Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
164/21.0T8GMR-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: HERANÇA
HERDEIROS
PERSONALIDADE JURÍDICA
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
VALOR DA CAUSA
DEPÓSITO DO PREÇO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Só a herança jacente - aquela que já foi aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado - tem personalidade judiciária.
2 - A herança que já foi aceite pelos respetivos herdeiros não dispõe de personalidade judiciária.
3 - Os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ressalvando-se a ação de petição de herança (que pode ser intentada por qualquer dos herdeiros isoladamente) e ações relativas a “fenómenos periféricos da sucessão” para as quais o cabeça-de-casal terá legitimidade.
4 - Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados, pois é evidente que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros, não devendo julgar-se a falta de personalidade judiciária da autora mas sim proceder a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte.
5 - Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.
6 – Numa ação de preferência, o valor da causa será o do preço praticado no negócio objeto da preferência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M., representada pelos seus herdeiros S. M. e marido N. N., M. M., divorciado e J. S., viúva, intentou contra J. R. e mulher A. F. e José e mulher M. F., ação declarativa para o exercício do direito de preferência, pedindo que os réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico descrito nos artigos 5.º, 8.º e 9.º da petição, que seja reconhecido à herança autora o direito de preferência na compra do prédio identificado no artigo 2.º da petição e que os 1.ºs réus sejam condenados a abrir mão do referido prédio a favor da autora, entregando-o no estado em que se encontrava à data da escritura de compra e venda, atribuindo-se à herança autora o correspondente direito de propriedade e aos réus o direito ao levantamento do preço depositado, ordenando-se o cancelamento de quaisquer eventuais registos conservatoriais feitos com base na predita escritura, ou quaisquer outros que, entretanto, tenham sido efetuados.
Dentro dos 15 dias seguintes, os autores procederam ao comprovativo do depósito do preço, correspondente ao preço constante do título de transmissão, efetuado através do respetivo depósito autónomo.
Os réus contestaram excecionando a falta de personalidade judiciária da herança, a impossibilidade de execução do pedido de entrega e a falta de depósito do preço. Contestaram também por impugnação.
Pronunciaram-se sobre o depósito efetuado alegando que o mesmo não cumpre os requisitos legais, por ter sido efetuado pelo mandatário como pagamento de impostos e não estar depositado o preço pela autora à ordem do tribunal.
Na oportunidade que lhes foi concedida, os autores pronunciaram-se sobre a matéria de exceção.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgaram improcedentes as exceções de falta de personalidade judiciária e de caducidade por falta de depósito do preço. Foi designado dia para a realização da audiência de julgamento.

Os réus interpuseram recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F. M., NIF. ........., representada pelos herdeiros S. M., M. M. e J. S. demandou os réus J. R. e A. F. e José e M. F., pedindo a condenação destes a reconhecerem “à herança autora o direito de preferência na compra do prédio identificado na mesma petição inicial, em especial no seu artigo 2º” com a consequência de ser atribuído “à mesma herança autora o correspondente direito de propriedade”, articulando (artigo 4º, 5º, 6º, 18º, 19 e 20º) factos conducentes a convencer da titularidade do direito de preferência na referida herança, que é afirmada como sendo “parte legitima” (artigo 20º).
2. Contestaram os réus, alegando, entre o mais, que a herança não tinha qualquer direito de preferência porque a lei não lho reconhece, mas apenas aos herdeiros respetivos, e que, permanecendo a herança em causa ilíquida e indivisa, não tem a mesma personalidade jurídica nem judiciária, não podendo ser admitida a intervir como parte em qualquer processo judicial, e bem assim que a falta de personalidade judiciária da herança não é suprível sequer pela ficção de que pode entender-se substituída pelos herdeiros, uma vez que estes invocaram – e invocaram apenas – e intervirem em representação da herança autora, e não para exercerem qualquer direito próprio (cfr. entre muitos o Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Janeiro de 2008, proc. 7414/2007-2, disponível em www.dgsi.pt).
3. Para além disso, os réus alegaram ainda que o valor do negócio não era de 9500€ mas sim de 25000€, porque era esse o preço convencionado para a transação e, já após a apresentação da contestação, notificados do depósito do preço, alegaram que esse depósito efetuado pela autora é irregular, porque não foi feito à ordem do juiz do processo e foi feito, segundo nele se declara, para pagamento de impostos.
4. Em 8 de Junho de 2021, a “Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F. M., representada pelos seus herdeiros”, pronunciando-se sobre a matéria de exceção da contestação, veio insistir e esclarecer que “a referência no caso à mencionada herança ilíquida e indivisa deve entender-se como mero fundamento de serem as pessoas que se identificam como os filhos e a viúva, os autores e representantes da herança, que, no interesse dela, intentam a ação, no quadro da legitimidade substantiva prevista no artigo 2091º/ CC”, o que significa que ficou claro que a autora era a herança, representada pelos herdeiros, agindo no interesse da herança.
5. Não obstante o exposto foi produzido despacho saneador que decidiu que:
a) improcedia a “exceção dilatória da falta de personalidade judiciária deduzida pelos réus” porque pode entender-se que os herdeiros litigam em nome próprio e não em nome da herança, o que pretensamente se abonaria com dois acórdãos, um da Relação de Coimbra, de 26 de Fevereiro de 2019, outro da Relação de Guimarães de 24 de Setembro de 2019, que sustentam, corretamente aliás, que uma herança indivisa é representada pela sua cabeça de casal, o que, porém, é a questão alheia à posição processual da herança indivisa e sua alegada representação em juízo;
b) à ação devia ser atribuído o valor que lhe foi fixado pela autora, na obstante os réus terem contestado esse valor e oferecido um valor superior;
c) o depósito do preço estava corretamente efetuado, pelo que nada havia a decidir ou corrigir.
6. Nenhuma dessas decisões é minimamente aceitável, pelas razões que sucintamente se vão referir:
a) a ação é indiscutivelmente proposta pela herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M., limitando-se os herdeiros que a representam a intervir na qualidade de representantes da herança, pelo que o tribunal não pode ficcionar de modo algum que a ação é posta pelos herdeiros, quando eles próprios esclareceram que assim não é, pelo que a decisão, nessa parte viola o principio do pedido traduzido na fórmula “ne eat iudex ultra vel extra petita partium”;
b) a herança ilíquida e indivisa não tem personalidade jurídica nem judiciária como resulta do artigo 12º nº1 al. a) do Código de Processo Civil, pelo que “não pode exercer qualquer direito de preferência, nem arrogar-se de qualquer direito de propriedade, como, alias, tem sido unanimemente decidido pela jurisprudência: a herança aceite pelos interessados não goza de personalidade judiciária, não podendo ser admitida a intervir como parte em processo judicial” (cfr. acórdão da Relação do Porto de 25/07/1985, Col. Jurisp. 1985, IV, 243, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/03/1992, BMJ 415, pág. 658, acórdão da Relação de Coimbra, de 27/09/1995, BMJ 449, pág. 450, acórdão da Relação do Porto, de 04/12/1998, Col. Jurisp. XXIII, V, pág. 211, acórdão da Relação de Lisboa, de 24/02/2000, Col. Jurisp XV, I, pág. 125, acórdão da Relação de Lisboa, de 26/02/2002, Col. Jurisp. XVII, I, pág. 119, acórdão da Relação de Lisboa, de 17/01/2008, proc. nº 7414/2007 – 2, disponível em www.dgsi.pt, acórdão da Relação do Porto, de 09/12/2020, Col. Jurisp. XLV, V, pág. 294)
c) Não pode ficcionar-se que a intervenção dos herdeiros justifica que se afirme que passam eles próprios a ser partes e não a herança, quando, como no caso sucede, os herdeiros “intervieram nos autos na qualidade em que foram chamados a intervir, de simples representantes da herança” (acórdão da Relação de Lisboa de 17/01/2008, proc. nº 7414/2007 – 2, disponível em www.dgsi.pt)
d) Tendo os réus alegado que o preço efetivo da venda foi de 25000€ e não de 9500€ (artigos 29º a 31º da contestação), era o valor de 25000€ que devia ter sido fixado como valor da ação, independentemente da prova ou falta dela que viesse a fazer-se (artigo 296º nº 1, 297º nº 1, 299º nº2 do Código de Processo Civil);
e) Tendo a autora, atempadamente embora, feito juntar aos autos um documento comprovativo de um depósito efetuado pelo seu excelentíssimo mandatário na Caixa …, destinado ao pagamento de impostos, não podia o tribunal considerar, como considerou esse documento idóneo para assegurar como necessário se tornava, que a importância do preço convencionado ficava depositada à ordem do juiz do processo e se destinava a ser entregue aos réus compradores, no caso de procedência da ação, pelo que não faz sentido algum que o despacho recorrido, posto ante essa dificuldade não a tenha apreciado, limitando-se, sem outras considerações a dizer que “deverá julgar-se improcedente a exceção da caducidade invocada pelos réus” até porque em rigor os réus não tinham invocado sequer tal exceção, apenas requereram que se reconhecesse não estar cumprido o ónus imposto pelo artigo 1410º nº 1 do Código Civil.

Termos em que, na procedência do recurso, deve revogar-se o despacho saneador recorrido para, em sua substituição ser decidido que a ação é desde já julgada improcedente e não provada, mas, ainda que assim se não entenda, corrigir-se o valor da ação nos termos propugnados e declarado não cumprido o ónus imposto pelo artigo 1410º nº 1 do Código Civil, sempre com as legais consequências,
Para se fazer justiça.

Os autores, enquanto herdeiros da herança aberta por óbito de F. M., contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com o problema da personalidade judiciária do lado ativo (saber se a ação é proposta pela herança representada pelos herdeiros ou pelos próprios herdeiros), com o valor da ação e com a questão do depósito do preço.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“Da personalidade judiciária
Vieram os RR., na contestação por si apresentada, deduzir a exceção da falta de personalidade judiciária, alegando que a “Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F. M.”, que os RR. identificam como sendo a A. desta ação, não é uma herança jacente, pelo que nunca poderá ser parte em processo judicial.
Os AA. responderam, pugnando pela improcedência da dita exceção. Cumpre decidir.
Estipula o artigo 11º, n.º 1, do CPC, que “A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte.”.
O n.º 2 de tal preceito legal dispõe que “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.”.
Nos termos do disposto no artigo 12º do CPC, “Têm ainda personalidade judiciária: a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado; (…)”.
A herança diz-se jacente quando foi aberta, mas ainda não foi aceite pelos respetivos herdeiros (artigo 2046º do CC), não podendo considerar-se jacente a herança que, mesmo permanecendo indivisa, já foi aceite por algum dos respetivos herdeiros.
Na verdade, a partir da aceitação da herança por parte de algum dos sucessíveis chamados, a mesma deixa de ser considerada herança jacente e, consequentemente, passa a não dispor de personalidade judiciária (artigo 12º, alínea a), do CPC), pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense.
Depois da aceitação da herança e enquanto a mesma permanecer na situação de indivisão, os seus herdeiros não têm qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram, pelo que, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nos termos prescritos no artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil.
Revertendo ao caso sub judice, dúvidas não podem restar de que os herdeiros de F. M. aceitaram a herança aberta por óbito daquele.
Para além disso, no cabeçalho da petição inicial, designadamente, na parte respeitante à identificação dos AA., vem referido o seguinte: “HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA aberta por óbito de F. M., NF ........., representada pelos seus herdeiros: 1. S. M., NF ……… e marido N. N., casados no regime da comunhão de adquiridos, residentes na Rua …, nº …, em …, Guimarães, 2. M. M., NF ………, divorciado, residente na Rua do … da freguesia de …, do indicado concelho de Guimarães e 3. J. S., NF ……., viúva, residente na dita Rua ….”.
Sucede, porém, que no formulário preenchido pelos AA. nos termos do disposto na Portaria 280/2013, de 26/08, apenas se mostram identificados, como autores, os referidos S. M., M. M. e J. S., nenhuma referência sendo aí feita à dita herança.
Ora, como estipula o artigo 7º, n.º 2, do dito diploma legal, “Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.”.
Assim, considerando a dita desconformidade existente entre o conteúdo do aludido formulário e o conteúdo da petição inicial, no que à identificação dos autores respeita, deverá prevalecer a informação constante de tal formulário, considerando-se que os autores desta ação são os ditos S. M., M. M. e J. S., herdeiros da referida herança, e não a própria herança.
Uma vez que, ao contrário do que alegam os RR., os AA. desta ação são os referidos S. M., M. M. e J. S., e não a mencionada herança, impõe-se concluir no sentido da improcedência da exceção dilatória deduzida pelos RR.
Mas ainda que se desconsiderasse o teor do aludido formulário, o que se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre teria de se concluir no sentido da improcedência da exceção em apreciação.
De facto, como vem sendo defendido por grande parte da jurisprudência mais recente, “Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça de casal (devidamente identificada), nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista dos termos utilizados, que quem interpõe a acção, nela figurando como autora – ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros – é a cabeça de casal. Atendendo à filosofia subjacente ao nosso CPC – que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais – não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça de casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e providenciando, em caso negativo, pela sanação da sua eventual ilegitimidade e pela intervenção dos demais herdeiros.” – acórdão do TRC de 26/02/2019 (proferido no processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, in www.dgsi.pt).
De facto, como se refere no acórdão do TRC de 24/09/2019 (proferido no processo n.º 348/18.8T8FND-A.C1, in www.dgsi.pt), numa situação em que na petição inicial vem referido que a ação é intentada por determinada herança indivisa, representada pela cabeça de casal ou pelos seus herdeiros, impõe-se uma leitura e interpretação da petição inicial “menos formalista e da qual se poderá concluir que a parte (a autora) não será propriamente a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal, sendo que a formulação adoptada nestes autos em nada difere da comummente utilizada para identificar a pessoa que propõe ou contra quem se propõe uma acção, quando está em causa uma herança, sem que, habitualmente, se questione a falta de personalidade judiciária, por se entender que, na realidade, a parte na causa é a cabeça-de-casal ou os herdeiros que demandam ou são demandados por questões relacionadas com a herança.”.
De facto, os herdeiros, quando instauram ações por questões relacionadas com a herança, não o fazem em seu próprio nome e em seu benefício exclusivo, pelo que, naturalmente, terão de fazer menção desse facto para clarificar que não são os beneficiários da pretensão que vêm exercer e que essa pretensão tem como destinatário a herança ou o conjunto dos herdeiros. Por isso, é usual que na identificação dos autores da ação seja referido que os herdeiros o fazem na qualidade de representantes da herança.
Deverá, pois, considerar-se excessivamente formalista o entendimento de que, num caso em que se refere na petição inicial que a ação é intentada por determinada herança, representada por todos os seus herdeiros, tal circunstância impeça o normal prosseguimento dos autos, sendo que, no fundo, o que ocorre é apenas uma incorreção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que interpõe a ação, devendo entender-se que os autores são os próprios herdeiros e não a herança que dizem representar.
Importará, ainda, atender ao espírito e à filosofia subjacentes ao direito processual civil, que, num caso como o acima descrito, em que todos os herdeiros da herança em questão intervêm na ação, determinam que se interprete a petição inicial nos termos acima referidos, considerando-se como autores os herdeiros, de modo a que a ação possa prosseguir os seus normais termos, evitando-se a absolvição da instância por razões meramente formais.
Nunca poderia, pois, concluir-se no sentido da procedência da exceção dilatória invocada pelos RR.
Considerando o acima exposto, deverá concluir-se no sentido da improcedência da exceção dilatória de falta de personalidade judiciária deduzida pelos RR.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e estão nos autos devidamente patrocinadas.

Da invocada caducidade da ação
Os RR. alegam ainda que os AA. não procederam ao depósito do preço e que, de qualquer forma, o montante depositado sempre deveria ascender a € 25.000,00.

Cumpre decidir:
Nos termos do disposto no artigo 1410º, n.º 1, do CPC, “O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção.”.
Na ação de preferência, o preço a depositar pelos AA. nos 15 dias seguintes à propositura da ação, sob pena de caducidade, é no valor correspondente ao preço constante do título de transmissão.
In casu, temos que os AA. vieram, dentro do prazo aludido no referido preceito legal, efetuar o depósito do preço declarado na escritura pública de compra e venda junta aos autos.
Assim sendo, deverá ser julgada improcedente a exceção de caducidade invocada pelos RR”.

A primeira questão colocada pelos apelantes prende-se com a exceção de falta de personalidade jurídica e judiciária da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M..
Não há dúvida, e o despacho recorrido não o põe em causa, que a herança aceite pelos respetivos herdeiros não dispõe de personalidade jurídica, nem judiciária – artigos 11.º e 12.º, alínea a) do Código de Processo Civil – uma vez que, só a herança jacente tem personalidade judiciária e esta é aquela que já foi aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado, por desconhecimento da existência de herdeiros, por existência de herdeiros legítimos ou testamentários que ainda não aceitaram a herança ou pelo facto de ter sido deixada a favor de nascituro ou de conceturo, assumindo provisoriamente o lugar do de cujus na relação jurídica, mas não se confundindo com os herdeiros que venham a habilitar-se (artigo 2046.º do Código Civil). Toda a herança jacente é indivisa mas nem toda a herança indivisa é jacente, deixando de o ser com a aceitação e/ou repúdio pelos herdeiros – cfr. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 43.
Resulta, então, do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros”, ressalvando-se a ação de petição de herança (que pode ser intentada por qualquer dos herdeiros isoladamente) e ações relativas a “fenómenos periféricos da sucessão” para as quais o cabeça-de-casal terá legitimidade (artigos 2087.º a 2090.º do CC) – cfr. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. VI, pág. 152.
Isto mesmo resulta do despacho recorrido e dos inúmeros acórdãos que os apelantes citam nas suas alegações de recurso.
A verdadeira questão que aqui se coloca é a de saber se, tendo sido denominada a parte autora como “Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M., representada pelos seus herdeiros S. M. e marido N. N., M. M., divorciado e J. S., viúva”, tal impõe a absolvição imediata dos réus da instância ou se se impõe um “esforço integrativo”, uma vez que determinados os sucessores e aceita a herança, os interesses passam a estar encabeçados pelos herdeiros, nos termos daquele já referido artigo 2091.º do Código Civil.
Como salienta Abrantes Geraldes, no CPC Anotado já citado e com o qual se concorda em absoluto, este é um caso em que a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, traduzida num simples erro de identificação do sujeito processual.
“Para estas situações, em lugar de, numa visão positivista e formal, se optar logo pela absolvição da instância decorrente da falta daquele pressuposto processual, é mais razoável que se observe a possibilidade de retificação da identificação do sujeito processual, nuns casos mediante formulação de um convite à parte, noutros casos por via direta, através de uma simples interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte. Tal pode suceder, designadamente (…) quando a ação é instaurada ou dirigida em nome de “Herança H, representada pelos herdeiros X, Y e Z”, sendo evidente – como é, em geral – que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros” – autores e obra citada, pág. 41.
Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 27/05/2008, processo n.º 400/2002.C1, in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “No caso, permanecendo a situação de indivisão dos bens que integram a herança, despida ela de personalidade judiciária, como acima se disse, os direitos que lhe são relativos devem ser, conforme se salientou, exercidos pelos herdeiros. Ora, sendo eles conhecidos, estando terminada a situação de jacência, necessário se torna que no lugar da herança intervenham os respectivos titulares em bloco, ou seja, os herdeiros identificados na petição. Estes, na defesa dos interesses da herança por partilhar, intentam a acção apresentando-se como representantes da herança, embora impropriamente falem em “herança por eles representada”. São os herdeiros quem intervém como parte activa, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual activa (art.2091º/1, C.C. e 28º/C.P.C.). Assim, deve entender-se a referência à «herança ilíquida e impartilhada de A...», como mero fundamento de serem as pessoas que se identificam como a viúva e cabeça-de-casal, filhos e neta, os autores, herdeiros e representantes da herança, que no interesse desta intentam a acção no quadro da legitimidade substantiva prevista no art.2091º/C.C.. Concluindo, assiste aos herdeiros determinados da «herança ilíquida e impartilhada de A...», identificados na petição, personalidade judiciária e legitimidade processual para proporem a acção como representantes dela”
E, no mesmo sentido, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 12/09/2013, processo n.º 1300/05.9TBTMR.C1.S1 e da Relação de Lisboa, de 16/04/2015, processo n.º 4933/13.6TCLRS.L1-8 (“O espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária. A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes”), bem como o Acórdão da Relação de Guimarães de 07/12/2016, processo n.º 74/15.0T8CHV-A.G1
Este tem sido, também, o entendimento sufragado nos recentes Acórdãos da Relação de Coimbra, como se pode ver no Acórdão de 24/09/2019, processo n.º 348/18.8T8FND-A.C1: “Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros”; no Acórdão de 26/02/2019, processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1 e no Acórdão de 23/02/2021, processo n.º 1088/19.6T8LRA.C1.
Esta solução é, aliás, a que subjaz à filosofia do atual Código de Processo Civil, que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais, como muito bem se refere no despacho recorrido. Pretende-se evitar uma absolvição da instância por razões puramente formais.
Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. O já citado Acórdão da Relação de Guimarães acaba por concluir, mesmo que a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros, sendo que a falta de personalidade da herança não jacente decorre da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros
Improcede, assim, nesta parte, a apelação.

Improcede, também, a questão relativa ao valor da ação.
Nos termos do disposto no artigo 301.º, n.º 1 do CPC “Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”.
Ou seja, o valor da causa será o do preço praticado no negócio objeto da preferência que, no caso, foi de € 9.500,00.
Conforme se pode ler no Acórdão desta Relação de 04/10/2018, processo n.º 71/18.3T8CHV-A.G1, in www.dgsi.pt: “Para efeitos de atribuição de valor a uma acção de preferência, importa atender apenas ao preço apresentado pelo seu autor para o negócio de compra e venda que autoriza o exercício do respectivo direito a nele preferir, por ser este o valor do pedido principal formulado”.
A questão de saber se o preço que ficou a constar do contrato de compra e venda corresponde ou não aquele que efetivamente foi pago, é uma questão que contende apenas com a prova e não com a fixação do valor da ação.

Finalmente, os apelantes põem em causa a regularidade do depósito do preço efetuado nos autos.
Também aqui sem razão.
Nos termos do disposto no artigo 1410.º, n.º 1 do Código Civil, aplicável aos proprietários confinantes que desejem exercer o direito de preferência, por força do disposto no artigo 1380.º, n.º 4 do mesmo Código, têm estes que depositar o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Não está posto em causa que o depósito foi efetuado tempestivamente, mas entendem os apelantes que é irregular, uma vez que foi efetuado pelo mandatário dos autores, com um valor depositado a título de pagamento de impostos.

Vejamos.
Não há dúvida que os autores juntaram aos autos um documento emitido pela Caixa … “Comprovativo de Operação”, do qual consta que, a pedido do mandatário dos autores, foi registada uma operação do tipo “pagamento de impostos”, com a referência de depósito autónomo ……………. e no valor de € 9.500,00.
Contudo, verifica-se que aquela referência de depósito autónomo é a que consta do DUC que, para o efeito foi emitido pelo IGFEJ para Autoliquidações Diversas, e que foi posteriormente registado, com o mesmo número e valor e o descritivo “Depósito Autónomo”, e com a identificação do número do processo e o nome da autora S. M..
Não subsiste qualquer dúvida, portanto, que o depósito foi feito à ordem destes autos, com o DUC emitido para o efeito e a referência para pagamento que do mesmo consta.
Improcede, assim, totalmente, a apelação interposta.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se as decisões recorridas.
Custas pelos apelantes.
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Guimarães, 13 de janeiro de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira