Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1796/20.9T9GMR.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Quando o artigo 311.º do CPP impõe a rejeição da acusação por manifestamente infundada, se os factos não consubstanciarem crime, está a impor que os factos, objectiva e abstractamente, não podem, de todo, levar à imputação de um crime.
II - No caso em apreço, chamar alguém de ladrão ou mentiroso é objectivamente susceptível de ofender a honra da pessoa visada.
III - Se, no final da análise daquele “pedaço de vida” se concluir que, pelo contexto subjacente, as palavras em apreço não podem depois assumir uma carga ofensiva de forma a assumir contornos penais é já uma questão que se prende com a análise do mérito da lide e, portanto, insusceptível de levar a uma rejeição liminar nos termos do art.º 311.º do CPP.
IV - Faltam factos necessários ao preenchimento do elemento subjectivo tanto do crime de injúria como o de difamação quando, pese embora diga na acusação que os arguidos sabiam, respectivamente, que aquilo que lhe imputaram e lhe chamaram era falso e que queriam ofender a sua honra e desconsiderá-lo na sua pessoa, o assistente não alega factos tendentes a demonstrar que os arguidos sabiam que as suas respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.
V - Nesta situação há que rejeitar a acusação nos termos do art.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juiz 4 do Juízo Local Criminal de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o nº 1796/20.9T9GMR, foi proferida decisão em 13-01-2022, com a refª 176938932, da qual ora se recorre, rejeitando a Acusação Particular apresentada pelo Assistente D. T. nos seguintes termos:

“I - O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
O assistente deduziu acusação contra J. T., T. T. e F. T., imputando-lhe a prática de factos que entende serem susceptíveis de integrar um crime de difamação (quanto aos dois primeiros arguidos) e um crime de injúria p. e p. pelos art.º 181º do C.P (quanto ao segundo).
O MºPº, não acompanhou a acusação particular.
Nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2, al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se os factos nela descritos não constituírem crime (art.º 311º, n.º 3, al. d) do C.P.P.).
Isto posto, vejamos quais os factos cuja prática é imputada ao arguido. Na acusação de fls. 195 e ss., no que agora interessa, os arguidos J. T. e T. T. são acusados de ter proferido as expressões ali constantes, nomeadamente o primeiro: “quando lhe chamei ladrão…disse-lhe que ladrão seria ele por não pagar a parte ao meu pai”; e o segundo: por dizer que o assistente não pagou as facturas ao avô.
Já o terceiro arguido pelos dizeres que constam numa carta, e reproduzido a fls. 197 e 198.
Estes são os factos que a assistente entende serem suficientes para integrar a prática do ilícito criminal que imputa ao arguido.

Cumpre apreciar:

Nos termos do disposto no art.º 181º, n.º 1 do C.P., é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias quem injuriar outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.
E nos termos do disposto no art.º 180º, do C.P., “1- Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”
A questão que aqui se nos coloca é a de saber se as afirmações, alegadamente, produzidas pelos arguidos, de acordo com o que vem descrito na acusação, é suficiente para fundamentar a prática de um crime de injúria e/ou difamação.
O bem jurídico que a norma em questão visa tutelar é a honra ou a consideração.
Na definição dada pelo Prof. Beleza dos Santos ( in R.L.J., Ano 92º, Pág. 167 – Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria ) honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si e pelo que vale, sendo a consideração aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou desprezo públicos.
Ora, da matéria de facto descrita na acusação particular, não cremos que resulte ofendido qualquer destes bens jurídicos, não assumindo, a nosso ver, gravidade suficiente, susceptível de criar uma ofensa.
O direito penal (última ratio) não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas ou nas quais sejam visados. Antes pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos. A vivência em sociedade traz contrariedades, normais, por todos sentidas, sem que isso seja, todavia, bastante para fundamentar a prática de ilícitos criminais. Como bem explanou Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...).” V. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92°, pág. 167. (sublinhado nosso)
Como se defendeu no Ac. TRG nº 1467/04-1, de 25-10-2004, in www.dgsi.pt “I – Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública – cfr. ac. da Rel. de Lisboa de 6.2.96, CJ i, 156.
II – No entanto, vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts 180° e 181° do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa (uma vez que os crimes de difamação e de injúria são crimes de perigo)
(…)
IV – Com efeito, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena – ob. cit. págs. 165 e 166.
V – Aliás, nesta linha, decidiu o Ac. da Rel. de Évora, de 02/07/96, onde se escreveu: «Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração” cfr, CJ96, IV, 295.” (sublinhado nosso)
Importa distinguir o essencial do acessório, distinguir o crime do aborrecimento, distinguir o que é grave do que não tem importância suficiente para fundamentar a condenação pela prática de uma infracção criminal, ainda que tenha alguma carga pejorativa, o que pode configurar uma grosseria sem dignidade penal
Tendo presentes as definições de honra e consideração a que atrás fizemos referência, cremos que a afirmação dirigida à assistente não é suficiente para a abalar moralmente, reduzindo a sua auto-estima, nem a faz ser alvo de falta de consideração ou desprezo públicos, pelo que não se encontra preenchida, objectivamente, a previsão do art.º 181º, n.º 1 do C.P..
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, estabelece no seu art.º 10° “Liberdade de expressão”, que “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras.”
Como se defendeu no Ac. TRG., nº 566/16.3CHV.G1, de 05.03.2018, in www.dgsi.pt “I - O direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa tem de ser compatibilizado com o também direito fundamental da liberdade de expressão e informação, o qual tem como manifestação o direito de divulgar a sua opinião e exercer o direito de crítica. II - Uma vez que o exercício deste direito pode entrar em conflito com bens jurídicos pessoais, como a honra e a consideração, importa que as expressões utilizadas se circunscrevam ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível da ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional a um normal exercício do direito de expressar a opinião, cabendo aos tribunais judiciais o controlo da crítica excessiva, arbitrária, gratuita ou desproporcionada, na medida em que seja ofensiva do bom nome e da reputação da pessoa. III - O eventual conflito entre esses dois direitos terá de ser resolvido por ponderação dos respetivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo, que ocupam igual peso na hierarquia dos valores constitucionalmente protegidos. IV - No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspetiva na resolução do conflito. V - No caso concreto, a publicação feita pela arguida, na respetiva página pessoal do facebook, de uma fotografia sua, tirada à frente do estabelecimento comercial de pronto a vestir denominado “Boutique X”, em que é visível esta denominação, acompanhada dos dizeres “Não aconselho muito estas X”, pelo teor abstrato, ambíguo e indefinido desta afirmação, não é objetivamente ofensiva da honra e da consideração devidas ao assistente, enquanto pessoa individual e proprietário do referido estabelecimento, por não ser suscetível de ser entendida como formulação, suficientemente explícita ou inequívoca, de um juízo negativo sobre o estabelecimento comercial ou sobre o bom nome e a reputação profissional do seu proprietário.VI - A expressão utilizada não vai além do que a liberdade de expressão permite, enquanto exercício do direito de exprimir opiniões, ideias ou pensamentos, não possuindo uma carga desvaliosa suscetível de afetar o bom nome e a reputação do assistente.” (sublinhado nosso).
*
Mas mais relevante, por tratar da mesma quezília familiar - e com factos e juízos de valor imputados com seriedade objetivamente mais significativa - o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº 190/18.6GEGMR.G1, e que consta no apenso A, originado pela queixa do aqui 1º arguido (ali assistente) contra o aqui assistente (e ali arguido), o qual o absolveu de dois crimes de publicidade e calunia p. e p. pelo art.º 180º e 183.º, nº 1, al. a do Código Penal, e um crime de difamação p. p. pelo art.º 180.º de CP, além do mais, com os seguintes fundamentos: “O assistente e o arguido são irmãos, ambos filhos de F. T. e de M. C.. Entre eles existe um contexto de conflito que tem a ver com as partilhas que foram realizadas, em vida, pelos pais deles, e subsequentes desentendimentos.
É no desenrolar de todo este conflito familiar, potenciado pelo facto de o assistente não ter convidado o arguido para a festa de aniversário do sobrinho e pela visita considerada inoportuna do arguido à residência do assistente e onde ocorreu, entre ambos, uma discussão, que surgem as afirmações em causa.
O que as afirmações proferidas exprimem não é mais do que a tensão criada pelo conflito entre o assistente e o arguido e o sentimento neste instalado de o assistente ter sido beneficiado pelos pais, e se nelas existe, reconhece-se, um excesso de linguagem, ela foi potenciada pelo conflito e não é mais do que o reflexo daquela tensão e daquele sentimento. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, como se verifica amiúde nas questões relacionadas com as partilhas de bens, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma excessiva.
Porém, o Direito Penal deve ter um caráter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Nessa medida, as afirmações em causa não afectaram e não se vê que tenham potencialidade para afectar a imagem do assistente junto da comunidade, sendo certo que para a pretendida protecção da honra e correspondente direito ao bom nome e à reputação não basta que aquele se tenha sentido magoado e incomodado com as imputações feitas.
Em conclusão, atento o contexto em que foram produzidas e os seus precisos termos, considera-se que o potencial ofensivo das afirmações que constam dos referidos escritos não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal, pelo que se entendem atípicas e, portanto, não difamatórias, as imputações que elas consubstanciam.
Afastada a relevância objectiva dos factos dados como provados nos pontos 9) a 17), é indiferente que, subjectivamente, tivessem o propósito de atingir a honra e consideração do assistente, sendo, portanto, inócuas as asserções que, ao nível do tipo subjectivo do crime, se fizeram constar do ponto 18) dos factos provados, assim como irrelevante é que o assistente se tenha sentido triste, zangado e revoltado, pois não incumbe ao direito penal proteger a sua susceptibilidade pessoal.
Não estando preenchido, desde logo, o tipo objectivo dos crimes imputados ao arguido, impõe-se considerar a absolvição do arguido com tal fundamento, assim como do pedido de indemnização civil que contra ele foi deduzido pelo assistente, ficando, consequentemente, prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.” (negrito nosso)
***
Concluindo, somos a entender que os factos constantes da acusação particular não configuram a prática de qualquer crime por parte dos arguidos, por serem atípicos, nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P..

Face ao exposto, decido:

- rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente, bem como o PIC, e em consequência, determinar o arquivamento dos autos.

Custas a cargo do assistente, com taxa de justiça que se fixa em 2 U.C.
Notifique e DN.” (1)

II. Inconformado com a decisão em apreço veio o Assistente interpor recurso em 22-02-2022, com a refª 12655459, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1º - O recorrente não se conforma com o douto despacho que rejeitou a acusação particular, por ter entendido que os factos ali constantes não configuram a prática de qualquer crime por parte dos arguidos, por serem atípicos, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 alínea d) do CPP.
2ª – Com efeito, são elementos constitutivos do crime de difamação o ato de quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ele um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
3ª - O direito ao bom nome e reputação e à imagem encontra-se consagrado constitucionalmente, cfr. artigo 26º da C.R.P. Por sua vez, a tutela geral da personalidade encontra-se prevista nos artigos 25º e 70º do C. Civil.
4ª - A honra, segundo a conceção dominante entre nós, consiste num bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
5ª - O bem jurídico honra traduz uma pretensão de respeito por parte dos outros, que decorre da dignidade humana. O seu conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém.
6ª - O crime de injúria está configurado como um crime de perigo concreto, sendo que o dano (a ofensa da honra ou consideração) não faz parte do tipo, pelo que para a sua consumação basta que o perigo daquele dano se verifique.
7ª - As injúrias são infrações dolosas, consistindo este num dolo genérico, como é entendimento pacífico entre nós desde há muito tempo, ou seja, não é necessário para o preenchimento do crime que haja dolo específico, que se traduz na intenção de ofender a honra ou consideração alheias.
8ª – Há que atender à proteção constitucional conferida à dignidade do ser humano, cfr. artigos 1º, 24º, nº 1, 25º da CRP, igualmente objeto de proteção por parte de instrumentos de direito internacional, cfr. artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 3º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os artigos 7º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e os artigos 1º, 3.º, n.º 1, e 4.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
9ª - No caso vertente, fazendo intervir aqui os princípios perfilhados pela doutrina e pela jurisprudência supra citados, o recorrente não pode concordar com o tribunal a quo quando refere que as expressões em causa são atípicas, não difamatórias, integradas num contexto de conflitualidade e desavenças familiares, não sendo aptas a lesar a honra e a consideração do assistente, no seio da comunidade onde se insere.
10ª - As expressões proferidas pelo próprio punho do arguido F. T. através da carta de fls. 197 e 198, traduzem-se na insinuação de que o assistente, além de caloteiro (“tu é que me ficaste a dever”), propaga mentiras, que é mentiroso (“Não acredito como é que a S. N. consegue apoiar-te nestas mentiras todas”), tendo-o também apodado de “pessoa muito ingrata”, sendo que o contexto de desavenças familiares entre o assistente e o pai, não retira ou diminui sequer a carga ofensiva da honra e da consideração social que é devida ao assistente.
11ª - As expressões proferidas pelos arguidos J. T. e T. T. traduzem-se na afirmação de que o assistente é um “ladrão” (“À parte do ladrão … quando lhe chamei ladrão … disse-lhe que ladrão seria ele por não pagar a parte ao meu pai”; “o meu pai chamou-lhe ladrão porque o meu tio D. T. não pagou ao meu avô”), sendo que as mesmas foram proferidas em pleno tribunal, numa audiência de julgamento, na presença de vários operadores judiciários, nomeadamente perante o magistrado judicial que estava a julgar o ora recorrente. Também aqui o contexto de desavenças familiares entre o assistente, o irmão e o sobrinho, não retira ou diminui sequer a carga ofensiva da honra e da consideração social que é devida ao assistente.
12ª - No contexto das aludidas desavenças familiares, as expressões usadas pelos arguidos, visando o assistente, são suscetíveis de causar perturbação no assistente, e de, perante todos aqueles que as ouviram, ofender a sua honestidade, honra e consideração.
13ª – Com efeito, as expressões usadas pelos arguidos, considerando o seu significado objetivo, que depreciam em medida injustificada a pessoa do assistente, ultrapassam o contexto de uma conversa “azeda” entre irmãos, pai, tio e sobrinho. Não se ficam pela má de educação, pela falta de cortesia e de respeito entre familiares que sempre se deve exigir, extravasando claramente a linguagem imprópria e grosseira, uma vez que avança para o insulto gratuito.
14ª - Acresce que, ao contrário do referido pelo tribunal a quo, as referidas expressões em nada se assemelham com aquelas que estivem em causa no processo nº 190/18.6GEGMR, Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 4, sendo que o contexto era outro. Por isso, é irrelevante o ocorrido em tal processo.
15ª - Como tal, decidiu mal o Tribunal a quo ao considerar não estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crimes em causa, fazendo uma interpretação desconforme o disposto nos artigos 180º e 181º, nº 1 do CP. Andou pois mal ao rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente.
16ª - Assim e pelas razões supra expostas deverá o douto despacho agora colocado em crise e que não recebeu a acusação particular e, em consequência, não recebeu o pedido de indemnização civil formulado, ser revogado e consequentemente ser substituído por outro que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil apresentados pelo assistente, submetendo os arguidos a julgamento por todos os factos aí narrados.
17ª - Nestes termos, o douto despacho recorrido violou os artigos 180º, 181º do Código Penal e, bem assim, os art.ºs 311º, n.º 2 al. a) e n.º 3 al. d), estes do Código de Processo Penal.

NESTES TERMOS e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e, em consequência, ser revogado o despacho que rejeitou a acusação particular deduzida e, em consequência, rejeitou o pedido de indemnização civil formulado, substituindo-se por outro, que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil, a bem da JUSTIÇA!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 08-03-2022 com a refª 177852949 tendo sido fixado efeito devolutivo.

IV. Respondeu o MºPº através das contra-alegações juntas em 27-06-2022, com a refª 13200251, através das quais pugna pela improcedência do recurso não tendo oferecido conclusões.

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer em 22-09-2022 (refª 8369629), no qual pugna pela improcedência do recurso interposto pelo Assistente acompanhando a posição assumida pelo MºPº da 1ª instância.

VI. Ao douto parecer não houve qualquer resposta.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII: Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer das nulidades que são de conhecimento oficioso. (2)

O recorrente entende que o Tribunal a quo não podia ter rejeitado a sua acusação porquanto as expressões utilizadas pelos arguidos são susceptíveis de ofender a sua honra e consideração.

Está, assim, em causa saber a acusação particular é manifestamente infundada nos termos do disposto no artº 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do Código de Processo Penal por os factos nela contidos não constituir crime.

Vejamos.

Nos termos do nº 3 do artº 283º do Código de Processo Penal:

“A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.” – sublinhado nosso

O Assistente apresentou acusação particular nos seguintes termos (transcrição):

“1º - O assistente é irmão do arguido J. T..
2º - O arguido T. T. é filho do arguido J. T..
3º - O arguido F. T. é pai do assistente.
4º - O assistente e os arguidos têm estado desavindos há uns anos a esta parte.
5º - Atualmente, correm vários processos-crime neste tribunal, envolvendo o assistente e os arguidos J. T. e T. T..
6º - No processo 190/18.6GEGMR que correu os seus termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 4, nesta Comarca, o assistente vinha acusado pela prática de um crime de difamação, em que era queixoso o arguido J. T..
7º - Ora, no dia 13-02-2020, pelas 11h23m, durante a audiência de julgamento realizada no âmbito do citado processo 190/18.6GEGMR, o arguido J. T. prestou declarações e dirigindo-se ao assistente, disse o seguinte:
“À parte do ladrão … quando lhe chamei ladrão …disse-lhe que ladrão seria ele por não pagar a parte ao meu pai”.
“A mulher estava ao lado dele”.
8º - Entretanto, no dia 20-02-2020, pelas 10h27m, durante a audiência de julgamento realizada no âmbito do citado processo 190/18.6GEGMR, o arguido T. T., na qualidade de testemunha arrolada pelo arguido J. T., prestou declarações e dirigindo-se ao assistente, disse o seguinte:
O meu pai chamou-lhe ladrão porque o meu tio D. T. não pagou ao meu avô.
O meu avô pagou as faturas, mas ele é que as devia pagar. No meio dessa discussão, o meu pai chamou-lhe ladrão porque ele é que devia pagar as faturas do gás e não o meu avô.
9º - Também no dia 20-02-2020, pelas 11h04m, durante a audiência de julgamento realizada no âmbito do citado processo 190/18.6GEGMR, o arguido F. T., na qualidade de testemunha arrolada pelo arguido J. T., prestou declarações e dirigindo-se ao assistente, disse o seguinte, em resposta à Ex.ma Procuradora do Ministério Público:
Então, depois dessas partilhas com os seus filhos, ficou tudo resolvido?
Sim, nenhum dos filhos me deve dinheiro.
Porém,
10º - Por registo postal de 23-07-2020, o arguido F. T. enviou ao assistente uma carta, por si redigida e por si assinada, onde constam os seguintes dizeres respeitantes ao assistente:










11º - Ao reproduzirem as declarações supra descritas em 7º e 8º sabiam os arguidos J. T. e T. T. que as mesmas eram falsas, pois o assistente não deve qualquer quantia ao arguido F. T..
12º - Os arguidos J. T. e T. T. sabiam, por isso, que ao reproduzirem tais declarações, acusando o assistente, de “caloteiro”, em pleno tribunal e na presença de vários operadores judiciários, denegriam a imagem e idoneidade do assistente.
13º - De igual modo, o arguido F. T., ao enviar ao assistente a carta supra referenciada, por si redigida e por si assinada, com os dizeres acima transcritos, bem sabia que denegria a imagem e idoneidade do assistente, por em tal carta formular sobre ele juízos atentatórios da sua honra e consideração, quer como pai e marido.
14º - O arguido F. T. sabe que o assistente não lhe deve qualquer quantia, que o leve a dizer aquilo que diz na aludida carta.
1 5º - O arguido F. T. sabe que o assistente nunca acusou os pais de “ladrões e burlões”, como alega.
16º - As “partilhas” foram efetuadas por acordo de todos, de forma livre, voluntária, por escritura pública de 26-09-2016, perante a Notária, no Cartório Notarial de … – cfr. escritura junta aos autos.
17º - Aliás, o arguido F. T. confessa na aludida carta que nas partilhas “ninguém pagaria nada a ninguém”, “sem ninguém mais ter de pagar nada aos outros”; “na escritura ficou tudo em pratos limpos”.
18º - O arguido F. T. sabe que não é verdade que o assistente lhe deva a alegada “renda”; os “€ 125,00”; o “pagamento à Advogada”; ou o “gás”;
19º - Com os dizeres escritos na citada carta, o arguido F. T. quis colocar a mulher, de nome S. N., contra o assistente, quando afirma que



Do supra exposto,
20º - As condutas acima relatadas foram praticadas pelos arguidos de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito, conseguido, de ofender o assistente na sua honra e consideração, dirigindo-lhe palavras ofensivas e ainda formulando, sobre ele, juízos, objetiva e subjetivamente, violadores dos direitos de personalidade do assistente, tendo assim os arguidos J. T. e T. T. incorrido na prática de um crime de difamação (factos relatados supra em 7º e 8º) e o arguido F. T. incorrido na prática de um crime de injúria (factos supra relatados em 10º), respetivamente, p.p. pelo artigo 180º, nº 1 do CP pelo artigo 181º, nº 1 do CP.

II – PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO

21º - Por uma questão de economia processual, dão-se aqui por integralmente reproduzidos todos os factos constantes na acusação supra.
22º - A conduta dos demandados causou ao demandante forte abalo psíquico, ficou perturbado, triste, envergonhado;
23º - Nos primeiros dias andou irritado e não conseguiu conciliar o sono;
24º - Tais factos causaram humilhação, vergonha e nervosíssimo ao demandante;
25º - A conduta dos demandados é especialmente grave, considerando a relação familiar em causa.
26º - Por outro lado, as expressões supra referidas em 7º e 8º foram proferidas em plena audiência de julgamento, perante várias pessoas, como R. C. e C. A., Advogados, Procuradora da República, Funcionária judicial e sobretudo perante o Magistrado judicial que estava a julgar o ora assistente naquele processo.
27º - Por outro lado, como resulta da carta, o assistente também não se conforma com o facto de ser apelidado pelo próprio pai de lhe dever dinheiro, de ser “caloteiro” e deste colocar a mulher contra ele, provocando consequentemente problemas no casamento.
28º - O demandante sente-se assim profundamente abalado, moral e psicologicamente e jamais esquecerá o vexame, a vergonha e a tristeza por que passou, tudo em virtude das condutas dolosas dos demandados, que a nenhum título se podem justificar.
29º - Até porque o demandante é pessoa de bem, humilde, trabalhador.
30º - As condutas dos demandados acima transcritas constituem pois uma violação dos direitos de personalidade do demandante, designadamente a sua honra e consideração, tendo assim sofrido um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, merece a tutela do direito, reclamando a este título dos demandados, uma indemnização de € 500,00 (quinhentos euros) a cada um.

Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exa mui douta e sabiamente suprirá:

a) Deve a acusação ser julgada provada e procedente e, em consequência, os arguidos condenados, em processo comum singular, na pena legal e
b) Deve o presente pedido de indemnização civil ser julgado provado por procedente, sendo em consequência os demandados J. T.; T. T. e F. T., condenados a pagar ao demandante uma indemnização no montante de € 500,00 (quinhentos euros) cada um, acrescida dos juros moratórios legais contados desde a sua notificação até integral pagamento e, ainda, nas custas e demais encargos legais.
VALOR DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO: € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
PROVA:
A- POR DECLARAÇÕES:
- do Assistente;
B – Documental:
- a constante nos autos;
C - TESTEMUNHAS:
1º - S. N., casada, residente na Rua …, nº … Vizela;
2º - E. B., casado, residente na Rua … Vizela;
3º - A. N., casado, residente na Rua … Vizela;
4º - A. M., casada, residente na Rua … Vizela;
5º - R. C., casada, residente na Rua … Vizela;
6º - C. A., residente na Rua … Vizela;
cujos depoimentos se requerem quer para a acusação quer para o pedido de indemnização civil.”

Ora, a decisão recorrida entendeu que, no contexto em que tais expressões foram proferidas, apelidar o Assistente de ladrão, caloteiro e mentiroso não integra a prática de crime uma vez que, dado o contexto subjacente (desavenças familiares em torno de partilhas), não se pode considerar ter havido ofensa séria da honra e da dignidade do Assistente.

Não nos compete, no âmbito deste recurso, analisar a bondade dessa conclusão uma vez que a mesma se prende com o mérito da causa que, na fase processual em que tal despacho fora proferido, está subtraído ao Tribunal a quo.

Na realidade, a conclusão a que o Tribunal a quo chegou – e que até pode estar correcta – resulta de uma avaliação do mérito da acusação, pois que toma em consideração um contexto maior, incluindo uma decisão já tomada no âmbito de outro processo crime entre as mesmas pessoas, mas com os papeis processuais trocados.

Mas essa análise implica uma antecipação do mérito da causa o que não pode ocorrer na fase de saneamento do artº 311º do Código de Processo Penal.

Quando o citado artigo 311º impõe a rejeição da acusação por manifestamente infundada, quando os factos não consubstanciam crime, está a impor que os factos, objectiva e abstractamente não podem, de todo, levar à imputação de um crime.

Por exemplo: se na acusação (particular ou pública) se elencar factos com vista a demonstrar que o arguido comeu um gelado numa zona de um centro comercial onde não podia, tal não traduz a prática de qualquer crime embora o seu comportamento pudesse eventualmente ser tido como violador de normas internas de segurança de uma determinada superfície comercial.

Mas, neste caso, não há qualquer dúvida que nenhum crime fora praticado.

Já, no caso em apreço, chamar alguém de ladrão ou mentiroso é objectivamente susceptível de ofender a honra da pessoa visada.

Se, no final da análise daquele “pedaço de vida” se concluir que, pelo contexto subjacente, as palavras em apreço não podem depois assumir uma carga ofensiva de forma a assumir contornos penais já é uma questão que se prende já com a análise do mérito da lide e portanto, insusceptível de levar a uma rejeição liminar nos termos do artº 311º do CPP.

Conforme tem sido jurisprudência assente, da qual aqui citamos apenas alguns exemplares:

“I. A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
II. Esse pressuposto não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho saneador, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da al. d) do nº3 do artº 311º não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.” (3)

“I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
II. Os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
III. Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311º do CPP não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente.” (4)

“I. Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados.
II. O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
III. Mas a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
IV. Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada.” (5)

Ora, no nosso modesto entendimento, o que o despacho recorrido faz é antecipar a análise da lide, decidindo de mérito o que está vedado na fase de saneamento previsto no artº 311º do CPP.

De notar que a decisão que invoca, proferida no âmbito do processo nº 190/18.6GEGMR, é uma decisão dada já após o julgamento da causa e após análise em sede de recurso.

No fundo, se não houvesse uma discussão em outro processo (o processo nº 190/18.6GEGMR) das relações conturbadas entre os familiares da trama deste processo, talvez o Tribunal a quo não teria chegado à conclusão a que chegou no âmbito do despacho recorrido, só o podendo fazer depois de julgar a causa e de se inteirar desse contexto familiar altamente conflituoso.

Por isso, se nos afigura que, os fundamentos oferecidos pelo Tribunal a quo para rejeitar liminarmente a acusação particular apresentada pelo Assistente, não podem aqui ser acolhidos.

Contudo, tal não significa que a acusação particular não deva ser rejeitada por fundamento diverso que passamos a expor.

Na acusação particular o Assistente descreve os factos tendentes a demonstrar o preenchimento do elemento objectivo do crime em apreço.

No entanto, em nosso modesto entendimento, afigura-se-nos que faltam factos necessários ao preenchimento do elemento subjectivo tanto do crime de injúria como o de difamação.

É que o Assistente diz que os arguidos sabiam, respectivamente, que aquilo que lhe imputaram e lhe chamaram era falso e que queriam ofender a sua honra e desconsiderá-lo na sua pessoa.

Mas o Assistente não alega factos tendentes a demonstrar que os arguidos sabiam que as suas respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Ou seja, faltam factos tendentes a demonstrar que os arguidos detinham consciência da ilicitude das suas respectivas actuações.

Ora, conforme muito bem explanado em Acórdão desta mesma Relação de Guimarães de 19-06-2017, por punho do Exmº Sr. Desembargador Relator Jorge Bispo: (6)

“I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa.
II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras filha da puta e pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu. Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência.
III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artºs 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP.”

Como resulta do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do STJ nº 1/2015 (6):

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

Por isso, e voltando ao Acórdão desta Relação de Guimarães de 19-06-2017 supra citado:

“Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objetivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.
Com efeito, há que destrinçar entre a alegação de factos pertinentes (neste caso relativos ao elemento subjetivo) e a respetiva prova, ou seja, distinguir, por um lado, o que é facto concreto a provar (sendo imprescindível a sua alegação) e, por outro, quais são as provas desse facto concreto (o que interessa para a fundamentação da decisão da matéria de facto).
O facto de o dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a alegação dos factos respetivos. Uma coisa é a presunção do dolo, absolutamente inadmissível, e outra coisa completamente diferente e aceitável, é a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência.
A este propósito, consta também da fundamentação do referido acórdão uniformizador n.º 1/2015 que «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum»”.

Assim, não restam dúvidas que, embora por fundamento diverso daquele plasmado no despacho recorrido, a acusação particular sempre teria de ser rejeitada nos termos do artº 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.

Motivo pelo qual, o presente recurso terá de improceder à mesma.

Decisão:

Em face do acima exposto os Juízes da Secção Penal decidem negar provimento ao recurso interposto pelo Assistente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida embora por fundamento diverso.
Custas a cargo do Assistente recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC's: (artºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
Guimarães, 07 de Novembro de 2022.

Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Paulo Correia Serafim (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)



1. Os negritos e sublinhados são da própria decisão.
2. Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
3. Acórdão da Relação de Lisboa de 25-11-2009 localizável em: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_busca_processo.php?buscaprocesso=742/08.2GCMFR.S1.L1&codseccao=3
4. Acórdão da Relação do Porto de 11-07-2012 localizável em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/488fc56f7c684f8780257a44003184c5?OpenDocument
5. Acórdão da Relação de Évora de 15-10-2013 localizável em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a447d2b470d54dff80257c0500362a0f?OpenDocument
6. Localizável em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0f0c84a73d74ebdb8025814e004799ce?OpenDocument
7. Localizável em: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/66348204/details/maximized?p_auth=aKubf4Nz&serie=I