Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1538/12.2TABRG.G1
Relator: ALCINA RIBEIRO
Descritores: DESCAMINHO
ELEMENTOS TÍPICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não constituem elementos típicos do crime de descaminho: a) a qualidade específica do agente de fiel depositário, b) a advertência para a possibilidade da prática do crime,, c) a prévia notificação do depositário para proceder à entrega dos bens e d) a notificação da apreensão sob a forma de uma comunicação regularmente emanada de autoridade ou funcionário competente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1.Por sentença proferida em 22 de Junho de 2015 foi Vítor T. condenado pela prática de um crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de 7,00€ e bem assim nas custas do processo, com taxa de justiça fixada em 3 UCS.

2. Inconformado com esta condenação, dela recorre o arguido, formulando as seguintes Conclusões:

«1.ª - O presente recurso vem interposto da, aliás, douta Sentença de fls. …, proferida pela Instância Local – Secção Criminal – J3, de Guimarães, que condenou o Arguido VÍTOR T.:

- pela prática de um crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, que se substitui por 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);

- Bem como condenou o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC – artigo 513.º e 514.º, do CPP e artigo 8.º, n.º 5, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais;

2.ª DA IMPUGNAÇÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO E DOS ERROS NOTÓRIOS NA APRECIAÇÃO DA PROVA (artigo 410.º, n.º 2, alínea c) e 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal): com interesse para a causa, o Arguido VÍTOR T. considera que foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de factos dados por provados:

“4 – Tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido nos moldes descritos, o arguido, no dia 14 de Junho de 2012, retirou-o do local em que se encontrava estacionado, na Rua da…, e levou-o consigo, dando-lhe destino que lhe aprouve, contra a vontade de Susana M..

5 – Agiu o arguido sabendo que o veículo em apreço se encontrava apreendido, com manifesto desrespeito pelo regime legal a que o bem fixou sujeito após a apreensão, que era do seu conhecimento, designadamente, que estava impedido de o subtrair ao poder público.

6 – Agiu o arguido de forma livre, voluntária, e consciente, sabedor da proibição que lei fazia impender sobre a sua conduta.”

3.ª - Na verdade tais factos, quanto ao arguido VÍTOR T., tinham necessariamente, atenta a absoluta falta de prova que fizesse perigar a presunção de inocência, de ser dados como não provados.

4.ª Aliás, o Ilustre Tribunal nos pontos 4, ab initio, e 5 dá como provado uma conclusão, isto é, fixando que o arguido actuou “tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido”.

5.ª - Dizer-se apenas e só “tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido”, o Ilustre Tribunal a quo está a dar como provado uma conclusão e não um facto.

6.ª: a questão do arguido saber ou não se o veículo em apreço estava ou não apreendido é estrutural para uma possível imputação da prática do crime.

7.ª: Ora, não foi demonstrado nos autos, bem pelo contrário, como, quando e de que forma ao arguido foi comunicado a apreensão do veículo e de que o mesmo não podia ser removido do local onde se encontrava sob pena de subtracção do mesmo ao domínio público.

8.ª - E diz-se bem pelo contrário, porquanto o arguido expressamente referiu que não sabia que o veículo estava apreendido nem sabia que não podia remover o mesmo do local onde se encontrava.

9.ª - Na verdade, o Tribunal a quo intuiu como verdadeira uma conclusão e não um facto. Acontece que, não existe suporte de prova que objective tal intuição, no fundo, não existem elementos nos autos que fundamentem tal conclusão como provada.

10.ª - Na verdade, o arguido, de boa-fé e colaborando com a descoberta da verdade material, afirmou que, de facto, foi buscar a carrinha em apreço, mas desconhecendo em absoluto a apreensão e com autorização da sua ex-esposa, que inclusive facultou a chave para o efeito.

11.ª - De facto, como a carrinha só tinha uma chave, era ao arguido impossível remover a mesma sem a colaboração da sua ex-esposa.

12.ª - Como se referiu não pode o tribunal dar como provado conclusões mas sim factos.

13.ª - Em nenhum momento o tribunal deu como provados factos concretos relativos ao conhecimento pelo arguido que o veículo se encontrava apreendido e que o mesmo pretendeu remover o veículo para o subtrair ao poder público.

14.ª - Não podem, destarte, constar dos factos provados as conclusões relativas ao conhecimento pelo arguido que o veículo se encontrava apreendido e que o mesmo pretendeu remover o veículo para o subtrair ao poder público.

15.ª - Aliás, inexiste qualquer prova nos autos que permita concluir ou dar como provado que o arguido tinha conhecimento que o veículo se encontrava apreendido e que o mesmo pretendeu remover o veículo para o subtrair ao poder público.

16.ª - Bem pelo contrário: de facto, a arguido Vítor, nas suas declarações prestadas na audiência de julgamento do dia 12 de Junho de 2015 (cf. Início da Gravação: 12 de Junho de 2015, às 10 Horas e 40 minutos e 56 Segundos; fim da gravação: 12 de Junho de 2015, às 11 Horas e 05 minutos e 54 Segundos; duração do depoimento: 24 minutos e 57 segundos) expressamente referiu:

- “…Eu desconhecia sequer que a carrinha foi apreendida! Eu desconhecia sequer que a carrinha tinham sido apreendidos os documentos! Fui buscar a carrinha de livre e espontânea vontade … uma vez que estávamos separados há mais de um ano é verdade… não tinha lógica ela ficar com a carrinha, a carrinha era da empresa …” – dos 15 segundos aos 34 segundos.

E mais à frente no mesmo depoimento – entre os 40 segundos e 1 minuto – referiu: “ - a testemunha (a ex-esposa) disse aqui que nunca viu a carrinha isso é de lamentar que é uma pura mentira porque ela foi muitas vezes ter comigo ao armazém onde eu estava a trabalhar por favor e a comer e a dormir, a carrinha esteve lá imobilizada meses”.

E continuou o arguido - entre o 1 minuto e 1 minuto e 43 segundos: “- … foi lá várias vezes para conversar comigo sobre os problemas da minha filha e viu que a carrinha estava lá imobilizada e ela disse aqui que não. Eu só soube da verdade, o que se tinha passado com a carrinha, quando lhe pedi várias vezes o documento da carrinha para fazer o seguro …e o agente Miguel O. da GNR de L… ligou-me e disse para eu passar no posto … e eu fui falar com o senhor agente Miguel O. ele explicou-me o que passava … estás aqui acusado disto…!”

Disse também o arguido – entre os 4 minutos e os 4 minutos e 18 segundos: “- Quando se deu que prontos a menina Susana … acho muito bem, resolveu arranjar outra vida, arranjar outras pessoas …, já não tínhamos nada em comum, eu resolvi ir buscar a carrinha. Desconhecia que a carrinha estava apreendida.” Acrescentou o arguido – entre os 5 minutos e 24 segundos e os 5 minutos e 39 segundos: “- Eu fui lá buscar a carrinha! Combinei uma hora e ela naquela hora saiu e disse-me que deixava a chave lá! Eu dirigi-me lá e peguei na carrinha, estava lá a chave… a carrinha não tinha uma segunda chave, nunca teve..!”

Por fim (por economia processual em sede citação) afirmou o arguido em resposta à pergunta do Exmo. Sr. Juiz de qual, então, a razão para a sua ex-esposa apresentar queixa – entre os 5 minutos e 51 segundos e os 6 minutos e dezasseis segundos: “- Nós infelizmente passamos uma fase muito difícil na nossa vida em que nem nos podíamos ver um ao outro derivado até à outra situação da outra carrinha que ela me tinha feito … nós não nos falávamos nem nos queríamos falar … só queríamos que um fosse para um lado e outro para o outro.”

17.ª - Em nenhum momento do seu depoimento a sua ex-esposa (sendo que as demais testemunhas nada sabem sobre o ocorrido entre esta e o arguido no que concerne à situação da carrinha) diz como, quando e de que forma deu conhecimento ao arguido da apreensão da carrinha e de que a mesma não podia ser removida e subtraída ao poder público sob pena de cometimento do crime de descaminho.

18.ª - Aliás, nunca o Tribunal se podia basear exclusivamente num testemunho contra a versão do arguido, quando esse testemunho vem de alguém contra quem o arguido tem vários litígios em resultado da sua separação e da regulação do poder paternal da filha bem como o testemunho vem da pessoa mais interessada em remeter a responsabilidade do ocorrido com a carinha para terceiro, atento ser ela que era a fiel depositária e a directamente responsável pelo que sucedesse à mesma.

19-ª Da prova apresentada e da prova produzida não resultou qualquer indício de que o Arguido Vítor tivesse tido qualquer conhecimento da apreensão da carrinha e de que a mesma não podia ser removida e subtraída ao poder público sob pena de cometimento do crime de descaminho.

20.ª - E inexiste qualquer indício porque o Arguido Vítor efectivamente desconhecia de todo a apreensão da carrinha e de que e de que a mesma não podia ser removida e subtraída ao poder público sob pena de cometimento do crime de descaminho.

21.ª - Tal está documentado pelas declarações prestadas de forma verdadeira pelo arguido.

22.ª - De facto, o Tribunal a quo não tinha qualquer indício que lhe permitisse concluir, para além de qualquer dúvida razoável que:

“4 – Tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido nos moldes descritos, o arguido, no dia 14 de Junho de 2012, retirou-o do local em que se encontrava estacionado, na Rua da … e levou-o consigo, dando-lhe destino que lhe aprouve, contra a vontade de Susana M..

5 – Agiu o arguido sabendo que o veículo em apreço se encontrava apreendido, com manifesto desrespeito pelo regime legal a que o bem fixou sujeito após a apreensão, que era do seu conhecimento, designadamente, que estava impedido de o subtrair ao poder público.

6 – Agiu o arguido de forma livre, voluntária, e consciente, sabedor da proibição que lei fazia impender sobre a sua conduta.”

23.ª - Com efeito, de acordo com as regras da experiência e normalidade do acontecer, indiscutível é a verosimilhança da versão trazida pelo arguido.

24.ª - Pelo que, não podia o Tribunal a quo ter dado como provados os pontos da matéria de facto n.ºs 4, 5 e 6 (sendo, aliás, os pontos 4 e 5, pelo menos em parte, meros juízos conclusivos e não factos), devendo, sim, dar-se tais factos como não provados, o que ora se peticiona.

25.ª - Sucedendo que, ao dar como provados tais factos, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, acabando por condenar indevidamente o Arguido Vítor pela prática de um crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, que se substitui por 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);.

26.ª - Quando o Arguido devia ter sido absolvido de tal crime porquanto, conforme supra demonstrado, não o praticou, nem da prova produzida podia o Tribunal a quo ter dado como provada, para além de qualquer dúvida razoável, a matéria factual a ele atinente.

27.ª - Cumpre, concomitantemente, modificar e/ou revogar a Sentença ora em crise, substituindo-a por acórdão que dê como não provados todos os factos acima discriminados, e, consequentemente, absolvendo o Arguido Vítor da prática de um crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal;

28.ª – Em sede de recurso sobre a matéria de direito, impõe-se concluir que o Tribunal a quo violou, ao proferir a Sentença em apreço, o artigo 355.º, do Código Penal.

29.ª - De facto, mesmo com os factos que deu como provado (e que supra se impugnam), não era possível subsumir a conduta do arguido no artigo 355.º, do Código Penal.

30.ª - Isto porque, no nosso modesto entendimento, não basta dar como provado que o arguido teve conhecimento informal por pessoa não dotada de autoridade pública de que sobre o bem impendia ordem de apreensão.

31.ª - Tal como, em parte, no crime de desobediência, para o arguido praticar o crime tem de se verificar que ao mesmo foi regularmente dado a conhecer a apreensão do veículo, nomeadamente, deve tal conhecimento emanar de autoridade ou funcionário competente (isto, directa ou indirectamente, isto é, por exemplo, in casu bastando estar o veículo devidamente selado, onde constasse documento público a comunicar o status do bem).

32.ª - Um simples comentário de um terceiro não dotado de autoridade pública, sem demonstração através dos competentes documentos públicos, não será suficiente para que se considere que um arguido está inibido de dispor de um bem de que é proprietário;

33.ª - Sendo o arguido “proprietário” do bem, e tendo assim total disponibilidade sobre o mesmo, é cogente lhe ser dado a conhecer regularmente a apreensão do bem;

34.ª Não podia, atento a acima avançado, a conduta do arguido ser subsumida no artigo355.º, do Código Penal, violando, destarte, o tribunal a quo o citado normativo.

35.ª -Atento não ser a sua conduta subsumível no artigo 355.º, do Código Penal, imperativo é modificar e/ou revogar a Sentença ora em crise, substituindo-a por Acórdão que determine a absolvição do arguido do crime de descaminho que vinha acusado».

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso, nos moldes que constam a fls. 215 e 216, tendo concluído pela manutenção do decidido.

4. Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunta, em parecer fundamentado, pugna pela total improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito

II. A DECISÃO RECORRIDA

O Tribunal a quo exarou a Fundamentação de Facto como se seguir se transcreve:

«A. FACTOS PROVADOS:
Com relevância para a boa decisão da causa encontram-se provados os seguintes factos:
1) O veículo de matrícula … foi apreendido em 01 de Junho de 2012, pela GNR, nos termos do disposto no artigo 162º, nº 1, alínea f) e nº 5, do Código da Estrada, por, no referido dia, Susana Maria S., companheira do arguido, o tripular sem que tivesse efectuado seguro obrigatório de responsabilidade civil.
2) No momento em que procedeu à sua apreensão, a GNR constituiu Susana M. como fiel depositária do mesmo.
3) Tal veículo pertence à sociedade “…, Lda.”, da qual o arguido é sócio-gerente.
4) Tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido nos moldes descritos, o arguido, no dia 14 de Junho de 2012, retirou-o do local em que se encontrava estacionado, na Rua … e levou-o consigo, dando-lhe destino que lhe aprouve, contra a vontade de Susana M..
5) Agiu o arguido sabendo que o veículo em apreço se encontrava apreendido, com manifesto desrespeito pelo regime legal a que o bem ficou sujeito após a apreensão, que era do seu conhecimento, designadamente que estava impedido de o subtrair ao poder público.
6) Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sabedor da proibição que a lei fazia impender sobre a sua conduta.

*
7) O arguido é, desde Dezembro de 2013, sócio-gerente de uma sociedade cujo objecto é a comercialização de fruta.
8) O volume de negócios mensal da referida sociedade é, em média, € 15.000,00.
9) O arguido declara como vencimento, na qualidade de gerente, a quantia mensal de € 505,00.
10) Vive sozinho em casa arrendada, sendo a renda mensal de € 500,00.
11) Tem uma filha com 13 anos de idade, que se encontra à guarda da respectiva progenitora, a quem o arguido não entrega qualquer quantia a título de pensão de alimentos.
12) O arguido concluiu o 9º ano de escolaridade.
13) Não tem antecedentes criminais.

B. FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem.

III MOTIVAÇÃO:

O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador.
O arguido, inicialmente, optou por não prestar declarações.
A testemunha Susana Silva, ex-companheira do arguido, prestou um depoimento que se nos afigurou sincero e objectivo, de modo que se julgou credível. Assim, confirmou ter sido constituída como fiel depositária do veículo em causa, o qual foi apreendido por não ter seguro válido, conforme decorre da certidão do auto de apreensão de fls. 7, do qual resulta o motivo da apreensão do veículo, o local onde o mesmo ficou imobilizado e a constituição da testemunha como fiel depositária do mesmo.
Esclareceu a testemunha que o veículo é pertença da sociedade de que era gerente o arguido, conforme decorre do certificado de matrícula de fls. 6 e certidão comercial de fls. 18/19. Que na altura dos factos o veículo tinha-lhe sido cedido pelo arguido, para ela poder levar e ir busca à escola a filha de ambos. Foi a testemunha peremptória e sincera quando referiu que logo que o veículo foi apreendido, comunicou esse facto ao arguido.
Referiu ainda a testemunha que, sem a sua autorização, o arguido foi buscar o veículo ao local onde se encontrava imobilizado, o que a levou a ir ao Posto da GNR dar conta do sucedido precisamente para evitar quaisquer problemas para si, atendendo à sua qualidade de fiel depositária do veículo, comunicação essa que resulta de fls. 5.
Hugo Silva, militar da GNR, confirmou o teor do auto de apreensão de fls. 7, referindo-se aos motivos subjacentes à apreensão do veículo.
Marco Lourenço, militar da GNR, confirmou a informação exarada a fls. 5.
Fernando Lopes, militar da GNR, confirmou a informação exarada a fls. 37. Descreveu a testemunha as diligências que levou a cabo para tentar localizar o arguido, sendo que este, em dois contactos telefónicos, recusou-se sistematicamente a fornecer a sua morada, dizendo que compareceria ao Posto, o que nunca se concretizou.
Após a inquirição das testemunhas, o arguido pretendeu esclarecer os factos. Referiu que quando foi buscar o veículo onde o mesmo se encontrava estacionado, o fez com autorização e consentimento da testemunha Susana M., a qual em momento algum o informou de que o veículo estava apreendido, só vindo sabê-lo mais tarde quando foi contactado pela GNR. Quanto ao veículo, referiu que o deixou num dado armazém e que depois de ter regressado da Suíça, onde esteve a trabalhar durante dois meses, nunca mais o viu, não sabendo do seu paradeiro. Ora, esta versão do arguido não mereceu qualquer credibilidade, quer pela forma como foi exposta, quer pelas incongruências e hesitações que o mesmo ia revelando ao longo das suas declarações. Na verdade, referiu que nem sequer sabia que o veículo não tinha seguro válido, o que não é credível considerando que o veículo é propriedade da sociedade de que era gerente e foi por ele cedido à sua ex-companheira. Mais referiu que levou o veículo para tratar de legalizar a sua situação e repará-lo, quando, segundo as suas próprias declarações, no período em causa passou por dificuldades financeiras, estando mesmo a viver, de favor, num armazém, pelo que não se percebe a necessidade de remover o veículo, a não ser com a intenção de continuar a usá-lo, como parece ter sucedido. Inverosímil foi também a alegada forma como foi combinada a entrega do veículo: deixar as portas do veículo (que se encontrava na rua) abertas, com a chave escondida no seu interior, sujeitando-se assim a que o veículo fosse vandalizado ou mesmo subtraído por terceiros.
Assim, confrontando o depoimento de Susana M., que se nos afigurou sincero, objectivo e conforme aos elementos objectivos dos autos, e as declarações do arguido que se nos afiguraram hesitantes, incongruentes, logo, inverosímeis, não teve o tribunal dúvidas em concluir que o arguido sabia, no momento em que removeu o veículo, que este estava apreendido, logo sob o poder público, e que a sua remoção lhe estava vedada e era punível.
O arguido esclareceu a sua situação pessoal, nos termos dados como provados.
A ausência de antecedentes criminais resulta do CRC junto aos autos»

III. QUESTÕES A DECIDIR

Como é sabido, ao tribunal de recurso apenas incumbe apreciar as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo daquelas que são de conhecimento oficioso.

Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19-6-96 Boletim do Ministério da Justiça n.º 458,98. e de 24-3-1999 Colectânea de Jurisprudência (CJ), Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (Acs. STJ), ano VII, tomo I, pág. 247. e os Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques.

Ensinam estes últimos Recursos em Processo Penal, 4.ª edição, 2001, pág. 53 e 54.:

«Se o recorrente não retoma as conclusões que suscitou na motivação, ou porque quis restringir o objecto de recurso ou porque pura e simplesmente se absteve de o fazer, o tribunal de recurso, como vem entendendo o STJ, só conhece das que nelas vierem resumidas, pois o seu poder de cognição é determinado por essas mesmas questões».

«O poder de cognição do tribunal de recurso é determinado pelas questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da motivação, podendo contudo conhecer, para além dessas questões, de nulidades de conhecimento oficioso Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 17.09.1997; CJ, Ac.s STJ, ano V, tomo 3, 173. ».

Posto isto, as questões a decidir consiste em saber se:

- A sentença enferma do vício do erro notório na apreciação dos factos;

- Se estão incorrectamente julgados os factos sob os números 4 a 6;

- Os factos dados como provados integram os elementos típicos do crime de descaminho

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

1.1.Considerações Gerais

Como é sabido, o sistema processual penal vigente consagra um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto (cf. artigo 410º, 412º, nº 3 e 431º, do Código de Processo Penal).

Porém, a garantia do duplo grau de jurisdição, [lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Acórdão de 17.04.2013 (Relator: Pires da Graça], «não significa que tenha de se proceder a um novo julgamento, em toda a sua extensão, tal como ocorrera em primeira instância», onde a oralidade e a imediação da produção da prova se fazem sentir (cf. artigo 355º do Código de Processo Penal).

«O princípio da livre apreciação da prova vigora em todas as instâncias que conhecem de facto, mas deve reconhecer-lhe a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuadas na primeira instância e a apreciação que sobre elas é feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente a visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, eventualmente, consideradas relevantes. Nesta medida, o tribunal de recurso é incapaz de apreender, em grande parte, os elementos atrás enunciados, por impossibilidade do seu registo áudio, elementos que, porém, foram apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou ou seja, pelo juiz do julgamento.

Esta é a razão pela qual, quando a primeira instância atribui ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a sua opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deva censurar, se for feita demonstração de que a opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Por isso, o artigo 412º, n. º3, b), exige a indicação da provas que impõem decisão diversa da recorrida, não se bastando com provas que permitam uma decisão diversa da recorrida» (Acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2014).

Existem, pois, duas formas diferentes de impugnação da decisão factual que não se confundem. De um lado, estão em causa os vícios previstos no citado artigo 410º, n.º 2, e , de outro, os requisitos de que depende a admissibilidade da impugnação – mais ampla – da matéria de facto a que alude o n.º 3, do artigo 412º.

Dispõe o artigo 410, nº 2, do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Resulta expressis verbis deste preceito que os vícios referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade – do texto da decisão recorrida - sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe são externos, para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ª edição, pág.822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 339, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 77).

O erro notório na apreciação da prova (único que ao caso interessa) existe quando, a decisão ostenta um erro de apreciação da prova, observável por um homem de formação média:

Quando este (homem médio), «perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada e/ou das legis artis (sobre os vícios de conhecimento oficioso, como é o caso do erro notório da apreciação da prova, ver Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, págs. 61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado de cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva e evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal (…).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidenciam aos olhos de um homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 74» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Este tipo de erro a ressaltar do teor da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se confunde com o erro de julgamento.

Este, consagrado no artigo 412º, n.º 3, resulta da forma como o tribunal teria valorado a prova produzida. A simples discordância do recorrente sobre a decisão da matéria de facto não leva ao vício do erro notório que, ora se analisa.

Este erro de julgamento «ocorre, quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida deveria ter sido considerado provado.

Neste caso de situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em 2ª instância» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Aqui, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com o vicio do erro notório da apreciação da prova), alargando-se à apreciação do que contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus da especificação a que alude o artigo 412º, n.º 3 a 6.

«O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada, nos termos em que o foi; o erro notório na apreciação da prova, para além de ser ostensivo, prescinde da análise da prova produzida, para se ater tão-somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa impossibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes no processo» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 15 de Julho de 2004, processo nº 2150/04-5ª citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 15ª Edição, página 828).

Como tem vindo a ser repetidamente afirmado na doutrina e jurisprudência:

«Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412º, n.º3, do CPP:

3. Quando a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Além disso, dispõe o n.º 4 do mesmo preceito:

«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do n.º 2, do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

Neste caso, «o tribunal procede à audição e visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa» (artigo 412º, n.º 6).

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, in D.R. n.º 77, Série I de 18-04-2012

1.2. Posição do recorrente

Posto isto e de regresso ao caso concreto, vejamos qual a posição que o recorrente assume, no recurso da matéria de facto.

Afirma o recorrente no ponto 1 e na Conclusão II, que pretende impugnar a matéria de facto, com fundamento nos erros notórios na apreciação da prova, invocando os artigos 410º, nº 2, alínea c) e 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Para o efeito, sustenta os seguintes fundamentos:

- O Tribunal a quo ao dar como provado que o arguido actuou tendo conhecimento que o veículo se encontrava apreendido, descreve uma conclusão e não um facto material e concreto;

- Não foi demonstrado nos autos como, quando e de que forma foi comunicado ao arguido a apreensão do veículo e de que o mesmo não podia ser removido do local onde se encontrava sob pena de subtracção do mesmo do domínio público;

- Pelo contrário, das declarações do arguido resulta claramente que desconhecia a apreensão da viatura e que a mesma não podia ser removida e subtraída ao poder público;

- Segundo as regras da experiência e normalidade do acontecer, deveria acolher-se a versão do arguido.

Da conjugação das Conclusões do Recorrente (em especial as que acabamos de assinalar) e bem da Motivação, resulta que o que, preferencialmente visa é arguir o erro de julgamento em relação à decisão que recaiu sobre a matéria de facto, porquanto, no seu entender, a prova produzida conjugada com as regras da experiência comum, imporia uma decisão diversa da que foi dada pela primeira instância.

Esta forma de impugnação da decisão sobre a matéria de facto leva-nos a concluir que o recorrente, não obstante invocar o vício do erro notório na apreciação da prova [410º, n.º 2, al. c)], socorre-se da impugnação ampla prevista no artigo 412º, n.º 3, na medida em que alude expressa e concretamente a factores externos, exógenos à sentença e não ao teor da mesma.

Em todo o caso, como o conhecimento dos vícios previstos no n.º 2, do artigo 410º, é oficioso – Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995 – sempre se dirá que lendo e relendo a sentença sindicada, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.

Com efeito, o tribunal a quo, depois de justificar os motivos pelos quais credibilizou as declarações da Susana M. e não acreditou na versão do recorrente, explicita e fundamenta, criteriosamente, num raciocínio lógico e de normalidade, a forma como analisou cada um dos meios probatórios produzidos em audiência.

E, fê-lo, da seguinte forma:

«Assim e confrontando o depoimento de Susana M., que se nos afigurou sincero, objectivo e conforme os elementos objectivos dos autos, e as declarações do arguido que se nos afiguram hesitantes, incongruentes, logo inverosímeis, não teve o tribunal dúvidas em concluir que o arguido sabia, no momento em que removeu o veículo, que este estava apreendido, logo sob o poder público, e que a sua remoção lhe estava vedada por lei e era punível».

Vale isto para dizer que, o texto da decisão recorrida explica com clareza as razões que levaram o julgador a acreditar que o arguido praticou os factos que foram dados como provados e justifica não só, os motivos pelos quais afastou a versão que aquele trouxe aos autos, como analisa as eventuais contradições e incoerências das declarações orais produzidas em audiência, de acordo com as regras da experiência comum.

O teor do sentença sindicada, mesmo visto à luz dos argumentos expostos no recurso, ainda assim, não contém factos provados que, necessariamente, tenham de ser dados como não provados, nem evidencia regra de experiência comum que possa ter sido violada.

Além de que, na Motivação de Facto, a versão dos factos acolhida pelo tribunal recorrido encontra-se manifestamente explanada de forma lógica, racional e sustentada na prova produzida.

Como já se deixou dito, a simples discordância do impugnante da decisão sobre a matéria de facto não conduz, por si só, necessariamente ao apontado vício do «erro notório na apreciação da prova», antes podendo levar a um erro de julgamento a arguir nos termos do artigo 412º, n.º 3, já referenciado.

De tudo o que precede, não se detecta qualquer erro, e muito menos, de erro com as características exigíveis para ser enquadrado, no erro notório na apreciação da prova, que, como acima se disse, respeita a um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª Ed, 2011, pág. 80).

O que leva à inexistência do vício de erro notório na apreciação da prova.

1.3. Impugnação ampla da matéria de facto (artigo 412º, nº 3)

Os factos concretamente impugnados pelo recorrente têm o seguinte teor:

4) Tendo conhecimento que o veiculo se encontrava apreendido nos moldes descritos, o arguido, no dia 14 de Abril de 2012, retirou-o do local em que se encontrava estacionado, na Rua da Fraternidade, Serzedelo, Guimarães, e levou-o consigo, dando-lhe o destino que lhe aprouve, contra a vontade de Susana M.;

5) Agiu o arguido sabendo que o veículo em apreço se encontrava apreendido, com manifesto desrespeito pelo regime legal a que o bem ficou sujeito após a apreensão, que era do seu conhecimento, designadamente, que estava impedido de o subtrair ao poder público;

6) Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sabedor da proibição que a lei fazia impender sobre a sua conduta.

O Recorrente conclui pela total ausência de prova, com os seguintes argumentos:

a) A expressão «tendo conhecimento que o veiculo se encontrava apreendido» traduz uma mera conclusão e não um facto material e concreto, sendo que saber ou não se o veículo em estava ou não apreendido é estrutural para uma possível imputação da prática do crime;
b) Não foi demonstrado nos autos, como, quando e de que forma, ao arguido foi comunicado a apreensão do veículo e de que o mesmo não podia ser removido do local onde se encontrava. Pelo contrário, o arguido referiu expressamente que desconhecia aqueles factos;
c) Nunca o Tribunal se podia basear exclusivamente num testemunho contra a versão do arguido, quando esse testemunho vem de alguém contra quem o arguido tem vários litígios em resultado da sua separação e da regulação do poder paternal da filha, bem como o testemunho vem da pessoa mais interessada em remeter a responsabilidade do ocorrido com a carrinha para terceiro, atento ser ela que era fiel depositária e a directamente responsável pelo que sucedesse à mesma.

Daqui resulta que o recorrente, partindo de uma análise parcial e fragmentada dos meios de prova produzidos (as suas declarações), valorando as partes que lhe interessa e omitindo ou desvalorando todas as demais (v.g declarações de Susana Silva, Hugo Silva, Marco Lourenço e Fernando Lopes, e, ainda, a prova documental), forma o recorrente a convicção da inexistência de prova sobre os factos que individualizou.

Contudo, esta convicção não se pode sobrepor à do juiz a quo, muito menos, quando esta se mostra, claramente alicerçada em critérios de razoabilidade, da experiência comum e, porque não dizê-lo, em ilações ditadas pela lógica das coisas, bem evidenciadas no texto da sentença recorrida.

Inexistem dúvidas que o recorrente afirmou desconhecer que a carrinha tinha sido apreendida, que foi buscar a carrinha de livre vontade, que foi buscar a carrinha, depois de ter combinado com a ex-esposa, que esta deixou a chave e que levou a carrinha para um armazém, onde foi vista por Susana Silva.

Porém, esta versão do recorrente não colheu, «quer pela forma como foi exposta, quer pelas incongruências e hesitações que o mesmo ia revelando ao longo das suas declarações. Na verdade, referiu que nem sequer sabia que o veículo não tinha seguro válido, o que não é credível considerando que o veículo é propriedade da sociedade de que era gerente e foi por ele cedido à sua ex- companheira. Mais referiu que levou o veiculo para tratar de legalizar a sua situação e repará-lo, quando segundo as suas próprias declarações, no período em causa passou por dificuldades financeiras, estando mesmo a viver, de favor, num armazém, pelo que não se percebe a necessidade de remover o veículo, a não ser com a intenção de continuar a usá-lo, como parece ter sucedido. Inverosímil foi também a alegada forma como foi combinada a entrega do veículo: deixar as portas do veículo (que se encontrava na rua) abertas, com a chave escondida no seu interior, sujeitando-se assim a que o veículo fosse vandalizado ou mesmo subtraído por terceiros».

Ao invés, o depoimento de Susana M., mostrou-se «sincero, objectivo e conforme os elementos objectivos dos autos».

De facto, a comunicação à GNR de que o arguido retirou o veículo sem lhe dar conhecimento é corroborada pelo auto de fls. 5 e pelo depoimento da testemunha Marco Lourenço.

Os motivos de apreensão do veículo indicados por Susana M. são consentâneos com o teor do auto de apreensão de fls. 4 a 6, cujo teor foi confirmado pela testemunha Hugo Silva.

A recusa do arguido em fornecer a sua morada à GNR, comprometendo-se a deslocar-se ao Posto policial, foi confirmada pela testemunha Fernando Samuel Melo Lopes.

Ou seja, os meios de prova concretamente indicados pelo recorrente (as suas declarações), no contexto dos demais, não permitem, (e muito menos impõem) uma decisão diversa da que foi dada pelo tribunal recorrido aos pontos de facto impugnados.

Desta feita, nenhuma censura merece a decisão impugnada, quer na forma como valorou toda a prova, quer nas razões pelas quais credibilizou o testemunho de Susana M. em detrimento das declarações prestadas pelo recorrente.

1.4. Matéria conclusiva

Defende o recorrente que a expressão «tendo conhecimento que o veiculo se encontrava apreendido» integra um conceito conclusivo e não um facto material e concreto.

Mas sem razão.

Na verdade, o conhecimento do acto de apreensão de um veículo traduz uma realidade da vida, e não uma mera conclusão.

E, a prova deste facto pode ser realizado por qualquer meio probatório, não se impondo que o tenha de ser por escrito. Questão diferente será a de saber se a perfectibilização do ilícito impõe uma comunicação escrita por autoridade competente e não apenas uma comunicação verbal de um terceiro. Mas aqui estaremos a conhecer da impugnação da matéria de direito e não a apreciar a natureza do conhecimento, enquanto matéria de direito ou conclusiva.

Assim não corresponde à verdade que se desconheça quando, como e de que forma o arguido soube da apreensão do veículo.

Logo que o veículo foi apreendido, o recorrente soube deste facto, através da testemunha Susana M., pessoa que lho comunicou.

1.5. Conclusão

Do que precede, se conclui pela improcedência dos argumentos exarados nas Conclusões 1ª a 27ª, mantendo-se, na íntegra, a decisão sobre a matéria de facto proferida pela primeira instância

2. O crime de descaminho

Questiona o recorrente que tenha cometido o crime de descaminho em que foi condenando, alegando que não teve conhecimento da apreensão, através de comunicação emanada de autoridade ou funcionário competente, não sendo suficiente, a comunicação da dita apreensão por um terceiro.

Apreciando:

Dispõe o artigo 355º, do Código Penal:

«Quem destruir ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

Tutela este ilícito a autonomia intencional do Estado, concretizada através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública.

«Não se trata de defender bens do Estado; não se exige sequer que os objectos de que fala a lei tenham valor pecuniário. Interessa apenas a afectação de uns objectos a uma finalidade concreta, por parte da autoridade pública, finalidade essa que justifica a sua sujeição à guarda oficial» - Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo III, pág. 419.

Este ilícito «não visa punir as infidelidades do depositário dos bens quanto aos deveres de guarda e conservação. Não sendo por isso um crime específico dos depositários dos bens. Visa, antes, punir os actos praticados por qualquer pessoa que se destinem a impedir ou descaminhar a coisa do fim que justificou a sua colocação sob a custódia da autoridade pública, exercida através do depositário. No caso de apreensão, visa-se punir todas as condutas que, dolosamente impeçam ou frustrem as finalidades da apreensão, seja por via da sua inutilização ou destruição, seja por via do descaminho.

(…)

O que quer dizer que o crime tanto pode ser praticado pela pessoa que tem os bens à sua guarda (o depositário) como por terceiro, que tendo conhecimento de que o bem se encontra sujeito ao poder público, pratique qualquer dos actos descritos na previsão do artigo 355º, do Código Penal» - Acórdãos da Relação do Porto de 07-02-2007, Proc. n.º 0615753, in http://jusjornal.wolterskluwer.pt e de 22 de Outubro de 2014, in www.dgsi.pt

«O dano ou a subtracção não correspondem aqui necessariamente a um prejuízo de carácter patrimonial. Não se protegem os bens de ninguém, nem sequer do próprio Estado. Uma das consequências desta perspectiva típica traduz-se no facto de o agente poder ser qualquer pessoa, inclusivamente o proprietário do objecto em questão» - Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 423.

Neste mesmo sentido se pronunciou a Relação de Coimbra, no Acórdão de 6 de Dezembro de 2000, tendo decidido que «comete o crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público p.e p. no artº 355º do C.Penal aquele que, tendo conhecimento que o veículo se encontra apreendido pela G.N.R. por falta de seguro obrigatório, e que o mesmo foi entregue a seu pai na qualidade de fiel depositário, com a obrigação de o não utilizar, mesmo assim o utiliza».

Tudo isto para dizer que a qualidade específica do agente de fiel depositário não constitui um dos elementos típicos do crime de descaminho.

De igual modo, o tipo legal não exige a advertência para a possibilidade da prática do crime, nem «pressupõe a prévia notificação do depositário para proceder à entrega dos bens» - Acórdão da Relação do Porto de 22 de Outubro de 2014, in www.dgsi.pt.

Por último, que não faz parte da acção típica ilícita, a notificação da apreensão sob a forma de uma comunicação regularmente emanada de autoridade ou funcionário competente.

Como e bem refere o Digno Procurador-Geral Adjunto, que, enquanto no crime de desobediência se exige o não cumprimento de uma ordem ou mandado, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente – cf. Artigo 348º, do Código Penal – o criem de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público não reclama essa comunicação, bastando que o agente tenha conhecimento – por qualquer forma – de que o bem está sob o poder público.

Em nenhum ponto tipo legal do crime em questão se prevê que o agente, para que possa estar incurso na infracção, tenha de estar notificado, formalmente e por oficial público, da existência de uma apreensão da coisa.

No caso em apreço, o recorrente sabia da apreensão do veículo, por falta de seguro obrigatório, e não obstante, retirou-o, integral e irrecuperavelmente, da disponibilidade da fiel depositária e do poder público.

Bem andou, assim, a primeira instância em julgar verificados todos os elementos típicos do crime de descaminho previsto no artigo 355º, do Código Penal, não colhendo os argumentos do recorrente.

V. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Penal deste Tribunal da Relação em julgar não provido o recurso.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fica em 3 UCS:

Guimarães, 13 de Junho de 2016

--------------------------------------------------------------------

Alcina da Costa Ribeiro

--------------------------------------------------------------------

Luís Coimbra