Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
557/10.8TBVLN.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONFISSÃO DE DÍVIDA
ACORDO
TERCEIRO
REPRESENTAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCDENTE
Sumário: I - No que se refere ao negócio simulado e para efeitos do art. 394º, nº 3, do Código Civil, é terceiro todo aquele que não interveio no acordo simulatório, nem represente por sucessão quem nele participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado.
II - Atento o regime do art. 259º do Código Civil, o representado é terceiro em relação ao negócio jurídico celebrado pelo seu representante, em conluio com a contraparte.
III - Por isso, nada obsta a que a autora (representada) possa valer-se da prova testemunhal e por presunções para demonstrar a simulação do negócio.
IV - As presunções judiciais não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência” , ou “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “ prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade.
V - Os depoimentos das testemunhas pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, e tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão, às máximas da experiência e aos conhecimentos científicos.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
Maurício Lda. e MM intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra MS e mulher, RS, pedindo que:
a) Seja declarado nulo e de nenhum efeito, em razão de simulação, o documento denominado “Confissão de Dívida/Declaração”, datado de 08.01.2010, identificado como doc. nº 12.
b) Subsidiariamente, resultando do mencionado documento que a invocada causa de obrigação é um mútuo, no valor de € 850.000,00, deve o mesmo ser declarado nulo e de nenhum efeito;
c) Quando assim não se entenda, deve declarar-se a novação sem efeito e ser lícito à autora recusar o cumprimento dessa obrigação como se ela não existisse.
d) Em qualquer dos casos, deve ser ordenado o cancelamento de todas as inscrições e averbamentos entretanto efectuados, ou a efectuar, sobre os prédios descritos na Conservatória do registo Predial de Valença sob os nºs 3.. e 3... de actos sujeitos a registo que tiverem por fundamento o documento aludido em a), nomeadamente a penhora a favor dos réus, que abrange os dois prédios, feita na Conservatória do Registo Predial de Valença pela Ap. .. de 2010/07/20, no âmbito do processo executivo nº 2../10.3TBVLN do Tribunal Judicial de Valença.
e) Ainda em qualquer dos casos devem os réus indemnizar os autores, em quantia a liquidar em execução de sentença, que restaure todos os prejuízos que lhes ocasionarem, correspondentes a despesas já suportadas, e a suportar com a presente acção, incluindo despesas com advogados e outros mandatários, certidões, emolumentos registrais, deslocações e outras.
Alegaram, em síntese, que a autora sociedade - então representada por Maria... - outorgou um documento particular pelo qual se confessou devedora ao réu marido da quantia de € 850.000,00, referente a diversos mútuos que este lhe foi fazendo ao longo de vários anos, sendo que, todavia, se tratou de uma declaração negocial simulada, tanto mais que a autora jamais recebeu, assim como o réu jamais lhe entregou, os montantes referentes aos mútuos indicados na declaração negocial.
Os réus contestaram, negando a existência de qualquer simulação e concluindo pela improcedência da acção.
Os autores replicaram, concluindo como na petição inicial.
Os autores requereram, após convite do tribunal, a intervenção principal de Maria..., a qual foi admitida.
Saneado, condensado e instruído o processo, foi, após julgamento, proferida sentença, que, na parcial procedência da acção:
a) declarou nula a declaração negocial denominada “Confissão de dívida /Declaração” identificada no ponto 10 do elenco dos factos provados da sentença;
b) condenou o réu MS a pagar ao autor MM a quantia que vier a liquidar-se em momento posterior quanto aos danos indicados no ponto 16 do referido elenco dos factos provados.
Inconformada com o assim decidido, interpôs a autora o presente recurso de apelação cuja motivação culminou com setenta e nove extensas conclusões que não satisfazem a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no art. 639º, nº 1, do CPC, e, por isso, não serão aqui transcritas.
Das mesmas conclusões resulta que a questão essencial colocada à apreciação deste Tribunal da Relação se consubstanciam em saber se deve ser alterada a matéria de facto, com a consequente improcedência da acção.

Os autores contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do julgado, sustentando, subsidiariamente, a apreciação dos demais fundamentos invocados na acção.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo pelo teor das conclusões das alegações que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber, como acima já deixou dito, se deve ser alterada a matéria de facto, nomeadamente dando-se como não provada a factualidade constante dos pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados da sentença, dos quais resulta o acordo simulatório entre a getente da sociedade autora e o réu marido.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na sentença foram dados como provados os seguintes factos:
1. A 1ª A. tem por objecto social a “construção e a compra e venda de imóveis” (A);
2. Até ao ano de 2005 o capital social da 1ª A. de € 199.519,16 estava dividido em duas quotas: uma do valor nominal de € 189.543,20 pertencente ao 2º A, e outra do valor nominal de € 9.975,96 pertencente a Ângelo Augusto Rodrigues (B);
3. A 1ª A. era então, tal como hoje, proprietária de dois prédios urbanos, um denominado “Casa do ...”, sito na Calçada..., nºs. 2, 4 e 6, em Valença, onde se mantém sedeada, e outro composto por uma Capela, sito na mesma Calçada..., inscritos na matriz respectiva sob os artigos 1 e 1..., e descritos na Conservatória do Registo Predial de Valença sob os nº 3...e 3... respectivamente (C);
4. No indicado primeiro imóvel, situado no interior da fortaleza de Valença (casa senhorial do século XVII, inteiramente renovada, mobilada, dispondo de 6 quartos e demais dependências, com magnífica vista panorâmica para o rio Minho), o 2º A. vinha prosseguindo, em nome individual, a actividade de “turismo rural” (D);
5. No ano de 2005, duas cidadãs de nacionalidade espanhola chamadas Maria... e Maria de Los..., mãe e filha, ambas empresárias, manifestaram interesse na aquisição dos ditos imóveis e respectivo recheio, para aí se dedicarem à mesma actividade de “turismo rural” (E);
6. Após negociações, em 25.8.2005, na cidade de Vigo, em Espanha, foi celebrado entre as referidas cidadãs espanholas e ambos os sócios da 1ª A. um denominado “Contrato de Compromisso de Compraventa de Participaciones Sociales”. Por esse documento, as mesmas duas cidadãs e o 2º A. (este outorgando também em representação do outro sócio) ajustaram a cessão das quotas representativas da totalidade do capital social pelo preço global de € 1.300.000,00. Atento o valor do negócio, esse preço foi fixado após avaliação da 1ª A, a qual não assentou tanto nos elementos contabilísticos mas sobretudo nos elementos patrimoniais que a compunham (F a H);
7. Celebrada a escritura, em 11.11.2005, as referidas Maria ... e Maria de Los ?..ficaram a ser as únicas sócias detentoras da totalidade do capital social de € 199.519,16 da 1ª A. Nessa data e escritura, nomearam única gerente a sócia Maria ..., que a partir daí assumiu a gestão da 1ª A. e a condução dos seus destinos. Dias depois, a Maria de Los ...apresentou no Serviço de Finanças de Monção a “Declaração de Início da Actividade de Turismo no Espaço Rural”, indicando como sede e local do estabelecimento a “Casa do ...” (I a L e 9);
8. Em 21.7.2008, o 2º A. instaurou neste Tribunal Judicial de Valença, sob o nº 3.../08.6TBVLN, uma Execução para Pagamento de Quantia Certa contra as referidas Maria de ?.. e Maria de Los ?.. com vista à cobrança da quantia de € 441.776,97. No desenvolvimento desse processo executivo, aquelas três quotas do valor nominal de € 69.831,71, € 119.711,49 e € 9.975,96 foram penhoradas em 3.4.2009, tendo sido constituída depositária a Maria .... Mais tarde essas quotas foram adquiridas pelo 2º A, por venda realizada em 15.6.2010, pelos preços de € 143.500,00, € 230.000,00 e € 36.5000,00, respectivamente, num total de € 410.000,00; por efeito dessa venda, as três quotas foram adjudicadas ao 2º A, que registou a aquisição na Conservatória do Registo Comercial de Valença em 14.7.2010 (M a O);
9. Por deliberação tomada em Assembleia Geral da 1ª A, realizada em 6.9.2010, foi deliberado, por unanimidade, proceder à destituição da referida Maria.. do cargo de gerente, e à nomeação do 2º A. como gerente, sendo essas destituição e nomeação inscritas no registo comercial (P);
10. O processo nº 2.../10.3TBVLN é uma Execução Comum para Pagamento de Quantia Certa, instaurada em 9.6.2010, em que é Exequente o ora R. MS e Executada a ora 1ª A, com base em alegada “dívida civil” contraída por esta no valor de € 859,408,00. O título executivo é um “documento particular” datado de 8.1.2010, denominado “Confissão de dívida/Declaração”, no qual, alegadamente, a referida Maria ..., na qualidade de sócia-gerente da 1ª A, declara que é devedora ao R. MS “da quantia de 850.000€ (oitocentos e cinquenta mil euros), e que se reporta a quantias que lhe foram por este mutuadas entre os anos de 2006 e 2009”. Nesse documento está escrito, além do mais, que “A aqui declarante compromete-se a pagar a quantia aqui confessada até ao final do mês de Fevereiro de 2010” e que “O presente documento anula todas as confissões de dívida anteriores que nesta data são destruídas, não tendo o credor outro crédito sobre a sociedade que não seja o aqui titulado”. Em 21.6.2010, foi dirigida à 1ª A, endereçada para a sede desta, uma carta registada com aviso de recepção para citação por via postal, que foi recepcionada em 22.6.2010, não tendo a citada deduzido oposição nem constituído mandatário. E, no prosseguimento da execução, vieram a ser penhorados os dois prédios urbanos da 1ª A. acima identificados, tendo essa penhora (que abrange os dois prédios) sido registada a favor dos RR. na Conservatória do Registo Predial de Valença pela Ap...de 2010/07/20 (Q);
11. A 1ª A. não possuía, nem possui, outros valores relevantes no seu “Activo”, além dos citados dois prédios urbanos penhorados (R),
12. As últimas contas que a 1ª A. depositou na Conservatória do Registo Comercial foram as do ano de 2007 (S);
13. O documento denominado “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em 10 não teve por base qualquer transferência pecuniária do R. para a 1ª A, não tendo esta recebido e não tendo aquele entregue a quantia de € 850.000,00 (2);
14. O documento a que se alude em 10 foi elaborado após prévia combinação entre o R. e a Maria..., na qualidade de legal representante da 1ª A, com intenção de enganar terceiros (3);
15. Desde o ano de 2006 a 1ª A. não se dedica a qualquer actividade, não auferindo proveitos ou rendimentos, não tendo pessoal nem clientela. O resultado líquido do exercício de 2006 foi negativo (€ 730,78), fruto essencialmente da não existência de proveitos, e o resultado líquido do exercício de 2007 também o foi (€ 984,00), dada a inexistência de proveitos (5 a 8);
16. Em consequência dos comportamentos do R, o 2º A. “perdeu tempo” e efectuou deslocações (10).
B) O DIREITO
Da impugnação da matéria de facto.
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que os recorrentes cumpriram formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC, já que:
- indicaram os concretos pontos da materialidade fáctica que consideram incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada e não provada);
- referiram os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, ou seja, os documentos e depoimentos das testemunhas nos quais o tribunal a quo alicerçou a sua convicção;
- indicaram as passagens da gravação relativamente aos depoimentos prestados nos quais fundam a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, referindo os minutos da gravação, o que permite a este Tribunal ad quem identificar, de forma fácil e segura, os depoimentos visados;
- referiram a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[1].
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Feitas estas breves considerações, vejamos se são justificadas as críticas feitas pelos recorrentes à decisão sobre a matéria de facto, concretamente aos pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados (respostas dadas aos artigos 2º e 3º da base instrutória), os quais têm a ver com o acordo simulatório entre a interveniente e o réu.
Os pontos 13 e 14 têm a seguinte redacção:
- O documento denominado “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em 10 não teve por base qualquer transferência pecuniária do R. para a 1ª A, não tendo esta recebido e não tendo aquele entregue a quantia de € 850.000,00 (13);
- O documento a que se alude em 10 foi elaborado após prévia combinação entre o R. e a Maria ..., na qualidade de legal representante da 1ª A, com intenção de enganar terceiros (14).
Segundo os recorrentes tais pontos deveriam ter a seguinte redacção:
«Ponto 13º – O documento “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em 10 teve por base transferências pecuniárias do R. para a 1ª A, tendo esta recebido, na pessoa da sua legal representante, tendo-lhe aquele entregue a quantia global de € 850.000,00, tal como decorre do referido documento.;
Ponto 14º - O documento a que se alude em 10 não foi elaborado após prévia combinação entre o R. e a Maria ... na qualidade de legal representante da 1ª A, com intuito de enganar terceiros, destinando-se o mesmo a conferir ao Réu um título executivo respeitante ao valor global das quantias entretanto mutuadas.»
Começam por dizer os recorrentes que o Tribunal a quo não podia ter usado prova testemunhal, nem, consequentemente, prova por presunções judiciais, sendo que nenhuma prova foi apresentada da simulação.
Porém, sem razão.
Não sofre a menor dúvida que o autor MM (2º autor) se apresenta como terceiro em relação ao conluio, pois, como resulta dos pontos 7, 8 e 9 do elenco dos factos provados supra, o mesmo deixou de ser sócio e gerente da sociedade autora em 11.11.2005, e só posteriormente, em 15.06.2010, veio a readquirir as quotas daquela sociedade, e em 06.09.2010 foi nomeado seu gerente.
Também a sociedade autora deve ser considerada “terceiro”, à luz do princípio contido no art. 259º do Código Civil.
Na verdade, como se afirma no Acórdão do STJ de 14.2.2008[2]:
«O terceiro a que se refere o art. 240º não é, necessariamente, alguém que seja alheio ao negócio, mas antes alguém que seja alheio ao conluio.
Do art. 259º, nº1, do Código Civil, infere-se que, sendo o negócio feito por intermédio de um representante, a falta de vontade geradora da simulação é, em princípio, a que nele se registar; o representante, e não o representado, é o declarante ou o declaratário a que se refere o art. 240º
O terceiro, no tocante ao negócio simulado e para efeitos de arguição da respectiva nulidade, é aquele que não interveio no acordo simulatório, nem representa por sucessão quem aí participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado (cfr. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. II, 2ª ed., pág. 245 e Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., pág. 481).
Isto quer dizer que, para que se considere que a autora é um terceiro para efeitos de arguição da simulação, não é necessário encontrar razões que reduzam o alcance dos poderes conferidos pela procuração usada pelo réu.
Pode essa procuração abranger o acto que, mesmo assim, não impede que o representado possa reagir contra o conluio que o seu “infiel” representante arquitectou com a colaboração de quem se prestou a ajudá-lo – a 2ª ré (v. Ac. STJ de 27.6.2000, C.J., II-137).»
Também no Acórdão do STJ de 29.05.2007[3] se afirmou:
«Dispõe esse preceito (art. 259º) que, em regra e a não ser que se trate de elementos em que fosse decisiva a vontade do representado, a falta ou vício da vontade, para efeitos de nulidade ou anulabilidade da declaração, deve verificar-se na pessoa do representante.
Tal significa dizer que “o dominus ao conceder os poderes representativos tem em vista que o representante se determine com uma vontade incólume: só se apropria previamente dos efeitos do negócio jurídico que resulte de uma vontade efectiva e livre do seu representante” (Almeida Costa, Bol. 127-155 ) .
Mas, sendo assim, por maioria de razão, há-de entender-se de modo semelhante, como já se decidiu no Acórdão deste Supremo de 5-3-81 (Bol. 305-261) relativamente aos negócios fictícios ou simulados, que o representante, conluiado com outrem, e para o enganar e prejudicar, diga celebrar em seu nome, manifestando uma vontade que efectivamente não tem.
Quando assim procede, embora, formalmente, aparente agir como representante, excede realmente os limites dos poderes que lhe competem, não podendo, por isso, tal negócio, produzir os seus efeitos na esfera jurídica do representado, nos termos do art. 258 do C.C.
Pode assim concluir-se que “terceiro”, no tocante ao negócio simulado e para efeitos do art. 394, nº3, do C.C., é aquele que não interveio no acordo simulatório, nem represente por sucessão quem nele participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado.
Face ao art. 259 do C.C., o representado é terceiro em relação ao negócio jurídico celebrado pelo seu representante, em conluio com a contraparte.
É neste sentido o melhor entendimento da jurisprudência e da doutrina (Ac. S.T.J. de 5-3-81, Bol. 305-261; Ac. S.T.J. de 26-6-00, proferido na revista nº 455/00, da 1ª Secção; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª ed., pág. 245, nota 6; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 481).»
Sendo a sociedade autora representada pela sua sócia gerente, no negócio denominado “Confissão de Dívida/Declaração”, e tendo a mesma sido alheia ao concerto simulatório, que apenas foi pactuado entre a representante e aquele com quem ela contratou, é a autora terceiro por ser alheia ao conluio.
Por isso, nada obsta a que a autora possa valer-se da prova testemunhal e por presunções para demonstrar a simulação do negócio.
Referem também os recorrentes que, de qualquer forma, da prova testemunhal não resulta provada a matéria constante dos pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados, transcrevendo excertos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, deveriam conduzir a dar como não provada tal matéria.
Procedemos à audição dos vários depoimentos gravados e podemos adiantar, desde já, que se afiguram correctas as respostas dadas aos artigos 2º e 3º da base instrutória (pontos 13 e 14 dos factos provados supra).
Ainda antes de dizermos porquê, importa ter presente que a prova testemunhal não pode deixar de ser objecto de uma ponderação crítica e conjugada com os demais elementos de prova, nomeadamente a prova pericial e documental, como sucedeu in casu, como se colhe da motivação da decisão de facto expressa no despacho decisório da matéria de facto de fls. 378 a 381, onde se escreveu o seguinte:
«O Tribunal sedimentou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada da prova produzida em audiência, designadamente no relatório pericial de fls. 131 ss.[4] (com esclarecimentos verbais em audiência por parte do seu autor), a partir do qual se conclui – como, de resto, o fez o próprio perito em sede de esclarecimentos – que a 1ª A. não teve qualquer actividade comercial desde 2006, período a partir do qual não cumpriu sequer as suas obrigações fiscais, realizando a entrega das declarações fiscais sempre em atraso.
Foi ainda considerado o depoimento da testemunha João... (TOC da 1ª A. desde final de 2005) […], o qual explicou que, quando passou a desenvolver a sua actividade para a 1ª A., a interveniente Maria... já tinha adquirido as quotas dessa sociedade. Referiu que a exploração então feita do único património da 1ª A. – constituído pelos imóveis identificados no ponto C dos Factos Assentes – era muito pouco rentável e, por isso, essa exploração cessou ao fim de pouco tempo (cerca de 5 ou 6 meses) depois de a interveniente ter comprado as quotas; desde então a sociedade deixou de desenvolver actividade comercial. Tendo em conta as funções exercidas pela testemunha e os seus conhecimentos técnicos e conhecendo perfeitamente os elementos contabilísticos da 1ª A, explicou que dos movimentos registados é patente que nunca entrou nas contas da sociedade qualquer quantia, muito menos da ordem da grandeza de € 850.000,00 ou equivalente, sendo certo que a 1ª A. nem sequer era titular de conta bancária.»
Subscrevemos na íntegra estas considerações, considerando que são elementos decisivos nas respostas aos artigos 2º e 3º da base instrutória (pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados da sentença), o depoimento da referida testemunha conjugado com o relatório pericial de fls. 231.
Na verdade, quem melhor do que o TOC da sociedade autora para esclarecer se deram entrada na mesma valores monetários, ainda por cima da ordem de grandeza de € 850.000,00 em numerário?
Como também se escreveu na motivação do despacho decisório da matéria de facto, «(…), conjugando o sentido deste depoimento (i) com a circunstância de o R. alegar que as entregas que fez em cumprimento do contrato de mútuo celebrado com a 1ª A. (num total de € 850.000,00!) foram sempre realizadas em dinheiro, (ii) com a circunstância de o R. alegar que o documento denominado “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em Q visou substituir dezenas de documentos parcelares (“confissões de dívida”) que a 1ª A. (então representada pela interveniente Maria ...) lhe foi entregando entre os anos de 2006 e 2009 como prova do recebimento de “tranches” não superiores a € 25.000,00 mas nenhum desses documentos parcelares aparecer nos autos, (iii) com a circunstância de o R. justificar a substituição dessas dezenas de documentos parcelares (“confissões de dívida”) pelo documento denominado “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em Q pelo facto de aqueles não terem data de vencimento, quando isso em nada contenderia com a exequibilidade desses títulos (art. 46º/1/c do ACP/1961), e (iv) com a circunstância de não estar minimamente justificada a razão que levaria o R. a emprestar € 850.000,00 sem, pelo menos, ter convencionado o pagamento de juros (compensatórios / remuneratórios), e articulando tudo isso com as regras da experiência e o acontecer normal das coisas, tem de concluir-se, com base num juízo de probabilidade ou verosimilhança, que, de facto, o R. não entregou a quantia declarada na “Confissão de Dívida/Declaração” a que se alude em Q – mesmo “dando de barato” que tinha capacidade para dispor dessa elevadíssima quantia para emprestar a terceiros, o que só por si é muito duvidoso (os elementos documentais juntos na última sessão de julgamento seguramente não o comprovam), não correspondendo à verdade, serviu apenas para enganar terceiros.»
Com efeito, os documentos juntos pelos recorrentes na última sessão de julgamento (cfr. fls. 328 e ss.), além de impugnados (sem contraprova), não demonstram nem que o réu fosse um “prestamista particular” com capacidade para “emprestar” € 850.000,00, nem muito menos que os recursos financeiros dos réus/recorrentes, como estes dizem, se encontravam em França.
Por outro lado, mostra-se totalmente correcto o recurso complementar à presunção judicial para concluir que o réu não entregou à autora a quantia de € 850.000,00 mencionada na “Confissão de Dívida/Declaração”.
Com efeito, as presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art. 349º do Código Civil), não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”[5] , ou “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “ prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade[6].
Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.
No caso dos autos, dados os elementos factuais constantes do processo e a circunstância de não estar minimamente justificada a razão que levaria o réu na sua actividade de “prestamista particular” a emprestar € 850.000,00 sem, pelo menos, ter convencionado o pagamento de juros, temos como seguro que o Mm.º Juiz a quo não violou regras da experiência ao considerar que, em complemento ao depoimento da testemunha João..., o réu não entregou a quantia declarada na “Confissão de Dívida/Declaração” dos autos, tendo aquela declaração servido apenas para enganar terceiros.
A isto não obsta o facto de no Balancete Geral de 2007 da sociedade autora, junto com o relatório pericial a fls. 241, existir um movimento a débito de € 565.658,40 correspondente a “produtos e trabalhos em curso” e que, segundo os recorrentes, demonstra que foi com o dinheiro emprestado pelo réu marido que a autora sociedade procedeu a obras, as quais terão ascendido a esse montante, e que terá adquirido diversas obras de arte e outros equipamentos.
Além dessa alegação não corresponder à verdade, uma vez que a referida verba já se encontrava inscrita na contabilidade antes da interveniente Maria ... ter adquirido as quotas ao 2º autor em 11.11.2005, como se colhe do Balanço de 2005 a fls. 85 dos autos, este “novo” argumento agora invocado pelos réus soçobra perante o facto dado como provado que a exploração da actividade da sociedade autora cessou ao fim de pouco tempo (cerca de 5 ou 6 meses depois de a interveniente ter adquirido as quotas), pelo que, estando a mesma inactiva, não tinha que realizar obras, nem muito menos adquirir obras de arte e outros equipamentos, entre 2006 e 2009, num valor de € 850.000,00.
Assim, sem se escamotear que os depoimentos das testemunhas arroladas pelos recorrentes no que respeita à alegada entrega de quantias em dinheiro (as quais disseram que chegaram a presenciar uma ou duas entregas, não mais do que isso), infirma a versão dos factos dada pela testemunha João..., tal não significa que aqueles depoimentos devam sobrepor-se ao depoimento desta última, pois como é sabido, uma coisa é aquilo que as testemunhas dizem e outra, muito diferente é o valor daquilo que dizem. Os depoimentos das testemunhas pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, e tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão, às máximas da experiência e aos conhecimentos científicos.
Resulta assim do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou o Mm.º Juiz a quo na decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se nos exactos termos as respostas dadas aos artigos 2º e 3º da base instrutória, transpostas para os pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados da sentença.

Do mérito da sentença
A pretensão da recorrente de ver revogada a sentença radicava, essencialmente, na alteração da matéria de facto - mais concretamente na alteração dos pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados - pretensão que esta Relação não acolheu, pelo que permanecem inalterados os fundamentos que determinaram a parcial procedência da acção, nada havendo a acrescentar à fundamentação jurídica da sentença onde se fez correctamente a subsunção dos factos provados ao direito aplicável.

Sumário:
I - No que se refere ao negócio simulado e para efeitos do art. 394º, nº 3, do Código Civil, é terceiro todo aquele que não interveio no acordo simulatório, nem represente por sucessão quem nele participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado.
II - Atento o regime do art. 259º do Código Civil, o representado é terceiro em relação ao negócio jurídico celebrado pelo seu representante, em conluio com a contraparte.
III - Por isso, nada obsta a que a autora (representada) possa valer-se da prova testemunhal e por presunções para demonstrar a simulação do negócio.
IV - As presunções judiciais não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência” , ou “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “ prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade.
V - Os depoimentos das testemunhas pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, e tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão, às máximas da experiência e aos conhecimentos científicos.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Guimarães, 15 de Janeiro de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
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[1] A jurisprudência evoluiu no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 24.09.2013 (Azevedo Ramos), proc. 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt).
[2] Proc. 08B180 (relator Oliveira Rocha), que como os demais acórdãos que vierem a ser citados sem indicação diferente estão disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Proc. 07A1334 (relator Azevedo Ramos). No mesmo sentido, o Ac. STJ de 12.09.2013 (relator Fonseca Ramos).
[4] Existe aqui um manifesto lapso, pois o relatório encontra-se a fls. 231 e ss..
[5] Vaz Serra, in RLJ, ano 108, p. 352
[6] Antunes Varela, RLJ, ano 123, p. 58, nota 2.