Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47668/18.8YIPRT.G1
Relator: RAQUEL TAVARES
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONCESSIONÁRIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“Compete aos tribunais tributários apreciar litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais”.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

ÁGUAS X, S.A. intentou a presente acção contra EMPRESA A pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €263,59, correspondendo a €124,57 de capital, €8,78 de juros de mora, €53,74 de outras quantias e €76,50 de taxa de justiça paga.

Alega, para o efeito, que presta serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais e que no âmbito dessa sua actividade prestou à Ré esses serviços emitindo as respectivas facturas que identifica e cujo pagamento não foi efectuado pela Ré.
Citada, veio a Ré deduzir oposição alegando nunca ter celebrado qualquer contrato com a Autora e desconhecer como foram calculados pela Autora os valores que alega serem devidos.

Pelo tribunal a quo foi suscitada a excepção da incompetência material do Juízo Local Cível de Fafe para conhecer da presente acção e, determinada a audição das partes quanto a esta matéria, nada foi dito pelas mesmas.
Foi proferida decisão que julgando verificada a excepção de incompetência material Juízo Local Cível de Fafe absolveu a Ré da instância.

Não se conformando com a decisão proferida veio a Autora recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:

A. A Recorrente assume a exploração e a gestão do sistema de águas da região do Noroeste, em resultado da celebração de um Contrato de Parceria entre o Estado Português (Administração Central) e os Municípios de Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto, Cinfães, Fafe, Santo Tirso e Trofa.
B. A exploração e a gestão do sistema em “baixa” são realizadas em exclusividade pela Recorrida em regime de parceria, nos termos da na alínea c), do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril e do Contrato de Parceria e do Contrato de Gestão.
C. Os Municípios, supra mencionados, delegaram no Estado, as respetivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de água residuais urbanas aos utilizadores finais.
D. O Recorrido outorgou, em 10 de agosto de 2012, com o Município B, à data entidade gestora dos serviços de abastecimento de água para o consumo público e recolha de águas residuais urbanas, o contrato de recolha de águas residuais urbanas.
E. Ao abrigo deste contrato a Recorrente prestou os serviços de recolha de águas residuais urbanas no domicílio do Recorrido, que os aceitou e nunca os recusou.
F. O contrato de prestação de serviços de recolha de águas residuais se rege pela Lei n.º 23/96 – Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
G. O contrato de recolha de águas residuais é um contrato de consumo regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo.
H. A presente ação que tem por objeto a simples cobrança de divida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado, no pagamento de valores constantes de faturas, acrescido de juros.
I. Tem, assim, a ação por base uma relação jurídica de direito privado, que se consubstancia numa situação de incumprimento das obrigações contratualmente assumidas pelo Recorrido.
J. Obrigações que tendo natureza civil, regem-se, pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil – artigo 762.º e seguintes, artigo 806 do código civil.
K. Pelo que, não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF.
L. A alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º, do supra mencionado diploma, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de contratos objeto passível de ato administrativo, contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público.
M. A sujeição à jurisdição civil face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamentos de uma fatura de eletricidade ou de uma fatura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações eletrónicas – Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
N. Estabelece o n.º 1, do artigo 211.º, da Constituição da República Portuguesa, que “os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria cível e criminal que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
O. E por sua vez, o n.º 3, do seu artigo 212.º, que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contencioso que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
P. Dispõe o artigo 64.º, do Código de Processo Civil que são “da competência dos tribunais administrativos as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Q. Foram, assim, violados os artigos 64.º, 96.º, 97.º n.º 2, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º n.º 2, 1.ª parte, 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, bem como o artigo 1.º, n.º 1 do ETAF, e ainda os artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da Constituição Portuguesa”.

Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue materialmente competente o Juízo Local Cível de Fafe.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, é a de saber se o Juízo Local Cível de Fafe é materialmente competente para conhecer da presente acção.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

A Recorrente veio interpor o presente recurso por se não conformar com a decisão proferida pelo tribunal a quo que, julgando-se materialmente incompetente para conhecer da presente acção, considerou encontrar-se atribuída aos tribunais administrativos a competência para a apreciar e decidir.

Relembra-se o teor do despacho recorrido:

“(…) a sociedade autora ÁGUAS X, S.A. é concessionária do serviço público de saneamento, ademais, do Município B e, nessa medida, actua em substituição deste Município, tratando-se, assim, inequivocamente, de uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público (cfr. artigos 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro e 9.º do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio).

(…) Por conseguinte, considerando a concreta natureza da relação jurídica em crise nestes autos – pretendendo a autora, enquanto sociedade concessionária de serviços públicos essenciais de água e saneamento, cobrar a um utente a quem alega ter prestado esses serviços, tarifa relativa aos mesmos –, e na senda do entendimento jurisprudencial largamente maioritário e mais recente, afigura-se-nos que a matéria em causa nestes autos insere-se no âmbito dos litígios cuja apreciação compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais concretamente, aos Tribunais Tributários, nos termos previstos nos artigos 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (vide, em sentido idêntico, Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 19.06.2014, processo n.º 022/14, e de 30.10.2014, processo n.º 047/14, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 04.11.2015, processo n.º 0124/14, de 17.05.2017, processo n.º 01174/16 e de 31.05.2017, processo n.º 0441/17, Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 28.06.2013, processo n.º 02708/11.6BEPRT, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2014, processo n.º 1396/12.7TBFAF.G1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2017, processo n.º 106973/15.5YIPRT.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Concluímos, assim, ser este Juízo Local Cível de Fafe do Tribunal Judicial da Comarca de Braga materialmente incompetente para conhecer da presente causa (...)”.

A única questão a decidir consiste em saber se a competência se mostra atribuída aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos, sendo os fundamentos de facto a considerar os descritos no relatório.

E na apreciação desta questão não podemos deixar de começar por referir que um dos pressupostos mais importantes, relativo aos tribunais, é o da sua competência, resultando tal requisito do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por vários tribunais, tendo depois, cada um, competência para determinadas matérias do direito.

A competência em razão da matéria distribui-se assim por diferentes espécies de tribunais, situados no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre eles, estando na base desta repartição de competência o princípio da especialização, que se traduz na vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito (v. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 194, 195 e 207).

Dispõe o n.º 1 do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa, nas suas várias alíneas que, “além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas”; e o artigo 211º n.º 1 que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos, segundo o artigo 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Em conformidade, decorre também do artigo 64º do Código do Código de Processo Civil que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por outro lado, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a competência se afere pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, sendo irrelevante qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, página 91) e que não cabendo uma causa na competência de outro tribunal ela será do tribunal comum por uma questão de competência residual (cfr. entre outros, Acórdãos da Relação de Guimarães de 05/03/2009 e de 18/01/2018, da Relação do Porto de 22/02/2011 e de 07/04/2016, da Relação de Lisboa de 13/07/2010 e do STJ de 02/03/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.

E quanto aos tribunais administrativos e fiscais, consta do artigo 4º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2 (com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10) que lhes compete a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Analisemos então a questão colocada à luz dos considerandos acabados de enunciar, começando por verificar o pedido formulado na presente acção pela Autora e os fundamentos em que a mesma se baseia uma vez que a determinação da competência em razão da matéria assim deve ser aferida.

No caso em apreço, a Autora ÁGUAS X SA alega ser uma sociedade prestadora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais e que no exercício dessa actividade prestou tais serviços à Ré, emitindo as respectivas facturas por si melhor identificadas no requerimento de injunção, não tendo esta pago os serviços a que as mesmas se reportam encontrando-se em divida a quantia global de €133,35.

A Autora é, conforme a mesma reconhece, a empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento do Município B, por força de contrato celebrado com este último, segundo alega em 10 de Agosto de 2012.

Conforme bem se refere na decisão recorrida a Autora actua por isso em substituição do Município B, tratando-se assim “de uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público (cfr. artigos 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro e 9.º do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio)”.

Conforme resulta do disposto no artigo 23.º, n.º 2, alínea k), da Lei n.º 75/2013 (Regime das Autarquias Locais) de 12 de Setembro, os municípios dispõem de atribuições em diversos domínios, designadamente no saneamento básico, podendo efectivamente tais serviços ser geridos por entidades privadas, através de contrato de concessão, como sucedeu, no caso concreto.

A circunstância do serviço público passar a ser gerido por uma entidade privada, designadamente através do contrato de concessão, tal como refere o tribunal a quo não lhe retira a natureza de serviço público.

Conforme se refere no Acórdão desta Relação de 10/07/2014 (disponível em www.dgsi.pt) O serviço público pelo facto de passar a ser gerido por uma entidade privada não perde a sua natureza. O concessionário desempenha uma função pública, é um colaborador da Administração na realização dos interesses gerais e deverá ter sempre presentes, para os respeitar, manter e acentuar, os caracteres próprios do serviço público. É que a concessão apenas implica a transferência temporária do exercício dos direitos e poderes da pessoa colectiva de direito público necessários à gestão do serviço pelo concessionário, mas a titularidade dos direitos e poderes continua na entidade concedente. A empresa concessionária converte-se numa empresa de interesse colectivo e como tal faz parte da Administração Pública, com entidade jurídica própria”.

Aliás, a própria Recorrente se apresenta nos autos como “sociedade prestadora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais”.

Por outro lado, importa salientar, tal como consta também da decisão recorrida que a ligação dos utilizadores ao sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento é efectivamente obrigatória nos termos do artigo 3º n.º 6 do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio que cria o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal e que as quantias que constituem a contrapartida pela prestação dos serviços de água e saneamento constituem tarifas, unilateralmente fixadas e reguladas por normas de direito público tal como decorre do artigo 11.º do mesmo diploma.

Nos termos do n.º 3 deste preceito “os tarifários a aplicar aos utilizadores são aprovados nos termos previstos na lei e são fixados para períodos quinquenais, devendo a sociedade instruir os respectivos projectos com a revisão dos pressupostos técnicos e económico-financeiros do contrato de concessão”; os tarifários são ainda “actualizados anualmente pela sociedade, de acordo com a previsão do índice harmonizado de preços no consumidor publicado pela entidade responsável pela sua divulgação, sem prejuízo de acertos a que seja necessário proceder anualmente, nos termos previstos no contrato de concessão” (n.º 4) e “o tarifário a aplicar visa também assegurar a estabilidade tarifária, a acessibilidade social dos serviços, bem como a recuperação ou repercussão dos desvios de recuperação de gastos, dos ajustamentos de encargos nos termos previstos no presente decreto-lei e no contrato de concessão” (n.º 5).

E de acordo com o artigo 3º do Decreto-lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, a exploração e a gestão dos sistemas municipais de distribuição de água para consumo humano e de recolha, drenagem e tratamento de águas residuais consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público; o que ocorre quer adoptem o modelo de gestão directa, o modelo de delegação em empresa constituída em parceria com o Estado ou o modelo de gestão delegada, quer adoptem o modelo de gestão concessionada (cfr. artigo 7º do referido diploma legal).

Assim, tal como se concretiza no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22/01/2015 (disponível em www.dgsi.pt) a “manifesta importância dos serviços de abastecimento de água e de recolha de águas residuais, que se prendem com a satisfação de necessidades evidentes e essenciais à vida humana, aparentemente levaram o legislador a estabelecer um regime substantivo específico”, no qual podemos destacar desde logo os direitos dos utilizadores seja à prestação destes serviços, à continuidade do serviço, à informação e ao conhecimento das normas, vertidas em regulamento, sobre as condições em que estes serviços são prestados, mas também que “as entidades gestoras destes serviços não têm ampla liberdade contratual, como no direito privado, na medida em que, designadamente, não podem seleccionar com quem pretendem firmar negócio jurídico (estão obrigadas a celebrá-los com qualquer pessoa cujo local de consumo se insira nas correspondentes áreas de influência) ou decidir livremente cessar a prestação destes serviços (só podem interromper essa prestação em casos justificados, expressamente previstos na lei, seja, por exemplo, por deterioração da qualidade da água distribuída ou por mora do pagamento dos consumos)”.

Da mesma forma também o utilizador do serviço não pode discutir ou negociar o valor da contrapartida devida pelo fornecimento da água ou pela recolha das águas residuais, sendo normalmente essas tarifas impostas de modo unilateral e subtraídas ao livre arbítrio dos mercados.

Será por isso de afirmar, tal como consta do citado Acórdão do Tribunal dos Conflitos, que “estas relações jurídicas (quer os contratos de concessão, quer também os contratos de fornecimento de água e/ou de drenagem de águas residuais) não são pautadas pela ampla liberdade contratual, específica do direito privado, em particular do direito das obrigações, na medida em que o interesse geral, subjacente a exploração e a gestão dos sistemas de distribuição de água e de recolha e drenagem de águas residuais, impõe que existam normas de direito público que disciplinem o seu regime substantivo. Como facilmente se compreende, desde logo, pela natureza fundamental dos bens fornecidos e dos serviços prestados, não é exactamente igual comprar e vender um qualquer produto de consumo, onde funcionam de modo amplo e pleno as regras de mercado, do que tratar do fornecimento de água para o consumo humano e/ou do que assegurar o tratamento, a recolha e a drenagem de águas residuais”.

Os contratos de fornecimento de água e de drenagem de águas residuais encontram-se assim submetidos a um regime específico, diferenciado do de direito privado que determina a atribuição à jurisdição administrativa e fiscal competência para a resolução dos litígios respeitantes aos mesmos.

É neste sentido que vem sendo firmada a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que maioritariamente vem atribuindo à jurisdição administrativa e fiscal competência para a resolução destes litígios, também nos casos em que está em causa a cobrança dos valores devidos pela prestação do serviço e de que são bem ilustrativos os acórdãos citados na decisão recorrida que, por economia de meios, aqui nos abstemos de reproduzir.

Da análise dos diversos acórdãos conclui-se que o Tribunal dos Conflitos vem maioritariamente entendendo, tal como decidido pelo tribunal a quo, que se trata de matéria que cai na previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, cabendo na esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais por estarmos “perante um litígio que tem por objecto a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, e que advenham do exercício de poderes administrativos” (Acórdão de 21/07/2014; de referir que o citado acórdão de 22/01/2015 atribui a competência à jurisdição administrativa e fiscal mas ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF).

Salientaremos apenas que o próprio Tribunal dos Conflitos vem tentando evitar divergências nesta matéria, tal como se pode ler no Acórdão de 15/05/2014 (também disponível em www.dgsi.pt) relatado por Maria Fernanda dos Santos Maçãs que aí reconhece que “Não obstante a questão ser em tudo idêntica à julgada pelo Tribunal de Conflitos no Conflito nº. 44/13, de 21/1/2014, que subscrevemos na qualidade de relatora, a verdade é que está firmada jurisprudência neste Tribunal de Conflitos em sentido contrário (…) Assim sendo, para evitar divergências nesta matéria, limitar-nos-emos a reproduzir o Acórdão n.º 1/14, de 27/3/2014, que segue a jurisprudência uniforme nesta matéria” concluindo que a jurisdição competente para conhecer do litígio era a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, através dos tribunais tributários num caso em que tendo a Autora tendo alegado que no âmbito da sua actividade comercial, por concessão da exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água ao concelho de Fafe, prestara ao Réu serviços de fornecimento de água sem que o respectivo pagamento tivesse sido efectuado, o Tribunal Judicial de Fafe declarara a sua incompetência, em razão da matéria, por ser competente a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.

É também este o entendimento que vem sendo maioritariamente seguido nesta Relação de Guimarães (v. entre outros os Acórdãos de 10/07/2014 e 25/09/2014) e é também este o sentido das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Administrativo designadamente nos Acórdãos de 25/06/2013, 05/11/2013, 28/10/2015 e 31/05/2017 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Não obstante não desconhecermos a existência de jurisprudência em sentido contrário (de referir que o Tribunal da Relação do Porto vem decidindo maioritariamente no sentido de que nos casos em que está em causa acção de cobrança do valor devido pela prestação do serviço a competência se encontra atribuída aos tribunais comuns; v. por todos os recentes acórdãos de 15/05/2018 e de 13/09/2018, ambos também disponíveis em www.dgsi.pt) não vemos neste momento razões para divergir da jurisprudência que vem sendo firmada no Tribunal dos Conflitos e que maioritariamente vem atribuindo à jurisdição administrativa e fiscal competência para a resolução destes litígios (concretamente aos Tribunais Tributários nos termos previstos no artigo 49º n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

Não há assim razão, em face do exposto, para alterar a decisão proferida, improcedendo pois a apelação.

As custas são da responsabilidade da Recorrente atento o seu decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I – Compete aos tribunais tributários apreciar litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

Guimarães, 25 de Outubro de 2018
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)