Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1194/16.9T8VCT.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACTO INÚTIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
RISCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Numa acção de indemnização baseada em acidente de viação, nada impede e tudo impõe que o Tribunal a quo (e a Relação) apreciem a eventual responsabilidade civil da ré à luz das regras que regem a responsabilidade objectiva, e dentro desta, pelo risco, apesar de na petição inicial os autores só terem pedido a condenação à luz da responsabilidade civil subjectiva, por factos ilícitos.
2. Numa situação em que dois veículos se cruzam e sem se ter apurado a causa, e sem ter colidido com o outro veículo, o veículo do autor sai da estrada e vai contra um muro, não é possível responsabilizar o outro condutor nem sequer com recurso à responsabilidade objectiva (art. 503º,1 CC), porque não se provou a existência de nexo causal entre o risco próprio da circulação daquele veículo e os danos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

A. P. e M. P., por si e em representação do seu filho menor S. V., com sinais nos autos, intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum, contra, “X Seguros, S.A“, pedindo a condenação da ré a pagar aos Autores a quantia de € 11.286,90 a título de danos patrimoniais; a quantia de € 9.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento e ainda pagar aos Autores, a título de danos corporais (e dano patrimonial futuro) a quantia que se vier a apurar em execução de sentença actualizada com referência à data mais recente que puder ser atendida e acrescida de juros, à taxa legal, até integral pagamento.
Em síntese alegou que no dia 26 de Novembro de 2014, cerca das 8h00m, a Autora circulava com esse veículo na Rua do ..., no sentido sul-norte, em direcção à Avenida ...; ao aproximar-se da curva à direita – atento o seu sentido da marcha e a menos de 10 metros desta, viu surgir, à sua frente, o veículo automóvel com a matrícula RM, que vinha em sentido contrário, em grande velocidade; a Autora, ao ver parcialmente ocupada pelo RM a hemi-faixa por onde ela circulava com TL, ainda travou e guinou o seu veículo automóvel totalmente para a direita, evitando o embate com o RM; Não fosse a condução do condutor do RM, desatenta, em excesso de velocidade e a circular na faixa por onde seguia a Autora, a condutora do TL não precisava de se desviar, totalmente, para a sua direita, para evitar o embate entre os veículos, nem tinha ido embater no portão e num dos pilares da moradia sita na Rua do ..., nº ...; em consequência deste acidente os Autores sofreram danos patrimoniais relativos à reparação do veículo e danos não patrimoniais.

A Ré contestou, impugnando os factos alegados pelos Autores, alegando ao invés que o acidente ocorreu por culpa única e exclusiva da Autora.
Concluiu pela improcedência da acção, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do estrito formalismo legal, como se verifica da acta respectiva.

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente, nos autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º,1,a, 645º,1,a e 647º,1, todos do CPC).
Terminam a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1º- Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente, por não provada e absolveu a Ré do pedido. Esta sentença enferma de nulidades, incorre em erro de julgamento da matéria de facto e em erro de interpretação e aplicação do direito, revelando-se injusta e desproporcionada.
NULIDADE DA SENTENÇA por violação do disposto nos arts. 607.º e 615.º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil
2º- Os art.º 205.º, n.º 1 da CRP e 154.º do CPC impõem ao juiz o dever de fundamentar a decisão e esta obrigação representa um importante sustentáculo da legalidade, constituindo o direito à fundamentação um instrumento fundamental da garantia contenciosa, pois que é elemento indispensável na interpretação da decisão judicial.
3º- Fundamentar é enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram ao Tribunal a tomar aquela decisão, é enunciar as premissas de facto e de direito. Só o dever de fundamentação permite harmonizar o direito fundamental dos cidadãos a conhecerem os fundamentos factuais e as razões legais que permitiram ao Tribunal chegar onde chegou.
4º- A sentença deve discriminar os factos tidos como provados e não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza), bem como a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito) e expor o processo lógico e racional que seguiu, desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).
5º- Estatui o n° 4 do art. 607° do CPC que "Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência".
E dispõe o art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Cód. Processo Civil que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
6º- Na sentença de que se recorre o M. Juiz a quo não fez o exame crítico das provas de que lhe cumpria conhecer, não explicitou, minuciosamente, quais os vários meios de prova que concorreram para a formação da sua convicção nem o motivo porque desconsiderou, para muitos pontos da matéria de facto, os demais, principalmente a prova documental e até a pericial, nem os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro (em especial as razões porque as declarações dos Autores M. P. e S. V. só são credíveis para alguns pontos).
7º- A omissão da fundamentação da matéria de facto, o insuficiente exame crítico da prova, a ausência de explicação e motivação da decisão, correspondem à falta de fundamentação total e acarretam a nulidade da sentença proferida no caso sub judice – que não é de mero expediente – por violação dos arts. 607° e 615°, nº 1 alínea b), ambos do CPC.

NULIDADE DA SENTENÇA por violação do disposto nos arts. 607.º, nº 4 e 615.º, nº 1, al. c), do Cód. Proc. Civil
8º- Dispõe o art. 615º, n° 1, c) do CPC que: “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível".
9º- A sentença deve ter coerência lógica – os fundamentos e a decisão não podem ser contraditórios, a decisão proferida não pode seguir caminhos opostos dos fundamentos que aponta. A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível pois é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. A sentença é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
10º- A decisão de dar como não provado que «na reparação do portão e pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ..., os Autores despenderam a quantia de 1.266,90€» (alínea f) é ininteligível e obscura, na medida em que não se consegue perceber como se pode dar como não provado o valor da reparação paga pelos Autores à senhora testemunha M. C., que é a dona do muro que foi reparado e que assegura ter sido paga essa reparação por banda dos Autores e indica o valor aproximado da mesma - «passou dos 1.000,00€» - sendo, inclusivamente, esse valor provado por um documento - o documento 4 junto com a p.i. onde consta que o valor da reparação do portão e pilares da moradia foi de 1.030,00€ acrescido de IVA à taxa legal em vigor - e dar-se como provado que foram os Autores quem pagou essa reparação, o que acarreta a nulidade da sentença proferida no caso sub judice, por violação dos art.°s 607.° n.º 4 e 615.°, n.º 1 alínea c), ambos do CPC.
11º- A decisão de dar como provado que «O veículo RM ficou imobilizado na via e sem poder circular» (ponto 9) é contraditória e ininteligível porque foi dado como provado que o veículo que «foi rebocado, nesse mesmo dia, para uma oficina (…)» foi o TL, que é o dos Autores (ponto 10) - e só é rebocado um veículo acidentado que não pode circular … - , o que acarreta a nulidade da sentença proferida no caso sub judice, por violação dos art.°s 607.° n.º 4 e 615.°, n.º 1 alínea c), ambos do CPC.
NULIDADE DA SENTENÇA por violação do disposto nos arts. 607.º, nº 4 e 615.º, nº 1, al. d), do Cód. Proc. Civil
12º- Dispõe o art. 615º, nº 1, al. d) do CPC que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
13º- A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais matérias não são os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença e sim os problemas concretos a decidir, as questões que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art.º 608.º, n.º 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
14º- A decisão sub judice de dar como provado que «A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava» (ponto 20), mas sem concluir ou explicar o que mais realizava a Autora (e os Autores alegaram, em sede de p.i. que a Autora realizava trabalhava em casa - sendo a única responsável por toda a lide doméstica - e ocasionalmente, realizava limpezas, para fora) não se pronuncia, efectivamente, sobre que outra actividade profissional a Autora efectuava/realizava para além do trabalho doméstico, em casa, é nula por violação dos arts. 607° n.º 4 e 615.°, n.º 1 alínea c), ambos do CPC.
15º- A decisão sub judice de dar como provado que «Os Autores ficaram sem o veículo automóvel que lhes era indispensável no seu dia a dia, seja para as deslocações profissionais, seja nas deslocações pessoais» e que «A Ré jamais colocou à disposição dos Autores qualquer outro veículo para substituir o TL, que era essencial para a vida diária destes» e não se pronunciar sobre o montante dos danos resultantes da privação de uso do seu veículo automóvel [que os Autores indicaram, na p.i., serem no valor diário de 40,00€ e calculados desde a data do acidente até ao dia em que o Autor recebeu a carta da seguradora a considerar a perda total do veículo, perfazendo, para os 83 dias, o valor total de 3.320,00€] é nula por violação dos arts. 607° nº 4 e 615°, nº 1 alínea c), ambos do CPC,
16º- Até porque no ponto 12 dos factos dados como provados escreve-se que «Os Autores, porque precisavam de um automóvel e não tinham outro, tiveram de comprar um veículo para substituir o TL, no que despenderam a quantia de 6.700,00€», tal qual era peticionado.
17º- A decisão sub judice de dar como provado que «Após o embate, a Autora ficou encarcerada no veículo, sem se poder mexer, com dificuldade em respirar, dores no peito e nas pernas e sem conseguir ver se o seu filho menor estava bem, tendo perdido a consciência» (ponto 17), que «Quando os bombeiros chegaram ao local procederam ao desencarceramento da Autora; prestaram-lhe e ao seu filho menor, os cuidados básicos e conduziram-nos, a ambos, de ambulância, para a ULSAM - Hospital de ..., onde receberam os primeiros tratamentos e efectuaram vários exames - incluindo RX e TAC» (ponto 18) e que «Como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito resultaram na Autora M. P., as seguintes lesões: fracturas de costelas - da 7ª e 8ª arco costal direito, segundo TC ao joelho “discreta redução da espessura do menisco interno, não se observando lacerações, um discreto derrame inespecífico intra-articular, colectado em especial no espaço retro-rotuliano e na vertente externa do joelho, aqui com ligeira distensão localizada na cápsula articular» (ponto 19) sem se pronunciar sobre o montante destes danos não patrimoniais (pelo menos os enunciados nos referidos pontos 17 a 19 dos factos provados) cujo ressarcimento os Autores peticionam, é nula por violação dos arts. 607° nº 4 e 615°, nº 1 alínea c), ambos do CPC.
18º- A decisão sub judice de dar como provado que «Quando os bombeiros chegaram ao local procederam ao desencarceramento da Autora; prestaram-lhe e ao seu filho menor, os cuidados básicos e conduziram-nos, a ambos, de ambulância, para a ULSAM - Hospital de ..., onde receberam os primeiros tratamentos e efectuaram vários exames - incluindo RX e TAC» (ponto 18) e que «Em resultado do acidente, o Autor S. V. tem receio de andar de automóvel» (ponto 22) mas não se pronuncia sobre o montante destes danos não patrimoniais (pelo menos os enunciados nos referidos pontos 18 a 22 dos factos provados) cujo ressarcimento os Autores peticionam, é nula por violação dos arts. 607°, nº 4 e 615°, nº 1 alínea c), ambos do CPC.

ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO

19º- Dispõe o art.º 607º nº 5 do CPC “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, ressalvando que “a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
20º- O princípio da livre apreciação da prova não concede ao juiz o direito de fazer uma apreciação da prova totalmente arbitrária, deixando de fazer uma análise crítica de todas as provas coligidas, seja testemunhal, documental ou pericial, confrontando-as e retirando dessa confrontação as devidas conclusões pois tem de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida e extrair dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
21º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos ao acidente de viação em questão (pontos a) a e) dos factos dados como não provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
22º- A degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal» já que por um lado, «a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspecção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal (arts. 389, 391 e 396 do Código Civil), sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento»; por outro lado, «desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos factores a ter em conta na valoração do testemunho», por outro lado ainda, «o texto do artigo 466º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu carácter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova» e, finalmente, «o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório. Dito de outra forma, tal equivaleria a raciocinar assim: não acredito na parte porque é parte, procurando nas declarações da mesma detalhes que corroborem a falta de objectividade da parte sempre no intuito de confirmar tal ponto de partida» (Juiz Desembargador Luis Filipe Pires de Sousa, op. cit).
23º- Considerando:
a) o teor das declarações da Autora M. P. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:08:26 a 10:23:20) que disse: Era por volta das 8h, 8h e pouco, eu ia para levar o meu filho à escola, para depois ir trabalhar. A poucos metros da minha casa, tive um acidente, ali numa ligeirinha curva, em que me deparei com um carro na minha via (…), depois ao chegar ali naquela curvinha, deparei-me com um carro na minha via (…) e eu para não bater no senhor, o impulso foi guinar para o outro lado, para o lado contrário e fui bater na casa de uma vizinha, pronto no portão e num pilar (minutos 01.29 a 01:23);
b) o teor das declarações do Autor, menor, S. V. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:27:47 a 10:36:31) que não era condutor de nenhum veículo, mas passageiro – e o único e corroborou as declarações da M. P., dizendo: Nós estávamos a sair de casa, eu ia para a escola, e quando nós estávamos a chegar ao sítio que aconteceu o acidente apareceu um carro em alta velocidade à nossa frente e a minha mãe desviou-se para não bater no carro (…) esse carro estava no nosso lado (…). Tinha uma curva, mas dava para ver, dava para o outro carro ver se vinha alguém, ele não estava a prestar atenção (…) O outro condutor não estava a prestar atenção porque ele vinha na nossa faixa e não devia (minutos 00:54 a 01:44 e 01:06 a 02:14);
c) a prova documental existente nos autos que acaba por confirmar o teor das declarações de parte, nomeadamente:
i) a sentença proferida no Processo nº 3464/15.4T8VCT, do Tribunal de Instância Local, Secção Cível, J3, onde era Autora A. M., a segurada da aqui Ré X e proprietária do veículo automóvel com a matrícula RM que era conduzido por J. M. (veja-se o ponto 3 dos factos provados), e Ré a Y Companhia de Seguros, S.A, seguradora dos aqui Autores, proprietários do veículo automóvel com a matrícula TL, e se peticionava o pagamento de uma indemnização a título de danos alegadamente sofridos em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 26 de Novembro de 2014 - que é precisamente o acidente que se discute nestes autos, com o mesmo circunstancialismo de tempo e lugar mas em que são Autores os proprietários do veículo TL e Ré a seguradora da proprietária do veículo RM - e cuja acção foi julgada totalmente improcedente, por não provada e a seguradora dos Autores absolvida do pedido, constando ainda dos factos dados como não provados que “Ao descrever a curva para a sua direita existente no local atento o seu sentido de marcha, o TL invadiu parcialmente a faixa pela qual circulava o “RM”, e da motivação dessa mesma sentença a prova produzida pela Autora foi manifestamente insuficiente não tendo permitido ao Tribunal ficar com a convicção de que a responsabilidade no embate do veículo RM nos pilares de madeira e na rede se deveu à conduta do condutor segurado na Ré. Da prova produzida resulta a convicção contrária»; e, embora, nos presentes autos o vertido nesta sentença não tenha valor de caso julgado, pode ser utilizado, atento o princípio da eficácia extra-processual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do CPC;
ii) o croquis do acidente junto como documento nº 1 com a p.i. elaborado pela testemunha C. S., agente da GNR, que o confirmou e onde se pode verificar que a via fazia «ali numa ligeirinha curva» à direita, atento o sentido da marcha da Autora;
d) as regras da experiência comum que nos apontam para, quando a via faz uma ligeira curva à direita, no sentido Sul/Norte (ver croquis) ser normal que o condutor do veículo que segue nesse sentido de trânsito, faz a curva, permanecendo na sua hemi-faixa (é o caso da Autora, que conduzia o TL) mas o condutor do veículo que segue na mesma via, mas em sentido contrário – Norte/Sul – tem tendência para “cortar” essa curva e invadir a hemi-faixa contrária (é o caso do condutor do veículo RM),
e) e ainda o que é lógico e racional que uma condutora, que vai para o trabalho e transporta, no seu carro, o seu filho menor para o levar à escola e segue, normalmente, na sua mão de trânsito, trave e guine para a direita quando vê a sua hemi-faixa de rodagem obstruída e queira evitar o embate com esse obstáculo, tal como partilhou a testemunha R. C. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:41:16 a 10:57:49) que chegou ao local imediatamente a seguir ao acidente e reconheceu: “Vendo o acidente com certeza que alguém se meteu na frente dela ou vinha pela faixa dela, mas não vi, como estou a dizer doutor, mas a maneira como ela guinou e bateu no portão depois de ter saído de uma meia curva que lá tem, só pode ser porque alguém vinha contra ela” (minutos 10:11)
impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito da forma como o acidente ocorreu, devendo ADITAR-SE aos factos provados os seguintes pontos:
24. A Autora circulava nas circunstâncias descritas em 2), pela sua mão de trânsito, atento o sentido da marcha, a uma velocidade inferior a 40kms/hora.
25. A Autora ao aproximar-se da curva à direita – atento o seu sentido da marcha
26. e a menos de 10 metros desta, viu surgir, à sua frente, o veículo automóvel com a matrícula RM, que vinha em sentido contrário, em grande velocidade.
27. O condutor do RM aproximou-se inopinadamente do eixo divisório da estrada, transpô-lo parcialmente, e passou a circular pelo corredor de circulação da esquerda, atendo o seu sentido da marcha.
28. A Autora, ao ver parcialmente ocupada pelo RM a hemi-faixa por onde ela circulava com TL, ainda travou e guinou o seu veículo automóvel totalmente para a direita, evitando o embate com o RM.
29. Não fosse a condução do condutor do RM, desatenta, em excesso de velocidade e a circular na faixa por onde seguia a Autora, a condutora do TL não precisava de se desviar, totalmente, para a sua direita, para evitar o embate entre os veículos, nem tinha ido embater no portão e num dos pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ....
24º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos ao veículo que ficou imobilizado na via e sem poder circular (ponto 9 dos factos dados como não provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
25º- Tendo em conta
a) o que disse a Autora M. P. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:08:26 a 10:23:20): “O carro ficou muito mal, a parte da frente onde embateu no muro ficou, ficou quase junta com a parte … sem a parte da frente (…) O carro não foi reparado. Entretanto levaram o carro para uma oficina e fizeram a peritagem e o carro não foi reparado porque o valor da reparação era mais que o valor do carro” (minutos 05:44-05:55, 05:56-06:00, 06:03-06:18);
b) e o que disse o Autor, menor, S. V. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:27:47 a 10:36:31) que corroborou as declarações da M. P.: “O carro ficou todo destruído e não foi reparado porque o arranjo era muito caro” (minutos 07:10-07:11, 07:15-07:20 e 07:19-07:24)
c) o afirmado pelo dono da oficina para onde foi levado o carro dos Autores, a testemunha C. F. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 11:19:17 a 11:26:11): “O carro foi dado como salvado. É assim, perda total. Esteve na oficina muito mais do que 3 meses” (minutos 02:27, 02:20-02:3 e 02:59-03:01);
d) o que resulta do documento nº 2 junto com a petição inicial que é a missiva enviada pela Ré ao Autor a comunicar a perda total da sua viatura;
e) que foi dado como provado - ponto 10 dos factos - que o veículo dos Autores «foi rebocado, nesse mesmo dia, para uma oficina»;
f) e que as regras da experiência nos apontam que só é rebocado um veículo acidentado que não pode circular …impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito de qual dos veículos intervenientes no acidente ficou imobilizado na via e sem poder circular e deve ALTERAR-SE a redacção do ponto 9 dos factos dados como provados para a seguinte: “9 - o veículo TL ficou imobilizado na via e sem poder circular”.
26º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos ao que foi pago pelos Autores pela reparação do portão e dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ... contra os quais foi embater o veículo TL (ponto f) dos factos dados como não provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
27º Atendendo:
a) ao documento nº 4 junto aos autos com a petição inicial onde estão discriminados os trabalhos a realizar para reparação do portão e pilares do muro da moradia onde embateu o veículo tripulado pela Autora e o preço dessa obra - 1.030,00€ acrescido de IVA à taxa legal em vigor que perfaz o montante de 1.266,90€,
b) ao teor das declarações de parte de
i) M. P., Autora (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:08:26 a 10:23:20) que referiu “Como as seguradoras nunca se entenderam, nós não queríamos mau ambiente com a vizinha porque ela tinha aquilo, a própria entrada dela quase não dava para entrar com o carro dela. Fomos à vizinha e dissemos-lhe que pedissem um orçamento que nós nos responsabilizaríamos por pagar no fim, porque ela não tinha culpa daquilo que tinha acontecido (…) e pagamos essa reparação” (minutos 06:50 a 07:32)
ii) S. V., Autor, menor (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:27:47 a 10:36:31) que reconheceu que “Quem pagou a reparação dos muros foi a minha mãe” (minutos 07:49 a 07:51)
c) ao depoimento da testemunha M. C., dona da referida moradia (depoimento prestado no dia 20/04/2021 a 11:10:25- 11:15:02), que assegurou que quem pagou tal reparação foi a Dª M. P. (minuto 02:15) e, quanto ao valor da reparação, que isso já foi há tanto tempo que eu ao certo não sei, mas sei que passou dos 1.000,00€ (minutos 03:02-03:06);
d) e também que consta no ponto 3 dos factos provados que «Os Autores tiveram de pagar a reparação do portão e dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ... contra os quais foi embater o veículo TL», impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito do pagamento da reparação do muro e deve ADITAR-SE aos factos provados o seguinte ponto:
30 - Na reparação do portão e pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ..., os Autores despenderam a quantia de 1.266,90€.
28º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos à actividade profissional desenvolvida pela Autora M. P. (ponto 20 dos factos dados como provados) e aos danos sofridos pela Autora M. P. e pelo Autor S. V., em consequência do acidente (pontos g) a p) dos factos dados como não provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
29º- Os dados de facto pressupostos da prova pericial estão sujeitos à livre apreciação do juiz. Porém, o juízo científico que encerra o parecer pericial só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica. Daí que sempre que entenda afastar-se do juízo científico – em particular os pareceres médico-legais que são dotados de especial densidade técnica e obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica é universalmente reconhecida – o tribunal deve motivar, com particular cuidado, a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva ou a não a atender.
30º- Conjugando os factos dados como provados nos pontos 17 a 21 a) com as declarações de parte
i) S. V., Autor, menor (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:27:47 a 10:36:31) que assegurou: “A minha mãe ficou com vários problemas. Um dos problemas foi no joelho, que ela bateu com o joelho no carro no momento do acidente. Ao bater o joelho, bateu no carro e ficou lá com um problema muito grande, que ela não consegue fazer nem movimentos muito intensos com o joelho, porque dá muitas dores. (…) Ainda agora ela não consegue ajoelhar-se nem fazer movimentos muito amplos (…). Fazia caminhadas e depois do acidente faz menos, às vezes e queixa-se de dores e antes não se queixava (…) Deixou de fazer aulas de zumba (…) Ficou com um problema nas costas também. Ao baixar-se não consegue abaixar muito bem porque lhe dá dores” (minutos 04:58, 05:01-05:12, 05:38, 05:46-06:03, 06:05-06:14, 06:20-06:29)
ii) M. P., Autora (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:08:26 a 10:23:20) que assegurou “Fiquei em pânico, porque tinha o meu filho ao meu lado, ele tinha 10, 11 anos (…) Lembra-me que fiquei assustada (…) A minha preocupação era perceber se o meu filho estava bem e tentar movimentar-me que não conseguia (…) A única coisa que eu ainda me lembro é do susto e por aquilo que passei (…) Fiquei como estou hoje, e sinto-me um bocado revoltada porque a minha qualidade de vida já nunca mais foi a mesma. Eu parti duas costelas, não sei se isso está registado ou não, e fiquei com um problema muito grande aqui no joelho. Se olharem hoje para ele aqui como está, dá bem para perceber como é que ele ficou. E pronto, perdi muita qualidade de vida, deixei de fazer coisas que gostava de fazer, que agora não faço, tipo uma caminhada a pé, porque não consigo, deste joelho tenho andado sempre a tratar, mas também o problema está aqui, e vem mudanças de tempo e dói mais, e vem, pronto deixei de poder fazer alguns trabalhos que fazia, tipo limpar por baixo de mesas, onde tenho que andar ajoelhada, armários… Aliás deixei de fazer esse trabalho porque já não conseguia fazê-lo correctamente como os meus patrões estavam habituados que eu fizesse. Deixei de fazer limpezas (…) Eu nessa altura ganhava a 5 euros à hora. Trabalhava nos centros comerciais fazia todos os dias. Nas casas particulares, eu tinha quatro patrões e fazia uma vez por semana cada um deles. Nalguns fazia tardes, noutros fazia só manhãs e num deles fazia o dia todo, terça-feira (…) Depois do acidente tentei continuar com as limpezas, sim, ainda andei um ano a lutar com isto. Não era a mesma coisa. Não desempenhava o meu papel como queria. Só um dos patrões é que me disse que continuasse com eles, que eles entendiam a minha situação, os outros não. Não gostavam daquilo que eu consegui fazer, porque estavam habituados… Estou-me a lembrar que dois dos patrões tinham mesas de vidro, eu tinha que andar por baixo da mesa de joelhos para limpar por baixo, porque se vê as impressões digitais, que era uma das coisas que eu não conseguia fazer, eu limpava a mesa, mas ela ficava sempre suja porque eu não aguento, agora não aguento mesmo nada porque isto de dia para dia tem piorado Antes do acidente eu não tinha nenhum problema. Isto começou na altura do acidente (…) É verdade que tenho dificuldade em subir e descer escadas, ajoelhar, sim. O joelho não tem a manobra, não consigo manobrá-lo. Também deixei de frequentar umas aulas de zumba, que frequentava. A única coisa que eu conseguia fazer era natação, porque como deixei de caminhar, tive o problema de começar a perder mobilidade. A médica de família aconselhou-me a ir para a natação e agora neste momento como não há natação estou parada, sinto-me presa completamente” (minutos 03:38-03:43, 03:53, 04:33, 07:41, 09:11-10:03, 10:09-10:58, 11:10-12:10 e 13:49-14:17)
b) com os depoimentos das testemunhas que confirmaram aquelas declarações
i) R. C. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:41:16 a 10:57:49) que se deslocou ao local, ainda a Autora M. P. se encontrava dentro da viatura acidentada, relatou o estado dos Autores M. P. e S. V. que acompanhou à unidade hospitalar e descreveu o que lá se passou e relatou o estado de saúde da autora M. P. desde o acidente até à actualidade: “A minha irmã M. P. ficou com sequelas psicológicas e físicas bastantes (…) Partiu duas costelas, foi o que o exame acusou (…) Ela custava-lhe muito respirar e depois do susto e da dor, berrava muito e eu estava sempre a pedir para ela não se esforçar para não ter tanta dor, mas ela estava tão assustada e tinha tantas dores que eu pensei que ela morresse abafada, que ela não podia mesmo, custava-lhe muito respirar (…) Antes do acidente era uma pessoa saudável, não tinha nada de maior (…) Depois do acidente ficou com problemas. Ela até teve de deixar um trabalho que tinha por causa dos joelhos que não podia fazer esforço em cima dos joelhos, assim como aninhar, ajoelhar para fazer as limpezas que andava a fazer e depois esteve muito tempo sem trabalhar, que ela não podia e depois teve que arranjar outro trabalho (…) Ela fazia caminhadas, muitas vezes, sempre que podia ela, o marido e o filho. Depois deixou de fazer porque ela dos joelhos, pelos menos um joelho ficou assim muito inchado, com líquido e andou muito tempo nos médicos e esteve muito mal (…) Nessa altura ela não conseguia tratar da lide doméstica, porque ela não se podia movimentar, agora vai fazendo. Teve que deixar alguns trabalhos que tinha por causa de não aguentar. Porque não se aguentava muito tempo em cima dos joelhos na mesma posição e da coluna lombar, e até hoje sofre. Para passar a ferro nos primeiros tempos também não podia por causa do braço e das costelas e agora vai fazendo (…) Na casa dos clientes esteve tempo sem fazer limpezas (…) Ela está sempre a queixar-se de tudo, sempre, e é como lhe diz o osteopata onde ela anda já não tem conserto. Tem mazelas até ao fim da vida. E antes do acidente ela não se queixava” (minutos 05:49, 06:03, 06:07-06:36, 06:44-06-06:46, 06:51-07:14, 07:46-08:05, 08:11, 08:28-09:06, 09:08-09:12, 09:24-09:47)
ii) J. C. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:50:25 a 11:09:18) que acompanhou a sua mulher ao local do acidente e corroborou as declarações desta, a testemunha R. C.: “Ela partiu as costelas e ficou bastante amolgada e pronto. Ficou com dores na altura, queixava-se bastante (…) A M. P. hoje está ainda com o trauma e com as sequelas que ficou. Queixa-se do peito, de problemas no joelho (…) Fazia caminhadas e depois deixou de fazer, porque disse que doía, doía-lhe o joelho (…) Trabalhava em casas a fazer limpezas. Depois do acidente esteve muito tempo sem poder ir. Já não era a mesma coisa (…) Queixava-se sempre do joelho e do peito (…) Normalmente não conseguia desempenhar as tarefas domésticas na casa das pessoas, demorava mais tempo ou pedia a alguém para ajudar. Ela vai fazendo o trabalho doméstico. Na casa das pessoas não sei” (minutos 04:45-05:00, 05:19-05:37, 05.45-05:51, 05:52-06:08, 06:14-06:50);
c) e com a prova pericial produzida (relatórios de exames médico-legais), que vai de encontro ao afirmado pelas testemunhas R. C. e J. C. e declarado pelos Autores M. P. e S. V. e onde se alude, para a Autora M. P., não só o que aconteceu quando ela deu entrada no CHAM, após o acidente (a observação clínica efectuada, a sintomatologia apresentada, os exames e tratamentos realizados), como também as posteriores consultas na extensão USF …., as queixas que a mesma ainda hoje refere na postura, deslocamentos e transferências, no actos da vida diária, na vida afectiva, social e familiar e na vida profissional, se admite a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano (fractura de costelas e gonalgia temporária) e se conclui que «As lesões sofridas pela Autora M. P. em consequência directa e necessária do acidente de viação descrito determinaram-lhe um período de défice funcional temporário total de 1 (um dia), um período de défice funcional temporário parcial de 59 (cinquenta e nove) dias; um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 60 (sessenta) dias; um quantum doloris no grau 4/7 e um dano estético permanente de 1/7» e que «As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual»,
d) e ainda à luz da razão, das regras da lógica e da experiência que a vida vai proporcionando que vão no sentido de que as deslocações, as consultas e os tratamentos causam transtornos, aborrecimentos e incómodos;
impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito da actividade desenvolvida pela Autora M. P. ao tempo do acidente e os danos por ela sofridos, devendo
-ALTERAR-SE a redacção do ponto 20 dos factos dados como provados para a seguinte:
20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava limpezas, para fora
-e ADITAR-SE aos factos provados os seguintes pontos:
31- A Autora tem falta de força nos membros inferiores.
32- A Autora não consegue estar de pé, nem de joelhos, durante períodos mais longos como sucede quando tem de realizar tarefas domésticas (por ex: lavar a louça e/ou passar a ferro, limpar paredes, tetos, vidros, estores, persianas e móveis altos, esfregar ou lavar o chão).
33- A Autora sente fortes dores no peito, nas pernas e também na zona lombar e nos joelhos, quando caminha, sobe ou desce escadas, se ajoelha ou se tem de abaixar e, invariavelmente, sempre que faz mais esforço e nas mudanças de tempo.
34- As sequelas resultantes das lesões sofridas pela Autora M. P. como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito, impedem-na de ter o rendimento físico normal de uma senhora da sua idade e causam-lhe dificuldades no exercício da sua actividade profissional, quer em casa, quer fora de casa, nas limpezas.
35- A Autora sente-se revoltada por não ser capaz de realizar as tarefas que habitualmente fazia e tem profunda mágoa pela deterioração da sua qualidade de vida que se agrava de dia para dia
36- No momento do acidente a Autora ficou muito assustada, ansiosa por perceber se o seu filho -o Autor S. V.- de 11 anos que seguia no veículo se encontrava bem e preocupada por não se conseguir movimentar.
37- Ao tempo do acidente a Autora auferia, no exercício da sua actividade profissional, 5 euros à hora e trabalhava, todos os dias, nos centros comerciais e uma vez por semana em quatro casas particulares, sendo numa, o dia todo e as noutras ou a manhã ou a tarde.
38- Em virtude das lesões com que ficou após o acidente a Autora deixou de realizar algumas actividades de desportivas e de lazer (caminhadas, aulas de zumba).
39- As lesões sofridas pela Autora M. P. em consequência directa e necessária do acidente de viação descrito determinaram-lhe um período de défice funcional temporário total de 1 (um dia), um período de défice funcional temporário parcial de 59 (cinquenta e nove) dias; um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 60 (sessenta) dias; um quantum doloris no grau 4/7 e um dano estético permanente de 1/7.
40- Em termos de repercussão permanente na actividade profissional, as sequelas resultantes das lesões sofridas pela Autora M. P. como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito, são compatíveis com o exercício da sua actividade habitual.
41- Na sequência do acidente a Autora sofreu transtornos, aborrecimentos e incómodos, com consultas, tratamentos e deslocações,
31º- e arbitrar-se o valor dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora M. P. – cujo montante se indica na petição inicial – e, para aqueles cujo valor não fosse possível apurar, já, remeter-se a fixação dos mesmos para liquidação de sentença. Porém, a sentença de que se recorre não se faz nem um, nem outro e, por isso, foi incorrectamente julgada esta matéria.
32º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor S. V., em consequência do acidente (nomeadamente o ponto q) dos factos dados como não provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
33º- Conciliando os factos dados como provados nos pontos 18 e 22
a) com as declarações de parte
i) S. V., Autor, menor (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:27:47 a 10:36:31) que assegurou “Não me lembro do embate, eu só me lembro que depois que a minha mãe desviou, eu acho que bati com a cabeça e não vi mais nada (…) Minutos a seguir acho que veio o irmão da minha mãe (…) Veio a ambulância e puseram-me numa ambulância e à minha mãe noutra ambulância e depois fomos para o hospital (…). Fizeram-me, acho, que foi um raio-x ao crânio (…). Fiquei com um hematoma, depois acabou por passar (…) Fiquei em casa uma semana. Os médicos disseram que era melhor por segurança ficar em casa durante uns dias (…) Na altura dava-me algumas dores, assim de vez em quando” (minutos 02:47, 03:57, 03:00, 03:33, 03:43, 04:01-04:18 e 04:35)
ii) M. P., Autora (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:08:26 a 10:23:20) que assegurou “O S. V. ficou assustado, apavorado e houve algum tempo que nem gostava de andar de carro, como é natural numa criança naquela altura (…) Ainda sinto agora que às vezes com uma manobra mais, menos qualificada de alguns condutores que infelizmente os temos, ele diz logo ó mãe, cuidado mãe, ainda há aquele impulso de medo, mas isso melhorou muito com o tempo, na altura ele ficou mesmo muito assustado (…) Sei que foram feitos exames e que Raio-X e essas coisas que ele queixava-se da cabeça, mas felizmente o S. V. não teve nada (…) Ficou alguns dias em casa sem ir à escola, mas por precaução” (minutos 12:34, 12.46-13:05, 13:11 e 13:29)
b) com os depoimentos das testemunhas que confirmaram aquelas declarações
i) R. C. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:41:16 a 10:57:49) que se deslocou ao local e relatou o estado dos Autores M. P. e S. V. que acompanhou à unidade hospitalar e descreveu o que lá se passou e o que sucedeu depois: “O carro da M. P. estava todo desfeito na frente e deitou o pilar de um portão abaixo e a M. P. estava encarcerada e o S. V. a tremer de frio e com o susto, e foi o cenário que encontrei (…) O S. V. aflito, sufocado completamente (…) Estava muito aflito, muito assustado (…)” (minutos 01.36-02:03, 02:43, 03.50)
ii) J. C. (depoimento prestado no dia 20/04/2021, de 10:50:25 a 11:09:18) que acompanhou a sua mulher ao local do acidente e corroborou as declarações desta, a testemunha R. C.: “O S. V. ficou mais irritado e com problemas, queixa-se da cabeça (…) Eu vi-o tão assustado que eu coitado tive pena do menino (…) Ficou muito assutado na altura, era uma criança e estava muito assustado e berrava de dores do embate (…) Ficou com sequelas, ele tem um bocado de trauma desse dia” (minutos 03:13, 03:21, 03:27, 04:00)
c) e com a prova pericial produzida (relatórios de exames médico-legais), que vai de encontro ao afirmado pelas testemunhas R. C. e J. C. e declarado pelos Autores M. P. e S. V. e onde se alude, para o Autor S. V., o que aconteceu quando ele deu entrada no CHAM, após o acidente (a observação clínica efectuada, a sintomatologia apresentada, os exames e tratamentos realizados), se admite a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano e se conclui que «As lesões sofridas pelo Autor S. V. em consequência directa e necessária do acidente de viação descrito determinaram-lhe um período défice funcional temporário total de 1 (um) dia; um período défice funcional temporário parcial de 9 (nove) dias; um período de repercussão temporária na actividade de formação total de 4 (quatro) dias, um período de repercussão temporária na actividade de formação parcial de 6 (seis) dias, e um quantum doloris no grau 3 (três), numa escala de 7 (sete) graus de gravidade crescente»,
d) e ainda à luz da razão, das regras da lógica e da experiência que a vida vai proporcionando que vão no sentido de que um acidente de viação assusta quem segue no veículo, como passageira, principalmente se se tratar de uma criança com 11 anos de idade, como contava o Autor S. V., impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito dos danos sofridos pelo Autor, S. V., devendo
-ALTERAR-SE a redacção do ponto 20 dos factos dados como provados para a seguinte:
20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava limpezas, para fora
-e ADITAR-SE aos factos provados os seguintes pontos:
42- Com a colisão, o Autor S. V. foi projectado para a frente e embateu com a cabeça contra o para-brisas, o que lhe causou equimose frontal de pequenas dimensões e dores na cabeça e nos joelhos bilateralmente,
43- As lesões sofridas pelo Autor S. V. em consequência directa e necessária do acidente de viação descrito determinaram-lhe um período défice funcional temporário total de 1 (um) dia; um período défice funcional temporário parcial de 9 (nove) dias; um período de repercussão temporária na actividade de formação total de 4 (quatro) dias, um período de repercussão temporária na actividade de formação parcial de 6 (seis) dias, e um quantum doloris no grau 3 (três), numa escala de 7 (sete) graus de gravidade crescente
44- O Autor S. V., que ao tempo contava 11 anos de idade, ficou muito assustado com o acidente,
31º- e arbitrar-se o valor dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor S. V. – cujo montante se indica na petição inicial – e, para aqueles cujo valor não fosse possível apurar, já, remeter-se a fixação dos mesmos para liquidação de sentença. Todavia a sentença de que se recorre não se faz nem um, nem outro e, por isso, foi incorrectamente julgada esta matéria.
32º- Na sentença de que se recorre foram incorrectamente julgados os pontos de facto relativos ao dano resultante da privação do uso do seu veículo (designadamente o ponto 14 dos factos dados como provados) e os Recorrentes pretendem, nesta parte, a alteração da matéria de facto.
33º- Ponderando a circunstância de o acidente dos autos ter ocorrido no dia 26 de Novembro de 2014 com os factos que foram dados como provados nos pontos 11, 14 e 15 e que «a simples privação de viatura automóvel, na sequência de acidente de viação, corresponde a um dano indemnizável, na medida em que impedirá o seu titular de continuar a retirar as correspondentes vantagens (patrimoniais ou até imateriais) que a viatura poderia diariamente proporcionar (Ac. TRG de 04-04-2008, Proc. 1945/08-1) impõem-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo a respeito do dano resultante da privação do uso do seu veículo por parte dos Autores, devendo ALTERAR-SE a redacção do ponto 14 dos factos dados como provados para a seguinte:
14- Os Autores ficaram sem o veículo automóvel que lhes era indispensável no seu dia a dia, seja para as deslocações profissionais, seja nas deslocações pessoais, entre o dia 24 de Novembro de 2014 (data do acidente) e o dia 17 de Fevereiro de 2015 (data em que eles receberam a carta da Ré seguradora referida no ponto 11)
34º- e arbitrar-se o valor destes danos sofridos pelos Autores, cujo montante se indica na petição inicial - 3.320,00€ (83 dias x 40€/dia). Contudo a sentença em crise não o faz e, por isso, foi incorrectamente julgada esta matéria.

ERRO DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO
35º- A sentença em crise incorre em erro de interpretação e aplicação do direito.
36º- Dando-se, como se espera, como provados os pontos de facto que os Autores entendem terem sido incorrectamente julgados a respeito do acidente de viação, dúvidas não restarão de que este ocorreu como os Autores descrevem: No dia 26 de Novembro de 2014, cerca das 8h 00m, a Autora circulava com o veículo automóvel com a matrícula TL na Rua do ..., no sentido sul-norte e no sentido norte-sul, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava o veículo automóvel com a matrícula RM, pertencente a A. M. e conduzido por J. M.. O condutor do RM “cortou a curva” -aproximou-se inopinadamente do eixo divisório da estrada, que transpôs parcialmente - e passou a circular pelo corredor de circulação da esquerda, atendo o seu sentido da marcha e a Autora, ao ver parcialmente ocupada pelo RM a hemi-faixa por onde circulava com TL, ainda travou e guinou o seu veículo automóvel totalmente para a direita, evitando o embate com o RM mas indo embater no portão e num dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ....
37º- No domínio da responsabilidade civil extracontratual a responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa (art.º 483.º do CC), é a regra, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa - a responsabilidade por risco -, nos casos especificados na lei, como sucede com os acidentes causados por veículos (art.º 503º do CC).
38º- A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente.
39º- Tendo a acção sido intentada com fundamento em culpa do condutor do veículo alegadamente causador do acidente, pode e deve o tribunal, não se provando a culpa, decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia pois se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer, presuntivamente, que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu (Ac. STJ de 04-10-2007, Proc. 07B1710), o que não sucede no caso sub judice.
40º- O art. 563° do Cód. Civil consagra a doutrina da causalidade adequada «segundo a qual uma conduta é causa de um resultado quando este, pelas regras correntes da vida é consequência directa daquela. Não é, pois, necessária uma causalidade directa, bastando uma indirecta que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste» (Ac. TRE de 07-12-93, in BMJ, 432-452).
41º- A conduta do condutor que segue distraído, sem prestar atenção à actividade que desenvolve nem aos restantes veículos automóveis que circulam na mesma via, que transpõe o eixo da via e circula na hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de trânsito (precisamente na hemi-faixa por onde circulava, devidamente, a Autora) e em excesso de velocidade (porque a velocidade é excessiva sempre que o condutor não consiga parar o veículo no espaço visível à sua frente – art.º 24.º, n.º 1 do CE) é reprovável e censurável, por desrespeitadora do dever geral de diligência, prudência e atenção inerentes à condução automóvel e violadora das normas estradais – nomeadamente os artigos 3.º, n.º 2, 11.º n.º 2, 13.º n.ºs 1 e 2, 24.º e 27.º do Cód. da Estrada – e é causa adequada do acidente e dos danos que, deste, resultaram para os Autores.
42º- Se, naquele dia, hora e local, o RM não circulasse na Rua do ... tripulado por um condutor que, tendo a direcção efectiva do mesmo, ao invés de controlar o risco próprio da circulação dos veículos, desrespeitou os mais elementares deveres de atenção e cuidado e as regras estradais, a condutora do TL, que viu surgir, de forma brusca, de surpresa, inopinada e a curta distância, um obstáculo na sua faixa de rodagem (o RM) não precisava de realizar a manobra de último recurso para evitar a colisão - guinar, para a sua direita - nem tinha ido embater no portão e num dos pilares da moradia sita na Rua do ..., nº ....
43º- A ilicitude da infracção de uma regra da estrada pode e deve reportar-se ao direito do particular (aqui, dos Autores) porquanto um «pensamento jurídico moderno, actualizado, faz da tutela dos lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv» - motivo condutor (Brandão Proença, Cadernos de Direito Privado, nº 7, Julho/Setembro de 2004, pág. 25).
44º- O artigo 483.º, n.º 1, do Cód. Civil tipifica a ilicitude do facto constitutivo de responsabilidade civil extracontratual em duas modalidades: na violação de um direito subjectivo, maxime, de um direito absoluto, ou na violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. No caso sub judice, foram violados não interesses mas direitos subjectivos dos Autores, como o direito à integridade física e o direito de propriedade, que são direitos absolutos.
45º- Por força do direito comunitário, a problemática da responsabilidade civil é, agora, encarada na perspectiva da vítima, da protecção do lesado.
46º- Dispõe o art.º 562.º do Cód. Civil que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” e o art.º 496.º, n.º 1 do Cód. Civil que, “na fixação da indemnização deve atender-se os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” sendo o montante da indemnização por danos não patrimoniais, nos termos do n.º 3 do art.º 496.º do Cód. Civil, fixado equitativamente pelo tribunal, recorrendo aos critérios e valores usuais na jurisprudência em casos similares, como impõem os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Estas disposições normativas aplicam-se quer para a responsabilidade civil por factos ilícitos, quer para a responsabilidade civil por risco.
47º- A privação do uso de um veículo automóvel «desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” dos poderes inerentes ao proprietário. Nestas circunstâncias, não custa compreender que a simples privação do uso seja causa de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização. E mesmo que se considere que a situação não atinge a gravidade susceptível de merecer a sua inclusão na categoria de danos morais, nos termos do art.º 469º n.º1 do CC, é incontornável a percepção de que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deva ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada» (cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Indemnização do dano da privação do uso, Almedina, pág. 39).
48º- Tendo em linha de conta o caso concreto sub judice, os danos não patrimoniais sofridos pelos Autores, medidos por um padrão objectivo, são graves e justificam a atribuição de uma satisfação de ordem pecuniária.
49º- Dentro dos chamados danos de natureza “não patrimonial” é possível distinguir como significativos e mais importantes o chamado “quantum doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária -, o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e de recuperação da vítima -, o “prejuízo de afirmação pessoal” – o dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadíssimas vertentes – familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica -, o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” - o dano da dor e o défice de bem estar, em que se valoriza os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e conta na expectativa da vida -, o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária - e, finalmente, o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida - (nesse sentido veja-se o Ac. do TRC de 06-06-2017, Proc. 3930/06.2TBLRA.C1 e o Ac. TRP de 27-09-2018, Proc. 903/15.8T8GDM.P1).
50º- Atentando aos factos dados como provados e dando-se, como se espera, como provados os pontos de facto que os Autores entendem terem sido incorrectamente julgados a respeito da actividade desenvolvida pela Autora e dos danos deve a Ré – na qualidade de seguradora do veículo RM – ser condenada a reparar os danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial sofridos pelos Autores, como consequência directa e necessária do acidente de viação ocorrido no dia 26 de Novembro de 2014 e que estes não teriam sofrido se não fosse o evento lesante, e, consequentemente
-pagar aos Autores a quantia que eles despenderam na compra de um veículo para substituir o TL, no montante de 6.700,00€;
-pagar aos Autores a quantia que eles gastaram na reparação do portão e dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ... contra os quais foi embater o veículo TL, no montante de 1.266,90€;
-pagar aos Autores a quantia relativa ao dano resultante da privação de uso do seu veículo automóvel, calculada desde a data do acidente (26/11/2014) até ao dia em que o Autor recebeu a carta da Ré a dar a perda total do TL, no montante indicado na petição inicial - 3.320,00€ (83 dias x 40€/dia) - ou outro que prudentemente se devia fixar;
-pagar à Autora M. P. (que à data do acidente tinha 45 anos e trabalhava em casa e para fora em limpezas), para reparação dos danos não patrimoniais por ela sofridos – onde se inclui, não apenas o susto com o sucedido, a preocupação com o bem estar do filho menor, de 11 anos, que seguia consigo, a circunstância de se ver encarcerada, dentro do veículo, sem se poder movimentar, os aborrecimentos e incómodos com consultas, tratamentos e deslocações, mas também o “quantum doloris”, o “dano estético”, o “prejuízo de afirmação pessoal”, o “prejuízo da saúde geral e da longevidade”, o “pretium doloris” e o “pretium juventutis”– as quantias reclamadas, a este título, ou outras que prudentemente se fixarem, segundos critérios de equidade, remetendo-se para liquidação em execução de sentença os danos cujo não seja possível apurar, já;
-pagar ao Autor S. V., menor, que à data do acidente tinha 11 anos, para reparação dos danos não patrimoniais por ele sofridos – onde se inclui, não apenas o susto com o sucedido e o receio que ele tem de andar de automóvel, em resultado do acidente, mas também o “quantum doloris”, o “pretium doloris” e o “pretium juventutis” – a quantia reclamada, a este título, ou outra que prudentemente se fixar, segundos critérios de equidade.
51º- Esta obrigação de indemnizar aos Autores, por parte da Ré, resulta de se encontrarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos – o facto, a ilicitude do facto, a imputação do facto ao lesante (culpa), o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano -, porque o condutor do RM, segurado na Ré, agiu, com culpa e produziu danos patrimoniais e não patrimoniais aos Autores, deve aquela ser condenada no ressarcimento destes (art.º 483.º do CC).
52º- A obrigação de indemnizar aos Autores, por parte da Ré, também resulta de se encontrarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por risco – que são todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à excepção da ilicitude e da culpa – pois para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano, no caso dos autos porque quem tinha a direção efectiva do RM, segurado na Ré, e o utilizava no seu próprio interesse, assumiu um risco do qual derivou a produção de danos patrimoniais e não patrimoniais aos Autores deve aquela ser condenada no ressarcimento destes (art.º 503.º, n.º 1 do CC).
53º- A Sentença impugnada viola o disposto nos artigos 202.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, 205.º da CRP, artigos 388.º, 389.º, 396.º, 483.º, 496.º, 499.º, 503.º, 562.º, 563.º, do CC, artigos 3.º, nº 1, 154.º, 466.º, 522º, nº 1, 607.º, 608.º, nº 2, 615.º, nº 1, al.s b), c), d), do CPC e artigos 3.º, n.º 2, 11.º n.º 2, 13.º n.ºs 1 e 2, 24.º e 27.º do Cód. da Estrada.

A ré/recorrida apresentou contra-alegações, nas quais rebateu todos os argumentos dos recorrentes e se pronunciou pela improcedência total do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorrem nulidades da sentença
b) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1- O Autor é proprietário do veículo automóvel ligeiro, de passageiros, da marca Peugeot, modelo 307, com a matrícula TL.
2- No dia 26 de Novembro de 2014, cerca das 8h 00m, a Autora circulava com esse veículo na Rua do ..., no sentido sul-norte, em direcção à Avenida ....
3- No sentido norte-sul, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava o veículo automóvel com a matrícula RM, pertencente a A. M. e conduzido por J. M..
4- A Autora embateu com o veículo por si conduzido, no portão e num dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ....
5- A Rua do ... apresenta duas faixas de rodagem – uma em cada sentido, num trecho que configura, atento o sentido da marcha da Autora, inicialmente, uma recta e, depois, uma ligeira curva à direita, ladeada por edificações, mas com visibilidade.
6- O piso é betuminoso e encontrava-se, ao tempo, seco.
7- A faixa de rodagem tem 5,20 metros, sendo 2,60 metros para cada hemi-faixa. 8- No local, o limite de velocidade de circulação é de 50 km/h.
9- O veículo RM ficou imobilizado na via e sem poder circular.
10- Após ter sido rebocado, nesse mesmo dia, para uma oficina, a Ré efectuou uma vistoria ao veículo automóvel dos Autores.
11- Por carta datada de 12 de Fevereiro de 2015, a Ré comunicou, formalmente, ao Autor que, como o veículo tinha um valor venal de € 3.750,00 e o valor da reparação ascendia a € 4.221,37, se estava perante uma «perda total».
12- Os Autores, porque precisavam de um automóvel e não tinham outro, tiveram de comprar um veículo para substituir o TL, no que despenderam a quantia de € 6.700,00.
13- Os Autores tiveram de pagar a reparação do portão e dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ... contra os quais foi embater o veículo TL.
14- Os Autores ficaram sem o veículo automóvel que lhes era indispensável no seu dia a dia, seja para as deslocações profissionais, seja nas deslocações pessoais.
15- A Ré jamais colocou à disposição dos Autores qualquer outro veículo para substituir o TL, que era essencial para a vida diária destes.
16- No dia 26 de Novembro de 2014 o veículo automóvel com a matrícula TL era conduzido pela Autora e no mesmo seguia o filho do casal, o S. V., que contava 11 anos de idade.
17- Após o embate, a Autora ficou encarcerada no veículo, sem se poder mexer, com dificuldade em respirar, dores no peito e nas pernas e sem conseguir ver se o seu filho menor estava bem, tendo perdido a consciência.
18- Quando os bombeiros chegaram ao local procederam ao desencarceramento da Autora; prestaram-lhe e ao seu filho menor, os cuidados básicos e conduziram-nos, a ambos, de ambulância, para a ULSAM - Hospital de ..., onde receberam os primeiros tratamentos e efectuaram vários exames.
19- Como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito resultaram na Autora M. P., as seguintes lesões:
-fracturas de costelas - da 7ª e 8ª arco costal direito,
-segundo TC ao joelho “discreta redução da espessura do menisco interno, não se observando lacerações,
-um discreto derrame inespecífico intra-articular, colectado em especial no espaço retro-rotuliano e na vertente externa do joelho, aqui com ligeira distensão localizada na cápsula articular.
20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava
21- A Autora M. P. tinha 45 anos de idade, à data do acidente.
22- Em resultado do acidente, o Autor S. V. tem receio de andar de automóvel.
23- O proprietário do veículo RM transferiu para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação da viatura, através do contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ............030, válida à data do acidente.

Não Provados:
a) A Autora circulava nas circunstâncias descritas em 2), pela sua mão de trânsito, atento o sentido da marcha, a uma velocidade inferior a 40kms/hora.
b) A Autora ao aproximar-se da curva à direita – atento o seu sentido da marcha e a menos de 10 metros desta, viu surgir, à sua frente, o veículo automóvel com a matrícula RM, que vinha em sentido contrário, em grande velocidade.
c) O condutor do RM aproximou-se inopinadamente do eixo divisório da estrada, transpô-lo parcialmente, e passou a circular pelo corredor de circulação da esquerda, atendo o seu sentido da marcha.
d) A Autora, ao ver parcialmente ocupada pelo RM a hemi-faixa por onde ela circulava com TL, ainda travou e guinou o seu veículo automóvel totalmente para a direita, evitando o embate com o RM.
e) Não fosse a condução do condutor do RM, desatenta, em excesso de velocidade e a circular na faixa por onde seguia a Autora, a condutora do TL não precisava de se desviar, totalmente, para a sua direita, para evitar o embate entre os veículos, nem tinha ido embater no portão e num dos pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ....
f) na reparação do portão e pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ..., os Autores despenderam a quantia de 1.266,90€.g) A Autora tem falta de força nos membros inferiores.
h) A Autora não consegue estar de pé, nem de joelhos, durante períodos mais longos como sucede quando tem de lavar a louça e/ou passar a ferro, e muito menos limpar paredes, tectos, vidros, estores, persianas e móveis altos, esfregar ou sequer lavar o chão, ajoelhada.
i) A Autora sente fortes dores no peito, nas pernas e também na zona lombar e nos joelhos, que são excruciantes sempre que se mantém de pé, com o peso do seu corpo sobre os seus membros inferiores; sempre que caminha, sempre que sobe o desce escadas; sempre que se ajoelha; sempre que movimenta os seus membros superior e inferior direitos, ou a região da anca; sempre que tem de se baixar; e, invariavelmente, sempre que faz mais esforço e nas mudanças de tempo.
j) O que a impossibilita de realizar tarefas básicas e normais de uma dona de casa e de uma pessoa que realiza limpezas em casas particulares e zonas comuns de prédios.
l) O que a obriga a fazer inúmeras pausas para descansar o recuperar o fôlego, o que a impede de ter o rendimento físico normal de uma senhora da sua idade e de prestar os devidos cuidados à sua família e lar.
m) o que lhe causa sérias dificuldades no exercício da sua actividade profissional, quer em casa, quer fora de casa, nas limpezas.
n) A Autora tem dificuldade em dormir, recordando, vezes sem conta, o acidente e o embate, frontal, no muro e quando adormece tem pesadelos, chora, constantemente, antevendo que podia ter morrido, ou, pior, o seu filho ter perdido a vida ou ficar inválido.
o) A Autora sente-se revoltada por não ser capaz de realizar as tarefas que habitualmente fazia, tem profunda mágoa pela deterioração da sua qualidade de vida que se agrava de dia para dia, e experimenta verdadeiro pânico quando anda de automóvel mas que não pode deixar de fazer, atenta a sua rotina diária, o que tudo a desgosta e perturba psicologicamente.
p) O Autor S. V. foi projectado bruscamente para a frente e para trás contra o banco onde seguia, e, a tensão nos músculos da zona da cervical, causou-lhe dores de cabeça tão fortes que, depois de dar entrada no serviço de urgência do Hospital de …, foi-lhe feito rx craniano, sem alterações.q) Em consequência do acidente de viação descrito e, desde então, o Autor S. V. sente dores na zona do pescoço e nas costas, principalmente quando está muito tempo sentado, nas aulas ou a estudar em casa, e não consegue realizar, com facilidade, certos movimentos obrigatórios em alguns desportos e actividades que desenvolve nas aulas de educação física.
r) Ao descrever uma curva ligeira à esquerda, atento o sentido de marcha do veículo segurado na Ré, este foi surpreendido pelo veículo do Autor, que circulava sobre o eixo das faixas de rodagem, cortando-lhe a trajectória e que se viu forçado a guinar para a sua direita para evitar o embate entre veículos.

IV
Conhecendo do recurso.

Afirmam os recorrentes, em resumo, que a sentença é nula por força do disposto no art. 615º,1,b,c,d CPC. Assim, de acordo com os recorrentes, a sentença só não teria incorrido nas nulidades da falta de assinatura do juiz e da condenação em quantidade superior ou objecto diverso (até porque não houve condenação mas sim absolvição). Todas as outras causas de nulidade teriam sido preenchidas: a sentença não especificaria os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, os fundamentos estariam em oposição com a decisão ou ocorreria ambiguidade ou obscuridade que tornaria a decisão ininteligível, e o juiz teria deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar.
Não gostaríamos de perder muito tempo com nulidades, porque as mesmas impedem o Tribunal de se concentrar no que realmente interessa, que é a substância da causa, o saber se existem os direitos de que as partes se arrogaram, no caso saber se os autores têm o direito a ser indemnizados pela ré por força dos danos que alegam ter sofrido com o acidente que teria sido causado por culpa do condutor seguro na ré. As nulidades só relevam, e até verdadeiramente só existem quando o Tribunal de recurso se veja impedido de apreciar o mérito da causa.
Porém, as regras processuais são o que são, e temos de analisar as alegadas nulidades.
Ao falar em nulidades da sentença, recordamos a famosa frase do físico Alemão Wolfgang Pauli, que dizia, irritado, ao ler um trabalho científico dúbio: “isto não está certo…; isto nem sequer está errado !” A sentença nula deveria ser vista exactamente da mesma maneira: é uma decisão que não está certa, nem está errada: não serve como decisão.
O art. 615º CPC elenca os casos de nulidade da sentença, nas 5 alíneas do seu nº 1. Os recorrentes conseguem ver na sentença sub judice três dessas cinco causas de nulidade: segundo eles, a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b); os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (alínea c); e o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (alínea d).
Vamos desde já afastar a aplicação da alínea b), cuja invocação aliás só pode decorrer de um lapso, pois a sentença elenca notoriamente os factos provados e não provados, explica em 54 linhas de texto a forma como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, e contém 62 linhas a fazer a aplicação do Direito aos factos provados.
Não se verifica, sem mais, esta causa de nulidade.
O que pode haver é discordância quanto à decisão. Que não configura nulidade.

Nos termos da alínea c)a sentença é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Este fundamento de nulidade da sentença assenta na ideia de que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão funcionam como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário. Daí, se numa sentença se expender argumentação, assente em determinados pressupostos de direito e de facto, que aponta inequivocamente para uma solução, para a final a decisão ser a oposta, estaremos perante uma violação das regras necessárias à sustentação lógica da sentença, de tal maneira que nem se conseguirá dizer se a sentença fez uma correcta ou uma errada aplicação do direito, porque a mesma encerra em si um vício lógico de tal maneira grave que a torna inaproveitável como sentença.
Como escrevem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, II vol., pág. 670: “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa da nulidade da sentença”. Ou, como se pode ler no Acórdão da Relação do Porto de 2.5.2016: “A nulidade da sentença decorrente dos fundamentos estarem em oposição com a decisão verifica-se quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal – ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente”.
Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º,3 CPC e, por outro, pelo facto da sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Veja-se o Acórdão do TRL de 9/7/2014 (Pedro Brighton), in www.dgsi.pt.
Porém, lendo a sentença recorrida verificamos que os fundamentos de facto e de direito apontam directamente para a decisão tomada. Não há qualquer obscuridade, e a sentença é inteligível, tanto que os autores recorrem da mesma pedindo a sua alteração. Aliás, se bem repararmos, os recorrentes fundamentam esta arguição de nulidade com base em erros na decisão da matéria de facto:
a) “a decisão de dar como não provado que «na reparação do portão e pilares da moradia sita na Rua do ..., n.º ..., os Autores despenderam a quantia de 1.266,90€» (alínea f) é ininteligível e obscura…”;
b) “a decisão de dar como provado que «o veículo RM ficou imobilizado na via e sem poder circular» (ponto 9) é contraditória e ininteligível porque …”.
Mais uma vez estamos perante a confusão entre o que é erro de julgamento e nulidade. Os defeitos apontados pelos recorrentes, a existirem, não configuram qualquer nulidade, mas sim algo muito mais simples, como erro de julgamento (error in judicando), quanto à apreciação da matéria de facto.
Não se verifica, sem mais, esta causa de nulidade.
O que pode haver é discordância quanto à decisão. Que não configura nulidade.

Finalmente, a sentença é nula se o juiz deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (alínea d).
Esta nulidade apenas ocorre quando não se decide alguma das questões suscitadas pelas partes que não tenha ficado prejudicada pela solução dada a outra ou se conheça de questões de que não se podia tomar conhecimento (art. 608º nº 2 do C.P.C.). Como se lê no Ac. do S.T.J. de 16/02/2015, relatado pelo Cons. Sousa Peixoto, in www.dgsi.pt “Questões, para o efeito do disposto no nº 2 do art. 660º do C.P.C., não são aqueles argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções”.
Ora, o não atendimento a factos alegados num articulado, factos esses considerados essenciais, não se traduz em vício de omissão de pronúncia uma vez que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do art. 608º, nº 2 do C.P.C.. Reconduz-se antes a erro de julgamento. Neste sentido vide Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146 que refere: “(…) o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.”.
Mais uma vez o que os recorrentes vêm dizer para justificar a alegada nulidade configura apenas erros de julgamento da matéria de facto. Os recorrentes pretendem que o Tribunal devia ter dado como provados mais factos do que aqueles que deu.
Não se verifica, sem mais, esta causa de nulidade.
O que pode haver é discordância quanto à decisão. Que não configura nulidade.
Vamos então agora ao que interessa, que é saber se o Tribunal errou no julgamento da matéria de facto.
Ainda antes de entrar nesse julgamento, temos de sanar dois lapsos de escrita que foram cometidos nos factos 9, 10 e 20 da matéria provada, e que, tal como refere a recorrida nas suas contra-alegações, não configuram qualquer nulidade, podendo e devendo ser sanados por esta Relação.

Vejamos o que se consta dos factos provados 9 e 10:
“9- O veículo RM ficou imobilizado na via e sem poder circular;
10- Após ter sido rebocado, nesse mesmo dia, para uma oficina, a Ré efectuou uma vistoria ao veículo automóvel dos Autores”;
Considerando o alegado nos artigos 38º, 39º e 40º da petição inicial, e a prova produzida, que a este respeito foi incontroversa, torna-se óbvio e evidente o lapso de escrita aqui cometido, e que iremos de imediato corrigir, substituindo no facto 9 a referência RM por TL.
E é igualmente patente que o texto do ponto 20 dos factos provados, cujo teor é “20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava”, se mostra truncado, sendo fácil de corrigir, atenta a motivação da decisão e o que se alega no art. 69º da petição inicial.
Assim, ao abrigo do art. 614º,1 CPC, corrigindo os referidos lapsos de escrita, determina-se que os factos provados 9 e 20 passem a ter a seguinte redacção:

“9- O veículo TL ficou imobilizado na via e sem poder circular.
20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava limpezas para fora”.

Por uma questão de comodidade de leitura e análise, vamos reproduzir a matéria de facto incorporando já estas duas correcções

1- O Autor é proprietário do veículo automóvel ligeiro, de passageiros, da marca Peugeot, modelo 307, com a matrícula TL.
2- No dia 26 de Novembro de 2014, cerca das 8h 00m, a Autora circulava com esse veículo na Rua do ..., no sentido sul-norte, em direcção à Avenida ....
3- No sentido norte-sul, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava o veículo automóvel com a matrícula RM, pertencente a A. M. e conduzido por J. M..
4- A Autora embateu com o veículo por si conduzido, no portão e num dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ....
5- A Rua do ... apresenta duas faixas de rodagem – uma em cada sentido, num trecho que configura, atento o sentido da marcha da Autora, inicialmente, uma recta e, depois, uma ligeira curva à direita, ladeada por edificações, mas com visibilidade.
6- O piso é betuminoso e encontrava-se, ao tempo, seco.
7- A faixa de rodagem tem 5,20 metros, sendo 2,60 metros para cada hemi-faixa. 8- No local, o limite de velocidade de circulação é de 50 km/h.
9- O veículo TL ficou imobilizado na via e sem poder circular.
10- Após ter sido rebocado, nesse mesmo dia, para uma oficina, a Ré efectuou uma vistoria ao veículo automóvel dos Autores.
11- Por carta datada de 12 de Fevereiro de 2015, a Ré comunicou, formalmente, ao Autor que, como o veículo tinha um valor venal de € 3.750,00 e o valor da reparação ascendia a € 4.221,37, se estava perante uma «perda total».
12- Os Autores, porque precisavam de um automóvel e não tinham outro, tiveram de comprar um veículo para substituir o TL, no que despenderam a quantia de € 6.700,00.
13- Os Autores tiveram de pagar a reparação do portão e dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ... contra os quais foi embater o veículo TL.
14- Os Autores ficaram sem o veículo automóvel que lhes era indispensável no seu dia a dia, seja para as deslocações profissionais, seja nas deslocações pessoais.
15- A Ré jamais colocou à disposição dos Autores qualquer outro veículo para substituir o TL, que era essencial para a vida diária destes.
16- No dia 26 de Novembro de 2014 o veículo automóvel com a matrícula TL era conduzido pela Autora e no mesmo seguia o filho do casal, o S. V., que contava 11 anos de idade.
17- Após o embate, a Autora ficou encarcerada no veículo, sem se poder mexer, com dificuldade em respirar, dores no peito e nas pernas e sem conseguir ver se o seu filho menor estava bem, tendo perdido a consciência.
18- Quando os bombeiros chegaram ao local procederam ao desencarceramento da Autora; prestaram-lhe e ao seu filho menor, os cuidados básicos e conduziram-nos, a ambos, de ambulância, para a ULSAM - Hospital de ..., onde receberam os primeiros tratamentos e efectuaram vários exames.
19- Como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito resultaram na Autora M. P., as seguintes lesões:
-fracturas de costelas - da 7ª e 8ª arco costal direito,
-segundo TC ao joelho “ discreta redução da espessura do menisco interno, não se observando lacerações,
-um discreto derrame inespecífico intra-articular, colectado em especial no espaço retro-rotuliano e na vertente externa do joelho, aqui com ligeira distensão localizada na cápsula articular.
20- A Autora, antes do acidente, trabalhava em casa e ocasionalmente, realizava limpezas para fora.
21- A Autora M. P. tinha 45 anos de idade, à data do acidente.
22- Em resultado do acidente, o Autor S. V. tem receio de andar de automóvel.
23- O proprietário do veículo RM transferiu para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação da viatura, através do contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ............030, válida à data do acidente.

Entrando agora então na apreciação da alegada existência de erros de julgamento quanto à matéria de facto, podemos dividir a matéria de facto em discussão em duas partes estanques, uma sobre as circunstâncias do acidente, e a outra sobre os danos dele decorrentes.
Por razões lógicas ligadas ao funcionamento do Processo Civil, vamos começar pela descrição do acidente, pois pode suceder que da decisão a dar a essa parte da impugnação da matéria de facto resulte a desnecessidade de apreciar a outra parte.
O acidente trazido a estes autos caracteriza-se pela simplicidade: é pacífico, da prova produzida, que não ocorreu embate entre os dois veículos intervenientes, e é pacífico que no momento e local do acidente os dois veículos se cruzaram, e que nesse momento os dois respectivos condutores guinaram de repente os respectivos volantes para a direita. A autora foi contra um muro e portão de uma casa de uma vizinha sua e ali ficou imobilizada.
O que interessava era saber porque é que a autora saiu da estrada e foi contra o muro.
A mesma declarou em audiência que o outro condutor invadiu a faixa de rodagem por onde ela se deslocava.
Já o outro condutor declarou que foi a autora que invadiu a faixa de rodagem por onde ele circulava.
A sentença recorrida considerou provado apenas que os dois veículos se cruzaram na mesma estrada, em sentidos contrários, e que a autora embateu com o veículo por si conduzido no portão e num dos pilares do muro de uma moradia ali existente. A tese dos autores de que foi o outro condutor que invadiu a faixa de rodagem contrária foi considerada não provada, o mesmo sucedendo com a tese defendida pela ré na sua contestação.
Os recorrentes pretendem que esta Relação adite novos factos provados, que são os que corporizam a versão do acidente que trouxeram aos autos.
Porém, não lhes assiste razão.
A sentença recorrida fez uma análise correcta de toda a prova produzida, e explicou, da seguinte forma: “a testemunha J. M., primo dos Autores e condutor do veículo RM, apresentou uma outra versão do acidente, alegando que a condutora TL, aqui Autora é que circulava a ocupar a sua faixa de rodagem. A testemunha J. G., funcionário da testemunha J. M., afirma que circulava atrás da testemunha anterior, e que visionou a Autora vinha “… a ocupar um bocadinho a faixa contrária…”; o seu depoimento não foi tido em consideração pelo tribunal, desde logo atenta a forma vaga com que depôs e ainda não foi possível ao tribunal perceber como a testemunha em causa que seguia atrás de outro veículo, com o seu ângulo visão parcialmente ocupado, consegue ver por onde seguia o veículo da Autora e mais ainda, se viu o acidente, é conhecido, no caso funcionário de um dos intervenientes, e o seu nome não constou como testemunha no croquis elaborado que consta dos autos. Os Autores M. P. e S. V., prestaram declarações de parte, relatando a sua versão dos factos, contudo atento o interesse manifesto que tem na decisão da causa e a parcialidade do mesmo, não podem as suas declarações ser atendidas pelo tribunal. No que concerne à dinâmica do acidente em causa nos autos, foram apresentadas versões contraditórias do mesmo, pelos condutores dos veículos em causa nos autos, a Autora e a testemunha J. M., bem como a testemunha J. G., cujo depoimento não foi valorado pelo tribunal nos termos acima assinalados, denotando-se ao longo de ambos os depoimentos uma parcialidade constante justificável com a intervenção directa, eram condutores dos veículos intervenientes no acidente como tal atenta a parcialidade verificada, conjugado com o facto de não existir mais nenhuma outra prova que corrobore uma ou outra versão, não lograram convencer o tribunal quanto à dinâmica do acidente, de forma a permitir ao tribunal credibilizar uma versão em detrimento da outra”.
Por mais que os recorrentes se esforcem em querer encontrar argumentos para dizer que a sua tese emergiu provada, a verdade é que nenhuma das teses convenceu o Tribunal recorrido, e nenhuma delas convence esta Relação.
Podemos começar por dizer que, atentas as características deste acidente e a prova disponível, seria sempre muito difícil fazer a prova cabal de uma das versões.
Sabendo que não houve embate dos veículos entre si, e sabendo que por isso não houve no local qualquer vestígio objectivo que nos pudesse ajudar a perceber qual dos condutores teria invadido a semi-faixa contrária, tudo fica dependente da prova pessoal. Ora, quer a prova por declarações de parte, quer a prova testemunhal, estão sujeitas à regra da livre apreciação (art. 466º,3 CPC e art. 396º CC).
De todas as pessoas ouvidas, apenas quatro afirmaram ter presenciado o momento do acidente: os autores, que circulavam no veículo TL, a testemunha J. M., que circulava ao volante do RM, e a testemunha J. G., que circulava no seu veículo imediatamente atrás de J. M., de quem era empregado.
Os autores, ouvidos em declarações de parte, disseram, no essencial, que foi o veículo RM que invadiu a semi-faixa por onde circulavam, o que fez com que a autora, para evitar o embate, guinasse para a direita e assim tivesse ido de encontro ao muro e portão da vizinha.
J. M. disse exactamente o contrário, ou seja, que foi o veículo TL que invadiu a sua semi-faixa de rodagem, o que fez com que ele tivesse de guinar para a direita para evitar o embate, o que conseguiu. Declarações que no essencial foram confirmadas por J. G..
O Militar da GNR que elaborou a participação do acidente junta aos autos, C. S., disse que não assistiu ao acidente, e que quando chegou ao local estava um veículo despistado contra um muro de uma casa, e o outro despistado entre o campo e a estrada. Pelas declarações dos intervenientes não colidiram entre ambos. Nada mais de útil sabia.
Podemos dizer que nenhum destes depoimentos/declarações pode a priori ser considerado como totalmente isento. Os autores porque por definição têm interesse na condenação da ré. E as testemunhas porque têm igualmente um interesse na causa, um por ser o condutor de um dos veículos envolvidos e o outro por ser seu empregado.
Passando do abstracto para o concreto, podemos dizer que nenhum dos depoimentos e declarações revelou falhas ou contradições que o descredibilizassem. Todos foram igualmente credíveis. Se quisermos aprofundar ainda mais, podemos dizer que talvez a testemunha J. G. não possa ser tida como totalmente credível porque circulava atrás de J. M., e como tal não tinha a linha de visão entre si e o veículo conduzido pela autora desimpedida, o que o poderia impedir de ver com nitidez se esta estaria parcial ou totalmente fora da sua semi-faixa de rodagem. Mas já o mesmo não sucede com J. M..
E assim, considerando que estes depoimentos têm sensivelmente o mesmo valor intrínseco e são de sentido contrário, podemos dizer que se anulam uns aos outros.
Apreciando toda a prova, este Tribunal não consegue dizer se algum dos veículos envolvidos transpôs o eixo da via e invadiu a semi-faixa contrária. Podemos conjecturar pelo menos três cenários que são em abstracto possíveis: o primeiro é de ter sido J. M. que invadiu a semi-faixa por onde circulava a autora; o segundo é o de ter sido a autora que invadiu a semi-faixa por onde circulava J. M.; e o terceiro, igualmente possível, é o de nenhum dos condutores ter invadido a semi-faixa contrária, mas circularem os dois tão próximos do eixo da via que quando se cruzaram o embate lhes pareceu iminente, e daí os dois desviarem de repente para a respectiva direita. Mas entrando no campo das conjecturas, haveria muitos outros cenários que em abstracto seriam possíveis, para explicar porque o veículo da autora saiu da faixa de rodagem e foi contra o muro. Um deles, entre muitos outros, seria o de apesar de o veículo RM se deslocar inteiramente dentro da sua hemi-faixa, a autora se ter assustado ao vê-lo surgir e ter guinado para a sua direita desnecessariamente, assim embatendo.
Uma coisa é certa: no local do acidente a rua apresenta uma faixa de rodagem em cada sentido, o piso é betuminoso e encontrava-se, ao tempo, seco, e a faixa de rodagem tem 5,20 metros, sendo 2,60 metros para cada hemi-faixa, o que é largura mais que suficiente para dois automóveis ligeiros se cruzarem sem embater.
Resumindo, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito de indemnização que os autores vieram invocar recaía sobre eles (art. 342º,1 CC). E os autores não conseguiram provar que foi o veículo conduzido por J. M. que invadiu a sua semi-faixa e fez com que a autora se despistasse.
Mas os recorrentes vêm ainda brandir com dois tipos de argumentos.
Primeiro, invocam a sentença proferida no Processo nº 3464/15.4T8VCT, do Tribunal de Instância Local, Secção Cível, J3, onde era Autora A. M., a segurada da aqui Ré X e proprietária do veículo automóvel com a matrícula RM que era conduzido por J. M. (veja-se o ponto 3 dos factos provados), e Ré a Y Companhia de Seguros, S.A, seguradora dos aqui Autores, proprietários do veículo automóvel com a matrícula TL, e se peticionava o pagamento de uma indemnização a título de danos alegadamente sofridos em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 26 de Novembro de 2014 - que é precisamente o acidente que se discute nestes autos, com o mesmo circunstancialismo de tempo e lugar mas em que são Autores os proprietários do veículo TL e Ré a seguradora da proprietária do veículo RM - e cuja acção foi julgada totalmente improcedente, por não provada e a seguradora dos Autores absolvida do pedido.
Esse litígio, bem vistas as coisas, é a imagem ao espelho do litígio trazido a estes autos: refere-se ao mesmo acidente, com os mesmos veículos, mas agora em posições processuais invertidas e com outras partes.
Porém, não compreendemos porque é que os recorrentes invocam a sentença ali proferida. Ela faz exactamente a mesma coisa que fez a sentença ora recorrida, e que esta Relação também fez, que foi dizer que com a prova produzida não foi possível apurar de quem foi a culpa no acidente, ou seja, se algum dos condutores invadiu a semi-faixa de rodagem contrária. Daí que tenha feito, no essencial, a mesma coisa que fez a sentença ora recorrida: deu como provado o local e tempo do acidente, o despiste dos dois veículos sem embaterem um no outro, e considerou não provados os factos que preencheriam a violação do Código da Estrada, ou seja, que algum dos veículos teria invadido a semi-faixa de rodagem contrária. Seja como for, tal sentença não tem qualquer valor probatório para estes autos, e se o tivesse, apenas confirmaria a decisão ora recorrida.
E, finalmente, os recorrentes invocam ainda as regras da experiência comum.
Afirmam o seguinte: “quando a via faz uma ligeira curva à direita, no sentido Sul/Norte (ver croquis) ser normal que o condutor do veículo que segue nesse sentido de trânsito, faz a curva, permanecendo na sua hemi-faixa (é o caso da Autora, que conduzia o TL) mas o condutor do veículo que segue na mesma via, mas em sentido contrário – Norte/Sul – tem tendência para “cortar” essa curva e invadir a hemi-faixa contrária (é o caso do condutor do veículo RM)”.
Percebemos o que os recorrentes querem dizer, mas não podemos acompanhá-los. O que aceitamos que se diga é que os condutores cumpridores terão o cuidado de descrever a curva sem invadir a hemi-faixa contrária, e os condutores incumpridores ou descuidados serão mais levados a “cortar a curva”. Mas esta linha de raciocínio não nos leva a lado nenhum na análise da prova nestes autos porque não ficou provado que o condutor do veículo seguro na ré era naturalmente descuidado.
Há um outro argumento que se pode usar, mas que funciona em sentido contrário ao pretendido pelos autores/recorrentes. Olhando para o “croquis” elaborado pela GNR vemos que da perspectiva da autora a estrada descreve uma curva para a sua direita, ao passo que da perspectiva de J. M. a estrada descrevia uma curva para a sua esquerda. Estando os dois veículos em movimento, a “força centrífuga” “puxa” o veículo da autora na direcção do eixo da via, e ao mesmo tempo “empurra” o veículo de J. M. para fora da estrada, sendo que a intensidade dessa força varia com a velocidade do veículo e a curvatura da sua deslocação (1).
Concluindo, a decisão da matéria de facto no que respeita ao desenrolar do acidente propriamente dito mostra-se totalmente correcta, e não padece de nenhum vício ou erro de julgamento.
E, decidindo assim, torna-se inútil conhecer da restante impugnação do julgamento da matéria de facto (sobre os danos que os autores sofreram), pois não se tendo provado qualquer intervenção do condutor do veículo seguro na ré no processo causal que levou ao despiste da autora, torna-se irrelevante saber que danos os autores tiveram, pois a ré não será responsável pelos mesmos.
Com efeito, “a reapreciação da decisão da matéria de facto visa obter um sustentáculo fáctico para uma certa solução para uma dada questão de direito, pelo que se a matéria de facto cuja reapreciação se requer é inócua à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, deve o tribunal ad quem indeferir essa pretensão, por força da proibição da prática no processo de actos inúteis.” (Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2014 – Relator Carlos Gil).
No mesmo sentido, escreveu-se no acórdão desta Relação de 04.10.2017 (Relator – José Fernando Cardoso Amaral), “é pacífico o entendimento de que quando a eventual procedência de uma impugnação de certa matéria de facto é insusceptível de implicar qualquer efeito no julgamento da matéria de direito e, portanto, na decisão, deve o tribunal ad quem abster-se dessa tarefa inglória”.
E a orientação da jurisprudência do STJ tem sido, também ela, no sentido de que o direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640º do CPC assume, claramente, um carácter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa, disso sendo exemplo o Acórdão de 14.3.2018 (Relatora - Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado) e os acórdãos do STJ, ali citados, de 17.5.2017, proc. nº 4111/13.4TBBRG.S1, e de 11.2.2015, proc. nº 422/2001.L1.S1, no de 14.03.2018.
A este respeito, explicita-se no primeiro dos referidos acórdãos que “(…) se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.”
E assim, não iremos conhecer das restantes impugnações da matéria de facto.

Aplicação do Direito

Os recorrentes afirmam que “a sentença em crise incorre em erro de interpretação e aplicação do direito”.
Porém, o que acrescentam a seguir é isto: “dando-se, como se espera, como provados os pontos de facto que os Autores entendem terem sido incorrectamente julgados a respeito do acidente de viação, dúvidas não restarão de que este ocorreu como os Autores descrevem: …”.
Ou seja, o que os recorrentes vêm dizer é que, alterando os factos provados como eles entendem que devem ser alterados, a aplicação do Direito terá forçosamente de ser diferente do que consta da sentença recorrida. O que é um truísmo. Significa que, verdadeiramente, não impugnam a aplicação do Direito aos factos que o Tribunal recorrido deu como provados. E, como vimos, os factos dados como provados sobre o desenrolar do acidente que vitimou a autora não foram alterados.
Só que os recorrentes acrescentam mais à frente que, “tendo a acção sido intentada com fundamento em culpa do condutor do veículo alegadamente causador do acidente, pode e deve o tribunal, não se provando a culpa, decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia pois se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer, presuntivamente, que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu (Ac. STJ de 04-10-2007, Proc. 07B1710), o que não sucede no caso sub judice”.

Ora bem.
É verdade que a sentença recorrida não apreciou a questão à luz da responsabilidade objectiva, de forma a ponderar se o pedido formulado poderia ser pelo menos parcialmente procedente com base nessa causa de pedir, limitando-se a apreciar a matéria de facto provada à luz do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 483º CC).
Também é verdade que olhando para a petição inicial, vemos que os autores não fazem qualquer referência à responsabilidade civil pelo risco, alegando a culpa efectiva e exclusiva do outro condutor, e apenas fazem uma brevíssima referência à culpa presumida deste, ao abrigo do art. 503º,3 CC.
E ainda é pacífico que os recursos não servem para conhecer de questões novas, que não tenham sido apreciadas e discutidas no tribunal recorrido, a não ser que se trate de matérias que devam ser conhecidas oficiosamente.
E é isso que sucede com a questão agora colocada da responsabilidade pelo risco.
É jurisprudência pacífica que quando o autor apenas pede a condenação do réu na base da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, o Tribunal pode e deve conhecer da possibilidade do direito de indemnização emergir da responsabilidade pelo risco.
Como se escreve no Acórdão do STJ de 31 de Março de 2011 (Granja da Fonseca): “nestas acções emergentes de acidente de viação, quando o autor formula o pedido de indemnização com base na culpa do lesante, implicitamente está a formulá-lo com base no risco, visto este estar englobado na causa de pedir invocada, por os factos ou razões de facto serem os mesmos com excepção dos referentes à existência de culpa. (…) Ora, não há dúvida alguma de que, sendo de conhecimento oficioso a matéria de qualificação jurídica dos factos, nos termos do artigo 664º do CPC, não estava o tribunal recorrido impedido de proceder à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo, por isso, livremente qualificar as razões de facto e, portanto, a causa de pedir. Neste sentido, vide entre outros, Acs do STJ de 10/05/88, BMJ 377º/461; de 26/05/92, BMJ 417º/734; de 21/01/93, CJSTJ, Tomo I, página 150; de 6/06/91, BMJ 408º/431; de 15/11/95, BMJ 451º/440; de 27/10/98, BMJ 480º, 392”.
Também o Acórdão do Supremo de 4 de Outubro de 2007 (Santos Bernardino) decide no mesmo exacto sentido, citando ainda o Prof. Antunes Varela. Nesse aresto podemos ler: “a causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se “o autor pede em juízo a condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente (a menos que haja qualquer declaração em contrário) que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar.” E assim, “se o autor invocar a culpa do agente na acção destinada a obter a reparação do dano, num caso em que excepcionalmente vigore o princípio da responsabilidade objectiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.” Prof. A. VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 690/691.
E ainda, no mesmo sentido, com referência a mais jurisprudência, o Acórdão do STJ de 9 de Dezembro de 2010 (Álvaro Rodrigues).

Cabe então verificar se essa causa de pedir assente na responsabilidade pelo risco pode suportar a procedência do pedido formulado na acção.
A resposta é obviamente negativa.
Por força do disposto no art. 483º,2 CC, “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”. Um desses casos é o previsto no art. 503º,1 CC, já transcrito supra.

E, como se pode ler no Código Civil anotado, dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação a este artigo, “a responsabilidade pelo risco, no caso de veículo de circulação terrestre, depende de duas circunstâncias:

a) Ter a pessoa a direcção efectiva do veículo causador do dano;
b) Estar o veículo a ser utilizado no seu próprio interesse”;

Desde logo, não foram alegados na petição inicial os factos necessários para se considerar preenchidos estes dois requisitos. Os autores apenas alegaram que o veículo automóvel com a matrícula RM pertence a A. M. e era conduzido por J. M.. Alegam ainda mais adiante, no art. 36º daquela peça, que J. M. conduzia o veículo “no interesse, por conta, ordem e interesse” da sua proprietária. Mas isto não é uma alegação de facto, mas sim meramente jurídica, pois usa a formulação da lei. O que os autores deveriam ter feito, e não fizeram, era alegar qual a relação entre a proprietária do veículo e o seu condutor, se era uma relação familiar, profissional, e qual, e a que título o carro era conduzido, se por empréstimo, se ao serviço da proprietária, e qual, etc.
Portanto, não temos factos para construir uma situação de responsabilidade pelo risco. E, diga-se também, pelas mesmas exactas razões, não há factos provados que permitam considerar aplicável a presunção de culpa constante do art. 503º,3 CC.
Mas mesmo que soubéssemos qual a relação entre a proprietária do veículo e o seu condutor, e a que título este conduzia tal veículo, ainda assim não haveria factos que permitissem seguir pela via da responsabilidade objectiva.
Repare-se: o que sabemos do acidente?
Apenas que no dia 26 de Novembro de 2014, cerca das 8h00m, a Autora circulava na Rua do ..., no sentido sul-norte, e que no sentido contrário, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava o veículo conduzido por J. M., e que a Autora embateu com o veículo por si conduzido, no portão e num dos pilares do muro da moradia sita na Rua do ..., nº ....
Não se provou que o veículo RM tenha tido qualquer intervenção no processo causal que levou a autora a despistar-se, seja a nível de culpa do seu condutor, através de uma qualquer violação do Código da Estrada, seja sequer ao nível dos riscos próprios do veículo. O facto de o veículo RM (ligeiro de passageiros) circular em sentido contrário ao da autora (também num ligeiro de passageiros), num local em que cada hemi-faixa tem 2,60 metros de largura, e ainda por cima estando o piso seco e em bom estado, não é causa adequada para a autora sair da faixa de rodagem e ir contra um muro. Foi o que, e bem, disse a recorrida nas suas contra-alegações.
Assim, para além de não se ter provado a culpa do condutor do RM no facto de a autora ter saído da estrada e embatido no muro, também não se pode afirmar, de todo, que exista uma relação causal entre o risco de circulação do veículo RM e o acidente que a autora sofreu.
Como tal, a acção foi, e bem, julgada improcedente, pois a causa de pedir assente na responsabilidade subjectiva (culpa) improcede necessariamente, o mesmo sucedendo com a responsabilidade objectiva (pelo risco).
Nenhuma censura merece a sentença recorrida.

Sumário:

1. Numa acção de indemnização baseada em acidente de viação, nada impede e tudo impõe que o Tribunal a quo (e a Relação) apreciem a eventual responsabilidade civil da ré à luz das regras que regem a responsabilidade objectiva, e dentro desta, pelo risco, apesar de na petição inicial os autores só terem pedido a condenação à luz da responsabilidade civil subjectiva, por factos ilícitos.
2. Numa situação em que dois veículos se cruzam e sem se ter apurado a causa, e sem ter colidido com o outro veículo, o veículo do autor sai da estrada e vai contra um muro, não é possível responsabilizar o outro condutor nem sequer com recurso à responsabilidade objectiva (art. 503º,1 CC), porque não se provou a existência de nexo causal entre o risco próprio da circulação daquele veículo e os danos.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente e confirma a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 13/1/2022

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1 - Para que um objecto com massa se encontre em movimento curvilíneo é necessária uma força centrípeta puxando-o para o centro de curvatura da trajectória, e em ausência de força centrípeta os objectos com massa descrevem trajectórias rectilíneas. Os objectos abandonam as trajectórias curvas não devido à presença de algum tipo de "força centrífuga" responsável por tirá-los das trajectórias curvilíneas, mas sim porque as forças centrípetas necessárias aos movimentos curvilíneos por algum motivo não se fazem mais presentes. Os carros saem das curvas seguindo trajectórias rectilíneas não quando há um aumento do atrito entre o pneu e o solo de forma a prover algum tipo de "força centrífuga" que os façam abandonar as curvas, mas sim quando há perda de atrito entre os pneus e o solo, de forma que a necessária força centrípeta não se faça mais presente (www.wikipedia.pt).