Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3090/21.9T8BRG-Y.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
CONTRADIÇÃO ENTRE A DECISÃO E OS FUNDAMENTOS
MEDIDA PROVISÓRIA
RESIDÊNCIA NO ESTRANGEIRO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
FIGURA PRIMÁRIA DE REFERÊNCIA
VISITAS E DESPESAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
II. Não sendo pedida a declaração de nulidade da sentença, a questão da contradição é resolvida em sede de conhecimento do mérito da apelação, como aliás, sucederia em caso de invocação e procedência da nulidade, face ao disposto no n.º 1 do art.º 665º do CPC.
III. Da mesma forma que a fundamentação de facto e a respectiva motivação ou apreciação critica da prova e a fundamentação de direito são tratadas em partes distinta da sentença, também a impugnação da decisão de facto deve ser tratada no recurso de forma autónoma e distinta das alegações de direito.
IV. A adopção de uma medida provisória de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, está, como qualquer medida definitiva, sujeita aos “princípios orientadores” a que se refere o art.º 4º do RGPTC, cujo n.º 1 manda aplicar os princípios orientadores de intervenção estabelecidos no art.º 4º da Lei de protecção de crianças e jovens em perigo, nomeadamente o interesse superior da criança e do jovem e o primado da continuidade das relações psicológicas profundas.
II. No domínio da determinação do progenitor a quem a criança deve ser confiada e com quem deve residir, o “interesse superior da criança” integra o direito da criança de residir com a figura primária de referência, ou seja, o progenitor que promove o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral, que tem mais disponibilidade para satisfazer as suas necessidades e que tem com a criança uma relação afectiva mais profunda”.
III. O mesmo critério de decisão deve ser aplicado quando o progenitor que constitui a sua figura primária de referência e com quem mantêm o vinculo securizante, pretende mudar para o estrangeiro.
IV. Se o estabelecimento e manutenção de laços afectivos com o progenitor não residente é essencial ao desenvolvimento saudável da criança, constituindo uma via para o enriquecimento psicológico e emocional da mesma, se a forma de permitir que o progenitor que não tem a guarda do filho e este estabeleçam e / ou mantenham proximidade e os laços afectivos é através do direito daquele se relacionar, de conviver com o mesmo, então ambos os progenitores devem colaborar na execução do regime convivial, pois cabe a ambos os pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.
V. Se ambos os progenitores devem colaborar na execução do regime convivial, de acordo com as suas possibilidades, então aquelas despesas devem ser suportadas principalmente por aquele que dispõe de melhores condições económicas para o fazer.
Decisão Texto Integral:
Tribunal recorrido: J ... do Juízo de Família e Menores ... – tribunal Judicial da Comarca ...
Recorrente: AA
Recorridos: BB e Ministério Público
           

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

AA intentou acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais contra BB.

Alegou para tanto que contraiu casamento com a requerida, no âmbito do qual, em .../.../, nasceu CC; os requerentes e o filho sempre viveram em ..., até .../.../2020, altura em que decidiram vir viver definitivamente para Portugal, mais concretamente ..., com vista a uma melhor qualidade de vida de ambos; matricularam o filho na Escola Básica ..., onde frequenta o 5º ano de escolaridade, é bom aluno, fala fluentemente o português e está perfeitamente integrado; requerente e requerida encontram-se desavindos e pensam colocar fim ao casamento; a requerida tem-se mantido psicologicamente instável, ameaçando várias vezes pôr fim á vida; a requerida decidiu que queria regressar a ..., levando consigo o filho, tendo ameaçado que o fará, quer o requerente queira, quer não; o requerente receia que a requerida viaje para ... com o filho menor e não o volte a ver; o requerente teme que a requerida concretize tais ameaças, fazendo perigar a saúde, os cuidados, a higiene, a alimentação, o carinho e estabilidade do menor; o que se pretende é acautelar que o menor não vá para ..., sem o seu conhecimento e autorização; por estar em causa situação que se prende com os superiores interesses da criança, como seja a sua residência e guarda, matéria em que os progenitores não estão de acordo, urge regular tal matéria.

Terminou requerendo seja o processo declarado urgente.

Por despacho de 31/05/2021 foi atribuído ao processo carácter urgente, designada data para a conferência de pais, ordenada a junção aos autos do certificado de registo criminal dos progenitores e a realização de relatório social com vista à fixação de um regime de regulação das responsabilidades parentais, ainda que provisório.

A requerida foi citada.

A 09/06/2021 a requerida pronunciou-se quanto ao alegado receio do progenitor de que a mesma se ausente para ... com o menor, dizendo, no que releva, que nem ela nem o filho querem continuar a viver em Portugal, para onde vieram residir por vontade do progenitor, que passa a maior parte do tempo em ..., pois é nesse país que se localiza a sede das suas empresas, sendo incompreensível a relutância a que o menor regresse a ...; pretende o requerente “prender” a requerida e o filho a um país onde não querem ficar, bem sabendo que o menor se encontrará bem com a mãe, que sempre cuidou e cuida dele sozinha; é vontade do filho não continuar em Portugal; o requerente sabe que impedindo o menor de ir com a mãe para ..., estará a obrigar a mesma a ficar em Portugal, que é o que pretende; tal capricho muito prejudicará a sua relação com o filho, que começa a ficar cada vez mais distante do pai, por sentir que o está a obrigar a continuar num país que não quer, afastando-o da família e dos amigos, de que sente muita falta.

A 14/06/2021 a requerida veio requerer seja proferida decisão provisória que lhe permita em tempo útil deslocar-se a ... com o menor, para o poder matricular no ano lectivo que se iniciará no mês de Setembro.
           
Alegou para tanto que só porque o requerente não acompanha o dia-a-dia do menor é que refere que o menor está perfeitamente integrado; o facto de o menor continuar a obter bom aproveitamento escolar não significa que esteja adaptado à mudança de país; a cada dia que passa o menor está cada vez mais ansioso por regressar a ...; é destituído de fundamento que a requerida se encontre psicologicamente instável; a carta que o requerente juntou aos autos foi uma forma de a requerida chamar a sua atenção, para que percebesse que se sente sozinha, num país onde não tem família, nem amigos; a requerida é uma pessoa saudável, física e emocionalmente, é conhecida como uma pessoa forte, determinada e lutadora e sobretudo uma boa esposa e uma excelente mãe; nunca foi sua intenção concretizar o que dizia na carta, como bem sabe o requerente, que continua, sem qualquer receio, a deixar o menor por longos períodos com a mãe, em Portugal; é incompreensível querer prender a requerida a um país que não sente como seu, impedindo-a de ir em busca do seu bem-estar e da sua felicidade, bem sabendo que, decidindo-se pela fixação da residência do menor em Portugal, a mãe não se ausentará; é incompreensível o receio do requerente de que a requerida viaje para ... com o filho e não mais o volte a ver, porque o requerente passa tanto ou mais tempo em ... do que em Portugal, pelo que sempre o poderia visitar; bem sabe o requerente que a requerida nunca teve qualquer intenção de raptar a criança; nunca a requerida colocaria em causa o bem estar físico e emocional do menor; há cerca de 3 semanas o requerente retirou da carteira da requerida o cartão de cidadão do menor; tendo a requerida solicitado o mesmo para levar o menor a uma urgência, o requerente recusou-se a entregá-lo; a relutância do requerente em não querer que a sua família regresse a ... tem uma explicação, que a seu tempo o tribunal conhecerá; o requerente continua a manter a morada fiscal em ..., é lá que declara os seus impostos e da sua família, é lá que tem assistência médica, é lá que continua a declarar-se residente; está a terminar o subsídio de desemprego da requerida, o que impõe alguma urgência no seu regresso a ..., onde tem trabalho e casa assegurado, capaz de garantir o sustento do menor.

A 15/06/2021 foi realizada a conferência de pais, mas não foi possível alcançar um consenso entre os progenitores, constando da Acta que:

“Ouvidos os progenitores, por ambos foram mantidas as respectivas posições, já expressas nos autos.
O Requerido mantém a posição que o filho está bem em Portugal e só diz que quer ir para ... porque está a ser influenciado.
(…)
Pela Requerida foi dito que pretende ir para ... em Setembro, por forma a que filho inicie o ano escolar.
Ali terá oportunidade de ficar com o lugar de trabalho da mãe, de porteira, com direito a apartamento.
Por ambos foi dito que, neste momento, vivem os três na mesma casa.
Pelo pai foi dito que tem a possibilidade de ir viver para a casa dos pais e dessa forma ter a residência alternada."

O Ministério Público promoveu a realização pelo INMLCF de uma avaliação psicológica aos pais do menor e ao menor.

Consta de “Ata de Conferência” de .../.../2021 que foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Com vista a decidir a questão suscitada pela progenitora, decido, em virtude de não ter sido possível a realização de exame médico pericial durante o mês de julho, proceder à inquirição do menor CC (…) no próximo dia 7 de Julho de 2021 pelas 09 horas, bem como á inquirição de 2 testemunhas a apresentar quer pelo requerente, quer pela requerida, que as ilustres mandatárias se comprometem a indicar nos autos até ao dia de amanhã.”

A 07 de Julho realizou-se a diligência ordenada, com audição do menor CC,, da requerida, do requerente e de 4 testemunhas.

A 16/07/2021 poi proferida decisão com o seguinte teor:

“Atento o exposto, em conformidade com o parecer emitido pela Digna Magistrada do Ministério Público, decido (provisoriamente) fixar o exercício das responsabilidades parentais do CC, nascido em .../.../2010 da seguinte forma:

1) Residência da criança e actos da vida corrente:
A criança fica à guarda e cuidados da mãe, com quem fica a residir, exercendo esta as responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente da criança, podendo a progenitora fixar a sua residência em ...;
2) Questões de particular importância:
As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita à saúde e educação, serão exercidas exclusivamente pela progenitora;
Contudo, desde já autorizo a progenitora: a viajar para ... com a criança e a aí ficar a residir com a criança; e a matricular a criança em ..., estabelecimento de ensino oficial, para aí continuar o seu percurso escolar;
3)- Direito de visitas e convívios:
O Requerente pode conviver com a criança sempre que o pretender, desde que avise a mãe com pelo menos 24 horas de antecedência, sem prejuízo das actividades escolares e descanso da criança;
Nas férias escolares do presente ano, o CC passará a primeira semana do mês de Agosto (de 1 a 8 de Agosto) com o pai, em Portugal ou em ..., assegurando o progenitor o seu transporte, recolha e entrega em casa da mãe, sem prejuízo de outro regime que os progenitores acordem;
4)- Alimentos/despesas:
4.1- A título de alimentos devidos ao filho, o pai pagará mensalmente à mãe, a
quantia de 200,00€ (duzentos euros), até ao dia 08 (oito) de cada mês, mediante transferência ou depósito bancário, através do IBAN que a progenitora comunicará, em 5 dias;
4.2- A actualização automática do montante das prestações para alimentos à criança anteriormente previstos será realizada anualmente, de acordo com o índice de inflação que vier a ser publicado pelo INE, mas nunca inferior a 3%, com início em Janeiro de 2022;
4.3- As despesas de saúde, médico/medicamentosas e escolares da criança serão suportadas por ambos os progenitores em partes iguais, mediante a apresentação de factura ou documento.”

O requerente interpôs recurso, pedindo que ao mesmo fosse atribuído efeito suspensivo e a sentença do tribunal a quo revogada e substituída por outra que garanta a permanência do menor em território nacional e a inscrição em escola portuguesa, até que seja proferida decisão e seja decretada a partilha das despesas relativa ao direito de convívio e visitas, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1- O artigo 32.º n.º 4 do RGPTC dispõe que os recursos “têm efeito meramente devolutivo, exceto se o tribunal lhes fixar outro efeito”, sendo que o artigo 647.º n.º 4 do CPC também prevê “que o recorrente pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável”.
2- Sucede que, caso seja atribuído um efeito devolutivo ao presente recurso, tal situação colocará em causa o superior interesse do menor, já que qualquer alteração ao regime provisório implicará ao menor regressar a Portugal.
3- Por conseguinte, deve ser admitido o presente recurso com efeito suspensivo, de forma a salvaguardar o interesse do menor, evitando-se assim a saída do menor, até que seja o Tribunal Superior tome a sua decisão.
4- Posto isto, o recorrente dispõe-se, desde já, a prestar a caução que o tribunal julgue adequada e idónea no prazo que determinar, o que expressamente invoca, para os devidos e legais efeitos.
5- A sentença do tribunal a quo contém um erro de escrita, nos termos do artigo 614.º do CPC, uma vez que a vontade real a e a vontade declarada pelo julgador. Na verdade, a sentença contradiz-se relativamente a quem compete exercer as responsabilidades de particular importância do menor.
6-  Foi decretado, a 16/07/2021, um regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais que em nada protege o superior interesse do menor, ao autorizar a sua saída de Portugal e inscrição em escola estrangeira.
7- A decisão do tribunal a quo, ainda que provisória, foi precipitada e claramente violadora do superior interesse do menor.
8- O fim que deve presidir nestes autos é o interesse e a estabilidade do menor e não a estabilidade e a vontade de apenas um dos progenitores, mesmo que pretenda regressar ao seu país de origem.
9- O menor deve ser inscrito numa escola portuguesa de forma a garantir o seu bem-estar, estabilidade e a continuidade do seu desenvolvimento escolar, até que seja proferida uma decisão final.
10- O tribunal a quo tomou uma decisão para além dos seus poderes, já que a mesma poderá colocar em causa qualquer decisão posterior que seja tomada a favor do recorrente.
11- Mais, o tribunal a quo não valorou, com a devida profundidade e preocupação, a carta que foi junta aos autos que demonstrava a intenção da recorrida em se suicidar, uma vez que não aceitava a possibilidade do seu casamento terminar. Por conseguinte, o facto de a carta ser apenas um apelo a uma melhoria de atitude deve dar-se como não provado.
12- Como tal, dever-se-á valorar, e ter em atenção, a carta presente nos autos e possibilidade de tal situação voltar a acontecer, colocando-se assim em causa a estabilidade do menor.
13- O tribunal a quo valorou, também, em excesso as declarações da recorrente, nomeadamente na questão dos possíveis trabalhos que terá aquando do seu regresso a .... Posto isto, tendo em consideração o testemunho da recorrida entre          os minutos 26 e seguintes, registado do sistema com a designação 20210707110344_5930167_2870517, deve dar-se como não provado os pontos 24), 26) e 29) dos factos provados.
14- Mais, o tribunal a quo não valorou, como deveria, o facto de a recorrida não dispor de alojamento com as condições necessárias para residir com o menor, já que confirmou nos autos que iria residir no imóvel no apartamento anexo à portaria, dormindo na sala de jantar.
15- Não só a recorrida não tem qualquer atividade profissional em ..., como não dispõe, também, de um local para residir com o menor. Local esse que, pelo testemunho da recorrida, será partilhado com uma sobrinha, ficando assim a recorrida com a sala de jantar como quarto de dormir.
16- Não foram, ainda, tomadas em consideração as periciais que serão realizadas no final do mês de agosto, perícias essas que podem demonstrar que a recorrente não dispõe de capacidade emocional para manter a guarda do menor.
17- A realização dessas mesmas perícias poderá alterar o regime provisório decretado, alterando assim a dinâmica do menor que, ao inscrever-se numa escola estrangeira, terá de regressar a Portugal e aí voltar a inscrever-se numa escola portuguesa, estando assim dependente das vagas e da disponibilidade das escolas.
18- O tribunal a quo não estabeleceu de forma inequívoca um regime de partilha de despesas no que respeita ao direito de convívio e de visitas. Mais, o recorrente para além da pensão de alimentos, terá de custear toda e qualquer despesa caso queira estar com o seu filho.
19- Esta situação coloca o recorrente numa situação desproporcional, onde fica totalmente alienado do seu filho, que pode vir a residir em pais estrangeiro, no entanto fica totalmente responsável por toda e qualquer custo.
20- Ou seja, para ver o seu filho, o recorrente terá sempre de incorrer em gastos.
21- Desta forma, a recorrida deverá ser responsável pela partilha dos gastos relativos às visitas e convívios entre o menor e o progenitor.
22- Por fim, tudo isto demonstra que a decisão decretada, ainda que provisória, foi excessiva e não teve em consideração o superior interesse do menor, violando assim o disposto no n.º 7 do artigo 1906º do Civil.

Contra-alegou a requerida, pedindo fosse rejeitada a atribuição de efeito suspensivo ao recurso e negar-se provimento á apelação do requerente, confirmando-se a decisão recorrida, tendo terminado a suas alegações com as seguintes conclusões:
(…).

Contra alegou o Ministério Público tendo terminado as suas alegações dizendo que “A decisão recorrida é correta e inexiste fundamento legal para o presente recurso não tendo a douta decisão sob censura violado qualquer norma legal, adjectiva ou substantiva, a impor a sua alteração ou revogação.”

Por despacho de 20/09/2021 o recurso foi admitido a subir imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Os presentes autos foram remetidos a esta Relação a 19/01/2023.

Nesta Relação, foi ordenado que se solicitasse ao tribunal recorrido que informasse: “se foi proferida alguma alteração ao regime provisório fixado na decisão recorrida (…); se se prevê alteração ao regime fixado provisoriamente e se o julgamento na acção para definição do exercício das RP se mostra findo.”

O tribunal recorrido respondeu remetendo:
- cópia da Ata de Conferência realizada a 29/11/2021, onde além do mais consta:
“ De seguida, e à medida que ia ouvindo requerente e requerida e respetivos ilustres mandatários, pelo Mmº. Juiz de Direito foi tentada a conciliação dos progenitores, ainda que parcial, sugerindo formas de ultrapassar situações, tendo determinado que ficasse consignado:
*
O progenitor não se pode ausentar de ... com o filho e irá buscar o filho à escola à sexta feira.
*
A progenitora declara autorizar o colégio ... a que o progenitor seja informado, não só dos horários, como de todas as questões relativas ao CC.
A progenitora compromete-se a enviar um e-mail e a dar conhecimento nos autos – ao colégio da criança a autorizar e a pedir que todas as comunicações respeitantes ao CC, também sejam efetuadas via e-mail ao progenitor, para o seguinte endereço: ....
*
O pai vai buscar o filho dois fins de semana seguidos.
Vai buscar o CC à escola na sexta feira e entrega-o na casa da mãe, às 19:00 horas de domingo, a comunicar qualquer alteração, com pelo menos 48 horas de antecedência.
*
Como o pai vai para ... entre 18 e 27 ou 28 de dezembro, o CC passará metade das férias de Natal com o pai e a outra metade com a mãe.
O pai vai buscar o CC à escola no dia 18 de dezembro e entrega-o na casa da mãe no dia 25 de dezembro, pelas 09:00 horas.
*
Até 27 de dezembro, o pai diz à mãe quando é que vai buscar o CC aos fins de semana em janeiro e fica assim definido dessa forma.
*
Contatos telefónicos: o CC poderá contatar diariamente por videochamada, por um período de 10 minutos, com o progenitor com quem não está, entre as 20:00 e as 21:00 horas.
*
Férias do Carnaval e da Páscoa: A criança passará uma semana com cada um dos progenitores.
Em 2022, os primeiros períodos serão passados com o progenitor e alterna nos anos seguintes.
O pai vai buscar o CC à escola e entrega-o na casa da mãe, no domingo, atè às 19:00 horas.
*
Férias de verão: A criança passará 15 (quinze) dias de férias consecutivos com cada progenitor; a primeira quinzena com um e a segunda quinzena com o outro, passando com o pai a primeira quinzena.
*
Após, pelos ilustres mandatários das partes foi requerida a suspensão dos presentes autos, bem como assim em todos os restantes processos de incumprimento, com exceção do apenso nº. 3090/21...., até finais do corrente ano, por forma a ver como evolui a situação e como decorre o hoje acordado.”
           
- copia das Atas das sessões de Audiência de julgamento que tiveram lugar a 16/01/2023 e 23/01/2023;

- despacho com o seguinte teor:
Informe o V.T. da Relação de Guimarães que:
1. Ao regime, inicialmente, estabelecido provisoriamente as partes concretizaram o constante da acta de 29.11.2021 do apenso C.
2. Por ora inexistem requerimentos ou factos que justifiquem a ponderação de alteração do regime provisório.
3. O julgamento, definitivo, encontra-se em curso sendo que, por acordo das partes, foi o mesmo suspenso com vista à obtenção de prova adicional - cfr. acta de 16.1.2023 do apenso A.
4. Encontra-se em curso o julgamento de vários incidentes de incumprimento suscitados pelo progenitor - cfr. apenso C - sendo que, por acordo entre as partes e de forma a evitar a interrupção das férias do menor CC com o pai, encontra-se designada continuação da audiência de discussão e julgamento para o próximo dia 14 de Março de 2023 - cfr. acta do dia 23.1.2023 do apenso C.”

Nesta sequência e nesta Relação foi proferido despacho em que, além do mais, se considerou:
“Ora, conforme evidenciam os autos, o menor encontra-se a residir com a mãe em ... desde 2021, onde se encontra a estudar, tendo já havido uma alteração ao regime inicialmente fixado, por acordo das partes, quanto ao regime de visitas do recorrente e, no âmbito da instrução do processo produzidas diversas provas e perícias (designadamente a avaliação feita pelo IML a que o recorrente faz alusão no recurso). Desse modo, e face a tudo o que se deixou exposto, julgamos evidenciar-se que o recurso interposto perdeu utilidade quanto ao segmento decisório em referência, já que, independentemente do mérito do mesmo, o objectivo que lhe estava pressuposto (a não ida do menor para ...) deixou de poder ser alcançado.”
Pelo que importará, antes de mais, notificar o recorrente e a recorrida, bem como o M.P., para que, face ao exposto, se possam pronunciar, em 10 dias, quanto à utilidade/inutilidade superveniente da apreciação da referida questão/ recurso interposto e sua abrangência.”

A 08/03/2023 foram os autos redistribuídos em cumprimento do Provimento n.º 3/2023 do Exm.º Sr. Presidente desta Relação de 07/03/2023, por se tratar de processo urgente.

Pronunciou-se o recorrente dizendo, em síntese, que a utilidade que se pretendeu e pretende retirar do recurso é fixar a residência do menor em Portugal, questão que não sofreu qualquer alteração relativamente ao que foi regulado na decisão provisória, concluindo que mantém utilidade a revogação da decisão do tribunal a quo e a sua substituição por outra que estabeleça a guarda partilhada e a permanência em Portugal.

2. Questão prévia
Foi suscitada a possível inutilidade superveniente da lide.
           
A decisão recorrida determinou que “ A criança fica à guarda e cuidados da mãe, com quem fica a residir, exercendo esta as responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente da criança, podendo a progenitora fixar a sua residência em ....”

O objecto do recurso é, em essência, a reversão desta decisão.

Com todo o respeito por opinião contrária, mas muito embora a decisão recorrida seja de 16/07/2021 (o recurso, admitido a 20/09/2021, só foi remetido a esta Relação a 19/01/2023), muito embora o menor se encontre a residir em ... com a mãe desde 2021 e muito embora os progenitores, na Conferência realizada a 29/11/2021, tenham concretizado alguns aspectos relacionados com visitas, férias, contactos e comunicações ao recorrente, visando o recorrente a alteração do decidido quanto à residência do menor e não tendo havido qualquer alteração quanto a tal aspecto, não se vislumbra que o presente recurso tenha perdido a sua utilidade, impondo-se a sua apreciação.

3. Questões a decidir
O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

As questões que cumpre apreciar são, de acordo com a sua ordem lógica, face ao direito aplicável, as seguintes:
- “rectificação“ da contradição entre a afirmação feita no ponto III de que “As responsabilidades parentais quanto ás questões de particular importância serão exercidas por ambos os progenitores” e a afirmação feita no ponto IV, n.º 2 de que “ As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita á saúde e educação serão exercidas exclusivamente pela progenitora.”
- impugnação da decisão de facto;
- revogação da decisão recorrida;
- caso não seja revogada, partilha das “despesas no que respeita ao direito de convívio e visitas”.

4. Da “rectificação“ da contradição entre os fundamentos e a decisão
No ponto III da decisão recorrida e que integra a fundamentação jurídica da decisão recorrida, afirma-se:
“As responsabilidades parentais quanto ás questões de particular importância serão exercidas por ambos os progenitores”.

Porém, no ponto IV, que integra o decisório e, mais concreto no ponto 2) consta:
“As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita á saúde e educação serão exercidas exclusivamente pela progenitora.”

O recorrente, muito embora invoque que há uma contradição na decisão recorrida, qualifica-o como “lapso de escrita” e pretende a sua rectificação ao abrigo do disposto no art.º 614º do CPC.

Vejamos

Dispõe o art.º 614º n.º 1 do CPC:
Se a sentença (…) contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.

Tal regime adjectivo é análogo ao regime substantivo, plasmado no art.º 249º do CC, o qual estabelece que “o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.

Como se decidiu no Ac. da RP de 21-10-2004, processo nº 0434755, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, “I - O erro de escrita é um erro não intencional cognoscível ou ostensivo, decorrendo da própria fundamentação da decisão que se considerou, independentemente da bondade da mesma.”

E no Ac. do STJ de 23/11/2011, processo 4014/07.1TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
 “Há que distinguir, cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. No segundo caso, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.
Por outras palavras: é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreende claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.° é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material.”

O que o recorrente alega não é de qualificar como erro de escrita ou inexatidão, mas como nulidade da sentença.

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual).

O n.º 1 do art.º 615º do CPC dispõe que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…);
(…)

Os fundamentos devem possuir uma relação lógica com a decisão, ou seja, deve haver uma relação de concordância entre os fundamentos e a decisão.

A contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando ocorre incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 763).

Se na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, mas, no decisório, concluir noutro sentido, oposto ou divergente, esta oposição será causa da nulidade da sentença.

A contradição entre fundamentos e a decisão é estritamente no plano lógico da construção da decisão.

Se o que se verifica é que na fundamentação jurídica da decisão recorrida o tribunal afirma que “As responsabilidades parentais quanto ás questões de particular importância serão exercidas por ambos os progenitores”, mas no decisório afirma que “As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita á saúde e educação serão exercidas exclusivamente pela progenitora.”, tal é de qualificar como nulidade da sentença, à luz da 1ª parte da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, pois os fundamentos estão em oposição com a decisão.

E isto é assim, independentemente de tal se ficar a dever a lapso.

Mas não pedindo o recorrente a nulidade da sentença, mas que esta Relação “esclareça qual das versões é a correta, ou seja, se as responsabilidades parentais relativas ás questões de particular importância deverão ser exercidas em conjunto (como é regra), ou apenas por um dos progenitores (como é excepção)”, impõe-se a esta Relação que, em sede de conhecimento do mérito da apelação, conheça da questão de saber por quem são exercidas as responsabilidades parentais nas questões de particular importância, como aliás, sucederia em caso de invocação e procedência da nulidade, face ao disposto no n.º 1 do art.º 665º do CPC ( cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, Almedina, 7ª edição, pág. 386-389)

5. Fundamentação de facto
a)- Com relevo para boa decisão da questão em apreço, resultam indiciariamente provados os seguintes factos:
1) Requerente e Requerida contraíram casamento no dia 30 de Março de 2002, na Câmara Municipal ..., ...;
2) Do casamento nasceu o filho menor CC no dia .../.../2010;
3) No âmbito do processo de divórcio sem consentimento a que estes estão apensos, foi realizada em .../.../2021 uma tentativa de conciliação, na qual foi decretado o divórcio por mútuo consentimento do Requerente e da Requerida e a consequente dissolução do seu casamento;
4) Naquele processo de divórcio, o Requerente e a Requerida apresentaram, na tentativa de conciliação, a seguinte relação de bens comuns: Uma casa e um apartamento em ..., um apartamento em ... e um apartamento em ..., em ...; um veiculo automóvel marca ... do ano de 2009; um veiculo automóvel marca ... de 2015; uma Sociedade de nome “ ...”;
5) E estipularam que a casa de morada de família, que é arrendada, fica atribuída à Requerida até a mesma emigrar novamente;
6) O Requerente, a Requerida e o filho menor sempre viveram em ... até .../.../2020, altura em que vieram viver para Portugal, mais concretamente para ...;
7) Os progenitores matricularam o filho menor na Escola Básica ..., onde este frequentou o 5.º ano de escolaridade;
8) O menor é bom aluno e fala fluentemente o português e o francês, mas afirma não ter feito amigos em Portugal e na escola;
9) A Requerida escreveu a carta junta aos autos em 27/05/202, na qual se queixa de solidão, ameaça suicidar-se no dia 06 de janeiro de 2021 e afirma que o trabalho do requerente é como uma “mulher” para este, uma vez que trabalha imenso;
10) O teor da referida carta é assumido agora pela Requerida como um apelo a uma melhoria de atitude do requerente no casamento e na relação com o filho;
11) A Requerida pretende regressar a ... e matricular o filho em estabelecimento de ensino daquele país para aí iniciar o próximo ano lectivo;
12) O CC nunca quis residir em Portugal;
13) O CC quer residir com a mãe em ... e não quer continuar a viver em Portugal;
14) O Requerente desloca-se todos os meses a ... e aí passa pelo menos 10 dias em cada deslocação, pois é nesse país que se localiza a sede da sua empresa;
15) A progenitora Requerida sempre cuidou e cuida do filho, atentos os períodos que o Requerente se ausenta em trabalho;
16) Depois de ter conhecimento da referida carta, o Requerente continuou a deixar o filho com a mãe em Portugal quando se ausentava para ...;
17) A Requerida e o menor foram a ... visitar a família, com o conhecimento do Requerente progenitor, em 11/02/2021, sendo que mesmo em ... a Requerida obrigou o menor a assistir às aulas online, e regressaram a Portugal em 27/02/2021;
18) É a Requerida que assegura diariamente os cuidados de higiene, alimentação, carinho e estabilidade que o menor precisa;
19) O CC afirma que tem mais facilidade em relacionar-se com a mãe do que com o pai;
20) Apesar de viverem em Portugal há quase um ano, o Requerente continua a manter a morada fiscal em ...,
21) Sendo que é lá que declara os seus impostos e da sua família;
22) E é em ... que o Requerente é assistido médica e medicamentosamente;
23) Continuando a declarar-se como residente em ... e não noutro país, para além daquele;
24) A Requerida perspectiva trabalhar como porteira em ..., na Rue ..., se regressar a ..., no próximo mês de Setembro, trabalho que actualmente é exercido pela sua mãe, que pretende aposentar-se;
25) Os pais na Requerida residem na Rue ..., no apartamento reservado a quem desempenha as funções de porteira;
26) Caso suceda à mãe no exercício daquelas funções de porteira, a Requerida passará a residir com o seu filho e com a sobrinha e afilhada DD, que reside em ... com os avós maternos, no referido apartamento;
27) Tal apartamento tem a área de cerca de 60 m2 e é composto por dois quartos, uma sala, uma cozinha equipada e uma casa de banho;
28) Caso tal emprego não se concretize, a Requerida perspectiva trabalhar como assistente de contabilidade;
29) A Requerida e o seu filho (tal como o Requerente) nasceram, estudaram e viveram sempre em ... até .../.../2020;
30) Têm todos nacionalidade ... e portuguesa;
31) O Requerente tem um irmão que reside com a mulher e os filhos em ..., ...;
32) Em Junho de 2021 o Requerente começou uma formação no ... para vender produtos dietéticos;
33) O Requerente dedica-se, através da empresa que constituiu (a ...), à venda de telefones, telemóveis e produtos similares;
34) O Requerente pode exercer e desenvolver as actividades referidas em 32) e 33) em qualquer local, uma vez que as vendas (online) são realizadas através da internet;
35) Os pais do Requerente residem em ...;
36) A Requerida não tem família em ... e a sua única irmã reside em ...;
37) Caso o filho fique a residir consigo em Portugal e o Requerente tenha de se deslocar a ... e aí permanecer por alguns dias, o Requerente perspectiva deixar o filho em casa dos seus pais;
38) O Requerente quer viver em Portugal porque acha que o nosso país tem melhor qualidade de vida e é mais seguro do que a ..., opinião que é partilhada pelo avô paterno que afirmou, quando foi inquirido no tribunal, que em ... é só pretos, chineses e chocolates (sic).
*
b)- Não resultaram provados outros factos com relevo para a boa decisão da causa, designadamente:
I. A decisão de viver em Portugal foi apenas do Requerente;
II. O menor tem uma média de 84% na totalidade das disciplinas e está perfeitamente integrado na escola;
III. A requerida tem-se mantido psicologicamente instável, ameaçando várias vezes por fim à vida, fazendo-o na presença do menor;
IV. No dia 12 de dezembro de 2020 a requerida deixou a carta referida em 9) em cima da cama dos requerentes;
V. A Requerida e o menor estão integrados em Portugal;
VI. A Requerida apregoa que vai viajar para ... com o filho menor e que o Requerente não o volta a ver;
VII. O Requerente passa mais tempo em ... do que em Portugal.
           
6. Impugnação da decisão de facto
6.1. Os requisitos do art.º 640º do CPC
(…)
6.2. Da verificação dos requisitos em concreto
(…).

6.3. Apreciação da impugnação em concreto
(…)

7. Fundamentação jurídica
7.1. Enquadramento jurídico processual
O presente recurso tem por objecto uma medida provisória que define o progenitor a quem o menor deve estar confiado e, assim, a sua residência, medida essa adoptada no âmbito de um processo de regulação do exercício da responsabilidades parentais.

O n.º 1 do art.º 28º do RGPTC, que constitui uma disposição processual comum, dispõe que em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final (…).

Trata-se de adoptar uma decisão que vigorará enquanto a questão objecto do processo não for objecto de decisão final transitada em julgado.

Foi o que sucedeu in casu, pois a recorrida veio requerer fosse proferida decisão provisória que lhe permitisse, em tempo útil, deslocar-se para ... com o menor, para o poder matricular no ano lectivo que se iniciará no mês de Setembro.

Neste quadro impõe-se afirmar que a alegação do recorrente ( conclusão 10) de que o tribunal a quo tomou uma decisão para além dos seus poderes, já que a mesma poderá colocar em causa qualquer decisão posterior que seja tomada a favor do recorrente, carece, em absoluto, de fundamento.

Como também se impõe afirmar que é desprovido de sentido o que consta das conclusões 16 e 17, ou seja, que o tribunal não tomou em consideração “perícias que serão realizadas…”. Estando em causa uma medida provisória, é da natureza da mesma o tribunal decidir com os elementos de que dispõe no momento de tomar a decisão, não tendo de aguardar pela produção dos meios de prova tendentes a sustentar uma decisão definitiva. E, pela natureza das coisas, nunca pode tomar em consideração elementos de prova que não foram produzidos até aquele momento.

Os pressupostos das medidas provisórias são:
a) a existência de um processo tutelar cível;
b) a formulação de um juízo de conveniência;
c) que a mesma tenha por objecto questão que se integre no âmbito do processo.

Não está colocada em crise a verificação de qualquer um deles.

Ainda neste âmbito, cabe referir que muito embora a adopção de uma medida provisória se guie por critérios de conveniência e oportunidade (cfr. art.º 987º do CPC), isso não significa qualquer possibilidade de arbitrariedade, pois a decisão deverá ser fundamentada, de facto e de direito (art.º 607 n.ºs 3 e 4, aplicável ex vi art.º 295º, 986º n.º 1, ambos do CPC e 12º do RGPTC).

7.2. Enquadramento jurídico substantivo
A adopção de uma medida provisória, seja ela qual for e em que âmbito for e está, como qualquer medida definitiva, nos termos do n.º 1 do art.º 4º do RGPTC, sujeita aos “princípios orientadores” de intervenção estabelecidos na lei de protecção de crianças e jovens em perigo e que, nos termos do art.º 4º da LPCJP, são:

a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;
i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção;
k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais.

No que aos autos releva é fundamental considerar os princípios consagrados nas alíneas a) - Interesse superior da criança e do jovem – e g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas – sendo que o segundo mais não é do que um sub principio ou desenvolvimento do primeiro

O interesse superior da criança aparece referido em vários textos. Mas não existe uma definição legal.

Consta do art.º 3º n.º 1 da Convenção sobre os direitos das crianças assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990 e aprovada para ratificação pela Resolução da AR n.º 20/90, de 12 de Setembro e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12/09, que todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

E na Introdução ao Comentário geral n.º 14 (2013) do Comité sobre os direitos da criança consultável in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/cdc_com_geral_14.pdf ( sublinhados nossos) consta:
4. O conceito do interesse superior da criança visa assegurar a fruição plena e efetiva de todos os direitos reconhecidos na Convenção e o desenvolvimento global da criança. O Comité já assinalou que “o entendimento feito por um adulto daquilo que constituiu o interesse superior de uma criança não pode prevalecer sobre o respeito de todos os direitos da criança ao abrigo da Convenção.” Recorda que não existe uma hierarquia de direitos na Convenção; que todos os direitos que nela se encontram previstos são do “interesse superior da criança” e que nenhum direito poderá ficar comprometido por uma interpretação negativa do interesse superior da criança.
5. A aplicação plena do conceito do interesse superior da criança requer o desenvolvimento de uma abordagem assente em direitos, envolvendo todos os intervenientes, de modo a garantir a integridade física, psicológica, moral e espiritual da criança e a promover a sua dignidade humana.
6. O Comité sublinha que o interesse superior da criança é um conceito com natureza tripla:
(a) Um direito substantivo: o direito das crianças a que o seu interesse superior seja avaliado e constitua uma consideração primacial quando estejam diferentes interesses em consideração, bem como a garantia de que este direito será aplicado sempre que se tenha de tomar uma decisão que afete uma criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral. O artigo 3.º, parágrafo 1, estabelece uma obrigação intrínseca para os Estados, é diretamente aplicável (autoexecutória) e pode ser invocada perante um tribunal.
(b) Um princípio jurídico fundamentalmente interpretativo: se uma disposição jurídica estiver aberta a mais do que uma interpretação, deve ser escolhida a interpretação que efetivamente melhor satisfaça o interesse superior da criança.
Os direitos consagrados na Convenção e nos seus Protocolos Facultativos estabelecem o quadro de interpretação.
(c) Uma regra processual: sempre que é tomada uma decisão que afeta uma determinada criança, um grupo de crianças ou as crianças em geral, o processo de tomada de decisão deve incluir uma avaliação do possível impacto (positivo ou negativo) da decisão sobre a criança ou das crianças envolvidas. A avaliação e a determinação do interesse superior da criança requerem garantias processuais. Para além disso, a fundamentação de uma decisão deve indicar que direito foi explicitamente tido em conta. A este respeito, os Estados-partes deverão explicar como é que o direito foi respeitado na decisão, ou seja, o que foi considerado como sendo do interesse superior da criança; em que critérios se baseia a decisão; e como se procedeu à ponderação do interesse superior da criança face a outras considerações, sejam estas questões gerais de políticas ou casos individuais.

Na lei ordinária e no que respeita à confiança do menor, residência e visitas, o n.º 5 do art.º 1906º do CC dispõe que o tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro e o n.º 8 do mesmo normativo dispõe que o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.

A necessidade de se atender ao interesse superior da criança é a tradução da consideração da criança como titular autónomo de direitos e como titular de uma autonomia progressiva, reconhecida em função do desenvolvimento das suas capacidades, da sua idade e da sua maturidade (artigos 5.º, 12.º e 14.º, n.º 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990 e aprovada para ratificação pela Resolução da AR n.º 20/90, de 12 de Setembro e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12/09).

O interesse superior da criança, enquanto critério de decisão, é um conceito indeterminado, uma orientação para o julgador perante o caso concreto, tendo de ser ponderado casuisticamente, em face da análise de todas as circunstâncias relevantes e que “só adquire eficácia quando referido ao interesse de cada criança, pois há tantos interesses da criança como crianças.“ (Maria Clara Sottomayor, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio,8ª edição, pág. 60).

O interesse superior da criança implica a prossecução da sua segurança, saúde, física e psíquica, do seu sustento, educação e autonomia crescente ( cfr. art.º 1878 n.º 1 do CC), do seu desenvolvimento físico, intelectual e moral ( art.º 1885º n.º 1 do CC).

O interesse superior da criança implica que qualquer intervenção e, nomeadamente, a adopção de uma medida provisória, deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.

Neste sentido e perspectivando o interesse superior da criança no âmbito da confiança da mesma, Maria Clara Sottomayor, ob. cit., pág. 65 entende que a “guarda da criança deve ser confiada ao progenitor que promove o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral, que tem mais disponibilidade para satisfazer as suas necessidades e que tem com a criança uma relação afectiva mais profunda”.

E desenvolvendo a sua ideia refere (ob. cit. pág. 78): “… o critério que nos parece mais correcto ao interesse da criança, é que esta seja confiada á pessoa que cuida dela no dia-á-dia, o chamado “Primary Caretaker” ou figura primária de referência. Esta regra permite, por um lado, promover a continuidade da educação e das relações afectivas da criança e por outro atribuir a guarda dos/as filhos/as ao progenitor com mais capacidade para cuidar destes e a quem (…) estão mais ligados emocionalmente.”

E finalmente refere (ob cit. pág. 79): “A continuidade  na relação psicológica principal da criança é essencial para o seu bem estar, principalmente, quando a estabilidade da família se rompe com o divórcio ou separação dos pais. “

No mesmo sentido refere Tomé d´Almeida Ramião, in Regime Geral do Processo Tutelar Cível, pág. 135:
“ Quanto á determinação da residência da criança, deve continuar a entender-se que deverá residir com o progenitor que seja a principal referência afectiva e securizante da criança, aquele com quem mantém uma relação de grande proximidade, aquele que no dia-á-dia, enquanto os pais viviam juntos, lhe prestava os cuidados, ao progenitor que se mostre mais capaz de lhe garantir um adequado desenvolvimento físico e psíquico, a sua segurança e saúde, formação da sua personalidade, a sua educação, o seu bem-estar, o seu desenvolvimento integral e harmonioso, em clima de tranquilidade, atenção e afecto, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência e doutrina, no respeito pelo superior interesse da criança e sem abdicar do principio da igualdade dos progenitores.”

Isto mesmo está plasmado no principio orientador constante da alínea g) do  art.º 4º da LPCJP, aplicável ao processo tutelar cível nos termos do art.º 4º n.º 1 do RGPTC : “ Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.

No que toca à confiança da criança e, concretamente, à sua residência, uma questão que se vem colocando com frequência, dada a globalização e a cada vez maior mobilidade dos cidadãos, é o facto de um dos progenitores pretender alterar a sua residência para o estrangeiro e pretender levar a criança consigo, na medida em que tal pode implicar uma limitação do direito do progenitor não residente de conviver com o menor.

Também aqui há necessidade de critérios de decisão, ajustados á situação em causa.

Uma primeira abordagem diria que o Estado não tem legitimidade para intervir no exercício de um direito fundamental dos cidadãos, que é a liberdade de deslocação dentro do território nacional (art.º 44º n.º 1 a CRP) e a liberdade de emigrar (art.º 44º n.º 2 da CRP) e a liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho (art.º 47º n.º 1 da CRP).

Porém, se esses interesses devem ser considerados, o critério de decisão terá de ser sempre o interesse superior da criança e do jovem, ou seja, como já ficou referido, consta da alínea a) do art.º 4º da LPCJP, aplicável no âmbito do processo tutelar ex vi art.º 4º n.º 1 do RGPTC, que a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.

Assim e neste âmbito, o critério de decisão primacial é o já acima analisado: o “interesse superior da criança” e, mais concretamente, o direito da mesma de residir com a figura primária de referência, ou como decorre da alínea g) do art.º 4º da LPCJP, aplicável ex n.º 1 do art.º 4º da RGPTC, a confiança da criança deve respeitar o direito da mesma  à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.

É, aliás, o sentido dominante da jurisprudência, como resulta:

- do Ac. desta RG de 16/06/2016, processo 253/10.6TMBRG-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta:
IV- Como critério orientador a criança deve estar com a “pessoa que cuida dela no dia-a-dia”, por constituir a solução mais conforme ao seu interesse, por permitir desenvolver a continuidade do ambiente e da relação afetiva principal.

- do Ac. da RL de 24/01/2019, processo 1846/15.0T8PDL-B.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em cujo sumário consta:
I. Constitui motivo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais a verificação da mudança de país de residência da progenitora da menor, com quem reside e com a qual mantém maiores laços de afectividade.
II. A decisão de alteração tem além do mais, de ser ponderada e analisada à luz duma dupla perspectiva: - A legitimidade do Estado para intervir no exercício dum direito relativo à a liberdade de circulação dos cidadãos; - E o interesse do menor e da protecção da sua relação afectiva com a figura primária de referência.
III. A ruptura na estabilidade social da vida do menor não constitui fundamento para a intervenção do Estado na família, pois, os pais casados gozam em absoluto da liberdade de mudarem de terra ou de país, sem que o Estado pretenda controlar os efeitos dessa decisão na personalidade do filho, pelo que tal circunstância também tem de ser considerada no caso de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
IV. Desde que a relação da criança, de 5 anos de idade, com a figura primária de referência seja uma relação que funciona em termos normais, no caso concreto, deve reconhecer-se a esse progenitor a liberdade de mudar de cidade ou país, levando a criança consigo.

- Ac. desta RG de 10/07/2019, processo 1982/15.3.T8VRL-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta:
8. Não se deve exagerar o facto de a mudança de residência e necessidade de aprender outra língua criar instabilidade e, por isso, representar inconveniente para a criança, pois que a instabilidade é uma realidade na vida de uma criança com pais separados, que, sempre, terão de se integrar em duas residências, sendo essa mais uma adaptação a fazer nas suas vidas, sendo certo que as crianças são dotadas de grande aptidão para se integrarem em situações novas e aprender línguas estrangeiras é, até, uma mais-valia;
9. Não obstante a boa relação que o menor possa ter com os dois progenitores e a dedicação que ambos lhe dispensem, a residência tem,dada a distância geográfica, de ser fixada com um deles quando residam distantes, mormente em diferentes países;
(…)
11. Da interpretação sistemática das normas vigentes resulta a consagração legal do direito da criança à preservação das suas ligações psicológicas profundas, nomeadamente no que concerne à continuidade das relações afetivas estruturantes e de seu interesse;
12. É do superior interesse da criança, de 11 anos de idade, ir residir com a mãe, embora noutro país (...) mesmo que com alteração das relações familiares, sociais e mudança nos estudos, sem perda de ano letivo, sendo essa a vontade consciente, madura e livre do menor, que passa, também, assim, a conviver com o seu único irmão, mais velho.

- Ac. da RL de 10/09/2020, processo 15189/15.6T8LSB-I.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em cujo sumário consta:
2- O desacordo entre os pais quanto à questão de mudança de residência de um deles para o estrangeiro, pretendendo levar consigo a menor, constitui questão de particular importância que deve ser decidida tendo em conta o critério preponderante norteador da decisão judicial em matéria de direito dos menores: o superior interesse da criança.
3- À luz desse critério deve ter-se em consideração, além do mais, o conceito de progenitor psicológico ou progenitor de referência, expressão que apela à situação de continuidade, no dia-a-dia, de interacção, companhia, acção recíproca e mútua e que preenche as necessidades psicológicas e físicas da criança e do progenitor.
4- O interesse da menor em acompanhar o progenitor de referência para passar a residir com ele na ... é preponderante e superior ao direito de visitas ao pai com quem não convive. E esse direito de visitas tem de ser adaptado a essa nova realidade, não podendo constituir fundamento para impedir a deslocação da menor para o estrangeiro.

- Ac. da RP de 08/06/2022, processo 20390/19.0T8PRT-A.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, em cujo sumário consta:
II - Todavia, se os factos apurados revelarem que a progenitora constitui a figura primária de referência do menor de 4 anos de idade e com quem este sempre viveu, se não existirem factos objectivos que revelem não ser do interesse do menor continuar a viver com a progenitora, o tribunal deve fixar um regime das responsabilidades parentais que favoreça a manutenção da atribuição da guarda do menor à progenitora por forma a não ocorrer uma rutura, ou suspensão, da relação emocional e afetiva do menor com a progenitora cujas consequências seriam nefastas para um bom desenvolvimento do menor.

A mudança de país tem, naturalmente, impacto na relação pessoal, directa e regular com o progenitor a quem não for conferida a guarda da criança.

No entanto, tal realidade não constitui obstáculo a que seja concedida a guarda da criança ao progenitor que pretende mudar a sua residência para o estrangeiro.

A relação da criança com o progenitor sem a guarda pode ser mantida diariamente através dos meios de comunicação á distância, que comportam som e imagem, hoje facilmente acessíveis (e para os quais as crianças e jovens de hoje parecem dispor de competências inatas), permitindo, assim, a partilha das experiências quotidianas de ambos e o acompanhamento da vida do menor, e de estadias mais prolongadas da criança junto desse progenitor nas férias, sendo mais importante a qualidade da relação do que a quantidade.

E quanto á qualidade da relação impõe-se referir um aspecto.

Pese embora a separação dos pais, o superior interesse do filho demanda que, para o seu desenvolvimento saudável, o mesmo possa contar com o empenho e colaboração altruísta de ambos os progenitores e, neste sentido e consequentemente, a relação entre o filho e os progenitores – ambos os progenitores - deve estar num patamar segregado relativamente à relação dos progenitores entre si, afastando aquele dos potenciais ou efectivos conflitos entre estes.

Os problemas de relacionamento entre os progenitores devem ser mantidos e resolvidos entre eles e nunca transferidos para os filhos e muito menos podem os primeiros utilizar os segundos como instrumentos dos seus interesses egoístas, situações que, no limite, podem constituir uma verdadeira violência sobre os filhos, a demandar atenção e reação adequada por parte dos tribunais.

Tais situações, a existirem, são inaceitáveis e merecedoras de censura, pois colidem manifestamente com o altruísmo que deve presidir á relação dos pais com os filhos, desconsiderando que o fundamental é o superior interesse do filho e concretamente o seu salutar desenvolvimento a nível psicológico, emocional e moral e desconsiderando ainda que o filho não é “propriedade” dos pais, mas um sujeito autónomo de direitos.

O filho tem o direito a crescer e a desenvolver-se de forma saudável.

E os pais são os primeiros responsáveis por isso.

Impõe-se, assim, um exercício da paternidade altruísta, colaborante e não conflituante.

Uma nota final para dizer o seguinte.

Tratando-se, como se trata no caso, da adopção de uma medida provisória, importa que, em face dos elementos constantes do processo, a medida a adoptar tenda a promover o bem-estar físico, emocional e afectivo da criança, regularidade escolar, estabilidade residencial e relacional com os progenitores nos moldes, além do mais, geograficamente possíveis.

Assim e tendo em consideração tudo o supra exposto, a menos que alguma circunstância ponderosa o justifique, não deverão ser adoptadas medidas provisórias que impliquem uma ruptura abrupta na relação afectiva de referência, pois, manifestamente, contrariam o interesse superior do menor.

Impõe-se, portanto, como se refere no Ac. desta RG de 12/01/2017, processo  996/16.0T8BCL- .G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg) que, “tratando-se de uma decisão provisória, fundada nos poucos elementos até essa data recolhidos, o julgador deve nortear-se por princípios de razoabilidade, actuando com bom senso, prudência e moderação, protegendo os interesses dos menores”

7.3. Em concreto – Do interesse superior da criança
O tribunal recorrido decidiu que “A criança fica à guarda e cuidados da mãe, com quem fica a residir, exercendo esta as responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente da criança, podendo a progenitora fixar a sua residência em ....”

E para tanto ponderou:
Como resulta dos articulados do Requerente e da Requerida, o Requerente pretende ficar a residir em Portugal com o filho, apesar de ter nascido e residido em ... até .../.../2020, de ter dupla nacionalidade (... e portuguesa), de regularmente (mensalmente) se deslocar a ... (quer em trabalho, porque tem uma empresa com sede em ..., quer para ir ao médico, razões de saúde apesar), de ter património imobiliário em ... (uma casa e três apartamentos), de ter a sua residência fiscal em ... e aí pagar os seus impostos.
Por seu turno, a Requerida pretende viver em ... com o seu filho, uma vez que nasceu e residiu sempre em ... até .../.../2020, tem dupla nacionalidade (... e portuguesa), tem os seus pais e a sua sobrinha (com quem grande proximidade afectiva porque foi criada pelos seus pais) a residir em ..., não tem qualquer família em ... (a sua única irmã reside em ..., que se situa a mais de 130 km de ...) e perspectiva trabalhar em ....
A criança, por seu turno, quer viver em ... com a mãe porque nasceu e sempre residiu em ... até .../.../2020 e é nesse país que tem os seus amigos e a família mais próxima (avós maternos e a prima DD).
Não obstante o Requerente ter escolhido residir em Portugal, alegadamente por proporcionar melhor qualidade de vida e a segurança do a ..., essa sua escolha não pode prevalecer.
Com efeito, pese embora ter escolhido ... para residir (e pelos motivos invocados), o Requerente continua a ter, como acima já se disse, fortes ligações à ...: tem dupla nacionalidade (... e portuguesa), desloca-se regularmente à ... (onde passa vários dias seguidos em cada mês), tem a sua empresa em ... e o seu médico de família, tem património imobiliário em ..., residência fiscal em ... e aí paga os seus impostos, e tem ainda um irmão e sobrinhos a residir nesse país.
No caso de a residência do filho CC ser fixada com a mãe e de esta regressar a ..., o Requerente não fica impedido de estar e conviver regularmente com a mãe (salienta-se que não se apurou qualquer facto que fundamente o alegado receio do Requerente de que a progenitora leve o filho para local incerto, sendo certo que não nos parece provável que tal suceda, uma vez que a família mais próxima da Requerida vive em ... e esta conta, como resulta da materialidade apurada, com o seu apoio para refazer a sua vida em ...).
O Requerente pode estar com o filho sempre que se deslocar a ..., caso decida continuar em Portugal a residir e, como não tem qualquer impedimento de ordem profissional (porque a sua actividade de venda online de artigos eléctricos e electrónicos e de produtos dietéticos pode ser exercida em qualquer lado), pode até regressar a ... e aí ficar a residir.
Como decorre da matéria de facto provado, quer a progenitora, quer a criança (que afirma ter mais facilidade em relacionar-se com a mãe do que com o pai, o que se compreende pois a progenitora tem assumido o papel de principal cuidadora) sentem maior afinidade com o país onde nasceram e onde sempre viveram e, por isso, querem regressar.
As razões invocadas pelo progenitor para residir em Portugal (segurança e melhor qualidade de vida), nas circunstâncias actuais da vida da progenitora, com a ruptura do casamento, não relevam. Sem marido, é natural que a Requerida procure nos seus pais, que residem em ..., o conforto emocional e o apoio material de que necessita para refazer a sua vida (sendo certo que a Requerida, estando a casa e os apartamentos situados em ... arrendados, sempre poderá beneficiar das respectivas rendas). Compreende-se, por isso, que queira regressar a ... (ou arredores, designadamente a ..., onde residia com o progenitor antes de vir para Portugal).
Em ..., a Requerida não tem família e amigos, pelo que é natural que se sinta desenraizada, sozinha e infeliz, como aliás bem evidenciado na carta junta aos autos em 27/05/2021.
Nas referidas circunstâncias, se ficasse a residir em Portugal, a Requerida seria uma pessoa triste e não realizada, o que necessariamente e se repercutiria de forma negativa no exercício das responsabilidades parentais e no seu relacionamento com o filho.
Como se salienta no cit. Ac. do TRL, Um pai ou uma mãe que esteja privado da sua liberdade de acção e realização pessoal, profissional ou outra, não pode ser uma figura parental de referência para uma criança. Dito de outra forma, não podemos esperar que pais infelizes e diminuídos possam ser a figura parental de referência para uma criança. Assim como não podemos afirmar, em termos absolutos, que um progenitor é “bom” para a criança se viver num determinado espaço geográfico e já não o será, se alterarmos esse espaço.
Obrigar a Requerida (e consequentemente o filho) a viver em ... só porque o Requerente acha que Portugal é um país mais seguro e com mais qualidade de vida do que ... é um exercício gratuito de egoísmo e que, por isso, não pode ser atendido.
Acrescentamos, além disso, que não nos parece, no caso concreto, que os avós paternos devam ter o papel tão importante na educação do filho, como o progenitor lhes pretende atribuir (designadamente se se ausentar do país). Com efeito, o facto de o avô paterno, com o qual o menor ficar a residir nas ausências do progenitor, referir que em ... é só pretos, chineses e chocolates faz-nos temer que, na convivência com a criança, o avô lhe transmita preconceitos de ordem racial e xenófoba, o que é prejudicial ao seu são e harmonioso desenvolvimento.
Assim, porque a Requerida é a principal cuidadora da criança e o progenitor que mantém uma maior proximidade afectiva com a mesma, deve o CC ficar a residir com a mãe, em ... se esta assim o decidir, podendo esta matricular o CC no estabelecimento de ensino oficial daquele país.”

Podemos desde já dizer que a decisão recorrida não merece qualquer censura.

Mas vejamos, tendo em consideração o invocado pelo recorrente.

a) O recorrente invoca que a decisão recorrida foi precipitada e claramente violadora do superior interesse do menor.

Sem razão.

Em primeiro lugar a decisão está sustentada fáctica e juridicamente.

Em segundo lugar, a decisão recorrida observou de forma objectiva e rigorosa o principio orientador do interesse superior da criança que, como já se deixou explicado, implica o direito da criança de residir com a figura primária de referência que, como flui da factualidade provada, é a mãe, aqui recorrida.

Assim, está provado que:
15) A progenitora Requerida sempre cuidou e cuida do filho, atentos os períodos que o Requerente se ausenta em trabalho,
17) A Requerida e o menor foram a ... visitar a família (…) sendo que mesmo em ... a Requerida obrigou o menor a assistir às aulas online (…),
18) É a Requerida que assegura diariamente os cuidados de higiene, alimentação, carinho e estabilidade que o menor precisa
 19) O CC afirma que tem mais facilidade em relacionar-se com a mãe do que com o pai.

Ainda neste âmbito o recorrente alega que o fim que deve presidir nestes autos é o interesse e a estabilidade do menor e não a estabilidade e a vontade de apenas um dos progenitores, mesmo que pretenda regressar ao seu país de origem.

Se é verdade que o critério de decisão é o interesse superior da criança, já não tem fundamento a alegação de que o sentido de tal conceito seja a “estabilidade”, sendo que para o recorrente tal expressão tem um sentido muito próprio: o menor ficar a residir em Portugal, confiado á guarda do recorrente, a residir consigo e matriculado numa escola portuguesa.

Não só o recorrente não é - como se acaba de ver - a figura primária de referência, como a factualidade provada revela que:
i) o requerente desloca-se todos os meses a ... e aí passa pelo menos 10 dias em cada deslocação, pois é nesse país que se localiza a sede da sua empresa (ponto 14 dos factos provados);
ii) caso o filho fique a residir consigo em Portugal e o requerente tenha de se deslocar a ... e aí permanecer por alguns dias, o requerente perspectiva deixar o filho “em casa dos pais” (ponto 37 dos factos provados);
iii) o avô paterno, ouvido, afirmou, quando foi inquirido no tribunal, que em ... é só pretos, chineses e chocolates (sic) (poto 38 dos factos provados)

Sendo a recorrida a figura primária de referência, não é possível considerar como correspondendo ao interesse superior da criança mantê-la em Portugal, a residir com o recorrente, quando o mesmo todos os meses desloca-se a ... e aí passa pelo menos 10 dias em cada deslocação, ficando a criança em casa dos pais do recorrente,  com um avô paterno cuja verbalização não tem em conta o imperativo da dignidade de qualquer pessoa humana, independentemente da cor da pele, levando a que o tribunal recorrido se pergunte se não se trata de uma conduta “prejudicial ao (…) são e harmonioso desenvolvimento” da criança.

Mas além disso impõe-se notar aspectos adjuvantes.

Assim e desde logo resulta provado que (sublinhados nossos):
6) O Requerente, a Requerida e o filho menor sempre viveram em ... até .../.../2020, altura em que vieram viver para Portugal, mais concretamente para ...;
29) A Requerida e o seu filho (tal como o Requerente) nasceram, estudaram e viveram sempre em ... até .../.../2020;

Nesta situação, bem se pode dizer que para o menor, a mudança para Portugal é que foi uma verdadeira mudança para o estrangeiro.

Expressão disso é o facto de (sublinhado nosso) 8) O menor é bom aluno e fala fluentemente o português e o francês, mas afirma não ter feito amigos em Portugal e na escola;

Além disso, está provado (sublinhado nosso) que 12) O CC nunca quis residir em Portugal e 13) O CC quer residir com a mãe em ... e não quer continuar a viver em Portugal.

O CC nasceu a .../.../2010, tendo, portanto, á data da decisão, 11 anos, idade suficiente para expressar uma vontade consciente e livre e, assim, para afirmar onde pretende viver e com quem.

Em face de tudo o exposto e nomeadamente tendo em consideração que a figura primária de referência do menor é a recorrida, pretendendo a mesma voltar para ..., para onde também quer voltar o menor, não merece qualquer censura a decisão recorrida, de confiar a guarda do menor á mãe, com quem fica a residir, podendo a mesma fixar a sua residência em ....

b) O recorrente alega que o tribunal não valorou como deveria o facto de a recorrida não dispor de alojamento com as condições necessárias para residir com o menor, já que confirmou nos autos que iria residir no imóvel no apartamento anexo à portaria, dormindo na sala de jantar, como não tem qualquer atividade profissional em ....

Está provado que:
24) A Requerida perspectiva trabalhar como porteira em ..., na Rue ..., se regressar a ..., no próximo mês de Setembro, trabalho que actualmente é exercido pela sua mãe, que pretende aposentar-se;
25) Os pais na Requerida residem na Rue ..., no apartamento reservado a quem desempenha as funções de porteira;
26) Caso suceda à mãe no exercício daquelas funções de porteira, a Requerida passará a residir com o seu filho e com a sobrinha e afilhada DD, que reside em ... com os avós maternos, no referido apartamento;
27) Tal apartamento tem a área de cerca de 60 m2 e é composto por dois quartos, uma sala, uma cozinha equipada e uma casa de banho;
28) Caso tal emprego não se concretize, a Requerida perspectiva trabalhar como assistente de contabilidade;

Em primeiro lugar resulta da factualidade provada que a recorrida tem perspectivas de vida que dependem do seu regresso a ..., que só são susceptíveis de se concretizar com o seu regresso a ..., perspectivas essas que incluem quer uma actividade profissional, quer uma habitação.

Em segundo lugar, se flui da factualidade provada que a recorrida perspectiva vir a residir no apartamento reservado a quem desempenha as funções de porteira, não flui da factualidade provada que a mesma venha a dormir na sala de tal apartamento. Mas ainda que assim seja, tal facto não releva, pois não está em causa a criança.

Em terceiro lugar e como se afirma na decisão recorrida, “é natural que a Requerida procure nos seus pais, que residem em ..., o conforto emocional e o apoio material de que necessita para refazer a sua vida…”

Em quarto lugar resulta da factualidade provada (ponto 4) que no processo de divórcio o Requerente e a Requerida apresentaram, na tentativa de conciliação, a seguinte relação de bens comuns: Uma casa e um apartamento em ..., um apartamento em ... e um apartamento em ..., em ....

Da factualidade provada não resulta que este património esteja livre.

Mas só o facto de existir, abre um conjunto de possibilidades.

7.4. Em concreto – Partilha das despesas relativas à execução do regime convivial
O recorrente alega que a decisão recorrida não estabeleceu de forma inequívoca um regime de partilha de despesas no que respeita ao direito de convívio e visitas, que para além da pensão de alimentos, terá de custear toda e qualquer despesa caso queira estar com o seu filho, a recorrida deverá ser responsável pela partilha dos gastos relativos às visitas e convívios entre o menor e o progenitor.

Relativamente a esta questão o tribunal recorrido determinou:
3)- Direito de visitas e convívios:
O Requerente pode conviver com a criança sempre que o pretender, desde que avise a mãe com pelo menos 24 horas de antecedência, sem prejuízo das actividades escolares e descanso da criança;
Nas férias escolares do presente ano, o CC passará a primeira semana do mês de Agosto (de 1 a 8 de Agosto) com o pai, em Portugal ou em ..., assegurando o progenitor o seu transporte, recolha e entrega em casa da mãe, sem prejuízo de outro regime que os progenitores acordem;

O tribunal recorrido determinou que cabe ao pai, aqui recorrente, assegurar o transporte, recolha e entrega da criança em casa da mãe, sem prejuízo de outro regime que os progenitores acordem, o que significa que correm por conta do pai a realização das despesas de transporte necessárias à execução do regime convivial.

O recorrente pretende que o tribunal estabeleça a partilha das despesas quanto á execução do regime convivial, sem no entanto, diga-se desde já, especificar a que despesas se refere.

Vejamos

Parece emergir do alegado pelo recorrente que o direito de visita constitui um direito subjectivo do progenitor não residente e, por isso, passando o menor a residir no estrangeiro, em virtude da mudança de residência do progenitor com quem reside, este deve, só por isso, partilhar as despesas em que aquele tenha de incorrer para exercer aquele direito.

Um dos aspectos a que se refere o n.º 5 do art.º 1906º é o chamado direito de visita.

O art.º 9º n.º 3 da Convenção sobre os Direitos da Criança consagra que os Estados Partes respeitam o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança.

O direito de visita significa a possibilidade de o progenitor com o qual o filho não reside habitualmente e o filho se relacionarem e conviverem entre si, uma vez que tais relações não se podem desenvolver de forma regular, no dia á dia, devido ao facto de não coabitarem (cfr. Maria Clara Sottomayor, Regulação do exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 8ª edição, Almedina, pág. 130).

Este direito de visita goza de protecção constitucional, na medida em que o n.º 6 do art.º 36º da CRPortuguesa dispõe que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com ele e mediante decisão judicial, aqui se integrando, além do mais, o direito, liberdade e garantia do estabelecimento e manutenção da inter-relação entre progenitor não residente e filho.

Mas protegendo-se o estabelecimento e manutenção da relação entre pais e filhos, protege-se não apenas o superior interesse do filho em manter uma relação saudável com ambos os progenitores (o art.º 69º n.º 1 da CRP dispõe que as crianças tem direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral…), mas também o direito à realização pessoal do filho e do progenitor não residente, como pai, que emerge do disposto no n.º 1 do art.º 67º da CRP e que dispõe que a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito á protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.

O direito de visita assenta, assim, numa realidade de facto: o filho passa a residir apenas com um dos progenitores.

No entanto o legislador entende, também com base nessa realidade, que o estabelecimento e manutenção de laços afectivos com ambos os progenitores é essencial ao desenvolvimento saudável do filho (exceptuados os casos em que tal relação seja prejudicial para o mesmo e, portanto, seja de afastar tendo em consideração o seu superior interesse).

Na verdade, a ausência de tal convívio, da partilha de afecto e de outras experiências, gera naturalmente um empobrecimento psicológico, emocional, relacional e pode, no limite, se sentida como um abandono, ser profundamente perturbador de um desenvolvimento saudável.

A (con)vivência do filho com ambos os progenitores – desde que tais vivências sejam colocadas num patamar de complementaridade e não de oposição ou conflito - constitui uma via para o enriquecimento psicológico e emocional daquele e para o desenvolvimento das capacidades do mesmo.

A forma de permitir que o progenitor que não tem a guarda do filho e este estabeleçam e / ou mantenham proximidade e os laços afectivos (e não sejam dois estranhos), é através do direito daquele se relacionar, de conviver com o mesmo, dispondo o art.º 40º n.º 2 do RGPTC que “ é estabelecido regime de visitas que regule a partilha de tempo com a criança,…”

O direito de visita por parte do progenitor não residente constitui um meio de este manifestar o seu afecto pelo filho, de ambos se conhecerem reciprocamente e partilharem os seus sentimentos, as suas emoções, ideias, esperanças e valores mais íntimos (Maria Clara Sottomayor, Regulação do exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 8ª edição, Almedina, pág. 131), tem em vista promover o seu desenvolvimento físico e psíquico e é a realização da partilha das responsabilidades parentais com o progenitor residente no cuidado e assistência ao filho – o filho não é apenas filho do progenitor residente, mas de ambos.

Mas o direito-dever de visita, sem prejuízo de constituir para o progenitor não residente um direito à sua realização pessoal como pai, não constitui um direito subjectivo do mesmo, na medida em que está sempre subordinado ao superior interesse do filho.

Neste sentido e pese embora tenha sido proferido no âmbito de legislação que ainda falava em “poder-paternal”, consta do sumário do Ac. da RC de 31/01/2006, proc. 4027/05, consultável in www.dgsi.pt/jtrc: “1. O direito de visita do progenitor não guardião não representa uma faculdade, um direito subjectivo do parente do menor, mas antes um direito a que estão associados deveres, nomeadamente, o dever de se relacionar com os filhos com regularidade, em ordem a promover o seu desenvolvimento, físico e psíquico, e o dever de colaborar com o progenitor guardião no cuidado dos filhos e na assistência aos mesmos prestada, sendo, nas situações de fraccionamento do poder paternal, a janela ainda aberta para um espaço de realização pessoal do menor que importa, sobremaneira, preservar.”

Assim, juridicamente, analisado sob o ponto de vista do filho, constitui um dever do progenitor não residente, uma vez que é responsabilidade dos pais, no que respeita à pessoa dos filhos, promover o seu desenvolvimento psicológico (Maria Clara Sottomayor, ob. cit. pág. 132).
           
Muito embora o direito do filho à convivência com o progenitor não residente traduza, para o mesmo, num dever, isso não determina, por si só, que deva suportar in totum as despesas em que tenha de incorrer para poder conviver com o filho, sobretudo quando o progenitor guardião passa a residir no estrangeiro.

Se o estabelecimento e manutenção de laços afectivos com o progenitor não residente é essencial ao desenvolvimento saudável do filho, se constitui uma via para o enriquecimento psicológico e emocional daquele e para o desenvolvimento das capacidades do mesmo, se a forma de permitir que o progenitor que não tem a guarda do filho e este estabeleçam e / ou mantenham proximidade e os laços afectivos é através do direito daquele se relacionar, de conviver com o mesmo, então ambos os progenitores devem colaborar na execução do regime convivial, pois como dispõe o art.º 1885º n.º 1 do CC, cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.

Neste ponto, importa ter em consideração o nº 7 do art.º 1906º do Código Civil o qual dispõe: “O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles”.

Impõe-se precisar que quando se fala em despesas inerentes á execução do regime convivial, estamos a falar, essencialmente, de despesas de transporte da criança entre o país em que a mesma reside e o país em que reside o progenitor com quem a criança não reside.

Se ambos os progenitores devem colaborar na execução do regime convivial, de acordo com as suas possibilidades, então aquelas despesas devem ser suportadas principalmente por aquele que dispõe de melhores condições económicas para o fazer.

Mas hão-de ser, sempre, ponderadas as circunstâncias do caso concreto.

Como já se referiu, o recorrente não especifica as despesas que pretende ver partilhadas com a recorrida.

Certamente não podem ser as despesas de transporte do recorrente de Portugal a ... para visitar o filho sempre que o desejar – ponto 3 do decisório – porquanto está provado que 14) O Requerente desloca-se todos os meses a ... e aí passa pelo menos 10 dias em cada deslocação, pois é nesse país que se localiza a sede da sua empresa.

Tendo em consideração a decisão recorrida - Nas férias escolares do presente ano, o CC passará a primeira semana do mês de Agosto (de 1 a 8 de Agosto) com o pai, em Portugal ou em ..., assegurando o progenitor o seu transporte, recolha e entrega em casa da mãe… - que estabelece a possibilidade de a criança passar as férias com o pai, em Portugal, apenas podem estar em causa despesas de transporte do menor.

Tendo em consideração que o recorrente tem uma empresa com sede em ... que se dedica à venda de telefones, telemóveis e produtos similares, que certamente lhe proporciona rendimentos, de tal forma que lhe permitem deslocar-se todos os meses a ... e aí passar pelo menos 10 dias em cada deslocação e que a recorrida perspectiva  trabalhar como porteira em ..., na falta de outros elementos – que o recorrente também não invocou – não existem razões para alterar a decisão recorrida, ao determinar que caso se verifique a deslocação do menor para passar férias com o pai em Portugal, cabe ao pai, aqui recorrente, assegurar o transporte, recolha e entrega da criança em casa da mãe e, assim, custear o transporte da criança.
           
7.5. Em concreto - Exercício das  responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho
No ponto III da decisão recorrida e que integra a fundamentação jurídica da decisão recorrida, afirma-se:
“As responsabilidades parentais quanto ás questões de particular importância serão exercidas por ambos os progenitores”.

Porém, no ponto IV, que integra o decisório e, mais concreto no ponto 2) consta:
“As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança, nomeadamente, no que respeita á saúde e educação serão exercidas exclusivamente pela progenitora.”

O recorrente pede que esta Relação “esclareça qual das versões é a correta, ou seja, se as responsabilidades parentais relativas ás questões de particular importância deverão ser exercidas em conjunto (como é regra), ou apenas por um dos progenitores (como é excepção)”.

Dispõe o n.º 1 do art.º 1906º do CC:
1 - As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.

Esta é a regra

Mas o n.º 2 do mesmo normativo dispõe.
2 - Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.

E o art.º 1906.º-A do CC dispõe que:
Para efeitos do n.º 2 do artigo anterior, considera-se que o exercício em comum das responsabilidades parentais pode ser julgado contrário aos interesses do filho se:
a) For decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre progenitores, ou
b) Estiverem em grave risco os direitos e a segurança de vítimas de violência doméstica e de outras formas de violência em contexto familiar, como maus tratos ou abuso sexual de crianças.
           
E, em desenvolvimento desta norma, os n.ºs 8 e 9 do art.º 40º do RGPTC dispõem:
8 - Quando for caso disso, a sentença pode determinar que o exercício das responsabilidades parentais relativamente a questões de particular importância na vida do filho caiba em exclusivo a um dos progenitores.
9 - Para efeitos do disposto no número anterior e salvo prova em contrário, presume-se contrário ao superior interesse da criança o exercício em comum das responsabilidades parentais quando seja decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores.

Em face das disposições legais citadas, não pode haver dúvidas de que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho do recorrente e recorrida são exercidas em comum por ambos os progenitores, nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, não havendo na factualidade provada quaisquer elementos que permitam concluir que o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho é contrário aos interesses deste, não se verificando, em concreto, nenhuma das situações a que se refere o artigo 1906º A do CC e o n.º 9 do art.º 40º do RGPTC.

Em face do exposto, impõe-se revogar o ponto 2 da decisão recorrida, a qual se substitui por outra com o seguinte conteúdo:
As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio,
           
8. Decisão
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência, revoga-se o ponto 2) da decisão recorrida, a qual se substitui por outra com o seguinte conteúdo: 2) As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, mantendo a decisão recorrida em tudo o mais
*
Custas por recorrente e recorrida que se fixam em 90% e 10%, respecivamente - art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 27/04/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
José Fernando Cardoso Amaral