Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
82-B/1980.G1
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PARTILHA ADICIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os tribunais portugueses – onde foi realizada a partilha judicial e onde foi decretado o divórcio que a determinou – são igualmente competentes para proceder à partilha adicional de um bem imóvel situado em França, que foi omitido na partilha inicial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I.
A… residente no lugar de…, Felgueiras, veio requerer contra M…, residente em 7 Avenue du…, França, a partilha adicional de um imóvel situado em França, alegando, para o efeito, que esse imóvel foi omitido na partilha a que se procedeu na sequência do divórcio entre as partes e que foi homologada por sentença proferida em 05/12/1984 e transitada em julgado.
O cabeça de casal prestou declarações iniciais e relacionou o imóvel supra mencionado.

A interessada, M…, deduziu oposição, invocando a incompetência do Tribunal e alegando que, face ao disposto nos arts. 73º, nº 1, do C.P.C. e 46º do C.C, a acção deve ser instaurada junto dos tribunais franceses, uma vez que o imóvel a partilhar se situa em França.
O Requerente respondeu, sustentando a improcedência da referida excepção.

Na sequência desses factos, foi proferida decisão, que declarou o Tribunal Português incompetente, em razão da nacionalidade, para conhecer da partilha adicional.

Não se conformando com essa decisão, o Requerente veio interpor recurso – admitido como agravo – formulando as seguintes conclusões:
1ª - O Tribunal Judicial de Felgueiras é competente, em razão da nacionalidade, para proceder à partilha adicional do prédio relacionado, situado em França.
2ª - O despacho recorrido, por falta de aplicação, violou o disposto na alínea b) do nº 1 do art. 65º; no nº 3 do art. 1326º; no nº 1 do art. 1395º e no nº 3 do art. 1404º, todos do C.P.C.,
pelo que deve ser revogado por acórdão, que declare a competência do Tribunal Judicial de Felgueiras, em razão da nacionalidade, para a partilha adicional do prédio relacionado, situado em França e determine o prosseguimento dos ulteriores trâmites do processo de inventário para a respectiva partilha.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.
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II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações do Agravante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o Tribunal recorrido tem ou não competência internacional para proceder à partilha adicional de um imóvel situado em França.
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III.
Apreciemos, pois, a questão suscitada no recurso.
Conforme resulta dos autos, o presente inventário foi instaurado em 24/06/1983, no Tribunal Judicial de Felgueiras, com vista à partilha dos bens do casal e por apenso à acção de divórcio que ali havia corrido seus termos.
Por sentença proferida em 05/12/1984, foi judicialmente homologada a partilha a que se procedeu.
Em 17/11/2010, o ora Agravante veio requerer a partilha adicional de um imóvel situado em França (que havia sido omitido na partilha inicial), requerimento este que foi incorporado no processo de inventário que havia corrido seus termos e onde havia sido efectuada a partilha, colocando-se agora a questão de saber se os tribunais portugueses são ou não competentes para proceder a esta partilha adicional.
A questão de saber e apurar se uma determinada causa deve ser julgada pelos tribunais portugueses ou pelos tribunais de um Estado estrangeiro coloca-se quando essa causa apresenta elementos de conexão – quer no que respeita às partes, quer no que respeita ao pedido ou causa de pedir – com a ordem jurídica portuguesa e com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras.
É o que sucede, evidentemente, no caso sub judice, já que, estando em causa uma partilha adicional de um bem imóvel situado em França, onde também reside uma das interessadas, a verdade é que o outro interessado reside em Portugal e foi também em Portugal que foi efectuada a partilha judicial (onde aquele bem foi omitido) e foi proferida a sentença que decretou o divórcio na sequência do qual tal partilha foi efectuada.
Chamado a pronunciar-se sobre essa questão, o Tribunal recorrido considerou que os tribunais portugueses não eram competentes e, perante a discordância do Agravante, cabe-nos agora reapreciar essa questão.
Segundo dispõe o art. 61º do Código de Processo Civil, “os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no art. 65º”.
Dispõe, por outro lado, o citado art. 65º, nº 1, alínea b) – norma que, na perspectiva do Agravante, teria sido violada pela decisão recorrida – que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
Estabelece-se, nesta norma, aquilo que se designa por princípio ou critério da coincidência , determinando-se que, não obstante a existência de elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, os tribunais portugueses têm competência quando, de acordo com as regras de competência territorial previstas na ordem interna, a acção devesse ser instaurada em Portugal.
Ora, parece-nos ser esse o caso.
Com efeito, estando em causa uma partilha adicional respeitante ou relacionada com uma partilha judicial já realizada na sequência de divórcio, o que se estabelece, na nossa ordem jurídica, é que a mesma deverá ser efectuada no mesmo processo onde foi feita a partilha judicial (art. 1395º do C.P.C.), estabelecendo-se, por essa via, a competência do tribunal onde esta partilha foi efectuada (no caso, o Tribunal Judicial de Felgueiras). Por outro lado, no que respeita à competência territorial para a realização da partilha na sequência de divórcio, a nossa ordem jurídica não elege como critério o da situação dos bens, determinando, sim, que ela deve ser efectuada por apenso ao processo de divórcio (processo que também correu em Portugal, no Tribunal de Felgueiras).
De facto, e ao contrário do que sustentava a Agravada, no requerimento em que invocou a excepção de incompetência, não está aqui em causa uma acção referente a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis à qual seja aplicável a regra do foro da situação dos bens, prevista no art. 73º do Código de Processo Civil. A aplicação desta regra pressupõe que o direito real ou pessoal de gozo sobre o imóvel corresponda ao fundamento nuclear da causa de pedir, o que não acontece no inventário, cujo objectivo essencial apenas consiste em operar a partilha dos bens que integram a herança ou o património comum do casal e onde, por regra, não está em discussão a existência do direito real sobre os imóveis que fazem parte da universalidade de bens que se pretende partilhar. Além do mais, a aplicação dessa regra sempre esbarraria na circunstância de existirem outras normas específicas que regulam e definem de outro modo a competência para o processo de inventário e que, como tal, sempre deveriam prevalecer sobre aquela.
Concluímos, pois, em face do exposto, que, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na nossa ordem jurídica, o presente inventário e a respectiva partilha adicional deveria correr termos em Portugal (no Tribunal de Felgueiras), ocorrendo, pois, a verificação da situação prevista no art. 65º, nº 1, alínea b) do C.P.C. da qual decorre a competência internacional dos tribunais portugueses.
É verdade, porém, que há quem considere que o inventário e a partilha a realizar em Portugal – por força das regras de competência aqui estabelecidas – não deve abranger os bens situados em território estrangeiro (foi isso que se considerou na decisão recorrida), já que, para a partilha destes bens em concreto, os tribunais portugueses não teriam competência.
No entanto, e como nota João António Lopes Cardoso , esse entendimento apenas se baseia nas dificuldades práticas que advêm da relacionação e partilha de bens sitos no estrangeiro.
Mas, como nos parece óbvio, tais dificuldades – que também existirão noutras situações sem que se questione, por isso, a competência dos tribunais portugueses – não constituem razão bastante (a não ser que, por alguma razão, sejam intransponíveis) para afastar a competência internacional que emerge das normas que a definem e regulam.
E a verdade é que, independentemente dessas dificuldades, o princípio da unidade e universalidade da herança (ou, no caso, do património comum do casal) impõe que, no processo de inventário, sejam relacionados e partilhados todos os bens que integram a universalidade sobre a qual irá incidir a partilha, estejam eles situados em território nacional ou no estrangeiro .
Isso mesmo se decidiu no Acórdão desta Relação de 11/02/2010 , no processo nº 702/05.5TBCBT-B.G1.
E, se é certo – como se referiu – que, por aplicação do critério da coincidência a que alude a alínea b) do nº 1 do citado art. 65º, os tribunais portugueses são competentes para a partilha adicional de um bem situado em França, verdade é também que essa competência não é afastada por qualquer tratado, convenção ou regulamento comunitário.
Com efeito, o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 (relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial) exclui do seu âmbito de aplicação o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões, não impondo, por isso, qualquer norma de competência relativamente às partilhas a efectuar na sequência de divórcio.
Por outro lado, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27/11/2003 (relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental) apenas é aplicável à dissolução do vínculo matrimonial (por divórcio, separação ou anulação do casamento), não abrangendo as questões referentes às causas do divórcio, aos efeitos patrimoniais do casamento e outras eventuais medidas acessórias (cfr. considerando (8) do Regulamento). E o Regulamento (CE) nº 1347/2000 (anteriormente vigente em matéria matrimonial e revogado pelo Regulamento (CE) nº 2201/2003) fazia idêntica limitação ou exclusão no seu considerando (10).
Concluimos, pois, em face do exposto, que o Tribunal recorrido (Tribunal Judicial de Felgueiras) é competente para proceder à partilha adicional que foi requerida, apesar de estar em causa um bem situado em França.
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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao agravo e, revogando-se a decisão recorrida, considera-se o Tribunal Judicial de Felgueiras competente para a partilha adicional que foi requerida, determinando-se, por isso, o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo da Agravada.
Notifique.
Guimarães, 24/04/2012
Maria Catarina Ramalho Gonçalves
António M. A. Figueiredo de Almeida
José Manuel Araújo de Barros