da referência ao advérbio “demais”, nomeadamente:

a) Nos factos supra descritas nas alíneas d) e e) da matéria de facto provada, a quantia entregue foi de 30€.»


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C) Convicção (transcrição)
« A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados baseou-se na análise cuidada dos documentos e autos juntos ao processo, no conjunto das declarações dos arguidos e da demais prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, aliada às regras da experiência comum.

Os arguidos negaram a prática dos crimes descritos na acusação, referindo não terem qualquer ligação com o que se praticava no anexo e/ou qualquer fomento, facilitação ou favorecimento da prática da prostituição de forma profissional ou com intenção lucrativa.

O arguido NUNO A... referiu que era apenas empregado de mesa no bar em causa, sendo que o arguido VERÍSSIMO era empregado de balcão, o arguido ANTÓNIO era um mero cliente e o arguido MANUEL era o porteiro. Sobre o anexo referiu não saber o que se fazia lá e nunca teve chave do mesmo.

O arguido VERÍSSIMO M... referiu que trabalhava apenas como empregado de balcão, limitando-se a servir bebidas e receber o dinheiro das bebidas. Sobre os preservativos que estavam ao balcão esclarecer que era de uma menina ou outra que lhe pediram para guardar, nunca tendo fornecido.

O arguido ANTÓNIO J... referiu que era apenas cliente do bar, limitando-se a frequentá-lo para beber um copo e falar comas miúdas. Sobre o arguido NUNO referiu ser empregado de mesa, o arguido VERÍSSIMO era empregado de balcão e o arguido MANUEL era o porteiro. Mais declarou que nunca foi ao anexo e que uma miúda é que lhe passou a chave para a mão, tendo sido a justificação que apresentou para o facto de a mesma ter sido apreendida na sua posse, conforme resulta dos autos.

O arguido MANUEL referiu ser porteiro, limitando-se a dar e receber cartões, confirmando as declarações dos restantes arguidos. Sobre o anexo referiu que o mesmo não tinha qualquer ligação com o bar, nunca tendo recebido nada relativamente ao mesmo e à eventual prática de prostituição no seu interior.

Todos os arguidos depuseram de forma pouco espontânea, preocupados em branquear a sua actuação para a posição de meros assalariados, sem contudo esclarecerem a razão pela qual apenas se acedia ao anexo a partir do interior do bar e através da sua porta de emergência – a qual era controlada pelos arguidos -, os numerosos objectos encontrados no interior do bar e destinados à prática de actos de prostituição, nomeadamente, preservativos, bisnagas de gel e lençóis descartáveis e, finalmente, a razão de ser da anotação nos cartões de consumo das idas ao anexo/reservado (conforme se pode ver dos numerosos cartões de consumo apreendidos no presente processo às frequentadoras/trabalhadoras do bar e anexo/reservado).

As testemunhas ANGELINO DE D..., JOSÉ M..., JOSÉ P... e ANA B..., agentes da Polícia de Segurança Pública – adiante designada pela sigla P.S.P. -, participaram na busca ao estabelecimento comercial “L... da Noite” e a uma outra loja do centro comercial, vulgarmente referenciada como “anexo” ou “reservado”, tendo descrito as pessoas que encontraram no seu interior e os objectos que apreenderam e que se encontram descritos nos autos de apreensão juntos aos autos.

A testemunha ANGELINO DE D... indicou igualmente um dado relevante para a descoberta da verdade material, ao referir que, no acto da busca que dirigiu, foi o arguido VERÍSSIMO M... que se apresentou como o responsável do estabelecimento, sendo o mesmo que se encontrava na zona do balcão e tendo na sua disponibilidade elementos tais como cartões de consumo com indicações das idas ao anexo/reservado.

A testemunha MANUEL A..., igualmente agente da P.S.P., referiu que procedeu vigilâncias do estabelecimento e anexo referidos na acusação, tendo descrito todo o modus operandi dos arguidos na facilitação da prostituição, com intuito lucrativo. Referiu que viu o arguido ANTÓNIO J... e o arguido MANUEL A... – este apenas uma vez – a abrirem a porta do anexo e a receberem quantias monetárias não apuradas dos clientes à porta do anexo, anotando de seguida no cartão da mulher que acompanhava o cliente, após o que o casal entrava no anexo/reservado.

Referiu igualmente que participou na busca realizada ao estabelecimento, tendo visto três casais a entrar e, depois, já no interior do anexo/reservado. Dois casais foram acompanhados pelo arguido ANTÓNIO e outro pelo arguido MANUEL . Em todos os casos viu os arguidos a receber o dinheiro, a apontar no cartão da menina e a abrir a porta do anexo para os casais. Pela forma como os casais foram encontrados, é inequívoco que estavam ou se preparavam para a prática de acto sexual de cópula.

Também presenciou nas suas vigilâncias o arguido NUNO A... a abrir com frequência a porta de emergência do bar para que os casais saíssem e voltassem a entrar no mesmo após a ida ao anexo. Também o viu a entrar no reservado, tendo a chave do anexo/reservado consigo, levando para o seu interior um balde, assim demonstrando que o mesmo estava igualmente na sua disponibilidade.

Por sua vez, as testemunhas MARLENE, MARLI e JOANA, em sede de declarações para memória futura e em sede de audiência de julgamento, não envolveram os arguidos em qualquer acto de facilitação, fomento ou favorecimento de actos de prostituição, negando a sua intervenção quanto às três situações concretas em que se baseia a presente acusação. No entanto, as suas declarações surgiram de forma pouco espontânea e coerente, numa clara tentativa de procurar evitar que os arguidos fossem alvo de qualquer responsabilidade jurídico-penal. Inventaram a existência de um indivíduo cujo nome não lograram identificar com clareza a quem pagavam a ida ao anexo e que se encontrava à sua porta, sem contudo esclarecer qual a razão pela qual todas as idas ao anexo eram cuidadosamente anotadas nos seus cartões de consumo que eram controlados no interior do L... da Noite. Por outro lado, pretenderam convencer este Tribunal que a utilização do anexo/reservado era “gratuita” para elas, não pagando qualquer quantia pela sua utilização. Diga-se ainda que as suas declarações foram validamente contrariadas pelo depoimento do agente da P.S.P. supra descrito que procedeu às vigilância e depôs de forma coerente e credível.

A testemunha J.... BOAVIDA negou ter procedido ao pagamento de qualquer quantia aos arguidos para a prática de actos sexuais no dia descrito na acusação, referindo que foi a rapariga brasileira que o levou para lá e que estava no quarto com a mesma, não tendo ainda combinado o preço. A sua versão revelou-se pouco consentânea com a realidade dos factos, tanto mais que a entrada no anexo/reservado estava dependente do pagamento de um preço, o qual, conforme observado pelo agente da P.S.P. supra identificado, foi pago pelo arguido no momento prévio à entrada no anexo.

A testemunha HORÁCIO F..., igualmente observado pelo agente da P.S.P. supra identificado, procurou igualmente proteger os arguidos, referindo num primeiro momento que nada tinha pago e, posteriormente, admitiu ter pago a quantia de 30,00€.

Finalmente, a testemunha BELMIRA R... referiu trabalhar no bar L... da Noite para vender copos e nada mais, nunca se tendo prostituído. Esclareceu que foi o arguido NUNO A... que a convidou para trabalhar lá, em regime vulgarmente chamado de alterne, tendo combinado com ele que recebia à percentagem. Mais referiu que todos os consumos em que induzia os clientes era anotados no cartão de cliente, recebendo 50% do valor dos copos. Envolveu todos os arguidos na gestão do bar e da sua parte monetária ao referir que qualquer um dos quatro arguidos chegou a estar ao balcão e ter feito contas consigo no fim da noite procedendo ao pagamento do que lhe era devido.

Os depoimentos testemunhais supra referidos, aliados aos documentos e objectos apreendidos, bem como a concreta disposição do bar e do anexo (do bar para o anexo passava-se apenas a partir da porta de emergência do bar), sendo que este é constituído por camas e bidés, e tendo em conta igualmente a forma como os arguidos depuseram, visando nitidamente eximir-se à sua responsabilidade penal, criando uma versão deturpada dos factos, desde logo permitiram a este Tribunal considerar como provados os factos constantes da acusação como provados, com excepção dos concretos montantes referidos supra, os quais não foram concretamente esclarecidos em sede de audiência de julgamento.

Refira-se, finalmente, um pormenor relativamente ao arguido NUNO. Pretendeu o mesmo convencer este Tribunal que era um mero empregado de mesa no bar, limitando-se a servir bebidas e que quem geria o bar era um tal Xico de Lomar, nada mais sabendo dele. Ora, em primeiro lugar, desde logo resultou totalmente infrutífera a tentativa de criar um indivíduo que seria o dono como forma de transmitir a sua responsabilidade jurídico-penal. Com efeito, nenhum Xico de Lomar geria o café, mas sim os arguidos, conforme resultou dos depoimentos dos agentes da P.S.P. supra identificados. Por outro lado, o arguido NUNO quedou desde logo comprometido quando confrontado com este Tribunal com o facto de o mesmo figurar como fiador no contrato de arrendamento comercial do estabelecimento em causa junto aos autos.

As condições sócio-económicas dos arguidos resultaram das suas próprias declarações, as quais surgiram, quanto a esta parte, de forma coerente e espontânea, não tendo sido contraditadas por qualquer outro meio de prova.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal baseou a sua convicção na análise cuidada dos certificados juntos aos autos.


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2. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98).
Neste recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
· Descriminalização do crime de lenocínio.
· Inconstitucionalidade do artigo 170º do Código Penal;
· Insuficiência da matéria de facto dada como provada;
· Erro notório;
· Erro de julgamento por errada valoração da prova produzida;
· Violação dos princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”;
· Excessiva severidade da pena;
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3. Sustenta o recorrente que ocorreu uma descriminalização do crime de lenocínio previsto no n.º1 do artigo 170º.

Para o efeito socorre-se de transcrições das Actas da Comissão Revisora do Código Penal .

Mas, a argumentação do recorrente é manifestamente improcedente.

Como bem assinalou o Ministério Público junto do tribunal recorrido, na sua douta resposta, na situação sub judice não ocorre qualquer questão relacionada com sucessão de leis no tempo.

Os factos imputados ao arguido datam do ano de 2005.

À data da prática dos factos a lei vigente era o artigo 170º, n.1 do Código Penal na redacção que lhe foi conferida pelo Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

Na verdade, a questão da descriminalização apenas surgiu com a redacção dada ao art. 170º do C.P. quando confrontada com o anterior preceito legal, ou seja, o art. 215°, do C.P.
Aliás, é o próprio Prof. Figueiredo Dias quem, sem margem para qualquer dúvida, refere que:
" Não se tendo embora seguido a via da descriminalização total avançou-se pelo menos no sentido de só considerar criminosa a conduta do agente ... se este a levar a cabo profissionalmente ou com intenção lucrativa ...” (in "Actas 1993, pág. 258)
Efectivamente, é do conhecimento geral que o art. 170°, do C.P. vigente não operou uma descriminalização total das condutas anteriormente previstas no 215°, do C. Penal de 1982, mas tão só operou uma descriminalização parcial, consubstanciada no facto de se ter deixado de punir o lenocínio entre adultos quando o agente mão leva a cabo o comportamento de forma profissional ou com intenção lucrativa (cfr. v.g. os Acs. do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, proc.º n.º 48513/3, apud Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 17ª ed., pág. 600 e de 6 de Março de 1996, in Col. de Jur.-Acs do STJ, ano IV, tomo 1, pág. 224, e o Ac da Rel. do Porto de 20-3-1996, proc.º n.º 9640149, rel. Teixeira Mendes, in www.dgsi.pt).
Ou seja, o que o Código Penal, na revisão de 1995 descriminalizou foi, apenas e tão só, a conduta que anteriormente se encontrava tipificada no n.º 2, do art. 215°, do C.P. (de 1982).
Por isso que o recorrente não tenha razão.
A este respeito sempre se dirá que não é inteiramente líquido qual o bem jurídico protegido pelo artigo 170º, n.º1, nomeadamente se se trata da liberdade de determinação sexual.
A própria Professora Anabela Miranda Rodrigues, amplamente citada na sentença recorrida tem a este propósito uma posição algo dúbia: começando por dizer, que «com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoal mas persiste aqui uma certa ideia de 'defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade', que não é encarada hoje como função do direito penal (…)”(Comentário Conimbricense do Código Penal», I, 519), acaba por afirmar que “o crime só pode ser entendido como um crime de resultado, pretendendo proteger-se - como se pretende, apesar de tudo - o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual da pessoa (op. cit., pág. 531).
No sentido de que o bem jurídico aqui tutelado é o da liberdade individual, no aspecto sexual, se pronunciou o Ac. STJ de 26-2-1986, BMJ 354°, 350.
Também o Tribunal da Relação do Porto, no seu Ac. de 29-5-2002, www.dgsi.pt. entendeu que “na previsão normativa do nº 1 do artigo 170° do Código Penal, epigrafado de lenocínio, o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou extorsão em que a ameaça ou tráfico de protecção se pode confundir com a exploração afectiva”. Defendendo também que no preceito em questão estão em causa e são protegidos bens jurídicos de natureza pessoal cfr. Ac. da Rel. do Porto de 13-07-2005, proc.º n.º 0540595, rel. António Gama, in www.dgsi.pt., com amplas referências doutrinais e jurisprudenciais.
Em sentido divergente, o STJ no seu Ac. de 7-11-90, BMJ 401°, 205, entendeu que “através do crime de lenocínio não é a prostituta que a lei quer proteger mas o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto”.
No mesmo sentido já havia decidido a Relação de Coimbra, no seu Ac. de 12/6/85, CJ ano X, 3°, 118; o mesmo Tribunal agora no Ac. de 18/6/91 CJ ano XVI, 3°, 189, entendeu que «o interesse jurídico protegido pelos art°s 215° e 216° do Código Penal [de 1982, versão original] não é de natureza eminentemente pessoal, mas social, no sentido da protecção dos valores ético-sociais da sexualidade, na comunidade»
Também no Ac. STJ de 19-3-1991, Proc. 41.428, 3ª sec., se entendeu que no crime de lenocínio se visa «a punição dos actos que põem em causa, de forma relevante, os valores da comunidade e de concepções ético-sociais dominantes, devendo abranger sobretudo os actos que visam facilitar, explorar ou comercializar a entrega de mulheres.”
É este o entendimento que se vem afirmando como maioritário: exceptuadas as situações previstas no n° 2 do artigo 170° do Codigo Penal e no artigo 176° do mesmo diploma (em que o bem jurídico tutelado é, indiscutivelmente, a liberdade de autodeterminação sexual das pessoas), o crime de lenocínio protege, essencialmente, valores de natureza ético-social, essenciais à vivência em sociedade.
E foi esta a posição perfilhada na sentença recorrida que para o efeito se apoiou no Ac. da Rel. do Porto de 14-12-2005, proc.º n.º 0514345, rel Élia São Pedro in www.dgsi.pt..
Porém, o facto de não ser, eventualmente, a liberdade de determinação sexual o bem jurídico directamente tutelado na norma em apreço não significa - não pode significar - que a actividade descrita no n° 1 do art° 170° do Cod. Penal se encontra descriminalizada.
Que é crime resulta da vontade inequívoca do legislador que assim o considerou, tipificando tal conduta.
Poder-se-á, porventura, defender (como o faz a Prof. Anabela Miranda Rodrigues, op. cit. págs. 518-520) que de iure condendo, a solução mais adequada passaria pela descriminalização da conduta, o que nem sequer se tem por seguro (cfr. a proposta alternativa de Sénio Alves, Crimes Sexuais, pág. 68, nota 3).
Mas, de iure condito, é inquestionável que o comportamento em questão constitui crime, porque “descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática” - artigo 1º, n.º 1 do Código Penal.
Em conclusão: no plano do direito a constituir é legítimo questionar a necessidade de dar dignidade penal ao lenocínio entendido como a actividade descrita no n.º 1 do artigo 170º do Código Penal (como também é discutível a necessidade de manter a punição de outros ilícitos como, v.g. o estupro, denominado de actos sexuais com adolescentes).
Porém, no plano do direito constituído, é indiscutível que o lenocínio é crime previsto e punido no artigo 170º do Código Penal.

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4. O recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 170° do Código Penal, por violação dos artigos 41º (liberdade de consciência) e 47º n.º1 (liberdade de profissão), conjugados com o n.º 2 do artigo 18º, todos da Constituição da República Portuguesa.
A questão não é nova.
Com efeito, a questão da conformidade com a Constituição Portuguesa da norma contida no artigo 170º, n.º1 do Código Penal que pune o crime de lenocínio foi primeiramente apreciada no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 144/04, da 2ª secção em que o tribunal se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade (DR II, n.º 92, de 19 de Abril de 2004). No citado aresto foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, não só do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18°, n.º 2, mas também dos artigos 41 ° (liberdade de consciência) e 47°, n.º 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República. Distinguiram-se então as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluiu-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que tal norma prevê.

Posteriormente, em processo em que era invocada a violação, pela mesma norma, dos artigos 18°, n.º2, 26°, n.º 1, 27°, n.º 1, 47° e 58°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional por Acórdão n.º 196/04, de 23 de Março de 2004 concluiu novamente no sentido da sua não inconstitucionalidade (proc.º n.º 130/04, 2ªsecção, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Mais recentemente, no seu acórdão n.º 303/04, de 5 de Maio de 2004, o mesmo Tribunal Constitucional considerou que o citado artigo 170º, n.º1 não viola a Constituição da república Portuguesa e, designadamente, não ofende os princípios enunciados no artigo 1º (proc.º n.º922/03, 1ªsecção, rel. Maria Helena Brito, in www.tribunalconstitucional.pt).
O mesmo juízo de constitucionalidade voltou a ser reafirmado no Ac. n.º 170/06, de 6 de Março de 2006 (proc.º n.º 176/05, 2ªsecção, rel. Vítor Gomes, in www.tribunalconstitucional.pt), considerando-se que o citado artigo 170º, n.º1 não viola o disposto no artigo 18º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.
Perante esta corrente jurisprudencial, firme e recente, do Tribunal Constitucional, que sufragamos, e não se vislumbrando argumentos, fundamentos ou circunstâncias que não tenham já sido anteriormente ponderadas, é evidente que improcede a arguida inconstitucionalidade (no sentido da constitucionalidade do preceito em causa, cfr. , ainda, Acs da Rel do Porto, de 15-2-2006, proc.º n.º 0545889, rel. Natividde Jacob e da Rel de Coimbra de 15-3-2006, proc.º n.º 2421/05, rel. Gabriel Catarino, ambos in www.dgsi.pt).
Deixam-se reproduzidos os seguintes excertos mais representativos do notável acórdão n.º 144/2004, relatado pela Prof.ª Fernanda Palma os quais, por certo, dissiparão todas as dúvidas e interrogações com que o recorrente se confrontou:

«(…) subjacente à norma do artigo 170°, n.º 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (…). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo "princípio" seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1 ° da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o "mundo da prostituição" (…). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma "autonomia para a dignidade" das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41°, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135° do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172°, n° 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, que uma certa "actividade profissional" que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 47º, n.º 1 e 61°, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59°, n° 1, alíneas b) e c) ou n° 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47°, n° 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nO 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, MASSIMO LUCIANI, "Il lavoro autonomo de la prostituta", em Quaderni Costituzionali, anno XXII, n° 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170°, n° 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (…), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (…) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem - deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social (…). O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.»

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5 Não se verificam, igualmente, os alegados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.
Impõe-se, antes de mais, referir que quer o conceito de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” quer o de “erro notório na apreciação da prova”constantes, respectivamente da alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal foram já suficientemente trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e que qualquer um dos apontados vícios tem de resultar do texto da decisão, encarada em si ou com recurso às regras gerais da experiência, sem que se possa lançar mão de outros elementos extrínsecos à decisão, conforme decorre do disposto no n.º2 do citado artigo 410º.
À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que só existe tal insuficiência quando se faz a formulação incorrecta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Como se observou no recente Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”
Por seu turno o erro notório é a desconformidade com a prova produzida em audiência, ou com as regras da experiência por se ter decido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 65 a 69, estes últimos com amplas referências jurisprudenciais).
A título meramente exemplificativo citam-se os seguintes arestos:
- O erro notório previsto no art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP, é um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evi-dente que salta aos olhos do leitor médio. As provas revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilacção contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial. (Ac. do ST] de 3-06-1998, proc.º n.º 272/98).
_ O erro notório na apreciação da prova – art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP - não tem nada a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente. (Ac. do STJ de 1-07-1998, proc.º n.º 548/98).
- o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoria-mente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incom-patível ou contraditório com outro dado facto positivo ou negativo. (Ac. do ST] de 9-07-1998, Proc.° n.° 1509/97).
- o erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria ser manifestamente ter sido a contrária , já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por ter sido violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova (Ac. do S.T.J. de 20-4-2006, Proc.º n.º 363/03, rel. Rodrigues Costa):
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À luz de tais ensinamentos jurisprudenciais e doutrinais é bom de ver que não se verifica nenhum dos apontados vícios.
Assim e no que toca à alegada insuficiência, nenhuma lacuna existe ao nível da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito a que o tribunal recorrido chegou.
Por outro lado, não pode dizer-se que o tribunal tenha deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão final.
O tribunal investigou tudo o que podia e conseguiu investigar dentro do objecto do processo, tal como ele foi delimitado pela acusação e pela defesa, sendo que se não vislumbra que a prova produzida em audiência justificasse qualquer outra investigação suplementar.
Não ocorre, por conseguinte, o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Por outro lado, e sem prejuízo do que adiante se referirá (cfr. n.º 6) não vislumbramos qualquer erro notório.
O que a este respeito o recorrente invoca é, antes, o erro de julgamento por incorrecta valoração ou apreciação da prova produzida ou insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida, sendo certo que se não descortina nenhum dos vícios a que alude o n.º 2 do CPP.
Conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, está bem expresso nos arestos acabados de citar, e já foi acima aflorado, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).
Ora, apreciando o acórdão recorrido recorrida sob este prisma, é forçoso concluir que o mesmo não contém nenhum dos apontados vícios possuindo conteúdo harmonioso e racional, fora de qualquer erro notório, sendo a matéria de facto dada como provada completa para o direito aplicável, não se vislumbrando qualquer contradição (e muito menos insanável) da fundamentação nem entre a fundamentação e a decisão.
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6. A questão do erro de julgamento, por errada valoração da prova produzida.
Diferente dos vícios acima mencionados, embora o recorrente pareça misturar uns e outro, é o erro na valoração da prova que o recorrente igualmente assaca ao acórdão recorrido.

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§1. Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista no art. 431º do C. P. Penal.
Com efeito, estatui o citado preceito que “Sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser modificada (…): b) Se, havendo documentação da prova produzida em audiência, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412, n.º3 (…)”.
No entanto, ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.
Como já em diversos lugares salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal que justamente introduziu o recurso também em matéria de facto nos crimes julgados perante tribunal colectivo:
- “E o recurso não é tudo, é um remédio para os erros, não é novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol.II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);
- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);
- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, Coimbra 2001)- no mesmo sentido cfr. José Manuel Damião da Cunha, A Estrutura dos Recursos na proposta de Revisão do CPP-Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260 onde salienta a exigência formulada ao recorrente para apresentar os pontos de facto que mereçam a censura de “incorrectamente decididos”; Id., O Caso Julgado Parcial, Porto, 2002, especialmente a págs. 516, 527, 529 e 567,
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).
Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria - cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.
Dever esse que não se basta com a remissão mais ou menos genérica para os depoimentos prestados em audiência, devendo especificar, ponto por ponto, não só os pontos que se reputam de indevidamente decididos, como ainda quais as provas que deveriam levar a decisão diversa, por referência aos suportes técnicos, no caso de ter havido gravação e transcrição.
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§2. Como é sabido, o Código de Processo Penal normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova, quer em termos genéricos quer de forma específica relativamente às diversas fases processuais em que se opera a recolha e valoração da prova", de onde ressalta "a preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade do cidadão e intimidade da vida privada e familiar que ‘é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social’ em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis” - Marques Ferreira, Meios de Prova, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, págs. 221-222.
No entanto, salvas as referidas limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral, no âmbito da apreciação das provas, o princípio fundamental da livre apreciação das provas, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP, princípio esse que, como refere o mesmo Marques Ferreira, "entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal" (op, cit, pág.227)
Nesta matéria, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na "questão de facto", a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127° do Cód. Proc. Penal.
Não deixa porém de se assinalar, como resulta mais uma vez do preâmbulo do CPP, que "o código aposta confiadamente na qualidade da justiça realizada a nível de 1 a instância" (n.º7).
Como já Cavaleiro Ferreira sublinhara, "(…) A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores.” “(...) o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência" - Curso de Processo Penal, reimp. Lisboa, 1981, vol. II, p. 298.
Do princípio da livre apreciação da prova, resulta que a decisão não consiste numa operação matemática, ou meramente formal, devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.
A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas. Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos - por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais.
Não se trata - na avaliação da prova - de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Envolve a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis, v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro - tem essencial relevo a imediação.
Mas ainda deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, aspecto que já não depende substancialmente da imediação, mas deve basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos.
Mas a livre convicção ou apreciação não pode confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador, como já sublinhara cavaleiro de Ferreira.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias " Se a a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (como … a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo".
Por isso a livre ou intima convicção não poderá ser " uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável” “Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser , é certo, uma convicção pessoal (…) mas em todos o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros” a qual “(…) existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer--se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável " (Direito Processual Penal, vol. 1º,Coimbra, 1974, págs. 202-203).
Por isso o CPP instituiu sistemas de motivação e controle em sede de apreciação da prova salientando o carácter racional desta.
De entre esses sistemas destaca-se a consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação.
Esse sistema, regulado no n.º2 do artigo 374º do CPP consiste na exigência de “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”
Como bem salienta o Consº Marques Ferreira “Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de forma determinada os diversos meios de prova apresentados em audiência (op. cit, págs. 229-230)
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§3. Este sistema de fundamentação fáctica não constituiu verdadeiramente uma qualquer limitação ao funcionamento da princípio da livre apreciação da prova antes pelo contrário, “teve em vista garantir maior credibilidade ao princípio em causa e à Justiça em última análise”(Marques Ferreira, op. cit., pág.229).
A fundamentação ou motivação permite o controle por parte do tribunal superior, pela via do recurso, do exame do processo lógico ou racional que subjaz à decisão.
Mas, o recurso em matéria de facto não constitui, como acima referimos, um segundo julgamento, mas um remédio, uma solução para obviar à manutenção de decisões arbitrárias e ilegais
O juízo de censura que a este respeito há-de formular-se não pode fundamentar-se na simples discordância com a convicção do legislador.
É que assim não fosse, como bem salienta o Prof. Damião da Cunha, o tribunal de recurso transformar-se ia “num ‘substitutivo do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de julgamento) ou, então, numa espécie de juízos por parâmetros” (O Caso julgado Parcial, cit. págs. 566-567).
Por isso, conclui aquele ilustre processualista penal:
“Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o ‘arbítrio’ na sua apreciação), exactamente: as regras da experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido. Deverá ainda ter-se em conta este aspecto: o de que a convicção só é verdadeiramente livre, quando se realiza numa audiência regida pelos princípios da publicidade, da imediação e da contraditoriedade na produção da prova, bem como da concentração na apreciação complexa de todos os argumentos apresentados pelos sujeitos processuais” (pág. 567).
É este também, como não podia deixar de ser, o entendimento desta Relação de Guimarães, como emerge dos seguintes arestos:
Acórdão de 20-3-2006 (proc.º n.º 245/06-1, rel. Fernando Monterroso);
Acórdão de 4-4-2005 (proc.º n.º 1477/04-1, rel. Nazaré Saraiva);
Acórdão de 28-6-2004 (proc.º n.º 575/04-1, rel. Heitor Gonçalves);
Acórdão de 31-5-2004 (proc.º n.º 2415/03, rel. Heitor Gonçalves);
Acórdão de 29-11-2004 (proc.º n.º 1883/04-1, rel. Francisco Marcolino);
Acórdão de 27-10-2003 (proc.º n.º 1445/03, rel. Miguez Garcia).
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§4. É, por conseguinte, neste pano de fundo que esta questão, do alegado erro de julgamento por errada valoração da prova produzida, deve ser encarada.
A este respeito deve sublinhar-se que o recorrente começa por afirmar que “foram erradamente julgados provados os factos constantes das alíneas constantes da acusação, na matéria a ele referente. Factos esses que, não condizentes com a verdade ou com a prova efectivamente produzida e apreciada, em sede de audiência, não devem ser considerado provados”.
Mas o recorrente não concretiza de modo satisfatório as provas que impõem decisão diversa, endossando ao tribunal esse ónus, juntando oito páginas de transcrições dos registos fonográficos.
Valora diferentemente algum do material probatório disponível, respiga de alguns depoimentos aquilo que lhe interessa e, numa técnica conhecida mas reconhecidamente ineficaz, limita-se a “fazer vista grossa e a varrer para debaixo do tapete aquilo que não lhe interessa” (Ac. da Rel. do Porto de 13-7-2005, proc.º n.º 0540595, rel. António Gama, in www.dgsi.pt).
Sempre se dirá que ao contrário do que por vezes se pensa e se ouve a todo o tempo, a prova indiciária, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação (cfr., v.g., Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, reimp. Lisboa, 1981, págs. 288-295, Id., Curso de Processo Penal, 2º vol., Lisboa, 1986, págs. 207- 208, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa/ S. Paulo, 1993, vol. II, pág. 83 e Ac. do S.T.J. de 8-1-1995, B.M.J. n.º 451, pág. 86 e Ac. da Rel. de Coimbra de 6-3-1996, Col. de Jur. ano XXI, tomo 2, pág. 44).
Ponto é que os indícios sejam graves, precisos e concordantes, como se exprime o artigo 192º, n.º2 do Código de Processo Penal Italiano.
Segundo Paolo Tonini, são graves os indícios que são resistentes às objecções e que, portanto, têm uma elevada capacidade de persuasão; são precisos quando não são susceptíveis de diversas interpretações, desde que a circunstância indiciante esteja amplamente provada; são concordantes quando convergem todos para a mesma direcção (La prova penale, 4ª ed., Pádua, 2000, apud Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado-procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, pág. 157).
Ora, no caso em apreço os indícios recolhidos são graves, precisos e concordantes, de molde a permitir inferir pela participação do arguido recorrente como co-autor do crime de lenocínio m causa nos autos.
Antes do mais, o arguido/recorrente encontrava-se no estabelecimento em causa, quer quando das vigilâncias, quer da operação policial que esteve na origem da sua detenção. O próprio arguido não nega este facto alegando que se tratava de um mero assalariado, empregado de mesa.
No momento da intervenção policial, encontravam-se nos anexos ao estabelecimento diversas cidadãs brasileiras a relacionar-se sexualmente com clientes nos diversos quartos do anexo, mediante uma contraprestação pecuniária, isto é, em plena actividade de prostituição.
No balcão do estabelecimento foram encontrados diversos preservativos.
No interior do bar foram igualmente encontrados numerosos outros objectos destinados à prática de actos de prostituição, nomeadamente, preservativos, bisnagas de gel e lençóis descartáveis.
Não podia pois o recorrente ignorar a que se destinava o anexo e o que ali se fazia nos diversos quartos em que fora transformado.
Acresce que o arguido recorrente foi visto a abrir com frequência a porta de emergência do bar para que os casais saíssem e voltassem a entrar no mesmo após a ida ao anexo.

Foi igualmente visto a entrar no reservado, tendo a chave do anexo/reservado consigo, levando para o seu interior um balde, assim demonstrando que o mesmo estava igualmente na sua disponibilidade.

Por outro lado, nos cartões de consumo eram anotadas as idas ao anexo/reservado (conforme se pode ver dos numerosos cartões de consumo apreendidos no presente processo às frequentadoras/trabalhadoras do bar e anexo/reservado).
E ao referido anexo apenas se acedia a partir do interior do bar e através da sua porta de emergência.
É assim inequívoco que naquele estabelecimento se exercia de forma organizada a prática da prostituição e que quem explorava tal estabelecimento reservava para si uma parte do preço.
Por outro lado, o arguido/recorrente figura como fiador no contrato de arrendamento comercial do estabelecimento em causa, sendo certo que de acordo com as regras da experiência comum, não é normal que um simples assalariado seja fiador do arrendamento do estabelecimento onde trabalha. O que aquelas regras ensinam, é que neste tipo de actividades, em que o fiador também “trabalha” no estabelecimento, ele está normalmente associado à gestão do mesmo estabelecimento, comungando dos respectivos lucros ilícitos. O que explica, a circunstância assinalada na fundamentação da sentença de o arguido recorrente se ter quedado comprometido quando confrontado com este Tribunal com o facto de o mesmo figurar como fiador no contrato de arrendamento comercial do estabelecimento em causa junto aos autos.
Acresce que a testemunha BELMIRA R... que referiu trabalhar no bar L... da Noite para vender copos e nada mais, nunca se tendo prostituído, esclareceu que foi o arguido Nuno que a convidou para trabalhar lá, em regime vulgarmente chamado de alterne, tendo combinado com ele que recebia à percentagem.

Ao contrário do que insinua o recorrente não se confunde, como se não confundiu na sentença recorrida, a actividade de prostituição com a de alterne, embora ambas surjam normalmente associadas.

Neste ponto o depoimento desta testemunha é, porém, particularmente importante na medida em que revela que a testemunha foi contratada pelo recorrente que com ela combinou a percentagem que lhe era devida (50% do valor dos consumos que induzia, os quais eram anotados no cartão de cliente). Novamente, à luz das regras da experiência comum, não é normal que um simples assalariado contrate pessoal, convidando-o a trabalhar no seu local de trabalho e com ele acordando a remuneração devida. O que mais uma vez aquelas regras ensinam, é que quem contrata e acorda a remuneração está associado à gestão do estabelecimento, comungando dos respectivos lucros ilícitos.

Aliás, e este ponto revela-se igualmente importante, segundo bem se refere na sentença recorrida, aquela testemunha BELMIRA R... “Envolveu todos os arguidos na gestão do bar e da sua parte monetária ao referir que qualquer um dos quatro arguidos chegou a estar ao balcão e ter feito contas consigo no fim da noite procedendo ao pagamento do que lhe era devido”.

Finalmente importa, ainda, assinalar a circunstância de o arguido/recorrente ter sido anteriormente julgado e condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de outro crime de lenocínio.

Todos estes indícios são graves, precisos e concordantes. E, devidamente conjugados e ponderados permitem concluir, sem margem para dúvidas, já que se não vislumbra qualquer outra possibilidade alternativa razoável, que o arguido/recorrente juntamente com os demais arguidos explorava o bar com o nome de “L... da Noite”, frequentado por prostitutas e por homens que as procuram para manter relações de sexo mediante pagamento, efectuado pelos clientes aos arguidos e do qual estes entregam uma parte à prostituta guardando outra.

Por outras palavras, segundo o curso ordinário e natural das coisas não pode razoavelmente supor-se que o arguido se limitasse a servir bebidas, como mero assalariado.

Conclui-se deste modo que o tribunal ao considerar provados os factos em que fundamentou a condenação, supra descritos em 2. A), fê-lo de forma devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura os elementos de facto que fundamentam a sua decisão, o processo lógico que lhe subjaz, optando por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença conforme se colhe da leitura da declarações produzidas em audiência de julgamento, não se detectando nenhum erro patente de julgamento, nem tendo sido utilizados meios de prova proibidos.
Por isso que tal decisão seja inatacável, porque proferida de acordo com a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal).

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§5. E terminam-se estas considerações que já vão longas, com a seguinte síntese conclusiva constante do Ac. T.C. 198/2004 de 24-03-2004 (DR, II Série, de 2-6-2004), que não podemos deixar de subscrever:
"A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão" (itálico nosso).
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7. Violação dos princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”.
Segundo o artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
Face a esta presunção compete à acusação a narração ainda que sintética, e a prova dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena em processo criminal.
Por outro lado, segundo o princípio in dubio pro reo «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Embora os princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo” estejam profundamente relacionados (e também por isso sejam frequentemente confundidos) cada um deles mantém uma relativa autonomia (cfr. neste sentido Jorge Gaspar, Titularidade da investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido, RMP n.º 88, pág. 112, nota 288; para um apanhado da doutrina portuguesa sobre as relações entre o princípio in dubio pro reo e o princípio da presunção de inocência veja-se, desenvolvidamente, Helena Bolina, “Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção de inocência (art. 32º, n.2 da CRP), in Boletim da Faculdade de Direito da universidade de Coimbra, vol. LXX, Coimbra, 1994, págs. 440-446).
Como se depreende quer da motivação quer, implicitamente das conclusões, o recorrente pretende ter sido violada a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, como resultado de todas as deficiências que apontou à decisão, seja porque porque teria havido erro notório na apreciação da prova, seja porque a prova era insuficiente para a condenação tendo sido incorrectamente valorados contra ele os elementos probatórios carreados. Porém, todos estes elementos foram já analisado nos números precedentes, tendo-se concluído pela improcedência da argumentação do recorrente.
Acresce que o princípio “in dubio pro reo” só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”(Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) .
Por isso a sua violação exige a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido (cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc.º n.º 3566/03-5ª, rel. Simas Santos,in www.pgdlisboa.pt/).
Ora, em momento algum resulta da sentença ou da transcrição da gravação, que o tribunal tivesse tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido/recorrente.
Deste modo, conclui-se que a decisão recorrida não patenteia a violação do princípio da presunção de inocência nem do princípio “in dubio pro reo”.
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8. A questão da medida da pena.

§1. Por último o recorrente insurge-se contra a pena que lhe foi aplicada que qualifica de excessiva.

A este respeito, importa deixar previamente consignadas algumas notas prévias.

A primeira para sublinhar que se concorda com a generalidade das observações genéricas feitas pelo recorrente nos artigos 60 a 67º da sua douta motivação, no que concerne à determinação da medida da pena e aos critérios que devem presidir a esta delicada tarefa.

A segunda nota para afastar a propalada colaboração do recorrente com a justiça.

Ao contrário do que se afirma na douta motivação do recuros, não é verdade que o arguido tenha colaborado com a justiça.

A não ser que se entenda que o simples facto de o arguido ter prestado declarações em audiência, negando a prática do crime de que vinha acusado, equivale a colaboração…

Por último e ao contrário do referido na mesma motivação o recorrente não foi considerado reincidente (artigos 75º e 76º do Código Penal).


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§2. O crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 170º, n.º1 do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado, é cominado em abstracto “com a pena de prisão de seis meses a 5 anos”.

Considerando, a culpa do arguido, muito elevada, quer pela organização do sistema prestativo e remuneratório da prostituição, quer pela repetição dos proveitos daquela actividade, as prementes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste domínio e todas as demais circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depõem contra ele ou a seu favor (artigo 71º, n.º 2 do Código Penal) nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, também elevado dada a estrutura empresarial com que foi levada a cabo a actividade delituosa do arguido, a dimensão e organização que o negócio apresentava, o número de prostitutas envolvidas, a intensidade do dolo, dolo directo intenso, o mau comportamento anterior do arguido, conclui-se que a pena de dois anos de prisão que lhe foi aplicada se revela necessária, adequada e proporcional.


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§3. Como bem se assinalou na douta sentença recorrida, o arguido não admitiu por qualquer forma a prática dos factos, não demonstrou qualquer arrependimento e já fora anteriormente condenado pela prática de um crime de lenocínio numa pena de prisão suspensa, tendo praticado os factos em análise nos presentes autos em pleno decurso do prazo de suspensão, o que é revelador de um profundo e total desprezo pela aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução.
É, por conseguinte, manifesto que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não se mostram suficientes para realizar de forma adequada as finalidades da punição (cfr. artigo 50º do Código Penal), pelo que seria totalmente impensável a suspensão da execução da pena, à qual sempre se oporiam inultrapassáveis considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Por isso que, também nesta sede, a sentença recorrido não seja merecedora de qualquer censura.

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III- Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com 6 UC de taxa de justiça.

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Guimarães, 29 de Janeiro de 2007