Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
144/20.T9MNC.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
VALORAÇÃO DE PROVA PROIBIDA
SIGILO PROFISSIONAL DE ADVOGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Constitui prova proibida a valoração do depoimento de testemunha sobre factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções profissionais de advogada, sem que tenha obtido validamente a desvinculação do respetivo sigilo profissional.
II – A tal não obsta a circunstância de a testemunha ser simultaneamente sobrinha e amiga da sua constituinte.
III – Está inquinada de nulidade, por omissão de pronúncia, a sentença que considera uma prova proibida sem abordar a questão dessa proibição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 144/20.2T9MNC, do Juízo Local Criminal de Monção, do Tribunal Judicial da comarca e Viana do Castelo, foi submetido a julgamento o arguido V. J., com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida a 19 de novembro de 2021 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Condenar o arguido V. J. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravado (p. e p. pelo art.º 154.-A nº 1 e n.ºs 3 e 4 e 155.º, n.º 1, al. d), conjugado com o art.º 386.º, nº 1, al. d) do Cód. Penal) na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, subordinada à obrigação de pagamento da indemnização cível infra determinada;
Condenar o arguido V. J. na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida durante o período da suspensão a ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância;
Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil e, consequentemente, condenar o arguido/demandado a pagar à demandante/assistente a quantia de €1.000,00 (mil euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados com a sua conduta, absolvendo-o do demais peticionado;
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C. – duas unidades de conta (art. 8.º do Reg. Custas Proc. e tabela iv em anexo);
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DILIGÊNCIAS DA SECÇÃO DE PROCESSOS

- deposite (art. 372º, n.º5 do Código de Processo Penal);
- registe e notifique;
- após trânsito em julgado remeta boletim ao registo criminal (artigos 6º, al. a), da Lei da Identificação Criminal – aprovada pela Lei n.º 37/2015, de 05/05 - e 374º, n.º3, al. d) do Código de Processo Penal);
- apure se há bens a que cumpra dar destino – na positiva abra “conclusão” com essa informação;
- dê cumprimento ao disposto nos arts. 3.º, n.º 1, al. b) e 2.º, al. f) da Lei n.º 67/2017, de 09-08 (Regula a identificação judiciária lofoscópica e fotográfica, adaptando a ordem jurídica interna às Decisões 2008/615/JAI e 2008/616/JAI do Conselho, de 23 de junho de 2008).»
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Inconformados, interpuseram recursos o arguido V. J. e a assistente/demandante civil M. N., apresentando cada um deles a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

A. Recurso do arguido V. J.
1ª - Pela sentença objeto do presente recurso, o Arguido/Recorrente foi condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição agravado (p. e p. pelo art.º 154.-A nº 1 e n.ºs 3 e 4 e 155.º, n.º 1, al. d), conjugado com o art.º 386.º, nº 1, al. d) do Cód. Penal) na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, subordinada à obrigação de pagamento da indemnização cível de € 1 000,00; na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida durante o período da suspensão a ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância; no pagamento á demandada/assistente a quantia de €1.000,00 (mil euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados com a sua conduta.
2ª - Para prova dos factos 6 a 10, o tribunal recorrido assentou a sua convicção, entre outros, no depoimento da testemunha Dra. S. R., sobrinha da ofendida e Advogada de Profissão.
3ª - Resulta do depoimento da aludida testemunha, gravado no período da audiência do dia 11/10/2021, entre as 15:48:37 horas e as 16:13:44 horas, nomeadamente das passagens registadas aos minutos 0058; 03:27 e 19:25 que a mesma foi consultada pela ofendida na qualidade de advogada, tendo, inclusive, acompanhado e assessorado a ofendida aquando da respetiva inquirição no âmbito do processo disciplinar instaurado ao arguido, assim como redigiu requerimentos a pedido da ofendida posteriormente subscritos por este e entregues no Ministérios Público.
4ª - O Tribunal a quo ao admitir e valorar o depoimento da testemunha Dra. S. R. violou os artigos 125.º do C.P.P e 92.º, n.ºs 1 e 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, porquanto aquela deveria ter solicitado e obtido a dispensa do segredo profissional previamente ao seu depoimento, o que não fez. Pelo que encontrando-se ferida de nulidade insanável, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que desvalorize por completo aquele depoimento.
5ª - O ora recorrente foi indevidamente condenado pelo crime de perseguição previsto e punido pelo artigo 154º-A do Cód. Penal, com a pena agravada nos termos do artigo 155°, n.º 1, al. d) do mesmo Código, cujos pressupostos da agravação da pena, in casu, exigem que os factos tenham sido praticados por funcionário com grave abuso da autoridade.
6ª - Pese embora o recorrente fosse agente da GNR aquando da prática dos factos, não resultou provado que tivesse praticado os mesmos no exercício da sobredita profissão e muito menos que tivesse exercitado de forma ilícita os seus poderes de autoridade inerentes ao cargo que exerce e que tivesse violando os deveres a que está legal e estatutariamente sujeito, antes se provou que o recorrente se dirigiu à ofendida para falar de um assunto pessoal relacionado com um processo disciplinar que lhe tinha sido instaurado e no qual a ofendida iria depor como testemunha.
7ª - Não se verificando o pressuposto do agravamento da pena prevista no artigo 155º, nº 1, alínea d) do CP, o recorrente deveria ter sido punido com a pena prevista no artigo 154º-A do CP, qual seja pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
8ª - Considerando os critérios de escolha da pena previstos no artigo 70º, nº 1 do Código Penal deveria o tribunal recorrido ter optado por aplicar ao recorrente uma pena de multa, porquanto a mesma realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
9ª - No que concerne à determinação da medida da pena, deveria o tribunal recorrido ter aplicado os critérios previstos no artigo 47º do Código Penal para a pena de multa que estabelece o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360, sendo que a cada dia de multa deve corresponder uma quantia entre € 5,00 e € 500,00.
10ª - Não sendo a culpa do recorrente muito intensa, nem sendo elevados o desvalor de ação e do resultado mas sim de baixa intensidade, militando a seu favor o facto de se encontrar familiar e socialmente inserido e não ter antecedentes criminais, permitindo-se a conclusão que tal situação terá sido um acto isolado na sua vida, deveria o tribunal recorrido ter aplicado ao recorrente uma pena de multa não superior a 50 dias, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz a quantia total de € 500,00 (quinhentos euros).
11ª - O artigo 154º-A, nº 3 do Código penal prevê a possibilidade de ser aplicada ao arguido pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos. A sobredita previsão legal não impondo ao julgador a obrigatoriedade de aplicar a referida pena acessória, permite-lhe que seja aferida face a cada caso em concreto a necessidade de impor a referida medida de afastamento do arguido da vítima, sendo que apenas deverá ser aplicada nas hipóteses mais graves em que as necessidades de prevenção e proteção da vítima exigem uma tutela penal reforçada.
12ª - Considerando que no caso sub iudice deixou de subsistir a causa que motivava o contato do recorrente com a ofendida, porquanto a ofendida já prestou o seu depoimento no âmbito do processo disciplinar em que o recorrente era arguido, sendo assim desnecessária e desproporcional a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, devendo a mesma ser revogada.
13ª - Tal pena acessória importaria que a respetiva fiscalização prevista no nº 4 do artigo 154-A do CP, atendendo ao aparato tecnológico que seria necessário incorporar na pessoa do recorrente, criaria um estigma insuperável na sua vida profissional e familiar, de todo desnecessário para salvaguarda a proteção a ofendida.
FF) Deverá a sentença objeto de recurso ser substituída por acórdão que aplique ao ora recorrente uma pena de multa não superior a 50 dias, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz a quantia total de € 500,00 (quinhentos euros), revogando a pena acessória de proibição de contato com a vítima.
GG) A Sentença sob recurso violou os artigos 154º-A; 155º; 47º, 70º e 71º do Código Penal, artigo 125.º do Código de Processo Penal e 92.º, n.ºs 1 e 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

TERMOS EM QUE, deve o presente recurso proceder, revogando-se a sentença em crise e substituindo-a por douto acórdão que altere a pena de prisão aplicada ao recorrente por pena de multa não superior a 50 dias, à taxa diária de € 10,00, no total de € 500,00 (quinhentos euros), revogando, ainda, a pena acessória de proibição de contato com a vítima, assim se fazendo JUSTIÇA.
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B. Recurso da assistente/demandante civil M. N.

1. O presente recurso tem como objeto a decisão sobre o pedido de indemnização civil atribuído à Assistente na sentença recorrida;
2. Na sentença recorrida julgamento foi o Arguido condenado no pagamento da quantia de 1.000€ (mil euros) à Assistente, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais;
3. Na sentença recorrida foram dados como provados os Factos 15 a 22;
4. A sentença recorrida refere que “Não existe Factos não provados”;
5. Todos os Factos relacionados com o pedido de indemnização cível (15 a 22) foram dados como provados e, por via disso, o valor atribuído é demasiado baixo;
6. A indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objetivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida;
7. Considerando individualmente cada um dos requisitos para fixação da indemnização de acordo com o critério da equidade, é de ressalvar que se encontram todos devidamente provados em audiência de discussão e julgamento;
8. As consequências que a Recorrente registou na sua vida, em consequência direta dos comportamentos e ações do Recorrido – e que, de resto, a sentença recorrida menciona e dá como provadas, foram muito graves;
9. O Tribunal a quo deu todos os Factos como provados e reconheceu a gravidade do comportamento do Recorrido, mas, ao mesmo tempo, não atribuiu um valor a título de indemnização cível compatível com essa visão e decisão;
10. O que se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pela Recorrente, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão sofrida;
11. A função da indemnização pelo dano não patrimonial, não pode ser meramente simbólica;
12. A quantia atribuída de 833,92€ (oitocentos e trinta e três euros e noventa e dois cêntimos) a título de danos não patrimoniais na sentença recorrida é injusta, insuficiente, irrisória e inaceitável;
13. A Recorrente não pode nem deve conformar-se com o valor atribuído a título de indemnização cível, devendo ser revogada a decisão proferida e fixada uma indemnização nos termos formulados no pedido de indemnização cível dos Autos.

TERMOS EM QUE,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida na parte relativa ao pedido de indemnização cível e, em consequência disso, ser o Arguido/Recorrido condenado ao pagamento de 20.166,08€ (vinte mil cento e sessenta e seis euros e oito cêntimos), acrescida de juros legais, desde a data da notificação e até efetivo e integral pagamento,
Fazendo-se assim a tão necessária JUSTIÇA.
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Ambos os recursos foram admitidos para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer sobre o recurso do arguido, igualmente no sentido do seu não provimento.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
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1. Questões a decidir

A. Recurso do arguido V. J.
A1. Nulidade da sentença por valoração de prova proibida;
A2. Indevida subsunção dos factos provados à previsão agravante do artigo 155.º, nº 1, alínea d), do Código Penal;
A.3. Escolha e concretização da pena principal e desnecessidade da pena acessória.

B. Recurso da assistente/demandante civil
Quantum da indemnização civil.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.

1. O arguido era, à data dos factos, o Comandante do Posto da GNR de Monção;
2. A ofendida é funcionária da Empresa “X”, onde exercia as funções de empregada de limpeza, prestando serviço como tal, há cerca de seis anos, no Posto Territorial da GNR de Monção;
3. Devido à imputação ao arguido de factos passíveis de constituir ilícito de natureza criminal/sexual foi o mesmo alvo do processo disciplinar nº PD 430/20CTVCTL que se encontra a correr os seus termos no Comando Territorial da GNR e que teve origem numa denúncia anónima onde foi anexado um vídeo, que foi visionado pelo Comando, e onde o arguido é visto a importunar sexualmente a ofendida praticando atos de carater exibicionista perante e na presença da mesma;
4. A ofendida foi inquirida como testemunha naquele processo disciplinar no dia 02 de Julho de 2020;
5. O arguido teve conhecimento que a ofendida iria depor como testemunha em data anterior a 02 de Julho, o que motivou a que o mesmo lhe fizesse várias abordagens com o intuito de fazer com que a ofendida não depusesse contra ele, mormente alegando que o vídeo era uma montagem;
6. Assim, no dia 26 de Junho de 2020, cerca das 18h00, altura em que a ofendida havia sofrido um acidente de viação na rotunda do Centro Comercial … PARK, em …, o arguido, aproveitando-se da oportunidade, abordou a ofendida e disse-lhe “que sabia que a mesma ia ser notificada para ser ouvida e perguntou-lhe se falou com alguém sobre o que se passava e que tinha dado cabo da vida dele” mais lhe dizendo “que existia um vídeo e que foi chamado pela seu Chefe e que ia ser transferido para outro posto”;
7. No dia 01 de Julho, por volta das 18h00, o arguido abordou novamente a ofendida na loja “bazar do …” onde também presta serviços de limpeza e dirigindo-se à mesma disse-lhe “que tinha falado com o seu advogado e que ela teria que dizer quando fosse ouvida, que o vídeo era uma montagem e “que se o fizesse teria um amigo para toda a vida”;
8. No dia 04 de Julho de 2020, cerca das 19h30, o arguido dirigiu-se novamente ao local de trabalho da ofendida referido em 7., à procura da mesma, tendo chamado várias vezes pelo seu nome;
9. Uma vez que a colega de trabalho da ofendida se apercebeu da situação e da aflição da mesma disse-lhe para não aparecer e aproveitando uma distração do arguido saíram ambas do local de trabalho e deslocaram-se de imediato ao posto da GNR para denunciarem os factos, tendo sido levantado auto de ocorrência;
10. No dia 05 de Julho de 2020, cerca das 10h00, o arguido dirigiu-se novamente ao referido local de trabalho onde chamou várias vezes pelo nome da ofendida, tendo esta, atemorizada, telefonado à GNR para denunciar os factos tendo sido levantado, mais uma vez, auto de ocorrência;
11. O arguido, com as abordagens efetuadas no local de trabalho da ofendida e demais comportamentos descritos, agiu com o propósito concretizado de provocar inquietação e insegurança à ofendida e assim prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que as suas condutas eram adequadas a causar tal resultado, como pretendia e conseguiu, ficando a ofendida com receio do que o arguido poderia fazer, até por ser uma autoridade local, como Comandante do Posto da GNR de Monção;
12. Agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida por lei e constituía crime;
13. O arguido aufere mensalmente 1300,00€ de vencimento, vive com a esposa e dois filhos menores em casa arrendada, pagando 380,00€ de renda;
14. O arguido não tem antecedentes criminais;
15. Consequência das condutas supra descritas, a demandante sentiu medo e pânico da reação do Demandado e do que este lhe pudesse dizer ou fazer, pois este manifestava um comportamento nervoso, ficou inquieta e receosa pela abordagem exercida pelo Demandado, em virtude de todas estas abordagens, perseguições e contactos do Demandado, entrando num estado de ansiedade e angústia tamanho, que se viu afetada tanto na sua vida pessoal, como profissional;
16. O desempenho da demandante a nível profissional não voltou a ser o mesmo, pois que a Demandante passou a estar num estado de sobressalto tal que acredita que o Demandado pode entrar na loja onde trabalha a qualquer momento, ou mesmo aparecer-lhe na rua, revelando um comportamento de ansiedade e medo de possíveis represálias constantes e tendo abandonado por definitivo a alegria e a vontade de trabalhar que lhe eram características, e o seu comportamento em casa, no seio familiar, nunca mais foi o mesmo, pois o ânimo e o gosto pela vida foram consumidos pelo pânico que tinha de um novo encontro com o Demandado, pânico que tinha de saber que estava a ser perseguida pânico que tinha ao pensar que os seus movimentos estariam a ser controlados e seguidos pelo Demandado pânico que tinha em perder o seu emprego enquanto empregada de limpeza no Posto da G.N.R.;
17. Pondo em causa o seu bem-estar, a sua sanidade mental, a sua tranquilidade e o seu estado psicológico, sendo que os estados de nervosismo e ansiedade em que a Demandante ficou se traduziram também em problemas de sono e de descanso, levando a mesma a consultar um especialista e, em consequência, a ser medicada;
18. A demandante passou a ser uma pessoa mais calada, mais introspetiva, mais desconfiada, mais vigilante e mais triste, sofreu angústia e temor pela sua integridade física, bem como se sentiu aniquilada no seu desenvolvimento pessoal e relações sociais, com medo pelo simples facto de andar na rua, de se deslocar, de estar em algum sítio sozinha;
19. E a isto acresceu o mediatismo que a situação alcançou, fazendo com que a Demandante fosse alvo de olhares, comentários e conversas, acerca da mesma – como se não bastasse aquilo por que passou, exponenciado ainda pelo facto de se estar num meio pequeno e em que todas as pessoas se conhecem, e para mais, sendo o Demandado, à altura dos factos, o Comandante do Posto da G.N.R. local e, por isso, bastante conhecido no seio da comunidade monçanense;
20. A Demandante não conseguia sair de casa sem estar constantemente a pensar que o Demandado poderia estar a persegui-la ou a planear uma nova interpelação;
21. Em consequência disso, a Demandante, por não reunir as condições necessárias para desempenhar as suas funções laborais de empregada de limpeza no Posto da G.N.R., não conseguiu ir trabalhar, e, em virtude disso, foi-lhe atribuído um Atestado médico pelo Dr. A. C., após o que a entidade patronal – “X Facility Services Norte, Lda.” procedeu pois à sua substituição, por um período de 15 dias, por acordo entre ambas as partes, ficando a Demandante sem vencimento durante 16 dias, período compreendido entre os dias 1 e 17 de outubro de 2020;
22. Uma vez que o valor auferido pela Demandante por hora de trabalho é de 3,46€, e por dia é de 10,38€, o que, multiplicado por 16 dias de trabalho, perfaz a quantia total de 166,08€ (cento e sessenta e seis euros e oito cêntimos).

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos não provados.

C) MOTIVAÇÃO

O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, globalmente considerada, e livremente apreciada pelo Tribunal, nos termos dos arts. 125.º a 127.º do CPP, designadamente os seguintes meios de prova:
i. Declarações do arguido (relativamente às condições sócio económicas e pessoais);
ii. Declarações da assistente;
iii. Testemunhal:
1. L. N. (nascida em ..-10-1970, casada, enfermeira, funcionária de loja, residente em Monção) – colega de trabalho da assistente;
2. F. P.; e
3. J. L.
– Militares da GNR de Monção;
4. S. R. (nascida em ..-10-1979, solteira, advogada, residente em Monção) – sobrinha da assistente;
5. O. N. (nascido em ..-11-1953, casado, alfaiate, residente em Monção) – marido da assistente;
6. T. E. (nascido em ..-09-1967, solteiro, mecânico, residente em Monção);
7. J. R. (nascido em ..-01-1975, divorciado, e empresário, residente em Monção); e
8. V. G. (nascido em ..-12-1972, casado, empresário, residente em Monção)
- Amigos do arguido.
iv. Documental:
- fls. 66 a 69; fls. 14 do apenso A;
- Certificado de registo criminal.
Desta forma, tendo presente os meios de prova referidos, isoladamente ou conjugados entre si, conforme infra se explicitará, cumpre concretizar em que precisos termos se formou a convicção do tribunal.

FACTOS PROVADOS 1 a 5: Encontram-se demonstrados com base nos depoimentos das testemunhas F. P. e J. L. – Militares da GNR de Monção e que eram colegas do arguido, S. R. (sobrinha da assistente que acompanhou esta últimas quando foi ouvida no âmbito do processo disciplinar), O. N. (marido da assistente), T. E., J. R. e V. G. - amigos do arguido.

FACTOS PROVADOS 6 a 10: Para prova destes factos o Tribunal assentou a sua convicção nas declarações prestadas pela assistente que, de forma espontânea e objectiva, descreveu de forma circunstanciada a forma como os mesmos ocorreram, sem contradições, as quais se encontram corroboradas pelo depoimento da testemunha L. N. (colega de trabalho da assistente) bem como S. R. e O. N. (sobrinha e marido da assistente, respectivamente, a quem esta última confidenciou os factos sub judice).
Assim, sempre de forma objectiva e espontânea, a assistente relatou ao Tribunal as diferentes situações em que o arguido a abordou, sempre de forma inesperada e contra a sua vontade – sendo que, em relação aos factos ocorridos nos dias 1, 4 e 5 de Julho, no local de trabalho da ofendida, a presença do arguido (admitida por este último) encontra-se confirmada através das filmagens de videovigilância da loja, que o Tribunal visualizou, e corroborada pelo depoimento da testemunha L. N., que se encontrava presente, tendo ainda prestado depoimento acerca do medo e estado anímico (de ansiedade e pânico) em que a assistente se encontrava.
FACTOS PROVADOS 11 e 12: Já o elemento subjectivo resulta das regras da experiência comum e da lógica, pois trata-se de presunção natural que quem actua das formas descritas (designadamente, abordar uma pessoa que acaba de sofrer um acidente de viação dizendo “que sabia que a mesma ia ser notificada para ser ouvida e perguntou-lhe se falou com alguém sobre o que se passava e que tinha dado cabo da vida dele” mais lhe dizendo “que existia um vídeo e que foi chamado pela seu Chefe e que ia ser transferido para outro posto”; bem como abordar a vítima em três dias quase consecutivos – mais concretamente dias 1, 4 e 5 de Julho - no local de trabalho daquela, dirigindo-se à mesma disse-lhe “que tinha falado com o seu advogado e que ela teria que dizer quando fosse ouvida, que o vídeo era uma montagem e “que se o fizesse teria um amigo para toda a vida”; noutro dia tendo chamado várias vezes pelo seu nome, sendo que a assistente teve que aproveitar uma distração do arguido para sair do local de trabalho e ir de imediato ao posto da GNR para denunciar os factos, tendo sido levantado auto de ocorrência; e noutro dia, novamente no local de trabalho da ofendida, chamar várias vezes pelo nome da ofendida, tendo esta, atemorizada, telefonado à GNR para denunciar os factos tendo sido levantado, mais uma vez, auto de ocorrência) age com o propósito concretizado de provocar inquietação e insegurança à pessoa que é alvo desta perseguição e assim prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que as suas condutas eram adequadas a causar tal resultado, como pretendia e conseguiu, ficando a ofendida com receio do que o arguido poderia fazer, até por ser uma autoridade local, como Comandante do Posto da GNR de Monção. Além do mais, as regras da lógica e da experiência comum, e atentas as concretas circunstâncias do caso, designadamente o tipo de conduta empreendida, permitem concluir que qualquer cidadão medianamente diligente e sagaz, sabe que os factos em equação nos presentes autos constituem crime, sendo certo que o arguido é militar da GNR.
FACTOS PROVADOS 13: As condições sócio económicas e pessoais resultam das declarações do arguido.
FACTOS PROVADOS 14: Os antecedentes criminais resultam do “Certificado de Registo Criminal”;
FACTOS PROVADOS 15 a 22: Os danos não patrimoniais causados, designadamente os incómodos, ansiedade e vergonha sentidos pela assistente, mas sobretudo o medo (pânico) que as condutas do arguido causaram na assistente resultam demonstrados com base nas declarações desta última nesse sentido, corroboradas pelo depoimento isento e objectivo das testemunhas L. N. (colega de trabalho da assistente), S. R. (sobrinha da assistente) e O. N. (marido da assistente), que puderam constar o estado emocional em que a ofendida ficou, após a ocorrência dos factos praticados pelo arguido, descrevendo situações em que se puderam aperceber do sofrimento e angústia sentida por aquela, que passou a estar quase sempre – segundo os depoimentos – em estado de alerta ante a possibilidade de o arguido surgir de repente, como vinha fazendo.
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3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

A. Recurso do arguido V. J.

O recorrente começa por arguir a nulidade da sentença, argumentando que nela o Tribunal a quo teve em consideração o depoimento prestado pela testemunha S. R., prestado em violação do dever de segredo profissional a que estava obrigada, como advogada, o que constitui prova proibida.
Vejamos.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes, quer para aferir da existência ou inexistência de crime quer para a punibilidade ou não punibilidade do arguido e determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis; assim como para a determinação da responsabilidade civil, se houver lugar a pedido cível (cf. artigo 124.º do Código de Processo Penal).
Em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, como estatui o artigo 125.º do Código de Processo Penal. Da liberdade de prova, ou da não taxatividade dos meios de prova, consagrada nesta norma, retiram a doutrina e a jurisprudência a admissibilidade de meios de prova atípicos, na medida em que aquela norma permite a utilização de qualquer meio de prova, desde que não proibido, para a demonstração dos factos.
A prova testemunhal é uma das tipificadas no Código de Processo Penal, cuja regra é a de qualquer pessoa poder testemunhar sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova (cf. artigo 128.º, n. º1 do Código de Processo Penal).
Nas exceções a esta regra, não podendo depor, integram-se desde logo, entre outras, as pessoas que não tiverem capacidade para testemunhar por se encontrarem interditas por anomalia psíquica e aquelas que a lei considera impedidas (cf. artigos 131.º, n.º 1 e 133.º do Código de Processo Penal).
Por sua vez, o artigo 135.º, igualmente do Código de Processo Penal, estabelece que «os ministros de religião ou de confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».
No que aos Advogados respeita, decorre do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de setembro, estarem abrangidos pelo segredo profissional os factos que resultem do exercício dessa atividade profissional.
A violação desse dever de sigilo, para além de responsabilidade criminal, civil e disciplinar, tem também implicações a nível processual, na medida em que os atos praticados com violação do aquele dever de reserva redundam numa proibição de prova expressamente consignada no nº 5 do mesmo artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados: «Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.»
Tal consequência radica no reconhecimento da essencialidade da função do Advogado no exercício da administração da justiça, cuja proteção é precisamente por isso assegurada logo ao mais alto nível, estabelecendo o artigo 208.º da Constituição da República que «A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.».
Neste contexto, logo se alcança que o sigilo profissional do Advogado transcende a relação contratual estabelecida entre o Advogado e o seu cliente, encontrando a sua razão de ser na própria necessidade social e comunitária da confiança no profissional, que é um interesse de ordem pública.
É aliás esse o motivo pelo qual é hoje pacificamente aceite o que o sigilo profissional não pode ser dispensado por vontade ou autorização do cliente (2), dele só podendo o advogado obter validamente a sua desvinculação por duas vias legalmente estabelecidas:
- através de requerimento do advogado nesse sentido ao Presidente do Conselho Distrital respetivo, que tal pode autorizar, nos termos do nº 4 do art.º 92º do EOA; ou
- por via do incidente processual de quebra do segredo profissional regulado no art.º 135º do Código de Processo Penal.
Revertendo agora diretamente ao caso em apreço, dos elementos constantes dos autos, designadamente dos fornecidos na própria sentença recorrida, complementados com a reprodução áudio do depoimento prestado em audiência pela testemunha S. R. é indubitável, por ninguém sendo sequer contestado, que a mesma é sobrinha da assistente, exercendo a profissão de advogada.
Do depoimento prestado pela testemunha decorre claramente que o conhecimento que teve dos factos dos autos, designadamente dos que reproduziu no seu depoimento, lhe adveio por a assistente sua tia se ter dirigido ao escritório onde aquela exerce a sua profissão e, aí, lhe ter pedido aconselhamento jurídico, que aquela lhe prestou. No âmbito do qual, para além do mais, a testemunha redigiu a queixa que deu origem aos presentes autos; assim como estabeleceu um contrato de mandato com a assistente, formalizado com a emissão da competente procuração, que legitimou a testemunha, na qualidade de advogada, a acompanhar a assistente quando ela foi depor no processo disciplinar instaurado contra o aqui arguido e a que se alude no ponto 2 dos Factos Provados.
Foi por causa do exercício das suas funções profissionais de advogada que a assistente foi procurar a testemunha S. R. e lhe relatou os factos de que ela demonstrou ter conhecimento no seu depoimento. É claro que a testemunha, enquanto praticava todos os atos relativos ao exercício da sua profissão de advogada não deixava de ser a sobrinha da assistente e eventualmente até sua amiga, o que naturalmente poderia determinar a forma como esta última se expressava e até o conteúdo do que contava à testemunha.
Só que, nestas circunstâncias, afigura-se impossível cindir os factos de que a testemunha teve conhecimento no exercício da sua atividade profissional dos que teve conhecimento exclusivamente como familiar da assistente, sob pena de se cair numa esquizofrenia de raciocínio cuja lógica ultrapassa a compreensão de um cidadão médio, mesmo sendo ele também um jurista.
De tudo assim decorrendo que o depoimento da testemunha S. R. recaiu sobre factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções profissionais de advogada e, como tal, constitui prova proibida, nos termos do citado artigo 92, nº 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Não obstante, da motivação da sentença recorrida resulta que o Tribunal a quo alicerçou parte da sua decisão sobre a matéria de facto também no depoimento daquela testemunha, sem que tenha sequer abordado a questão da proibição dessa prova, como se impunha que tivesse feito, na medida em que os fundamentos da proibição resultavam do próprio depoimento. Ora, como escreve a propósito Pinto Albuquerque (3), «A validade da prova é uma questão jurídica essencial que devia ser apreciada e decidida pelo juiz e o silêncio sobre essa questão constitui o vício de omissão de pronúncia»
A sentença recorrida encontra-se pois inquinada de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, al. c), 1ª parte, do Código de Processo Penal.
Nulidade que é de conhecimento oficioso em recurso, já que as nulidades da sentença têm um regime próprio e diverso do geral, estabelecendo a esse propósito o nº 2 do citado artigo 379º que elas devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.
Sendo também lícito ao tribunal supri-las, para o que se deve aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 414.º, nº 4 do Código de Processo Penal, como estatui o n.º 2 do artigo 379 do mesmo diploma.
O que no caso só poderá ser efeito pelo Tribunal da 1ª instância, que beneficiou da oralidade e imediação da produção da prova, uma vez que a desconsideração da prova proibida torna necessário refazer o raciocínio lógico-dedutivo que esteve na base da decisão da matéria de facto e até, se for caso disso, reformular a própria convicção, em função da relevância dada à prova proibida (4).
*
Com a nulidade da sentença ficam naturalmente prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso do arguido; assim como o conhecimento do recurso da assistente.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em declarar nula a sentença recorrida por valoração de meio de prova proibido, devendo ser proferida nova sentença pela Exma. Senhora Juíza que proferiu a primeira, expurgada de tal vício.
Sem tributação.
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Guimarães, 9 de maio de 2022

Fátima Furtado
(Elaborado e revisto pela relatora)

Armando Azevedo
(Adjunto)

Fernando Chaves
(Presidente da secção)



1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Desde logo por a lei tal não prever, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o sigilo bancário, relativamente ao qual o artigo 79.º, n.º 1 do DL 298/92, de 31.12, estabelece que «os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição».
3. Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 4ª ed., 2011, Universidade Católica Editora, anotação 26 ao artigo 126.º, págs. 344 e 345.
4. Neste sentido, cfr., entre outros, o acórdão do TRC de 27.11.2013, processo nº 319/06.7TASPS.C1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: «I - Quando o meio de prova proibido é o único que permite a prova de determinado facto, o Tribunal da Relação, conhecendo de recurso interposto, pode/deve sanar a nulidade. II - Mas sempre que o tribunal da 1.ª instância funda a sua convicção, conjuntamente, em meios de prova proibidos e em meios de prova válidos, só ele está em condições de voltar a decidir com base nos meios de prova legais, de refazer o seu juízo crítico sobre a prova e expô-lo para eventual nova sindicância em função de novo recurso que venha a ser interposto.»