Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
605/05.3PBGMR.G1
Relator: FATIMA FURTADO
Descritores: ARGUIDO CONTUMAZ
AUSENTE NO BRASIL
NOTIFICAÇÃO
AC. UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDÊNCIA Nº 5/2014 DE 26.03
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Estando o arguido, declarado contumaz, ausente no Brasil, caso aí seja conhecida a sua morada não é possível a sua notificação através de pedido de cooperação judiciária internacional, para efeito de cessação da contumácia.

II) Esta situação encontra-se abrangida pela posição sindicada no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 5/2014, de 26 de março de 2014, DR, I Série, de 21.05.2014.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Laura Maurício.

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 605/05.3PBGMR-A.G1, do juízo local criminal de Guimarães, juiz 2, da comarca de Braga, em que é arguido José, com os demais sinais dos autos, foi indeferida a promoção do Ministério Público de pedido de cooperação judiciária internacional às autoridades brasileiras com vista ao apuramento do paradeiro do arguido, declarado contumaz, e sua notificação pessoal da acusação e do despacho que a recebeu e designou data para julgamento, por despacho datado de 30 de novembro de 2017, com o seguinte teor:

«De acordo com o AUJ 5/2014, sucintamente se pode concluir pela existência de apenas duas formas de fazer cessar a declaração de contumácia, a saber, a detenção do arguido e/ou a sua apresentação em juízo. Assim sendo, cremos que o eventual sucesso na notificação do arguido do despacho que designa dia para a realização da audiência não faz cessar a declaração de contumácia, pelo que, o promovido não tem qualquer eficácia e resultado.
Pelo exposto, indefere-se o promovido em 2) da promoção que antecede.
Notifique.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso deste despacho, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1. O arguido encontra-se declarado contumaz desde 08/03/2007.
2. Uma vez que o arguido é nacional do Brasil e nunca foi localizado nos presentes autos nem notificado pelo SEF de uma decisão de expulsão, desde 2005, o Ministério Público entendeu como muito provável que o arguido tivesse regressado ao país da sua nacionalidade, pelo que promoveu, para além do mais, que se expedisse “carta rogatória dirigida às Autoridades Brasileiras, com viste ao apuramento do paradeiro e notificação da acusação e do despacho que a recebeu e designou data para julgamento, especificando-se que, de acordo com o Código de Processo Penal Português a notificação solicitada exige a notificação pessoal do(a)(s) arguido(a)(s), através de acto que ateste que a pessoa do arguido foi notificada por autoridade oficia a qual verificou a sua identidade.”
3. O despacho recorrido indeferiu o promovido, com base nos considerandos do AU] 5/2014, segundo os quais o sucesso na notificação do arguido do despacho que designa dia para a realização de audiência não faz cessar a declaração de contumácia”. 4. Sucede que o AUJ 5/2014 apenas se debruçou sobre a ineficácia das notificações realizadas por via postal de arguido residente no estrangeiro e, consequentemente, na irrelevância da recolha de TIR para efeitos de cessação da contumácia.
5. O AUJ 5/2014 nunca defendeu, directa ou indirectamente, que a notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro não faz cessar os efeitos da declaração de contumácia.
6. O AUJ 5/2014 também não fez uma só menção relativamente à notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro, nos termos previstos no art.º 113º, al. a), do Código de Processo Penal.
7. O promovido pelo Ministério Público, portanto, não viola, directa ou indirectamente, o dispositivo ou os fundamentos do AUJ 5/2014, na medida em que poderá/deverá ser realizada a única modalidade de notificação tornada possível, precisamente, pelo AUJ: mediante contacto pessoal, por parte de autoridade oficial do país onde o arguido se encontra.
8. Por outro lado, a interpretação do despacho recorrido implica a absoluta impossibilidade jurídica (não prática) de notificação de arguidos e a consequente paralisação dos respectivos processos, só porque os arguidos se encontram contumazes e residem no estrangeiro.
9. Permitir que a contumácia sirva de empecilho para a eficácia da notificação dos despachos em causa nos autos constitui uma total inversão/deturpação da lógica do instituto, que visa conseguir, precisamente, essa notificação.
10. Quando o art.º 336º/1 do Código de Processo Penal e o AUJ 5/2014 referem que a contumácia cessa com a “apresentação” do arguido, esta norma, tal como o AUJ 5/2014 também o refere, quer-se reportar ao contacto pessoal do arguido com o Tribunal, uma vez que é a falta desse contacto pessoal, traduzido na falta de notificação do despacho que designou data para julgamento, que dá origem à contumácia – art.º 335°/1 do Código de Processo Penal.
11. Ora, existe um claro contacto pessoal entre o tribunal e o arguido quando uma autoridade oficial estrangeira contacta pessoalmente com o arguido e notifica-o da acusação e do despacho que designa data para audiência, uma vez que aquela autoridade funciona como uma mera longa manus do tribunal português, no contexto de um pedido de cooperação internacional.
12. Pelo exposto, a realização da notificação promovida, nos moldes previstos no art.º 113º/1, al. a) do Código de Processo Penal, através de pedido de cooperação judiciária internacional, é admissível, corresponde à “apresentação” do arguido e deve levar à caducidade da contumácia, em caso de sucesso.»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito próprios, por despacho de 17.01.2018.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procuradora-Geral adjunto emitiu douto parecer subscrevendo as alegações de recurso do Ministério Público, na 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
Questão a decidir

A questão a decidir é a de saber se estando o arguido – declarado contumaz – ausente no Brasil e caso aí seja conhecida a sua morada, é possível a sua notificação através de pedido de cooperação judiciária internacional às autoridades desse país, para efeito de cessação da contumácia.
*
2.1. Segue-se a indicação das ocorrências processuais com interesse para a decisão (possíveis de extraír dos elementos que instruem este apenso de recurso).

A. O arguido José tem nacionalidade brasileira.
B. Não foi notificado da acusação nem do despacho que a recebeu e designou dia para a audiência, assim como também não prestou Termo de Identidade e Residência (TIR), por ser desconhecido o seu paradeiro.
C. Na sequência do que foi declarado contumaz por despacho datado de 08.03.2007, sendo emitidos mandados de detenção para prestação de TIR.
D. O arguido mantém-se atualmente nessa situação de contumácia.
E. Foi junta aos autos uma informação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), datada de 06.04.2016, donde consta que o arguido:

«. Não é titular de Visto ou Título que o habilite a permanecer, residir, estudar ou trabalhar em território português, nem tem qualquer pedido pendente para o efeito;
. No âmbito do Processo de Afastamento Coercivo, instaurado pelo SEF, por permanecer irregularmente em território português (73/2005-120), foi proferida decisão de expulsão, que contudo não foi ainda executada por o cidadão se encontrar em paradeiro desconhecido, tendo pendente desde 07/05/2005 no Sistema Integrado de Informação do SEF, uma medida cautelar para notificação da decisão proferida;
. Tem igualmente pendente desde 15.03.2007, um Mandado de Captura criado no âmbito do vosso processo, aguardando-se a sua localização;
. Não constam movimentos de reentrada ou saída do país no Sistema de Controlo de Fronteiras;»
F. Com data de 21.11.2017, o Ministério Público promoveu nos autos o seguinte:
«(…) Se expeça carta rogatória às Autoridades Brasileiras, com vista ao apuramento do paradeiro e notificação da acusação e do despacho que a recebeu e designou data para julgamento, especificando-se que, de acordo com o Código de Processo penal Português, a notificação solicitada exige a notificação pessoal do(a)(s) arguido(a)(s), através de ato que ateste que a pessoa do arguido foi notificada por autoridade policial, a qual verificou a sua identidade.»
G. Promoção que foi indeferida pelo despacho recorrido, já supra transcrito.
***

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O despacho recorrido considerou sem efeito útil – e por isso indeferiu – a promoção do Ministério Público para que se expedisse carta rogatória às autoridades brasileiras com vista à averiguação do paradeiro do arguido e sua notificação da acusação e do despacho que a recebeu e designou dia para a audiência, com o fundamento de o acórdão uniformizador nº 5/2014 fixou já jurisprudência de onde decorre que a localização do arguido contumaz no Brasil e a sua notificação nesse país não faz caducar a contumácia.
O recorrente insurge-se com esta posição, alegando que a notificação do arguido nos moldes previstos no artigo 113.º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, através de pedido de cooperação judiciária internacional, é admissível, corresponde à «apresentação» do arguido e deve levar à caducidade da contumácia. Ao que não se opõe o referido acórdão uniformizador, que em seu entender se reporta a situação diversa.

Vejamos.

A norma de referência na caducidade da declaração de contumácia é o artigo 336.º do Código de Processo Penal, que no seu n.º 1 estatui: «A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo anterior.» (2)

A propósito desta norma, na particular situação em que o arguido contumaz é localizado no estrangeiro, foi já proferido o acórdão de uniformização de jurisprudência citado na decisão recorrida, com o n.º 5/2014 e datado de 26 de março de 2014 (3), que tem o seguinte sumário:

«Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia.»

Tal como sucede neste aresto uniformizador, também no caso em apreço nos autos temos a localização de um arguido contumaz no estrangeiro e a questão da relevância do contacto com o arguido nesse país, através de carta rogatória, para efeitos de cessação da contumácia. Sendo a única diferença a de que naquele aresto a carta rogatória se destina à prestação de termo de identidade e residência (TIR) e nos autos à notificação pessoal do arguido da acusação e do despacho que a recebeu e designou dia para a audiência.

A posição sindicada no acórdão uniformizador é claramente a de que a contumácia só caduca quando se verifica um contacto pessoal do arguido com o tribunal, ocorrido por meio da sua detenção ou da apresentação em juízo, que assegure a efetiva possibilidade da ulterior tramitação do processo, nos termos do disposto no artigo 336.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

E de que não constitui apresentação válida para esse efeito a mera informação do arguido de que reside no estrangeiro, requerendo que seja emitida carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias competentes do respetivo país, a fim de aí prestar termo de identidade e residência, precisamente por dessa forma não ficar assegurada a efetiva possibilidade da ulterior tramitação do processo.

Esta posição é fundamentada no acórdão com o argumento de que simples prestação de TIR por arguido contumaz e a residir no estrangeiro, ainda que fosse admissível, não garantiria a disponibilidade do arguido para os ulteriores trâmites do processo, designadamente para a possibilidade de realização do julgamento na sua ausência, desde que regularmente notificado (artigo 333º, nº 1, do Código de Processo Penal), na morada do TIR, através de via postal simples, com prova de depósito, (nºs 3 e 4 do artigo 113.º do Código de Processo Penal). Pela simples razão de este procedimento de notificação não ser extensível aos serviços postais de outros países, não valendo assim como notificação as comunicações para o estrangeiro por via postal simples. Não podendo, por outro lado, substituir-se a carta com prova de depósito pela carta registada, já que esta não apresenta a mesma fiabilidade de ser rececionada pelo destinatário, por não haver uma declaração do distribuidor postal a atestar o seu depósito na morada indicada no TIR, na qual o arguido se responsabilizou pela recolha da correspondência que aí recebesse.

Ora, esta argumentação abrange diretamente o caso dos autos, em que a carta rogatória seria para a notificação pessoal do arguido da acusação e do despacho que a recebeu e designou dia para a audiência, pois também aqui e sem a possibilidade de prestação de TIR, ficava à partida – e exatamente pelas mesmas razões – irremediavelmente comprometida a efetiva disponibilidade do arguido para os posteriores termos do processo, que é o pressuposto da cessação da contumácia.
De tudo assim decorrendo que a solução proposta no recurso não é de modo algum compatível com a jurisprudência fixada no acórdão uniformizador em referência, da qual não vemos razão para divergir (4).
Aliás, nem no recurso é adiantado qualquer argumento novo que não tenha já sido ponderado naquele acórdão (5).
É que embora os acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não se apresentem como obrigatórios para os tribunais judiciais, estes, caso não os sigam, têm o dever especial de fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada, nos termos do disposto no artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Só devendo os tribunais divergir da jurisprudência uniformizada quando – como escreve Pinto de Albuquerque (6) «haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é quando: a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação, conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada (acórdão do STJ, de 13.11.2003, in SASTJ, nº 75, 100 e acórdão do STJ de 19.1.2011, processo 1/08.0GAPRT.S1).»

Exigências que bem se compreendem, pela força e prestígio dos acórdãos de fixação de jurisprudência, que lhes advém de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Havendo, inclusive, recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, obrigatório para o Ministério Público, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada (cfr. artigo 446º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal).

Assim, não sendo a expedição de carta rogatória para a notificação do arguido no Brasil, nos termos providos pelo recorrente, meio idóneo para determinar a caducidade da situação de contumácia em que o arguido se encontra e por força da qual os termos do processo se encontram suspensos (7) (artigo 335.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, que a indeferiu.
Improcedendo o recurso.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem tributação, por dela estar isento o recorrente.
*
Guimarães, 18 de junho de 2018
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Não tendo este n.º 4 do artigo 335.º qualquer relevância para o caso em apreço, por respeitar exclusivamente a situações de conexão de processos, que aqui não ocorrem.
3. Publicado no DR, I Série, de 21.05.2014
4. No mesmo sentido, cfr. acórdão desta Relação, de 21.05.2018, proc. 158/12.6GDGMR-A.G1, relatado por Ausenda Gonçalves e no qual a aqui relatora é adjunta, disponível em www.dgsi.pt.
5. Nomeadamente na posição que ficou vencida, expressa no respetivo voto de vencido do conselheiro Santos Cabral.
6. Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica editora, 4ª ed., p. 1200.
7. Sem prejuízo dos atos urgentes, os quais a lei não define, tendo-se entendido que são os relativos à apreciação de questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa, como a verificação de qualquer das causas de extinção da responsabilidade criminal ou a descriminalização.