Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
969/18.9T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DEVER DE INFORMAÇÃO
MEDIADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I – O Dec.Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que regula o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, consagra desde logo em relação à seguradora o dever geral de esclarecer e informar o tomador do seguro ou segurado sobre o âmbito do risco que se propõe cobrir e sobre as exclusões e limitações de cobertura.
Isto, independentemente do dever especial de esclarecimento previsto no apontado artº 22º.

II - Havendo incumprimento desse dever geral, a seguradora incorre em responsabilidade civil nos termos gerais - artº 23º, nº 1 - mesmo que para o efeito recorra a um representante, como seja a mediadora.

III – O artº 31º, nº1, prescreve a eficácia entrepartes das comunicações, da prestação de informações e da entrega de documentos por intermédio de mediador que actue em nome e com poderes de representação do tomador do seguro ou do segurador.

IV - E no seu nº2 consigna-se que, quando o mediador de seguros actue em nome e com poderes de representação do segurador, os mesmos actos realizados pelo tomador do seguro, ou a ele dirigidos pelo mediador, produzem efeitos relativamente ao segurador como se fossem por si ou perante si directamente realizados.

V - Podendo a autora obter o reembolso da quantia liquidada a título de IVA, o desembolso da mesma não representa qualquer dano para a mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Recorrente: (…), Ld.ª (autora);
Recorrida: (…) S.A. (ré);

Na presente acção declarativa sob a forma de processo comum que a autora intentou contra a ré, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 54.394,99, ao abrigo da cobertura furto/roubo do contrato de seguro celebrado através da apólice nº 20418952800000 Ramo 2035 X PMEs ou, supletivamente, a pagar-lhe a quantia de € 54.394,99 pelos danos causados com o incumprimento do dever especial de informação a que estava obrigada aquando da celebração do contrato, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Causa de pedir:

Alega, em síntese, ter celebrado com a Ré um contrato de seguro por via do qual ficaram cobertos os riscos de furto de mercadorias existentes no seu estabelecimento comercial, fixando um limite máximo de indemnização no valor de € 300.000, sendo apurados capitais de € 200.000 para mobiliário e equipamento e € 100.000 de mercadorias, com franquia de 10%, sendo que, no dia 3 de Abril de 2017, verificou que foram furtados do interior do seu estabelecimento 490 pares de botas, 250 pares de sapatos de cor cinza, 770 pares de sapatos de cor castanha, todos da marca Le Coq Sportif e diversos pacotes de peles, que eram matérias primas e produtos acabados da sua cliente Y – …, tendo ; logo que tomou conhecimento do furto, tendo participado o mesmo à Ré, a qual avaliou as mercadorias em causa no valor de € 61.982,30; no entanto, o valor que lhe foi debitado pela cliente ascende a € 88.216,65, que corresponde ao valor de mercado das mercadorias, e a Ré apenas se disponibilizou a assumir o risco até ao valor de € 25.000 alegando que as mercadorias pertencentes a terceiros estão excluídas da cobertura furto/roubo, incluindo-se na cobertura “danos em bens de terceiro” que têm aquele limite, com o qual não concorda.
Mais alegou que das informações prestadas pela Ré aquando da celebração do contrato nada foi informado relativamente a tal exclusão.
A Ré contestou, contrapondo, em súmula, que, na feitura do contrato, a segurada não deu conhecimento à ré seguradora de que desenvolvia a sua actividade quase exclusivamente com matéria prima de terceiros, caso contrário teriam sido outras as condições do objecto de seguro contratado e que, após a averiguação, indemnizou os bens furtados até ao limite máximo do capital contratado de € 25.000 e que da cobertura furto/roubo estão excluídos os bens que não sejam propriedade de segurado, excepto quando garantidos ao abrigo de uma cobertura própria.
Houve réplica e resposta a esta.

Procedeu-se a julgamento e de seguida foi proferida sentença em que se julgou a acção totalmente improcedente e se absolveu a Ré seguradora do pedido.
*****
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a autora, em cuja alegação formulou, em síntese, as seguintes conclusões:

I - Nos termos do art.º 22.º n.º 1 al. b) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, no âmbito do dever especial de esclarecimento, cabe ao segurador não só responder a todos os pedidos de esclarecimento efectuados pelo tomador do seguro, como chamar a atenção deste para o âmbito da cobertura proposta, nomeadamente exclusões.
II - Nos termos do art.º 23.º n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro o incumprimento dos deveres de informação e de esclarecimento previstos no regime jurídico do contrato de seguro faz incorrer o segurador em responsabilidade civil, nos termos gerais.
III – Conforme decidiu este Tribunal da Relação: “A obrigação de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais insertas em contrato de seguro é da seguradora, mesmo que para o efeito recorra a um representante, in casu o mediador ligado”;

De igual modo,

IV - No Tribunal da Relação do Porto, foi decidido que: “A (eventual) intermediação do mediador, em nome e por conta da seguradora, no uso dos poderes que lhe são conferidos, faz repercutir sobre esta todos os efeitos jurídicos decorrentes do contrato, assim também as consequências que resultem da omissão do cumprimento pelo mediador de deveres de comunicação e de informação.
V – Provado que o agente de seguro, na pessoa de J. C., não esclareceu a Recorrente sobre a exclusão na cobertura de furto/roubos das matérias-primas de terceiros, repercutindo-se sobre a Recorrida as consequências que resultem da omissão do cumprimento pelo mediador de deveres de comunicação e de informação.
VI - Está a Ré obrigada a indemnizar a Autora, ao abrigo do 486.º do Código Civil, por incumprimento do dever de informação a que, legalmente, estava obrigada na fase de formação do contrato de seguro.
VII - Verificado o incumprimento da Recorrida do especial dever de esclarecimento a que estava legalmente obrigada, ao abrigo do 486.º do Código Civil, está a Recorrida obrigada a reparar os danos causados à Recorrente pela violação do referido dever de informação, nomeadamente os danos resultantes da exclusão na cobertura furto / roubo do citado contrato de seguro das mercadorias que, estando no interior do estabelecimento comercial da Autora, não eram sua propriedade.
VIII - Considerando o facto provado no número 11 da Relação de bens que à Recorrente lhe foi debitada a quantia de € 88 216,65 euros, pela perda do produto acabado descrito em 8) a) a c) da relação dos factos provados e € 32.343,85 pela perda das matérias-primas identificadas em 8) d) da relação dos factos provados, acrescidos de IVA à taxa de 23% nos montantes de € 9.056,71 e € 7.439,09, respectivamente;
IX - Considerando que a Recorrente apenas foi ressarcida pela Recorrente da quantia de 25 000,00 euros, o que se deve apenas e tão só à não informação da exclusão, uma vez que se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) da relação dos factos provados a Recorrente teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro”, veja-se número 20 da relação de factos provados, [resposta ao artigo 29º da petição inicial].
X - Está a Recorrida obrigada a reparar a Recorrente dos danos que lhe causou, que se quantificam em 54 394,99 euros, por corresponderem à diferença entre o valor recebido (25 000,00 euros) e o valor que deveria a Recorrente receber caso lhe tivesse sido prestadas a informação devida e, como é obvio, contratualizado um contrato adequado aos riscos a que está exposta.
XI - Não tendo o Tribunal a quo assim decidido, deverá a Sentença ser revogada e, reapreciada a prova produzida, substituída por Acórdão que julgue procedente o presente recurso e:

- Condene a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de 54 394,99 euros pelos danos causados com o incumprimento do dever especial de informação a que estava obrigada aquando da celebração do contrato de seguro outorgado através da subscrição da apólice n.º 20418952800000 Ramo 2035 X MR PMEs;
- Condene a Recorrente no pagamento de juros legais, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
- Condene a Ré no pagamento de todas as custas de demais encargos com o processo, nos termos em que forem de lei.

Pede que se revogue a sentença e se julgue a acção totalmente procedente.

A ré apresentou contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC).

A questão suscitada pela recorrente autora restringe-se à não comunicação e informação de cláusula de exclusão do contrato de seguro celebrado com a ré e os efeitos jurídicos de tal omissão.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

1. A Autora tem por objecto o fabrico de calçado [resposta aos artigos 1º da petição inicial, 21º da contestação e documento de fls. 32 vº e 33].
2. A Autora desenvolve a sua atividade quase exclusivamente através de confecção a feitio, isto é, recebe nas suas instalações as matérias-primas dos clientes, transforma-as com incorporação de mão-de-obra, linhas e colas, devolvendo o produto acabado [resposta ao artigo 2º da petição inicial].
3. Devido à atividade descrita em 2), mais de 90% das mercadorias que se encontram nas instalações da Autora – matérias-primas, produto acabado, desperdícios de produção – pertencem aos seus clientes [resposta ao artigo 3º da petição inicial].
4. Por escrito titulado pela apólice nº 204189528/00000 Ramo 2035 X MR PME, Autora e Ré acordaram na transferência para a segunda, desde as 17h34 do dia 3 de Março de 2017 até às 24h00 de 28 de Fevereiro de 2018, mas automaticamente renovável a partir de 1 de Março de 2018, o risco, entre outros, por furto/roubo e danos em bens de terceiro, ocorridos no edifício sito na Rua …, Vizela, mediante o pagamento de contrapartida [resposta aos artigos 4º, 21º da petição inicial e documento de fls. 12 vº e 13].
5. Previram o limite máximo de € 200.000 para mobiliário e equipamentos e € 100.000 para mercadorias, para a cobertura furto/roubo e € 25.000 para a cobertura danos em bens de terceiro, ambas com a franquia de 10% e no mínimo de € 75 [resposta aos artigos 5º, 6º, 16º, 25º, 26º da petição inicial, da 32º contestação e documento de fls. 12 vº e 13].
6. A Autora identificou a sua atividade perante a Ré como “calçado e artigos em pele – fabrico couro e artigos em couro” [resposta ao artigo 13º da contestação].
7. O contexto identificado em 2) e 3) não foi transmitido à Ré no momento da subscrição da primeira anuidade nem nas posteriores renovações [resposta aos artigos 14º a 16º da contestação].
8. Em momento não concretamente apurado ocorrido entre os dias 31 de Março e 3 de Abril de 2017, um ou vários indivíduos, cuja identidade não foi possível apurar, entraram nas instalações da Autora, identificadas em 4), após estroncarem o portão de cargas e descargas, levando consigo as seguintes mercadorias:

a) 490 pares de botas da marca Le Coq Sportif;
b) 250 pares de sapatos cinza da marca Le Coq Sportif;
c) 770 pares de sapatos castanhos da marca Le Coq Sportif;
d) 37 pacotes de peles diversas [resposta ao artigo 10º da petição inicial].
9. Os bens identificados em 8) d) eram matéria e prima e os identificados em 8) a) a c) eram produto acabado da cliente da Autora Y, Calçado, Ld.ª com sede na Rua …, Felgueiras [resposta ao artigo 11º da petição inicial].
10. Logo que tomou conhecimento do furto, a Autora fez a sua participação à Ré, ficando registada sob o nº 149383398/760-6655 de 3 de Abril de 2017 [resposta ao artigo 12º da petição inicial].
11. A cliente da Autora identificada em 9) debitou-lhe os valores de € 39.377 pela perda do produto acabado descrito em 8) a) a c) e de € 32.343,85 relativo às matérias-primas identificadas em 8) d), acrescidos de IVA à taxa de 23% nos montantes de € 9.056,71 e € 7.439,09, respectivamente [resposta ao artigo 14º da petição inicial].
12. A Ré avaliou as mercadorias identificadas em 8) em € 61.982,30, corrigindo o valor das matérias-primas identificadas em d) para € 31.294,22 [resposta ao artigo 13º da petição inicial].
13. Em 2015 a Autora celebrou com a Ré o acordo identificado em 4) através do agem-te de seguros V. F. & J. C. Mediação de Seguros, Ld.ª, representado por J. C., que tratava de todos os seguros relacionados com a sua atividade e bens [resposta ao artigo 71º da contestação].
14. A agente de seguros identificada em 13) não trabalhava em exclusivo com a Ré [resposta ao artigo 71º da contestação].
15. No resumo das garantias da apólice identificada em 4) define-se “mercadorias” como “conjunto de matérias-primas, produtos em processo de fabrico e acabados, juntamente com as embalagens e demais artigos publicitários ou de propaganda destinados à sua comercialização, assim como todas as matérias auxiliares, tanto próprias como de terceiros, que sejam necessárias como consequência da atividade segura” [resposta aos artigos 5º, 6º do articulado de exercício do contraditório].
16. Consta da apólice identificada em 4) no capítulo “garantias aplicáveis ao conteúdo (equipamentos, mobiliário e mercadorias)” da cobertura “furto ou roubo” que por “ficam garantidas as perdas ou danos causados aos conteúdos ou mercadorias seguras, conforme o caso, em consequência de furto ou roubo (tentado, frustrado ou consumado), praticado no interior do local ou locais de risco identificados nas condições particulares que deverá caracterizar-se por alguma das circunstâncias a seguir mencionadas:

a) praticado com arrombamento, escalamento ou chave falsa;
b) praticado com violência contra as pessoas que trabalhem ou se encontrem no local de risco, com perigo iminente para a sua integridade física ou para a sua vida, ou pondo-as, por qualquer maneira, na impossibilidade de resistir;
c) cometido sem arrombamento nem escalamento ou chave falsa, quando o segurado provar que o autor ou autores do furto se introduziram furtivamente no local ou nele se esconderam com intenção de furtar [resposta ao artigo 4º do articulado de exercício do contraditório].
17. No capítulo e cobertura referidos em 16) consta “não está coberto pela apólice (…) e) os bens que não sejam propriedade do segurado, excepto quando garantidos ao abrigo de cobertura própria” [resposta ao artigo 15º da petição inicial, 58º da contestação].
18. No capitulo identificado em 16) da cobertura “danos em bens de terceiro” consta “fica garantido o pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, dos danos diretamente sofridos por bens pertencentes a terceiros, que se encontrem confiados ao segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, em consequência directa de sinistro garantido” [resposta ao artigo 50º a 52º da contestação].
19. A agente de seguros, identificada em 13), na pessoa de J. C., não esclareceu a Autora sobre a exclusão referida em 17) e o significado da cobertura referida em 18) [resposta ao artigo 28º da petição inicial].
20. Se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) a Autora teria propôs-to o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta ao artigo 29º da petição inicial].
21. Após a participação a Ré disponibilizou-se a assumir o valor de € 25.000, que pagou, enquadrando-a na cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta aos artigos 15º da petição inicial, 53º da contestação].
22. A Ré tomou conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) após as averiguações realizadas na sequência da participação do furto [resposta ao artigo 23º da contestação].
23. Caso tivesse tomado conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) no momento da análise da proposta de seguro apresentada pela Autora, a Ré teria exigido que a cobertura identificada em 18) fosse de valor correspondente às mercadorias dos clientes daquela e cobraria prémio em função dele [resposta ao artigo 23º da contestação].
24. Para análise do risco a Ré teria solicitado elementos contabilísticos de forma a avaliar os valores que estavam em causa e, eventualmente, recolheria informações junto dos principais clientes da Autora [resposta ao artigo 28º da contestação].
25. Consta da página 3 da apólice identificada em 4) “se identificar alguma incorrecção na apólice, queira por favor informar-nos no prazo máximo de 30 dias” [resposta ao artigo 68º da contestação].
26. Consta da página 10 da apólice identificada em 4) “se ao longo do texto tiver alguma questão sobre a estrutura da apólice ou sobre a definição de algum termo, não hesite em contacta-nos [resposta ao artigo 69º da contestação].
27. A Autora não comunicou à Ré qualquer incorrecção nem formulou qualquer questão [resposta ao artigo 20º da contestação].
***
Não se provaram os factos alegados:

- Nos artigos 7º, 8º, 17º, 18º, 27º da petição inicial;
- Nos artigos 26º da contestação;
- No artigo 3º do articulado apresentado em 27 de Abril de 2018.

A alegação contida nos artigos 22º a 24º, 30º a 34º da petição inicial, 17º a 19º 22º, 29º a 31º, 33º a 49º, 54º, 56º, 57º, 59º a 64º, 66º, 67º, 72º, 74º a 78º da contestação, constitui matéria conclusiva ou de Direito.
A alegação contida nos artigos 9º a 11º, 24º, 55º, 65º, 73º, 79º a 81º da contestação, 2º no articulado apresentado pela Autora em 27 de Abril de 2018 e no articulado apresentado pela Ré em 30 de Abril de 2018 diz respeito ao cumprimento do ónus da impugnação especificada.
A alegação contida nos artigos 1º a 8 da contestação diz respeito à exceção da irregularidade do patrocínio já suprida
Os demais factos alegados apenas foram julgados provados na exacta medida do conteúdo da fundamentação de facto no seu conjunto.
*****
2. Apreciação fáctico/jurídica;

a) Não comunicação e informação de cláusula de exclusão do contrato de seguro celebrado com a ré e os efeitos jurídicos de tal omissão.

A questão recursiva colocada pela apelante autora prende-se com a omissão de comunicação e informação sobre cláusula de exclusão do contrato de seguro por si celebrado relativo ao âmbito da cobertura de furto de bens (mercadorias) que não sejam propriedade do segurado.
Portanto, pertencentes a terceira pessoa.

Vejamos:

Mostra-se assente nos autos que:

«17. No capítulo e cobertura referidos em 16) consta “não está coberto pela apólice (…) e) os bens que não sejam propriedade do segurado, exceto quando garantidos ao abrigo de cobertura própria” [resposta ao artigo 15º da petição inicial, 58º da contestação].
18. No capitulo identificado em 16) da cobertura “danos em bens de terceiro” consta “fica garantido o pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, dos danos diretamente sofridos por bens pertencentes a terceiros, que se encontrem confiados ao segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, em consequência directa de sinistro garantido” [resposta ao artigo 50º a 52º da contestação].
19. A agente de seguros, identificada em 13), na pessoa de J. C., não esclareceu a Autora sobre a exclusão referida em 17) e o significado da cobertura referida em 18) [resposta ao artigo 28º da petição inicial].
20. Se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) a Autora teria propôs-to o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta ao artigo 29º da petição inicial].».

Ao invés do decidido pelo tribunal a quo - que concluiu que o particular dever de esclarecimento impendia não sobre a ré, mas antes sobre a mediadora de seguros, não sendo assável àquela qualquer responsabilidade - contrapõe a autora que o incumprimento de tais deveres de esclarecimento e informação, ainda que por intermediação do mediador, se repercutem na esfera jurídica da seguradora, sendo esta responsável perante a autora segurada pelos danos causados pela violação desses deveres.

Acolhe-se tal argumentação.

O Dec.Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que regula o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, dispõe na Secção II, Informações, Subsecção I, Deveres de informação do segurador, no seu artº 18º, sob a epígrafe “Regime comum” que “

Sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente:

a) Da sua denominação e do seu estatuto legal;
b) Do âmbito do risco que se propõe cobrir;
c) Das exclusões e limitações de cobertura;
(…)” (sublinhado nosso).

Por seu turno, o seu artº 21.º, nº 1, estatui que “As informações referidas nos artigos anteriores devem ser prestadas de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes de o tomador do seguro se vincular”.
E o artº 22º define ainda um dever especial de esclarecimento: “Na medida em que a complexidade da cobertura e o montante do prémio a pagar ou do capital seguro o justifiquem e, bem assim, o meio de contratação o permita, o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o tomador do seguro acerca de que modalidades de seguro, entre as que ofereça, são convenientes para a concreta cobertura pretendida” (nº1).
Já o artº 23º, preceitua que “ O incumprimento dos deveres de informação e de esclarecimento previstos no presente regime faz incorrer o segurador em responsabilidade civil, nos termos gerais” (nº 1).

Em suma, o regime jurídico do contrato de seguro consagra desde logo em relação à seguradora o dever geral de esclarecer e informar o tomador do seguro ou segurado sobre o âmbito do risco que se propõe cobrir e sobre as exclusões e limitações de cobertura.
Isto, independentemente do dever especial de esclarecimento previsto no apontado artº 22º.

Havendo incumprimento desse dever geral, a seguradora incorre em responsabilidade civil nos termos gerais – artº 23º, nº 1.
É o que a autora reclama da ré seguradora.

Argumenta ainda a recorrente autora que a obrigação de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais insertas em contrato de seguro é da seguradora, mesmo que para o efeito recorra a um representante, como seja a mediadora.

Assiste-lhe razão.

Como se decidiu no Acórdão do TRP de 08.03.2018, proc.18664/15.9YIPRT.P, in www.dgsi.pt “A (eventual) intermediação do mediador, em nome e por conta da seguradora, no uso dos poderes que lhe são conferidos, faz repercutir sobre esta todos os efeitos jurídicos decorrentes do contrato, assim também as consequências que resultem da omissão do cumprimento pelo mediador de deveres de comunicação e de informação”.

No mesmo sentido aponta o Acórdão do TRG de 23.02.2010, proc.118/08.1TCGMR.G1, nele se sumariando o seguinte:

“1º- Se o mediador de seguros na preparação de um contrato de seguro multiriscos não informar convenientemente o tomador do seguro sobre o significado e alcance de uma cláusula de exclusão do risco, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 6º e 8º , al. b) do Dl nº 446/85, de 25.10, há que considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro, mantendo-se, no mais a validade do contrato de seguro.
2º- Circunscrevendo-se a intervenção do mediador de seguros à preparação da celebração do contrato de seguro em causa, mediante a apresentação da respectiva proposta à autora, de harmonia com o disposto no art. 4º, nº1 do DL nº 388/91, de 10.10, a intermediação entre o tomador do seguro e a seguradora cessa com a aprovação da proposta de seguro por parte desta.
3º- Neste caso, a falta de cumprimento das obrigações que impendem sobre o mediador, nos termos das alíneas a) e b) do art. 8º do citado DL 388/91 não são oponíveis ao tomador do seguro por dizerem respeito apenas às relações imediatas entre agente mediador/seguradora”.

Com efeito, ressalta dos artºs 28º a 31º, do assinalado Dec.Lei nº 72/2008 (RJCS), que, em matéria de mediação de seguros, a preocupação essencial subjacente ao RJCS baseia-se no estabelecimento da interligação com o enquadramento jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros (Dec.Lei nº 144/2006, de 31 Julho).
Mas mais: clarifica-se a eficácia dos actos quando praticados com a intervenção de mediador, prescrevendo-se a eficácia entrepartes das comunicações, da prestação de informações e da entrega de documentos por intermédio de mediador que actue em nome e com poderes de representação do tomador do seguro ou do segurador (art. 31.º).
E no seu nº2 consigna-se mesmo que, quando o mediador de seguros actue em nome e com poderes de representação do segurador, os mesmos actos realizados pelo tomador do seguro, ou a ele dirigidos pelo mediador, produzem efeitos relativamente ao segurador como se fossem por si ou perante si directamente realizados.

Assim, demonstrado que a agente de seguros, na pessoa de J. C., não esclareceu a recorrente segurada sobre a exclusão na cobertura de furto/roubos das matérias-primas de terceiros nem o significado da cobertura referida em 18) (ponto provado nº 19), repercutem-se sobre a recorrida seguradora as consequências que emergem da omissão do cumprimento pelo mediador desses deveres de comunicação e de informação.
Tanto mais que também se apurou que, caso tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17), a autora teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” – vide ponto de facto provado nº 19.
20. Se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) a Autora teria propôs-to o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta ao artigo 29º da petição inicial].
Ou seja, a ré seguradora está obrigada a indemnizar a autora, ao abrigo do disposto no artº 486.º do Código Civil (CC), por incumprimento do dever de informação a que, legalmente, estava obrigada na fase de formação do contrato de seguro, reparando os danos causados pela violação do referido dever de informação, nomeadamente os danos resultantes da exclusão na cobertura furto / roubo do citado contrato de seguro das mercadorias que, estando no interior do estabelecimento comercial da autora, não eram sua propriedade.
Danos esses que, por via do furto dessas mercadorias de terceira pessoa, emergiram para a autora, cifrando-se a indemnização àquela na quantia de € 39.377,00€, pela perda do produto acabado descrito em 8) a) a c) da relação dos factos provados e € 32.343,85 pela perda das matérias-primas identificadas em 8) d) da relação dos factos provados, a que foi acrescido o IVA à taxa de 23% nos montantes de € 9.056,71 e € 7.439,09, respectivamente – ponto de facto provado nº 11.
Tendo a recorrente sido ressarcida pela recorrida apenas em 25.000,00€ - ponto provado nº 21 - deve esta indemnizar aquela no restante valor de 54 394,99€ [correspondente à diferença entre o valor recebido (25 000,00€) e o valor que deveria a recorrente receber caso lhe tivesse sido prestadas a informação devida e contratualizado um contrato adequado aos riscos a que está exposta], mas deduzida essa quantia (de 54.393,99 dos valores referentes a imposto sobre o valor acrescentado (IVA), como contrapõe a recorrida.
Na verdade, provou-se nos n.ºs 9 e 11 dos factos provados que a proprietária dos bens furtados nas instalações da recorrente - empresa sob a forma de sociedade por quotas - era também ela uma sociedade com a mesma forma jurídica (denominada Y, Calçado, Ld.ª”), pelo que, sendo ambas sujeitos passivos de IVA, como decorre da actividade empresarial exercida entre ambas, o encargo com aquele imposto não é considerado um custo, por ser dedutível.
Este entendimento foi perfilhado no Acórdão do STJ de 12.09.2013, proc. 372/08.9TBBCL.G1.S1, no qual se concluiu que “A não ser que uma empresa demonstre que o não reembolso do IVA se deveu a facto não lhe imputável, nas operações inerentes à atividade empresarial, o IVA nunca é custo para a empresa que o paga e, portanto, dano indemnizável, pois, a final, tem direito à respectiva dedução”.
“Se por qualquer razão a autora não conseguiu que aquela dedução fosse efectuada, então teria que ter alegado e provado a respetiva matéria de facto, para depois se ajuizar se tal não reembolso resultava ou não de culpa da empresa e se decidir em função do disposto no artigo 570º do Código Civil”.

No caso sub judice, nada foi alegado quanto a esta matéria.

Donde se conclui que podendo a autora obter o reembolso da quantia liquidada a título de IVA, o desembolso da mesma não representa qualquer dano para a mesma.
Deste modo, a recorrida apenas está obrigada a pagar à recorrente o montante de € 42.048,77 [(39.377,00+32.343,85-25.000,00) – 10% (valor da franquia)] – o que se decide.

Concluindo, atentas as razões expendidas, merece provimento parcial o recurso interposto.

IV – Decisão;

Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acordam os Juízes da 1ª secção deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, condenando-se a recorrida a pagar à recorrente a quantia de € 42.048,77 (quarenta e dois mil e quarenta e oito euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, absolvendo-se esta do restante pedido.

Custas pela apelante e apelada na proporção do decaimento.
Guimarães, 24/10/2019

António Sobrinho
Ramos Lopes
Jorge Alberto Teixeira