Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1739/12.3TBFAF.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECUSA ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O juiz não pode oficiosamente conhecer da recusa antecipada da exoneração nos casos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 243º do CIRE, só o podendo fazer a requerimento das entidades referidas naquele nº 1.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
C… veio apresentar-se à insolvência e pediu a exoneração do passivo restante.
Em 08.11.2012, foi proferida sentença a declarar a insolvência do requerente/devedor (cfr. fls. 72 a 76) e, em 06.03.2013, foi proferida decisão a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, determinando-se a cessão do seu rendimento disponível, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ao fiduciário com exclusão do mencionado no art. 239º, nº 3, do CIRE (cfr. fls. 188 a 193).
Posteriormente, em 08.04.2014, a fls. 316/318, o Mm.º Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«F. 269 e ss.:
Foi definido o rendimento disponível a entregar ao fiduciário por despacho, a 2-7-2013, nos seguintes termos:
Face às despesas apresentadas, considero que o devedor, dos rendimentos totais que auferir mensalmente, deverá entregar ao fiduciário o que excede o salário mínimo nacional. Pelo exposto, deverá o insolvente, todos os meses, enviar o recibo do seu salário ao fiduciário (no caso de trabalhar), entregando ao fiduciário, todos os meses, a quantia que excede o salário mínimo nacional. Por sua vez, o fiduciário, de 6 em 6 meses, deve vir aos autos informar das quantias por si percebidas e documentar as mesmas. Por fim, o insolvente deverá informar os autos da aquisição (ou qualquer outra forma de transmissão a seu favor) de qualquer bem móvel ou imóvel. Mais se alerta o insolvente de que deverá cumprir com o presente despacho sob pena de ser revogada a exoneração e que deverá observar todos os deveres constantes do art. 239.º, do CIRE.
A 9-1-2014, foi notificado o insolvente para dar cumprimento à 2.ª parte daquele despacho.
O mesmo nada disse.
A 6-2-2014, foi notificado o insolvente nos seguintes termos:
Insista pelo solicitado, alertando que a sua omissão implicará a recusa da exoneração nos termos do art. 243.º, n.º 3, do CIRE.
Nessa sequência, respondeu pedindo notificação da fiduciária para o efeito.
Ora, constatou-se que o insolvente, nos meses de Novembro e Setembro auferiu salário superior ao salário mínimo – cfr. f. 294.
O insolvente não entregou qualquer quantia à fiduciária – cfr. f. 284 e 290.
Notificado para se pronunciar sobre isto e para regularizar a situação, nada paga, alegando que por lapso não soube como proceder nos meses em que ultrapassou o salário mínimo. No entanto, não tem como pagar aquela quantia, pedindo agora que se fixe em 700 euros a quantia relativa ao rendimento indisponível.
Isto é, o insolvente confessa que não cumpriu com o anterior despacho, do qual não recorreu, e vem agora pedir que o mesmo seja alterado. Isto porque, note-se, foi notificado pelo tribunal para dar cumprimento ao anterior despacho e constatou-se a notória violação do anteriormente ordenado.
Como é sabido, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores – art. 239.º, n.º 4, do CIRE.
Face à conduta do insolvente, a qual é displicente, torna-se claro que o mesmo não cumpriu com uma das suas principais obrigações. E tal foi verificado porque o tribunal actuou e não por uma confissão espontânea e voluntária do insolvente.
Ora, a exoneração do passivo restante implica deveres que devem ser observados, sob pena do seu incumprimento reiterado, injustificado, culposo e grave, como é o do insolvente, acarretar a recusa da exoneração, pois nos termos do art. 243.º, n.º 3, do CIRE, a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações. E é o que decorre dos autos. Mais, ao insolvente foi dada oportunidade para suprir aquela falha e nada fez, requerendo agora um novo rendimento indisponível.
Pelo exposto, recuso a exoneração ao insolvente.
Notifique.»
Inconformado com tal decisão, apelou o devedor/insolvente, pugnando pela sua revogação, tendo formulado na sua alegação de recurso as conclusões que a seguir se transcrevem:
«a) A decisão tomada, de que ora se recorre, não pode merecer como não merece a concordância do Insolvente, ora recorrente, uma vez que se afasta claramente do cumprimento da Lei e da realização da Justiça, como infra passaremos a demonstrar.
b) Na verdade a fls. dos autos, o Meritíssimo Juiz “a quo” decidiu que: “Face às despesas apresentadas, considero que o devedor, dos rendimentos totais que auferir mensalmente, deverá entregar ao fiduciário o que excede o salário mínimo nacional. Pelo exposto, deverá o insolvente, todos os meses, enviar o recibo do seu salário ao fiduciário (no caso de trabalhar), entregando ao fiduciário, todos os meses, a quantia que excede o salário mínimo nacional. Por sua vez, o fiduciário, de 6 em 6 meses, deve vir aos autos informar das quantias por recebidas e documentar as mesmas. Por fim, o insolvente deverá informar os autos da aquisição (ou qualquer outra forma de transmissão a seu favor) de qualquer bem móvel ou imóvel.
Mais se alerta o insolvente de que deverá cumprir com o presente despacho sob pena de ser revogada a exoneração e que deverá observar todos os deveres constantes do art. 239.º, do CIRE.”
c) Ora, notificado o insolvente para dar cumprimento à 2.ª parte daquele despacho, este prontamente diligenciou no sentido de informar a Sra. Administradora da Insolvência dos montantes por si mensalmente auferidos, juntando prova documental para o efeito.
d) Mais, novamente notificado o aqui insolvente a 06-02-2014, para os mesmos efeitos, solicitou ao Tribunal para que se procedesse à notificação da fiduciária, para que esta viesse de facto confirmar que o aqui Insolvente tem cumprido com s suas obrigações, designadamente informando-a de todos os montantes auferidos por si mensalmente.
e) Acontece que, esta veio informar o Tribunal que o Insolvente nos meses de Novembro e Setembro de 2013, auferiu salário que excedeu um pouco o salário mínimo nacional, e que não procedeu ainda à entrega do respectivo excedente.
f) Ora, de facto, foi exactamente isso que aconteceu, mas apenas e só porque o Insolvente não soube como proceder à sua entrega, designadamente se tinha de o fazer por cheque, ou por transferência bancária e se sim para que número de conta.
g) Além do mais, o facto de o Insolvente residir em comarca diferente da comarca onde a Sra. Administradora tem escritório, também não o ajudou, acabando este por ir adiando a resolução deste problema.
h) Com efeito, notificado para se pronunciar acerca da não entrega do aludido excedente, o aqui Insolvente optou por requereu ao Tribunal a alteração do valor do rendimento indisponível, passando do equivalente ao salário mínimo para a quantia de 700,00 euros.
i) Para tanto alegou que vivia em condições económicas muito difíceis e que apenas ele auferia algum rendimento num agregado composto por 4 pessoas, onde se incluem a sua esposa, à data também insolvente e os seus dois filhos menores.
j) Ora, esta atitude do Insolvente, foi entendida pelo tribunal “ a quo” como uma confissão e como uma violação do anteriormente ordenado.
k) Com o devido respeito, que é muito, somos do entendimento de que esteve mal o Tribunal ao retirar tais conclusões.
l) Somos do entendimento de que, e ao contrário do que considerou o Meritíssimo Juiz “ a quo”, a conduta do insolvente, não foi displicente e não é suficiente para por si só consubstanciar qualquer tipo de incumprimento.
m) De acordo com a Lei, só um incumprimento reiterado, injustificado, culposo e grave, é que pode e deve acarretar a recusa da exoneração do passivo restante.
n) Nos termos e para os efeitos no disposto no art. 243.º, n.º 3, do CIRE, a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações.
o) Ora, o aqui Insolvente não só invocou um motivo razoável, como ainda alegou razões bastantes para que se alterasse o valor do rendimento indisponível.
p) Assim sendo, a sua conduta não pode ser considerada culposa, nem sequer grave o suficiente para lhe ser recusada a exoneração.
q) Entendemos que, caso o Tribunal “ a quo” decidisse indeferir a alteração do valor do rendimento indisponível, devia quando muito, primeiro notificar o Insolvente desse indeferimento e consequentemente conceder-lhe um prazo para entregar o excedente do salário mínimo nacional, dos aludidos dois meses, e aí sim, advertindo-o que caso não o fizesse, tal implicaria necessariamente e sem outro aviso, a recusa da exoneração.
r) Com efeito, “ In casu” tal não aconteceu, pois, o Tribunal “ a quo” decidiu, sem mais, pela recusa da exoneração ao Insolvente.
s) Assim, não foi dada a derradeira oportunidade ao Insolvente, para, sabendo da decisão de indeferimento do referido requerimento, ai sim, pudesse proceder à regularização da sua situação.
t) Contudo, e sem prescindir, de acordo com o disposto no art.243, nº 1 do CIRE, o Juiz só deve recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum dos credores da Insolvência, do administrador da Insolvência ou do fiduciário, o que “In casu” também não aconteceu.
u) Pois, como se referiu supra, a Sra. Administradora da Insolvência apenas informou o Tribunal de que o Insolvente não entregou o excedente do salário mínimo nacional em dois meses, designadamente nos meses de Setembro e Novembro de 2013, não tendo requerido o que quer que fosse.
v) Como se não bastasse, notificados todos os credores acerca da possibilidade de se vir a recusar a exoneração ao insolvente, aqueles também não se pronunciaram.
w) Pelo que, não houve quer da parte dos credores, quer da parte da Sra. Administradora da Insolvência qualquer requerimento nesse sentido.
x) Assim, salvo o devido respeito, que é muito, ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz a quo” violou claramente a Lei e designadamente violou o disposto nos artigos 243º e seguintes do CIRE.
Não se mostra ter sido apresentada qualquer contra-alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se, segundo uma ordem de precedência lógica, em saber:
- se o juiz podia recusar oficiosamente a exoneração;
- em caso afirmativo, se se verificam os pressupostos legais da dita recusa.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Os factos com relevância para a análise e decisão do presente recurso são os que decorrem do que acima ficou enunciado no relatório.

B) O DIREITO
Resulta do disposto no artº 235º do CIRE[1] que pode ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Tal exoneração deve ser pedida pelo insolvente (art.º 236.º).
A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe, para além dos demais requisitos elencados no art.º 237.º que não exista motivo de indeferimento liminar do pedido, por força das circunstâncias referidas no art.º 238.º.
No caso concreto foi decidido que tais circunstâncias à data da decisão não se verificavam pelo que se deferiu liminarmente o pedido de exoneração, e determinou-se que durante os cinco anos subsequentes, ao encerramento do processo, (período de cessão) o rendimento disponível que o devedor viesse a auferir, se consideraria cedido ao fiduciário nomeado, com exclusão do mencionado no art. 239º, nº 3.
Durante o período da cessão o devedor tem o ónus de cumprir os deveres determinados nas várias alíneas do nº 4 do mesmo artigo:
«a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores
A decisão final da concessão ou não da exoneração, por regra, é decidida nos dez dias subsequentes ao termo do período de cessão.
Mas, pode ocorrer recusa antecipada do procedimento de exoneração, ou seja, antes de decorrido o período de sessão, nas circunstâncias referidas no art.º 243º.
As causas que fundamentam a cessão antecipada do procedimento, por dever ser recusada a exoneração, vêm estatuídas nas três alíneas do nº 1.
A alínea a) refere-se a comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvem violação dolosa ou com grave negligência das obrigações que lhe são impostas pelas alíneas do nº 4 do art. 239º, contanto que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência.
Sucede, porém, que «a cessão antecipada do procedimento de exoneração, por esta dever ser recusada, depende de requerimento dirigido ao juiz por quem para tanto tenha legitimidade. Segundo o nº 1 do presente artigo, ela cabe a qualquer credor da insolvência e, também, verificadas certas circunstâncias, ao administrador da insolvência e ao fiduciário»[2].
Lida a decisão recorrida de recusa antecipada de exoneração, resulta que a mesma se fundou na violação do dever a que alude o art.º 239º, nº 4, al. c).
Assim sendo e como decorre claramente da letra do nº 1 do art.º 243º, al. a), o juiz só poderia recusar a exoneração antecipadamente, na sequência de decisão sobre requerimento fundado nesse sentido por credor da insolvência, ou pelo administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou ainda pelo fiduciário, caso este tivesse sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor.
Se o legislador quisesse que o juiz conhecesse oficiosamente da recusa antecipada nos casos do nº 1 do preceito, tê-lo-ia dito, como fez nos casos abrangidos no nº 4 do art. 243º, que aqui não estão em causa.
O conhecimento da recusa sem o impulso processual de tais entidades constitui uma nulidade processual nos termos do disposto no art. 195º do NCPC, por prática de acto que a lei não permite, sendo certo que, a mesma, por estar acobertada pela decisão apelada, pode ser invocada por via de recurso[3].

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC)
O juiz não pode oficiosamente conhecer da recusa antecipada da exoneração nos casos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 243º do CIRE, só o podendo fazer a requerimento das entidades referidas naquele nº 1.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente, anula-se a decisão recorrida e os actos subsequentes que dela dependam.
Sem custas.
*
Guimarães, 10 de Julho de 2014
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
____________________________________
[1] Diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem.
[2] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris, Lisboa – 2009, p. 797.
[3] Assim, o recente AC. da RG de 03.04.2014 (Isabel Rocha), proc. 1062/12.3TBFAF.G1, in www.dgsi.pt.