Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1458/10.5TBEPS.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O artigo 640º do novo CPC, à semelhança do artigo 685º-B do CPC revogado, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo no seu nº 2, alínea a), que no caso de ter havido gravação da prova, «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
II - Decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
J… e mulher, M…, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra L…, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia necessária para a realização das obras indispensáveis para tornar o prédio que identificam no artigo 1º da petição inicial isento de defeitos decorrentes das infiltrações verificadas, descritos nos artigos 17º a 23º daquele articulado, num montante nunca inferior a € 5.160,00 ou, em alternativa, ser condenada a realizar as obras que venham a ser determinadas pelo Tribunal conforme perícia técnica que venha a realizar-se. Mais pediram a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de € 500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
(…)
De seguida foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, consequentemente, o Tribunal decide:
a) Condenar a ré L… a pagar aos autores a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);
b) ou, em alternativa, condenar a ré proceder aos trabalhos de reparação especificados na resposta nº 18 aos quesitos apresentados pelos autores que consta do relatório pericial (a fls. 152).
c) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia a liquidar em momento ulterior necessária à reparação/substituição do pavimento.
d) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de €500,00 (quinhentos euros) para compensação dos danos não patrimoniais sofridos.
**
Absolver a ré do mais peticionado pelos autores.
Custas por Autores e Ré, na proporção de 40% e 60% respectivamente.»
Inconformada com o assim decidido, interpôs a ré o presente recurso de apelação cuja motivação culminou com as conclusões que a seguir se transcrevem:
(…)
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como não provada a factualidade constante dos artigos 3º a 12º da base instrutória (pontos 9 a 17 do elenco dos factos provados infra), com a consequente improcedência da acção.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
(…)

Da impugnação da matéria de facto.
A questão essencial decidenda, como já se referiu, consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos concretos pontos acima enunciados.
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos e depoimentos de parte e das testemunhas, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo.
Porém, considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, verificamos que a recorrente não cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC.
Assim, embora tenha indicado os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida, e tenha também referido os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, in casu os depoimentos das testemunhas inquiridas e o relatório pericial nos quais o tribunal a quo alicerçou a sua convicção, não indicou as passagens da gravação relativamente aos depoimentos prestados nos quais funda a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, limitando-se a colocar em causa a credibilidade das testemunhas J…, J… e S…, os dois primeiros por estarem de relações cortadas com a ré e último por ser filho dos autores, e a retirar conclusões do que alegadamente terão dito aquelas testemunhas.
Ora, o artigo 640º do novo CPC, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo no seu nº 2, alínea a), que no caso de ter havido gravação da prova, «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes»[1].
Com este n.º 2 «introduziu-se mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto» impondo-se que «se, pelo modo como foi feita a gravação e elaborada a acta, for possível (exigível) ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos, o ónus de alegação, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, (…) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda (…).» E «o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.»[2]
Na verdade, «impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, encontra-se sujeito a alguns ónus que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso», sendo um deles o de «indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda (…) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a indicação precisa e separada dos depoimentos»[3].
Por outro lado, decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.[4]
O novo CPC veio, aliás, manter em termos praticamente idênticos todos os ónus anteriormente existentes, aditando ainda o de o recorrente dever especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento.
Ora, esta posição recente do legislador «evidencia a desconformidade relativamente à lei, quer no seu elemento literal, quer no sistemático, quer no histórico-actualista, de interpretações complacentes e facilitistas, que por vezes se vêem, que degeneram em violação do princípio da igualdade das partes (ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva), do princípio do contraditório (por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor) e do princípio da colaboração com o tribunal (por razões análogas, mas reportadas ao julgador)[5].
Revertendo ao caso concreto, verificamos que os recorrentes não indicaram – muito menos com exactidão – as passagens da gravação em que se funda o recurso, ou seja, as passagens dos depoimentos das testemunhas J…, J… e S…, que, no seu entender, impunham que se considerasse não provada a factualidade constante dos pontos 3 a 12[6] da base instrutória (pontos 9 a 17 do elenco dos factos provados supra).
Segundo a recorrente, «a prova documental junta aos autos, plasmada no relatório pericial, conjugada com as regras da experiência comum e do normal acontecer, e as boas regras da arte da construção civil, descredibiliza o já parcial depoimento das testemunhas acima mencionadas e que por economia processual aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.»
Sucede, porém, que a prova pericial é sempre livremente apreciada pelo tribunal, nos termos do art. 489º do CPC (art. 591º do CPC revisto), podendo mesmo o tribunal decidir sobre a matéria de facto de modo diferente do inculcado pelo relatório unânime dos peritos, por mais qualificados que estes sejam[7].
Ademais, o tribunal fundamentou as respostas aos artigos 3º a 10º da base instrutória (pontos 9 a 16 do elenco dos factos provados) exclusivamente nos depoimentos das testemunhas acima referidas, não podendo esta Relação, pelos motivos apontados, reapreciar tais depoimentos.
E, por sua vez, como consta da motivação da decisão de facto, a resposta de provado ao artigo 12º da base instrutória (ponto 17 do elenco dos factos provados supra), bem como a outros artigos que aqui não importa considerar, «resultou também do depoimento das testemunhas J…, J… e S…, os quais evidenciaram conhecimento directo destes factos e sobre eles depuseram com a já referida credibilidade e isenção. Neste particular, foi ainda determinante o relatório pericial de fls. 148 e ss dos autos, nomeadamente no que respeita ao estabelecimento do nexo de causalidade entre os factos referidos nos pontos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º 9º e 10º da B.I. e as consequências elencadas nos pontos 12º a 22º da B.I.».
Ou seja, não tendo o Mm.º Juiz a quo formado a sua convicção, quanto ao artigo 12º da base instrutória, apenas no relatório pericial, mas também na prova testemunhal, vedado está a esta Relação proceder a uma eventual alteração da resposta afirmativa ao mencionado artigo 12º, que corresponde à factualidade vertida no ponto 17 do elenco dos factos provados supra.
A inobservância, por parte da recorrente, do que lhe é imposto pelo nº 2 do art. 685º-B do CPC revisto e nº 2 do art. 640º do CPC actual, determina a imediata rejeição do recurso no que toca à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita na mesma.
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada, nenhuma censura há a fazer - até porque tal, na atenção da alegação da recorrente, passava necessariamente pela alteração da matéria de facto – à decisão sindicanda, onde foi feita, correcta e devidamente, a subsunção dos factos provados ao direito.
Improcedem assim todas as conclusões do recurso, o que implica o total inêxito do mesmo e a manutenção da decisão recorrida.

Sumário:
I – O artigo 640º do novo CPC, à semelhança do artigo 685º-B do CPC revogado, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo no seu nº 2, alínea a), que no caso de ter havido gravação da prova, «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
II - Decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Guimarães, 19 de Junho de 2014
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
_______________________________
[1] Dispunha de modo idêntico o art. 685º-B do anterior CPC, residindo a única diferença entre os preceitos em que antes se dizia “imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto” e agora diz-se “imediata rejeição do recurso na respectiva parte”.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pp. 136/138.
[3] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed., p. 181. No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 63.
[4] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 09.02.2012 (Abrantes Geraldes), proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1.
[5] Ac. da RL de 12.02.2014 (Alda Martins), proc. 26/10.6TTBRR.L1-4, in www.dgsi.pt.
[6] O artigo 11º da base instrutória foi julgado não provado.
[7] Cfr. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, p. 557 e jurisprudência aí citada.