Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
412/11.4IDGRG.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: ACÇÃO PENAL FISCAL
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de proteção penal, pois o efetivo recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial do crime de abuso de confiança fiscal.
II – Só comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não proceder à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de imposto que efetivamente recebeu no concreto período em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – RELATÓRIO

1. Nestes autos com o n.º 412/11.4IDBRG do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, por sentença proferida a 27 de Junho de 2012, o arguido Armindo A... sofreu condenação pelo cometimento de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1,2, 4, 6 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de cento e sessenta dias de multa à razão diária de sete euros.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, pugnando pela absolvição.

O Ministério Público, apresentou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso da arguida, mantendo-se a decisão recorrida.

O recurso foi admitido, por despacho judicial de 09-01-2013, com o efeito e o modo de subida devidos.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, onde o processo deu entrada a 16-01-2013, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Decorrido o prazo para eventual resposta ao parecer, recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

4. Como tem sido entendimento unânime, os limites e o objecto do recurso definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No seu recurso, o arguido formulou as seguintes conclusões:

“1. O arguido negou ter recebido, dentro do prazo definido para o seu pagamento, o valor das facturas respeitantes ao 4.° trimestre de 2012.
II. Tal declaração foi corroborada pela testemunha Maria T..., Toc, que explicou que muitas das facturas só foram recebidas muito após a data limite de pagamento do imposto de IVA.
III. É facilmente comprovada a tese do arguido face à abundante prova documental junta aos autos, nomeadamente facturas e recibos.
IV. Por sua vez, a testemunha José M..., técnico da administração tributária, não soube esclarecer em que data o arguido recebeu a quantia descrita no ponto 3 dos factos provados.
V. A falta deste elemento leva a que exista insuficiência da matéria provada para alicerçar a condenação do arguido.
VI. Impunha-se, como se impõe, absolvição do arguido.
VII. Violou, assim, o tribunal a quo o disposto no art.° 105.° n.° 1 do RGIT.”

A questão fundamental a decidir consiste em saber se os factos provados evidenciam o cometimento pelo arguido do crime de abuso de confiança fiscal.

5. Matéria de facto

Para compreensão e análise das questões suscitadas, torna-se necessário transcrever parcialmente a decisão recorrida.

Na sentença, o tribunal julgou provada a seguinte matéria de facto:

1- O arguido, Armindo A..., tem o número de contribuinte 166 874 ..., com o domicílio fiscal no lugar do Alto do A., freguesia de F..., concelho de Fafe e está registado em imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares na actividade de fabricação de Máquinas para as Industrias do Papel e do Cartão com o (CAE: 028950), tendo como competente o serviço de Finanças de Fafe e, mostra-se enquadrado, para efeitos do imposto sobre o IVA, no regime de periodicidade trimestral, desde 21 de Janeiro de 1997;
2- No âmbito do desenvolvimento daquela sua actividade o arguido, Armindo A..., efectuou operações tributáveis, tendo procedido ao apuramento de IVA que recebeu, e ao envio da declaração periódica, não tendo entregue, simultaneamente, as prestações tributárias necessárias para satisfazer o imposto exigível, referentes ao 4º trimestre de 2010, IVA esse no montante global de treze mil, seiscentos e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos (13.632,77€), o que corresponde a 84,30% do IVA liquidado nas facturas emitidas em tal período, cuja data limite de pagamento à Fazenda Nacional ocorreu em 15 de Fevereiro de 2011.
3- O arguido apoderou-se do montante de € 13.632,77, a titulo de IVA, que sabia não lhe pertencer, mas antes que pertencia à Fazenda Nacional, a quem sabia estar obrigado a entregar.
4- O arguido foi devidamente notificado, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105°, n°4, alínea b) do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei do Orçamento do Estado de 2007 — Lei n° 53/A/2006, de 29 de Dezembro, não tendo procedido ao pagamento das quantias em dívida e demais acréscimos, no prazo legal, o que, até à data, ainda não fez.
5-O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida;
Mais se provou que:
6- O arguido é casado e tem três filhos menores com 9,10 e 11 anos de idade, todos a estudar. Vive com o agregado familiar, em casa própria estando a pagar a quantia mensal de €600,00 relativa a amortização de empréstimo para habitação. O arguido exerce a profissão de construtor de máquinas, auferindo o rendimento médio de € 800,00. A mulher é escriturária auferindo o rendimento médio mensal de € 700,00. Tem veículo automóvel.
7- O arguido tem antecedentes criminais, pela prática de crime de condução em estado de embriaguez, tendo sido condenado em pena de multa;
8- O arguido está social, familiar e profissionalmente inserido;
9- À data dos factos o arguido apresentava dificuldades financeiras, resultado de alguns incumprimentos e/ou cumprimentos parciais por parte de clientes seus;
10- O arguido manifestou vontade de cumprir com os pagamentos em falta, só ainda não o tendo feito devido à crise financeira que afectou a actividade profissional por si desenvolvida, a qual se prolongou no tempo.

O tribunal julgou não provado :

“-Com relevo para a decisão da causa nenhum outro facto se demonstrou, designadamente que o IVA recebido pelo arguido no período referido em 2) não ascendesse a € 7.500,”.”

Na sentença recorrida, a decisão da matéria de facto encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

“A convicção do Tribunal formou-se com base na totalidade da prova produzida em audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, com especial incidência para os elementos que infra se destacam:
O arguido, Armindo A..., que ouvido em declarações admitiu parte da factualidade constante da acusação e de que era acusado, designadamente no que concerne à falta de pagamento do IVA devido e relativo ao 4º trimestre de 2010, explicando, porém, que a actividade por si exercida passava e passa por dificuldades financeiras, resultado da crise que se vive no presente, acabando por acrescentar que logo que consiga ultrapassar a mesma pretende proceder ao pagamento das quantias devidas, ou seja, pretende diligenciar no sentido de entregar o IVA devido ao Estado.
Mais referiu que os montantes devidos a título de IVA não se mostram liquidados na sua totalidade porque ainda não recebeu a totalidade das quantias ali referidas.
Quanto a esta matéria destaca-se o depoimento prestado pela testemunha Maria T..., comum à acusação pública e à defesa, TOC, e que, em virtude da sua profissão, demonstrou conhecimento quanto à matéria a que foi inquirida respondendo de modo claro e preciso ao pedido de esclarecimentos solicitados.
Explicou que, efectivamente, o arguido Armindo A..., não procedeu ao pagamento do imposto de IVA relativo ao 4º trimestre de 2010, não obstante estar ciente das suas obrigações, até porque foi por si, na qualidade de responsável pela contabilidade, informado das mesmas. E tanto assim, que apenas incumpriu quanto ao trimestre em causa os autos.
Procedeu à análise de várias facturas explicando o momento e em que termos se processou o pagamento dos mesmos, sendo que relativamente a algumas este aconteceu em momento ulterior à data estabelecida para o mesmo proceder em conformidade, ou seja, em data posterior a 15.02.2011.
Por sua vez a testemunha José M..., técnico de Administração Fiscal prestou depoimento no sentido da matéria de facto dada provada.
Explicou que o arguido efectivamente não recebeu a totalidade do IVA mas o correspondente a 84,30%, das transacções efectuadas, o que corresponde ao valor de € 13.632,77. Mais referiu que relativamente ao momento em que as facturas foram pagas, isso é que já não foi tido em consideração, ou seja, se o recebimento ocorreu em momento ulterior à data em que o arguido se mostrava obrigado a entregar as declarações de IVA, desconhece.
Relevantes foram ainda o teor dos seguintes documentos: comprovativo da entrega da declaração, de fls. 8 e 9, fls. 33 e 34; notificações nos termos do artigo 105°, n°4, alínea b) do RGIT, na redacção dada pela Lei n°53-A-2006, de 29-12, de fls. 18; síntese cadastral de fls. 132 e 133; extractos de conta de fls. 49 a 72; facturas e recibos de fls. 73 a 108; documentos de fls. 123 a 126, fls. 140 e segs., fls. 151 e 152, fls. 154 a 157, e documentos juntos com a contestação de fls. 194 a 204.
Quanto aos factos não provados cumpre finalmente referir não se haver produzido em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos que nessa qualidade se descreveram.
Relativamente às condições pessoais do arguido relevou as declarações pelo próprio prestada e bem assim o teor do testemunho de Maria T..., a qual é TOC de profissão, e demonstrou conhecer a realidade profissional do arguido. Quanto aos respectivos antecedentes criminais, o certificado junto aos autos a fls. 208 e 209.

6. Na sentença recorrida vem o arguido condenado porquanto, em síntese, efectuou operações tributáveis, tendo procedido ao apuramento de IVA que recebeu e e não entregou as prestações tributárias necessárias para satisfazer o imposto exigível, referentes ao 4º trimestre de 2010, e no montante global de 13.632,77€, o que corresponde a 84,30% do IVA liquidado nas facturas emitidas em tal período, cuja data limite de pagamento à Fazenda Nacional ocorreu em 15 de Fevereiro de 2011.

No seu recurso, afirma o arguido que não recebeu o valor das facturas no prazo definido para o pagamento do IVA, pelo que deve ser absolvido do cometimento do crime de abuso de confiança fiscal.

A resolução deste problema impõe o alinhamento de algumas breves considerações genéricas quanto aos elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança em sede de incumprimento dos deveres decorrentes do regime geral do imposto sobre o valor acrescentado (IVA)..

Como é sabido, o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) incide nas transmissões de bens materiais e prestações de serviços efectuadas a título oneroso, abrangendo todas as fases do circuito económico, desde a sua produção, passando pela sua transformação e repercute-se no consumidor final.

A base tributável do IVA circunscreve-se ao valor acrescentado em cada ciclo económico, torna-se exigível nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente e nas prestações de serviços, no momento da sua realização. Para tanto, o agente económico tem sempre de adicionar na factura a importância do imposto liquidado, para efeito da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.

Os agentes económicos são ainda obrigados a entregar periodicamente o IVA que pelo processo de autoliquidação calcularam e incluíram na factura. Na declaração periódica, o agente económico deduz o montante que lhe foi exigido nas aquisições de bens e prestações de serviços efectuados em cada período.

Em cada declaração periódica pode ocorrer uma de três situações:

• Sempre que esta dedução seja superior ao montante devido pelas operações tributáveis, a declaração resulta num crédito a favor do contribuinte, o qual pode ser reembolsado, ou transita para o(s) período(s) seguinte(s);

• Quando o imposto liquidado é superior ao imposto dedutível, resulta imposto exigível, o qual deverá ser entregue conjuntamente com a declaração

• Quando ambos são iguais, resulta apuramento zero..

Uma vez que a liquidação do IVA se efectiva no momento em que a operação económica é concretizada, independentemente do agente económico receber ou não o preço facturado ao seu cliente, facilmente se compreende que o sujeito passivo desta relação jurídico-tributária, liquida IVA, e que, no contexto comercial, frequentemente essa mesmas facturas acabam por ser pagas ao agente económico bastante tempo depois. Esta situação leva a que o agente económico seja obrigado a pagar aos cofres do Estado IVA por si liquidado que contudo ainda não recebeu dos seus clientes. Em outras situações, o agente económico aquando do prazo legal do pagamento do IVA nos Cofres do Estado, já recebeu dos seus clientes o tributo que lhes debitou nas suas facturas, e aqui, já não pratica nenhum “adiantamento” ao Estado.

Com a modificação imposta pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro o tipo de crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º do RGIT passou a ser o seguinte: “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas. 6 - (Revogado pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro). 7 Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Segundo tem sido entendido, o artigo 105.º do RGIT incide em situações de substituição tributária, em que a prestação tributária é exigida a pessoa diferente do contribuinte. A apropriação não é elemento objectivo do crime mas o tipo incriminador pressupõe a violação de uma relação de confiança institucional no depositário legal perante a administração fiscal.

Na sua configuração actual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, de mera (in)actividade, uma vez que a apropriação deixou de integrar o tipo legal, pelo que o crime se consuma na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5.º nºs 1 e 2 do RGIT.

Nos termos já vistos, o sujeito passivo tributário que liquida na factura e recebe o IVA é um fiel depositário da prestação tributária. Em cada declaração periódica pode apurar-se um saldo nulo de imposto a entregar, ou até um saldo favorável ao sujeito passivo, por o IVA a seu favor no período da declaração período exceder o IVA liquidado. O que o agente económico tem de entregar em sede de IVA é o eventual saldo que exista a favor do Estado (montante de imposto exigível na terminologia do CIVA).

Significa isto que não se encontra, no quadro deste imposto, uma prestação tributária deduzida, cuja retenção – omissão de entrega – tal como se encontra prevista no n.º1 do artigo 105.º do RGIT seja merecedora, sem mais, de tutela criminal, ou mesmo contra-ordenacional.

Como se sublinha no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2012, reflectindo jurisprudência uniforme daquele Tribunal a propósito da conduta contra-ordenacional prevista no artigo 114.º do RGIT , “no âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos arts. 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido. De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do art. 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram” (Proc. 0729/12 Fernanda Maçãs, www.dgsi.pt)

Ou seja, como escreveu Isabel Marques da Silva, no âmbito do IVA, não tem aplicação o n.º 1 mas o n.º 2 do artigo 105.º do RGIT, que estabelece uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto (Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de Junho de 2011, processo n.º137/09.0IDBRG, relator Fernando Ventura, na Colectânea, Ano XXXVI, 2011, III, p. 299)

O que bem se compreende: se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão ) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido.

Se essa prestação tributária não chegou a ficar retida na empresa, não há possibilidade real de se cumprir a obrigação de entrega ao credor. Não há sequer a existência de depositário legal, e, por isso, não pode haver qualquer quebra de fidúcia ou confiança, nem conduta censurável. A atribuição de dignidade penal a uma omissão de entrega de quantia não recebida e de que o agente não tem disponibilidade, significaria uma insustentável violação do princípio da proibição de punição de uma conduta sem culpa.

Em conclusão, em situação referente ao IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º n.º 1 e n.º 2 do RGIT, quem não proceda à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para tal, do montante de imposto que efectivamente recebeu no concreto período em causa; As consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros Neste sentido se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-12-2011, com o seguinte sumário “O crime de abuso de confiança fiscal tem, como um dos seus elementos objectivos, a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente) processo n.º 01P3749, relator Hugo Lopes, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Dezembro de 2010, processo 24/06.4IDGRD, relator Mouraz Lopes, na Colectânea Jurisprudência, Ano XXXV, V, 2010 p. 61 e de 29 de Fevereiro de 2012 no processo 1638/09.6IDLRA.C1, relator Paulo Guerra in www.dgsi.pt, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3 de Dezembro de 2009, relator Fernando Ribeiro Cardoso, processo 1358/06.3TDLSB.E1, in www.dgsi.pt, nos acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães de 9 de Junho de 2005 processo 203/04-1, relator Ricardo Silva, acessível em www.dgsi.pt, de 13 de Junho de 2011, processo n.º137/09.0IDBRG, relator Fernando Ventura, na Colectânea, Ano XXXVI, 2011, III, p.299 e de 3 de Dezembro de 2012 no processo n.º 103/11.6IDBRG.G1 relator Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt.

.

7. Em face do entendimento exposto nos autos, torna-se imprescindível saber qual o valor da quantia devida a título de IVA, por facturação emitida no 4.º trimestre de 2010, que o arguido efectivamente recebeu até ao dia 15 de Fevereiro de 2011.

A este propósito, consta da matéria de facto provada que o arguido omitiu a entrega da quantia devida a título de IVA no montante global de 13.632,77 €, correspondente a 84,30% do IVA liquidado nas facturas emitidas no 4.º trimestre de 2010.

O arguido declarou que os montantes devidos a título de IVA não se mostram liquidados na sua totalidade porque ainda não recebeu a totalidade das quantias ali referidas, mas pela fundamentação da convicção do tribunal nos depoimentos de Maria T... e de José Miguel Moura depreende-se que, como aí se escreveu, algumas das facturas foram pagas em momento ulterior a 15 de Fevereiro de 2011 e que no mapa elaborado no processo inspectivo pelo técnico da administração fiscal não foi tido em consideração, se o recebimento ocorreu em momento ulterior à data em que o arguido se mostrava obrigado a entregar as declarações de IVA,

Ou seja, na decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido desinteressou-se de saber qual o montante de IVA, referente às facturas emitidas no 4.º trimestre de 2010, que efectivamente tinha sido recebido pelo arguido em data que lhe permitisse cumprir a obrigação legal de entrega à administração fiscal. Apesar de essa prova ser possível a partir do cruzamento das facturas e recibos constantes dos autos.

Ficaram assim por esclarecer factos essenciais integradores do ilícito criminal pelo qual o arguido estava acusado, o que constitui o vício decisório de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, previsto da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código do Processo Penal.
Contudo, essa insuficiência não impõe o reenvio para novo julgamento, uma vez que os autos contêm todos os elementos necessários à explicitação ou concretização que importa proceder a fim de se alcançar a decisão justa da causa – cf. artigos 410.º, n.º 2, alínea a), e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

8. Tendo em consideração os extractos de conta, as facturas, recibos, bem como dos restantes documentos de fls. 49 a 108, depois de ouvido o depoimento prestado em audiência de julgamento por Maria T..., técnica oficial de contas e de José Miguel Moura, técnico da administração fiscal, concluímos que, por referência ao quadro constante de fls. 151:

1.º- O arguido recebeu até ao dia 15 de Fevereiro de 2011, inclusive, a totalidade das quantias referentes às suas facturas com os n.ºs 537, 539, 540. 541, 543, 545, 546 e 550, aí se incluindo o valor do IVA correspondente Recibos de fls. 76, 79, 81, 83, 86, 90, 92 e 102, respectivamente.;

2.º- No que se refere à factura com o n.º 547 (Oportunica Papeis e Máquinas S.A.), o arguido recebeu em 21 de Janeiro de 2011, a quantia de 1115.60 €, onde se inclui o IVA liquidado, no valor de 361 € Recibo de fls. 94.;

3.º- No que se refere à factura com o n.º 548 (Ideal-Luís Caldas e Coutinho Ldª), não houve pagamento em simultâneo de toda a quantia (18.000 € antes de IVA), mas o arguido recebeu em 31 de Dezembro de 2010 a quantia de 6300 €, onde se inclui o IVA liquidado, no montante de 3780 € Recibo de fls. 97.;

4.º - No que se refere à factura com o n.º 551 (Ideal-Luís Caldas e Coutinho Ldª), não houve pagamento em simultâneo de toda a quantia, no montante global de 12.000 € antes de IVA, mas o arguido recebeu em 14 de Fevereiro de 2011 a quantia de 4200 €, bem superior ao IVA liquidado, no valor de 2520 € Recibo a fls. 104.;

5.º - No que se refere à factura com o n.º 552 (Image Pack Unipessoal, Ldª), no montante de 17500 € antes de IVA, o arguido recebeu em 31 de Dezembro de 2010, a quantia de 17500 € bem superior ao IVA devido, no valor de 3675 € :

6.º - De todas as facturas referentes ao 4.º trimestre do ano de 2010, a serem englobadas na respectiva declaração periódica e constantes do mapa de fls. 151, o arguido recebeu em data posterior ao dia 15 de Fevereiro de 2011 o valor correspondente ao IVA liquidado nas facturas n.º 535 (IVA no valor de 105 €), 542 (IVA de 21 €), 544 (IVA de 25,20 €) e 549 (IVA no valor de 21 €).

Nestes termos, ao montante da prestação tributária em falta deve ser retirado um total de 172,20 € , pelo que para a relação periódica referente ao 4.º trimestre de 2010, o valor de IVA efectivamente recebido pelo arguido, que lhe era exigível e não foi entregue à administração fiscal até ao dia 15 de Fevereiro de 2011 e que deve ser considerado para efeito de preenchimento do tipo de crime de abuso de confiança fiscal ascende ao valor de 13460,57 €.

Deve por isso proceder-se a alteração da decisão em matéria de facto, por forma a ficar a constar aquele valor nos pontos 2 e 3 da matéria de facto provada.

Dúvidas não existem que após esta alteração do valor global do IVA não entregue, os factos provados preenchem todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º n.º 1 e n.º 2 do RGIT.

Esta diminuição relativamente diminuta do valor global do imposto exigível, em nada modifica o juízo de censurabilidade da conduta, nem qualquer um dos restantes factores ou critérios da dosimetria penal, pelo que não se verifica fundamento para alteração da medida concreta da pena.

Tem por isso de manter-se a decisão recorrida, improcedendo na íntegra o recurso do arguido.

III - DECISÃO

9. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Alteram a decisão da matéria de facto provada da sentença recorrida por forma a constar, em substituição, o seguinte:

(…)2- No âmbito do desenvolvimento daquela sua actividade o arguido, Armindo A..., efectuou operações tributáveis, tendo procedido ao apuramento de IVA que recebeu, e ao envio da declaração periódica, não tendo entregue, simultaneamente, as prestações tributárias necessárias para satisfazer o imposto exigível, referentes ao 4º trimestre de 2010, IVA esse no montante global de treze mil, quatrocentos e sessenta euros e cinquenta e sete cêntimos (13460,57€), o que corresponde ao IVA liquidado nas facturas emitidas em tal período, cuja data limite de pagamento à Fazenda Nacional ocorreu em 15 de Fevereiro de 2011.

3- O arguido apoderou-se do montante de € 13.460,57, a título de IVA, que efectivamente recebeu até ao referido dia 15 de Fevereiro de 2011. O arguido sabia que essa quantia não lhe pertencia, mas antes à Fazenda Nacional, a quem sabia estar obrigado a entregar.

II - Julgam improcedente o recurso, mantendo a condenação do arguido Armindo A... pelo cometimento de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, 6 e 7 do RGIT 11 na pena de cento e sessenta dias de multa à razão diária de sete euros.

Custas pelo recorrente com cinco UC de taxa de justiça (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

Guimarães, 18 de Março de 2013.