Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
40/19.6GBVLN.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: JULGAMENTO À DISTÂNCIA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
VIOLAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - Nos termos da L. n.º 1-A/2 020, 19/3, redação da L. n.º 4-A/2 020, 6/4 (confinamento pela pandemia Covid-19), a forma preferencial de realização de julgamentos urgentes era "à distância" e não "presencial".
2 - Deveria então e antes da marcação de julgamento ter sido exercido o contraditório, no sentido de os sujeitos processuais invocarem as suas dificuldades e preferências.
3 - O mesmo sucede, quanto a uma decisão de separação de processos: os sujeitos processuais devem poder dar a sua opinião quanto à sua oportunidade e modo de realização, nomeadamente e em casos de julgamentos com vários arguidos, referir se todos ou só alguns dos demais arguidos devem ser abrangidos pela decisão de separação.
4 - Só então deveria o Juiz decidir, concretizando sempre os fundamentos das opções tomadas.
5 - O princípio do Contraditório é protegido por várias Convenções Internacionais, pela Constituição e pela lei.
6 - Apesar de a preterição do mesmo não constar das tipicidades de nulidades previstas nos arts.º 119º e 120º C.P.P., estando em causa Direitos Fundamentais de índole Transnacional e Constitucionalmente protegidos, não poderia aceitar-se que a violação do mesmo desse lugar a um vício menor, como a mera irregularidade.
7 - Trata-se pois de uma nulidade que deve ser declarada e que determina a nulidade do processado posterior, bem como a renovação do mesmo.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por Acórdão de 13 de Maio de 2 020, foi o arguido T. V. condenado, nos seguintes termos:
- pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º/a, D.L. n.º 15/93, 22/1, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

Discordando da decisão proferida, da mesma interpôs recurso o arguido, apresentando no mesmo, as seguintes conclusões:

1. “Vem o presente recurso interposto na sequência do recurso interlocutório do douto despacho proferido a 17/04/2020 (referência 45267826), que ordenou a separação dos processos quanto ao arguido preso T. V. (…) dos restantes arguidos, nomeadamente do arguido R. T. (H.).
2. Já que o julgamento em conjunto de pelo menos destes 2 arguidos seria essencial para dar como provada matéria que foi dada como não provada.
3. O Ministério Público discorda da decisão sobre a matéria de facto, porquanto entende que se deveria ter dado como provado os factos 1, 2, 3, 4, 5 e 7 dos factos não provados.
4. E, consequentemente, salvo é claro melhor opinião, o arguido deveria ter sido condenado pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL 15/93, de 22/01 e não pelo crime de Tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a), do mesmo diploma legal.
5. Assim, não é inócuo vender apenas a consumidores finais junto a bares ... e, além disso, ter um intermediário que vende noutros locais e faz entregas em nome daquele, a quem paga com produto estupefaciente, aproveitando-se desta dependência.
6. E não é inócuo dar como provado que isso aconteceu uma vez ou dar como provado que isso aconteceu pelo menos 1 vez por semana durante 7 meses.
7. R. T. em inquérito assumiu os factos tal como constam da Acusação e que foram dados como não provados (factos 1, 2, 3, 4, 5 e 7 dos factos não provados), e assumiu-os perante magistrado do Ministério Público, pelo que, julgado em conjunto com o arguido T. V., aquelas declarações poderiam ser lidas e valoradas livremente pelo tribunal (art. 357º, n.º 1, al. b) do CPP), e, como foi inquirido como testemunha, já que separado o processo irá ser julgado noutra altura, recusou-se a depôr, ao abrigo do art.133º, n.º 2 do CPP, sendo indeferida (e bem) a requerida leitura, que o Ministério Público apenas requereu em acta para ficar demonstrado que lhe ficou vedada a utilização de um meio de prova que, a serem julgados em conjunto os dois arguidos, lhe seria possível utilizar para realização da pretensão punitiva do Estado (art. 30º, n.º 1, al. b) do CPP).
8. De qualquer forma, mesmo que assim não entenda o Venerando Tribunal, sempre se entende que os factos tal como provados deveriam ter levado à condenação pelo crime do art. 21º do DL 15/93, de 22/01 e não pelo crime de Tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a), do mesmo diploma legal, questão de direito que se coloca em apreciação.
9. Ou seja, saber se os factos tal como dados como provados integram o crime de art. 21º ou do art. 25º do diploma referido.
10. O arguido T. V. durante pelo menos 7 meses vendeu haxixe, erva e canábis, junto dos bares ..., sendo referenciado «à boca cheia» como consumidor e vendedor, vendendo essencialmente a jovens, muitos de 14 e 15 anos de idade, sendo-lhe apreendido cerca de 54 gramas de haxixe, que dava para 123 doses, mais canábis para 24 doses e outras quantidades mais pequenas, o que indicia já um número razoável de consumidores, resultando das regras da experiência comum que não guardam grandes quantidades para salvaguardar exactamente uma busca.
11. O arguido T. V. negou vender produtos estupefacientes.
12. A lei não se basta com uma qualquer diminuição da gravidade da ilicitude do tráfico para estarmos perante um tráfico de menor gravidade, esta tem de ser «considerável» e, salvo o devido respeito, pelo supra referido, entendemos que o arguido T. V. deverá ser condenado pelo crime do art. 21º.
13. O crime só poderá integrar o tipo de menor gravidade se estivermos perante uma situação excepcional, uma vez sem exemplo, sendo que o arguido tinha outro inquérito pendente pelo mesmo crime, com aplicação de medida de coacção pelo JIC, utilizava pelo menos um intermediário e vendia a jovens, alguns menores de idade, como resulta do depoimento e idade das testemunhas.
14. O acórdão recorrido violou assim o art. 30º, n.º 1, al. b) do CPP e os arts. 21º e 25º do DL 15/93, de 22/01.

Nesta medida, revogando o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro que condene o arguido T. V. pelo crime do art. 21º do DL 15/93, de 22/01, farão V. Exas., a costumada e esperada
JUSTIÇA.”

E, o recurso interlocutório, sobre o despacho que designou data para julgamento e determinou a separação de processos de 17/4/2 020, as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido a 17/04/2020 (referência 45267826), que ordenou a separação dos processos quanto ao arguido preso T. V. dos restantes arguidos.
2. Ora, salvo o devido respeito, o douto despacho recorrido padece dos seguintes vícios:
a. Violação grosseira da lei – do art. 7º, n.º 7, als. a), b) e c) d da Lei n.º 1-A/2020, na redacção da Lei n.º 4-A/2020;
b. Violação do princípio do contraditório previsto no art. 32º, n.º 5 da CRP – decisão de separação de processos sem que os restantes sujeitos processuais se pronunciassem;
c. Grave risco para a pretensão punitiva do Estado, em violação do art. 30º, n.º 1ª, b) do n.º 1 do CPP.
3. Atenta a declaração e posterior prorrogação do estado de emergência até 02/05/2020, o julgamento deveria ter tido lugar à distância, já que as alíneas citadas se aplicam sucessivamente e não alternadamente.
4. E caso se diga que inexistem os meios necessários técnicos, necessário se torna demonstrar previamente que diligências foram feitas juntos dos Técnicos de Informática do IGFEJ e das Instituições (Estabelecimentos Prisionais) envolvidas para que isso fosse possível ou não.
5. No mesmo douto despacho de 17/04/2020, que se coloca em crise, foi decidido pelo Mmo. Juiz do Processo julgar apenas o arguido preso – T. V., separando o processo quanto aos restantes 4 arguidos, a serem julgados autonomamente.
6. Sucede que, esta decisão foi tomada sem previamente se ouvir os restantes sujeitos processuais, ou seja, sem que o Ministério Público ou qualquer dos arguidos afectados pela decisão se pudessem pronunciar quanto à separação de processos , violando o princípio do contraditório plasmado no art. 32º, n.º 5 da CRP.
7. O que importa a nulidade do despacho em causa e de todo o processado subsequente – art. 3º, n.º 3 do CPC, ex vi art. 4º do CPP, que expressamente se invoca.
8. A isto acresce que se o Mmo. Juiz fundamentou o despacho recorrido no art. 30º, n.º 1, al. a) do CPP, sendo que aquela alínea não pode ser lida sem as restantes, pressupostos cumulativos, nomeadamente a al. b), que limita a conexão e/ou separação de processos também quando está em causa grave perturbação da pretensão punitiva do Estado, como é o caso.
9. Ora, conforme se requereu para acta no dia do julgamento, dia 23/04/2020 (referência 45310624), a separação de processos, nomeadamente do arguido preso T. V. do segundo arguido da acusação R. T. colocou em causa a prova de parte dos factos constantes da acusação, nomeadamente os factos 4 e 6 a 10, em que o primeiro arguido entregava produto estupefaciente para o segundo vender, a seu mando, sendo pago em produto estupefaciente. Isto passava-se em vários locais, nomeadamente junto da escola Básica e Secundária de …, o que possibilitaria a condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado – Tráfico de estupefacientes, previsto pelo art. 21º do DL 15/93, de 22/01, em vez do crime pelo qual veio a ser condenado, como se previa, pelo crime de Tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º.
10. Assim, não é inócuo vender apenas a consumidores finais junto a bares ... e, além disso, ter um intermediário que vende noutros locais, incluindo junto a uma escola Básica e Secundária!!!
11. O arguido T. V., preso à ordem dos autos, estava em prisão preventiva desde 27/06/2020, pelo que não estava em causa o prazo máximo e adiar o julgamento uma semana ou 15 dias não agravava a sua situação, já que acabou por ficar na mesma preso porquanto o julgamento não terminou na primeira sessão por falta de uma testemunha e por necessidade de ouvir o arguido R. T. que era o intermediário do arguido a ser julgado.
12. Ora, como se verificou na sessão de 06/05/2020 (referência 45310624) chamado o arguido R. T. para depor como testemunha, o mesmo recusou o depoimento, não se logrando conseguir ler as declarações que prestou enquanto arguido perante magistrado, frustrando a prova que o Ministério Público poderia fazer caso fosse arguido e julgado conjuntamente com o arguido T. V. (gravação 14:52:57 a 14:55:19).
13. Apesar de requerida a leitura pelo Ministério Público, foi a mesma indeferida, quer pela oposição do ilustre advogado do arguido T. V. quer pela falta dos pressupostos legais, já que neste processo R. T. pôde recusar o depoimento nos termos do art. 133º, n.º 2 do CPP, circunstância que não se verificaria caso fosse julgado conjuntamente com o arguido T. V., já que prestou declarações em inquérito perante magistrado do Ministério Público confessando os factos.
14. O douto acórdão recorrido violou assim o art. art. 7º, n.º 7, als. a), b) e c) d da Lei n.º 1-A/2020, na redacção da Lei n.º 4-A/2020; o art. 32º, 5 da CRP e o art. 30º, n.º 1, al. b) do CPP.”

Por sua vez, o arguido T. V. também apresentou recurso da decisão final, no qual sustentou as seguintes conclusões:

A) O Tribunal “a quo” desprezou, em absoluto, o facto de não terem sido sujeitos a exame pericial, ou pelo menos disso não se fazer menção no Acórdão recorrido, os objetos existentes na habitação do recorrente e nos quais se dizia haver vestígios de haxixe, sendo tal facto decisivo para se aferir do cometimento ou não do crime pelo qual o arguido foi condenado, dando essa matéria como provada sem mais delongas;
B) Ao arguido e aqui recorrente deveria ser aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução, atendendo a inúmeros factos que sustentam o pressuposto material de suspensão da execução de pena, encontrando-se preenchido o pressuposto formal para possibilitar tal suspensão (Pena de prisão até cinco anos);
C) Na verdade, a ilicitude do facto encontra-se diminuída pelo facto de o recorrente ser consumidor de produtos estupefacientes e a quantidade encontrada em sua casa ser irrisória, bem como o grau de pureza do mesmo produto ser substancialmente baixo e os meios utilizados pelo Agente serem descaradamente rudimentares;
D) O crime cometido foi um simples acidente de percurso, esporádico, até porque o arguido, apesar de ter uma ficha criminal com passado atreito ao crime, por ele já pagou e há um largo par de anos que tal não acontecia;
E) A pena de prisão efetiva aplicada ao arguido foi de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, encontrando-se substancial parte dela consumida pelos 11 (onze) meses de prisão preventiva já cumprida, não se entendendo a necessidade de ingressar em E. P. por 7 (sete) meses, quando uma pena de prisão de duração superior, mas suspensa na sua execução, daria certamente outra orientação ao arguido, no sentido de catapultar a sua vida para um efetivo comportamento de inserção social e afastamento do crime, que se pretende aconteça;
F) Com a prolação da sentença ora recorrida o Tribunal “ a quo”, violou os artigos 50º, 70º e 71º, nº 2, als c) e d), quando deveria ter aplicado ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução e nunca uma pena de prisão efetiva;
G) A sentença recorrida deve ser substituída por outra, na qual se aplique ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução, eventualmente subordinada a regras de conduta a definir pelo Tribunal, as quais não impliquem a impossibilidade de o recorrente desenvolver atividade profissional.”
O arguido não contra-alegou, quanto aos recursos do M.P.
O M.P. apresentou contra-alegações, no que se refere ao recurso do arguido. Nas mesmas, refere em síntese, que há prova suficiente para que se dê como provado que existiam vestígios de haxixe na navalha, cerâmica de cor escura e lâmina. Considera ainda, que ocorrem especiais razões de prevenção especial, que aliadas à não confissão justificam a aplicação de pena de prisão efetiva, que no caso está bem doseada. Sustenta que deve ser negado provimento ao recurso interposto, devendo assim manter-se a decisão recorrida.
neste Tribunal, teve vista neste Proc.º o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, que suscitou uma questão prévia – a da declaração de nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia, já que ali não foi analisada a questão da possibilidade de cumprimento pelo arguido, do remanescente de pena de prisão em que foi condenado, em obrigação de permanência na habitação. Daí decorre, em seu entender, omissão de pronúncia geradora de nulidade do Acórdão, nos termos do disposto no art.º 379º/1, c), C.P.P., pelo que deve o mesmo ser declarado nulo e enviado à 1ª instância, no sentido de tal lacuna ser suprimida, abordando-se assim expressamente esta questão, o que prejudica o conhecimento dos demais recursos.
Os autos vão ser julgados em conferência, como o impõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentos

Para melhor concretização das questões em causa nos autos, transcrever-se-ão de seguida, a decisão interlocutória e a decisão final proferida:

“ Considerando que, à luz dos critérios estabelecidos no C.P.P. e no art.º 7º, L. n.º 1-A/2 020, 19/3, na redação dada pela L. n.º 4-A/2 020, 6/4, este processo reveste natureza urgente, o julgamento, em princípio, realizar-se-á por uma de duas vias (art.º 7º/7 do citado diploma):

a) “à distância”, através de meios de comunicação adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando tal for possível;
b) presencialmente, quando não for possível a realização “à distância”, “desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos Conselhos Superiores competentes”.
Conjugando as previsões das als. a) e b) e uma vez que neste processo vão ser julgados 5 arguidos, conclui-se que a realização do julgamento “à distância” é de todo inviável.
Resta portanto, o julgamento presencial, limitado contudo, ao arguido preso preventivamente - no fundo, o arguido que determina o caráter urgente do processo -, dado que o julgamento conjunto de todos os 5 arguidos implicaria a convocação a convocação e presença de um número de intervenientes que não permitiria garantir a necessária segurança sanitária.
Nestes termos e ao abrigo do disposto no art.º 30º/1, a), C.P.P., de forma a não prolongar a prisão preventiva do arguido do arguido T. V. (…), determino que o julgamento deste arguido tenha lugar no dia já designado, procedendo-se, assim à separação de processos relativamente aos restantes arguidos (cujo julgamento será agendado em data oportuna pois que neste momento se desconhece a data em que cessará o regime excecional imposto por aquele diploma).”

Por seu lado, o Acórdão recorrido foi do seguinte teor – transcrição integral:

Acordam no Tribunal Colectivo de Viana do Castelo:
I - RELATÓRIO
Em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o Ministério Público deduziu acusação contra T. V., nascido a ..-10-1989, natural de …, Valença, filho de V. V. e de V. R., imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. art.21º-1 DL 15/93, de 22Jan [foram também acusados R. T., V. L., A. E. e T. R., em relação aos quais foi determinada a separação de processos nos termos do art.30º CPP].
O arguido não contestou.
Inexistem questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
*

II - FUNDAMENTOS

1. FACTOS

1.1. Factos provados com interesse para a decisão da causa

1. No âmbito do Inquérito 172/17.2GBVLN, o arguido T. V. foi sujeito, em 6 de Novembro de 2017, a interrogatório judicial de arguido detido, sendo indiciado pela prática de um crime tráfico de estupefacientes, p.p. art.21º-1 DL 15/93, de 22Jan, tendo-lhe sido aplicadas as seguintes medidas de coacção: Termo de identidade e residência, Obrigação de apresentações periódicas em regime semanal e Proibição de contactos dos arguidos entre si e com os demais arguidos.
2. Desde o final do ano de 2018, o arguido dedicou-se ao tráfico de estupefacientes, vendendo produto estupefaciente a consumidores finais na cidade de …, nomeadamente na zona dos bares, na zona da sede do … e na Avenida ..., pelo menos aos seguintes indivíduos, sendo que numa dessas vendas contou com a colaboração de R. T.:
a) P. M., a quem o arguido vendeu, em dia não concretamente apurado do final do ano de 2018, pelo preço de € 10,00, canabis em quantidade não concretamente apurada;
b) B. F., a quem o arguido vendeu, no dia 25 de Junho de 2019, junto da zona dos bares, a troco de € 10,00, 2 gramas de haxixe;
c) P. J., a quem o arguido vendeu, pelo menos em duas ocasiões, entre os meses de Novembro de 2018 e Fevereiro de 2019, haxixe, sendo que o mesmo pagou: da 1ª vez, € 80,00, e da 2ª vez, quantia não concretamente apurada.
3. Com vista a dar cumprimento aos Mandados de busca e apreensão emitidos nestes autos, foi montada pelo NIC da GNR de Valença, no dia 24 de Junho de 2019, uma vigilância ao arguido, tendo-se verificado contactos do mesmo com indivíduos conotados com o consumo de produto estupefaciente.
4. No dia 25 de Junho de 2019, pelas 15H30, foi novamente montada uma vigilância ao arguido, tendo-se verificado que se fazia acompanhar por R. T..
5. Nesse dia, por volta das 16H33, um indivíduo que se encontrava junto ao arguido no interior das galerias do edifício …, em Valença, deslocou-se ao exterior das galerias, dirigindo-se ao veículo de matrícula LQ, tendo efectuado uma entrega de produto estupefaciente ao respectivo condutor, regressando posteriormente para junto do arguido, o qual se mantinha no interior das galerias.
6. Pelas 16H38, foi abordado o veículo no qual seguia o adquirente do referido produto estupefaciente, sendo identificado como B. F., que entregou espontaneamente uma porção de haxixe com o peso (bruto) de 2 gramas, a qual foi apreendida.
7. Seguidamente foi efectuada a abordagem à residência do arguido, o qual se encontrava no seu interior, tendo-se apreendido os seguintes objectos, substâncias e quantias monetárias:
a) A1 – Uma porção de haxixe com o peso (bruto) de 54 gramas;
b) B1 – Uma porção de haxixe com o peso (bruto) de 0,63 gramas;
c) B2 – Em cima da mesinha de cabeceira, um telemóvel da marca Laiq, com o EMEI LG …….35;
d) B3 – No interior da mesinha de cabeceira, na primeira gaveta, uma porção de haxixe com o peso (bruto) de 0,53 gramas;
e) C1 – No interior de um frasco, uma porção de haxixe com o peso (bruto) de 1,55 gramas;
f) C2 – Em cima do móvel, no interior da carteira, € 830,00 em notas do Banco Central Europeu;
g) C3 – No interior da gaveta, uma navalha com resíduos de haxixe;
h) D1 – Na gaveta da cozinha, uma placa em cerâmica de cor escura com resíduos de haxixe e uma lâmina com vestígios de haxixe;
8. Na revista pessoal efectuada ao arguido foi-lhe apreendido:
a) quatro porções, de haxixe com o peso (bruto) de 10 gramas;
b) € 358,15 em notas do Banco Central Europeu;
c) um telemóvel da Marca …, Note ...
9. A maior parte do dinheiro apreendida ao arguido é composta por notas de € 20,00 e pelo menos uma parte desse dinheiro (não concretamente apurada) é proveniente da venda de produtos estupefacientes.
10. O produto estupefaciente apreendido ao arguido destinava-se à venda por parte deste a consumidores de produtos estupefacientes.
11. O produto estupefaciente apreendido ao arguido foi sujeito a exames periciais, os quais revelaram:
a) canabis (resina), com o peso líquido de 49,950 gramas, com um grau de pureza (%) de 12,4 (THC) e suficiente para 123 doses;
b) canabis (resina), com o peso líquido de 0,625 gramas, com um grau de pureza (%) de 5,7 (THC) e suficiente para menos de 1 dose; c) canabis (resina), com o peso líquido de 0,505 gramas, com um grau de pureza (%) de 10,6 (THC) e suficiente para 1 dose;
d) canabis (resina), com o peso líquido de 1,524 gramas, com um grau de pureza (%) de 15,1 (THC) e suficiente para 4 doses;
e) canabis (resina), com o peso líquido de 9,786 gramas, com um grau de pureza (%) de 12,23 (THC) e suficiente para 24 doses;
12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da punibilidade da sua conduta, com pleno conhecimento das características estupefacientes das substâncias que, durante o período mencionado, deteve e vendeu a terceiros com o propósito de obter proventos económicos.
13. O arguido conhecia as características estupefacientes dos mencionados produtos e sabia que com as suas condutas punha em causa a saúde pública e que a sua detenção, venda ou cedência eram proibidos e punidos por lei.
14. Os objectos e pelo menos uma parte do dinheiro apreendidos, com excepção dos telemóveis, provinham da actividade de tráfico de estupefacientes ou eram utilizados nessa actividade.

Mais se provou que:

15. O indivíduo que se encontrava junto ao arguido (conforme indicado em 5) era R. T., conhecido por “H.”.
16. Esse indivíduo, antes de se deslocar ao exterior das galerias e dirigir-se ao veículo de matrícula LQ (conforme indicado em 5), recebeu do arguido a porção de haxixe com o peso (bruto) de 2 gramas que depois entregou ao condutor do veículo (conforme indicado em 5).
17. O arguido teve um percurso escolar até à conclusão do 6º ano, com registos de absentismo e insucesso. Posteriormente resolveu adquirir maior valorização escolar e, através da frequência e conclusão do Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), habilitou-se com o 9º ano de escolaridade. Foi assumindo níveis crescentes de autonomia, sentindo-se a mãe impotente por não conseguir influenciar a sua conduta. Tal como o pai, a mãe iniciou uma nova relação afectiva e o companheiro dela assumiu a exploração do restaurante nas proximidades da residência do agregado, que encerraram decorridos poucos anos, continuando a mãe, cozinheira profissional, a ser o único elemento garante da subsistência do agregado. O arguido é conhecido na localidade de residência da progenitora pela convivialidade com pares que acompanhou desde a adolescência, conotados pelos comportamentos delituosos. Em data não apurada, o arguido conheceu a sua actual companheira, Daniela Cunha, com quem, decorridos alguns meses, passou a viver em união de facto, mantendo o casal residência em casa da mãe do arguido; nesse período nasceu a filha de ambos, actualmente com 3 anos. Cerca de 1 ano antes da prisão preventiva aplicada nos presentes autos, o casal, na procura de maior privacidade e autonomia, arrendou uma habitação, para onde se mudaram com a menor. Nessa altura o arguido encontrava-se desempregado, trabalhando de forma irregular no restaurante ..., em Valença. Entretanto, procurou trabalho, conseguindo um contrato a termo numa empresa de componentes para automóveis, onde laborou durante 9 meses, e posteriormente cumpriu dois contratos numa empresa metalúrgica, ambas sedeadas em Vila Nova de Cerveira. Dependente do consumo de estupefacientes, integrando uma esfera social ligada à problemática das drogas e outras actividades de risco, com um quotidiano direccionado para a satisfação das necessidades aditivas e de sobrevivência, o arguido desvalorizava a sujeição a tratamento, não se submetendo a qualquer tipo de intervenção terapêutica. Relativamente ao presente processo, embora verbalize não se rever no teor da acusação que lhe é dirigida, o arguido apresenta alguns pensamentos legitimadores do seu contexto de vida e de minimização do processo, e contextualiza-o no âmbito das problemáticas aditivas e na convivialidade com os pares aos quais se associava. No Relatório Social referente às condições pessoais e familiares do arguido lê-se na respectiva “Conclusão”: “T. V. tem antecedentes criminais, não tendo as condenações aparentemente tido a necessária ressonância para o motivar a uma consistente alteração de conduta, o que poderá constituir-se como significativo constrangimento à possibilidade de reorientar o seu percurso de vida. (…) Perante a problemática criminal em causa, em abstrato, ainda que verbalize reconhecimento da ilicitude e censurabilidade, o arguido manifesta insuficiente interiorização das noções de vitimas e danos”.
18. À data dos factos, o arguido tinha sido julgado e condenado, com trânsito em julgado, pelos crimes de: i) condução sem habilitação legal, praticado em 2006, na pena de admoestação (proc.520/06.3, do Tribunal Judicial de Valença); ii) condução sem habilitação legal, praticado em 2007, na pena de 90 dias de multa (proc.311/07.4, do Tribunal Judicial de Valença); iii) abuso de confiança, furto simples, condução em estado de embriaguez, condução sem habilitação legal (2), furto qualificado, condução perigosa e dano qualificado, praticados em 2007, pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova, e 120 dias de multa, (proc.432/07.3, do Tribunal Judicial de Valença); iv) condução sem habilitação legal e condução em estado de embriaguez, praticados em 2009, na pena de 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica (proc.65/09.0, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira); v) condução sem habilitação legal e condução em estado de embriaguez, praticados em 2009, na pena única de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita a regime de prova (proc.315/09.2, do Tribunal Judicial de Valença); vi) furto qualificado, praticado em 2009, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão (proc.276/09.8GBVLN, do Tribunal Judicial de Valença); vii) furto simples na forma tentada e ameaça agravada, praticados e 2009, na pena de 9 meses de prisão (proc.286/09.5GBVLN, do Tribunal Judicial de Valença); viii) furto simples e condução sem habilitação legal, praticados em 2009, na pena de 20 meses de prisão (proc.312/09.8GBVLN, do Tribunal Judicial de Valença); ix) detenção de arma proibida e receptação, praticados em 2010, na pena de 7 meses de prisão (proc.110/10.6GBVLN, do Tribunal Judicial de Valença).

1.2. Factos não provados com interesse para a decisão da causa
1. que o arguido dedicou-se à actividade de tráfico de estupefacientes recorrendo de modo diário, continuado e regular à colaboração de R. T. e de outros indivíduos cuja identificação não se logrou apurar, todos consumidores de produtos estupefacientes e que, a troco de produto estupefaciente que arguido lhes cedia a título gratuito, vendiam, por conta e ordem deste último, de modo diário, continuado e regular, produto estupefaciente a consumidores finais;
2. que o arguido cedeu a R. T., pelo menos desde o mês de Janeiro de 2019 e até ao mês de Junho de 2019, produto estupefaciente – haxixe –, sendo que tais cedências ocorriam em média uma vez por semana, sendo o local de encontro/entrega situado em diversos bares da cidade de Valença;
3. que essas cedências do produto estupefaciente eram a título gratuito, sendo que, em troca, R. T. efectuava, de modo diário, continuado e regular, entregas de produto estupefaciente a vários consumidores por conta e ordem do arguido;
4. que as entregas de produto estupefaciente que R. T. efectuava por conta e ordem do arguido ocorriam a pessoas e veículos e em locais previamente definidos por este, sendo que as mesmas ocorriam maioritariamente no jardim municipal de …, bem como nas imediações da Escola Básica e Secundária de …, em ….
5. que tais entregas ocorreram entre Janeiro e Junho de 2019, em média uma vez por semana.
6. que o arguido dedicou-se de modo exclusivo, diário, continuado e regular à venda de produtos estupefacientes durante o referido período temporal, como meio de prover ao seu sustento, sendo que no mesmo período não exerceu qualquer actividade lícita remunerada nem possuiu outro meio susceptível de satisfazer as suas despesas, vivendo dos proventos económicos que tal venda lhe proporcionava, fazendo da actividade de tráfico o seu modo de vida;
7. que o arguido se aproveitou da dependência de produtos estupefacientes de R. T. e de outros indivíduos cuja identificação não se logrou apurar, para, em troca de produto estupefaciente, trabalharem para si, sob a sua ordem e direcção, de modo diário, continuado e regular, procedendo a entregas a terceiros consumidores de produto estupefaciente.

[A restante alegação contida na acusação constitui matéria conclusiva ou questão de direito, pelo que não foi considerada].

1.3. Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada da prova produzida em audiência, designadamente no que a seguir se indica.
A testemunha P. M. explicou que é consumidor de canabis e que conhece o arguido de …, onde se falava que ele procedia à venda desse estupefaciente. Por regra, costumava comprar a outras pessoas, mas numa ocasião, em dia que não se recorda de finais de 2018, comprou ao arguido € 10,00 de canabis, na zona dos bares ....
A testemunha B. F. disse não conhecer o arguido, nem pelo nome, nem pela cara. Confirmou ser consumidor de haxixe, lembrando-se do dia em que foi abordado pela GNR depois de ter comprado a um indivíduo, junto da zona dos bares ..., 2 gramas de haxixe pelo preço de € 10,00.
A testemunha P. J. esclareceu que consome haxixe e que comprou desse produto ao arguido pelo menos por duas vezes, entre Novembro de 2018 e Fevereiro de 2019, junto à sede do … e na Avenida ..., tendo pago de uma vez € 80,00 e da outra vez quantia que não se recorda. Confirmou que o arguido era uma pessoa conhecida em …, sabendo-se, nos meios de consumo de estupefacientes, que ele, além de consumir, também vendia.
A testemunha D. F. (15 anos) referiu ter consumido erva e haxixe quando tinha 14 anos e até finais de 2019. Disse já ter ouvido falar do arguido em Valença, onde se comentava que ele era consumidor de estupefacientes e que também venderia, mas salientou que nunca lhe adquiriu qualquer substância. Neste último sentido depôs igualmente a testemunha C. R..
A testemunha A. G. afirmou conhecer o arguido “de vista”, da zona dos bares ..., local onde se comentava que ele poderia vender estupefacientes, embora a testemunha nunca lhe tenha comprado e nunca tenha assistido a tais vendas.
A testemunha I. L. explicou que conhece o arguido de … e sabe que o mesmo é consumidor de produtos estupefacientes, ignorando, todavia, se ele vendia ou não.
A testemunha S. E. (agente GNR do NIC de Valença) detalhou a vigilância que no dia 25 de Junho de 2019 foi efectuada ao arguido. Relatou que nessa ocasião, durante a qual o arguido manteve contacto com indivíduos conotados com o consumo de produto estupefaciente, o mesmo estava acompanhado por R. T. (identificado pela testemunha com a alcunha “H.”), que, a determinada altura, recebeu “algo” da mão do arguido e se dirigiu de imediato a um veículo que ali parou momentaneamente, a cujo condutor entregou “algo”, regressando de seguida para junto do arguido. Lodo a seguir, esse veículo foi abordado pelas autoridades, tendo então o respectivo condutor (B. F.) entregado aquilo que antes havia recebido, e que era uma pequena porção de haxixe (2 gramas de peso bruto). Depois foi efectuada uma busca à residência do arguido e uma revista a este.
As testemunhas C. M., P. B. e M. L. (todos agentes GNR do NIC de Valença) descreveram o que se passou na busca à residência do arguido e na revista que lhe foi efectuada, identificando os objectos, substâncias e quantias monetárias que foram apreendidos.
As testemunhas J. F., P. F. e V. A. (agentes GNR do NIC de Valença) nada sabiam de relevante.
O depoimento das testemunhas foi conjugado com os demais elementos juntos aos autos, de que se destacam o Relatório de Exame Pericial ao produto estupefaciente apreendido de fls. 518 a 521, bem como o Relatório de Diligência Externa de fls. 124 a 126 e 130 a 134), o Auto de Apreensão de fls. 128 e 136, o Auto de Busca e Apreensão de fls. 140 a 142, o Suporte Fotográfico de fls. 143 a 146), a Nota discriminativa de Dinheiros de fls. 147, os Autos de Pesagem e Teste Rápido de fls. 148 a 153, o Auto de Apreensão de fls. 157, o Auto de Busca de fls. 162 a 163, e o Auto de Apreensão de fls. 164.
O arguido admitiu ser consumidor de haxixe/canábis, que costumava adquirir em Espanha. Negou, contudo, que alguma vez tivesse vendido a outros consumidores, apesar de, por vezes, lhes ter cedido (tal como eles o fizeram em relação si) pequenas quantidades, como aconteceu, por ex., uma ou duas vezes em relação a P. J., em Dezembro de 2018. Falou sobre o período de tempo em que trabalhou, com carácter precário e irregular, no restaurante ..., em Valença, e na X (componentes para automóveis), em Vila Nova de Cerveira. Sublinhou que todas quantias monetárias que lhe foram apreendidas (€ 830,00 que se encontravam no interior da carteira, em cima do móvel da casa, e € 358,15 que tinha consigo) nada tinham que ver com o tráfico de estupefacientes e provinham das suas poupanças, destinando-se, além do mais, ao pagamento da renda da sua habitação. Perante a demais prova produzida e a que atrás se fez referência, esta versão dos factos retada pelo arguido não foi considerada, devendo, ainda assim, assinalar-se que a circunstância de o mesmo, no período que antecedeu a sua prisão preventiva, ter exercido alguma actividade laboral, embora irregular e com cariz precário, e ter, naturalmente, auferido o correspondente rendimento, é suficiente para que se tenha de admitir que pelo menos uma parte do dinheiro que lhe foi apreendido (parte essa não concretamente apurada) não é proveniente da venda de produtos estupefacientes ou – o que dá no mesmo – que apenas uma parte desse dinheiro é proveniente dessa venda.
Foi ainda valorado o Relatório Social e, relação aos antecedentes criminais, o CRC do arguido.
*

2. DIREITO

§1. Enquadramento jurídico-penal

1.1. crime de tráfico de estupefacientes

Vem o arguido acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. art.21º-1 DL 15/93, de 22Jan.
Este preceito estabelece que “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Trata-se do tipo fundamental do tráfico (“norma-mãe”). É claramente um crime de perigo já que para o seu preenchimento não é necessária a ocorrência de qualquer dano na saúde de alguém, exigindo-se apenas que o resultado se apresente na forma de um perigo; e é um crime de perigo comum (protege uma multiplicidade de bens jurídicos) e de perigo abstracto (não exige um efectivo dano/perigo dos bens tutelados pois o perigo não consta do tipo; o perigo é um mero motivo de incriminação; o legislador presume o perigo) (sobre a qualificação do tráfico de estupefacientes como crime de perigo, cf. AcsSTJ 2Mai90, BMJ 397º p.128, STJ 12Dez91, BMJ 412º p.206, TC 6Nov91, DR II de 2Abr92, TC 7Jun94, DR II de 27Out94, STJ 28Mar96, CJ-S t.1º p.240, RL 13Abr00, CJ t.2º p.157, RE 18Fev03, CJ t.1º p.261, STJ 3Nov04, proc.04P3289, www.dgsi.pt, STJ 11Out06, proc.06P2169, www.dgsi.pt, STJ 21Mar07, CJ-S t.1º p.220 e STJ 4Jul07, CJ-S t.2º p.234).
Por tudo isto, o crime consuma-se com a realização (com vontade livre) de uma das acções descritas na norma, sabendo o agente que procede em discordância com determinação legal: a ilicitude verifica-se com a “simples detenção de substância estupefaciente que, pelas suas qualidades, é nociva para a saúde humana, pelo perigo que tal situação potencia” (AcSTJ 5Jun91, BMJ 408º p.162) e “não se exige que o agente actue com um fim específico ou subjectivo” (AcSTJ 23Set92, BMJ 419º p.464) ou, dito de outro modo, “é irrelevante o fim visado pelo agente” (AcsSTJ 30Abr86, BMJ 356º p.166 e STJ 11Out95, BMJ 450º p.110).
*
Da matéria assente resulta que, desde o final de 2018, o arguido dedicou-se ao tráfico de estupefacientes, vendendo produto estupefaciente pelo menos a três indivíduos: P. M., a quem o arguido vendeu € 10,00 de canabis; B. F., a quem o arguido vendeu 2 gramas de haxixe por € 10,00 (nesta venda o arguido contou com a colaboração de um terceiro); e P. J., a quem o arguido vendeu haxixe pelo menos em duas ocasiões, recebendo € 80,00 de uma vez e da outra vez quantia não concretamente apurada. Na busca efectuada à residência do arguido e na revista então realizada foi-lhe apreendida canábis/resina com o peso líquido de 49,950 gramas + 0,625 gramas + 0,505 gramas + 1,524 gramas + 9,786 gramas, suficiente para 153 doses.
Perante este cenário, não há dúvida de que o comportamento do arguido sugere, em princípio, o crime de tráfico de estupefacientes, p.p. art.21º DL 15/93.
*

1.1.1. crime de tráfico de menor gravidade
A verdade é que o DL 15/93 prevê vários tipos de condutas e pune-as com penas mais ou menos pesadas consoante a gravidade dos comportamentos: em sentido crescente, tráfico para consumo (art.26º), tráfico de menor gravidade (art.25º), tráfico (art.21º) e tráfico agravado (art.24º).

Na espécie concreta, não estaremos perante um tráfico de menor gravidade?
O art.25º/a) DL 15/93 dispõe que “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.
Consagra-se aqui um tipo de tráfico privilegiado, que está numa relação de especialidade (uma das modalidades do concurso aparente de crimes) face ao tráfico fundamental (art.21º). Este tráfico de menor gravidade já foi apelidado de “válvula de segurança do sistema” na medida em que evita que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas (M. Rocha, Droga – Regime Jurídico, p.86 e AcSTJ 8Out98, CJ-S t.3º p.188).
Sobre a comparação entre os tráficos dos arts.21º e 25º já se escreveu: “Para que se verifique o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (art.25º) é de exigir que a ilicitude do facto, relativamente à pressuposta no art.21º, se mostre consideravelmente diminuída, nos termos apontados naquele art.25º. E, assim, a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição de ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global desta, tendo em atenção não só as que aquele artigo enumera de forma não taxativa mas ainda outras que, atendíveis na referida globalidade, apontam para aquela considerável diminuição. E esse elemento da considerável diminuição da ilicitude do facto tem de ser aferido face à ilicitude que é típica do art.21º, expressa, além do mais, na moldura penal abstracta que lhe corresponde, bem reveladora de que pressupõe uma acentuada ilicitude. Como elemento de referência elucidativo do grau considerável de diminuição da ilicitude devem, pois, ter-se em conta as molduras penais abstractas que estabelece. E neste ponto, para além da gradação que, em função de qualidade, as als.a) e b) do art.25º permitem, importa atentar que na hipótese da al.a) o mínimo da moldura penal abstracta é já de 1 ano e o máximo atinge 5 anos de prisão, o que é expressivo, face ao nosso sistema sancionatório penal, de uma já muito apreciável ilicitude. Assim, não deve entender-se «tráfico de menos importância», previsto no art.25º, como tráfico de gravidade necessariamente diminuta. A tipificação do art.25º parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa de punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art.21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no art.25º. Resposta que nem sempre seria viável e ajustada através dos mecanismos gerais de atenuação especial da pena (arts.72º e 73º CP), cuja possibilidade de aplicação não podia ter deixado de estar presente no espírito do legislador ao decidir-se pelo tipo privilegiado do art.25º” (AcSTJ 22Out98, BMJ 480º p.43). É exactamente assim!
É perante a compreensão conjunta de tudo isto que devemos analisar a situação sub judice.
*
No caso concreto, parece evidente que o tráfico do arguido não pode deixar de ser integrado no tráfico de menor gravidade: é para isso que apontam os meios utilizados (que não revestem sofisticação ou refinação relevante), a modalidade e circunstâncias da acção [estamos perante um “tráfico” mas não um tráfico especificamente direccionado para a obtenção de lucros: pelo contrário, tudo aponta (modesta condição sócio-económica do arguido e ausência de sinais exteriores de riqueza) para que a venda tivesse como objectivo principal a realização de proventos que permitissem ao arguido continuar a sustentação do vício e fazer frente às suas despesas correntes; por outro lado, o número de clientes fornecidos e concretamente identificados é restrito e o período de tempo durante o qual perdurou a venda/cedência não é muito extenso]. A quantidade do produto apreendida merece algum destaque (canábis/resina com o peso líquido de 49,950 gramas + 0,625 gramas + 0,505 gramas + 1,524 gramas + 9,786 gramas, suficiente para 153 doses), embora a sua qualidade tenha um baixo grau de toxicidade (canábis/resina).
Perante este cenário, pensamos que a conduta do arguido deve ser enquadrada no crime de tráfico de menor gravidade, p.p. art.25º/a) DL 15/93.
* *

§2. Determinação da pena

2.1. escolha da pena e medida concreta da pena

O crime de tráfico de menor gravidade é punido apenas com pena de prisão (e não também de multa, em alternativa) pelo que nada há que escolher neste particular (art.70º CP).
*
A medida concreta da pena é fixada de acordo com os critérios traçados no art.71º-1 CP. Vejamos quais são eles e como actuam no caso concreto, com a ressalva de que não serão consideradas as circunstâncias que fazem já parte do tipo de crime em causa – só assim fica salvaguardado o princípio da proibição da dupla valoração de factores (F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pp.234 ss), que aquela disposição expressamente protege.
Já vimos, quando enquadrámos a conduta do arguido no art.25º DL 15/93, algumas características da sua actuação, restando agora acrescentar-se que a intenção dolosa do arguido é elevada (dolo directo) e que o modo de execução nada tem de especial. A conduta anterior aos factos depõe contra o arguido (antecedentes criminais, embora não ligados ao tráfico de estupefacientes). O arguido é de modesta condição sócio-económica.
Em face disto, e levando em conta a moldura abstracta da pena de prisão, julgamos adequada e proporcional a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
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2.2. suspensão da pena de prisão

Segundo o art.50º-1 CP “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Trata-se de uma medida de carácter reeducativo e pedagógico, a aplicar quando, por um lado, em face de um juízo de prognose favorável à maneira de ser comportamental do arguido, seja de prever que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade e, por outro lado, à suspensão se não opuserem as necessidades de reprovação e de prevenção do crime (F. Dias, ob. cit, pp.342-344).
Já atrás assinalámos, quando tratámos da medida concreta da pena, que a conduta do arguido anterior aos factos depõe contra si: com efeito, estamos perante um arguido com inúmeros antecedentes criminais, com penas de prisão efectiva, bem como com uma trajectória profissional incipiente e marcada pela ausência de hábitos de trabalho, envolvimento no consumo de estupefacientes com inerente desorganização pessoal e desinteresse relativamente a qualquer tratamento à sua toxicodependência. Não apresenta um projecto de vida definido ao nível profissional. No seu Relatório Social lê-se que “T. V. tem antecedentes criminais, não tendo as condenações aparentemente tido a necessária ressonância para o motivar a uma consistente alteração de conduta, o que poderá constituir-se como significativo constrangimento à possibilidade de reorientar o seu percurso de vida. (…) Perante a problemática criminal em causa, em abstrato, ainda que verbalize reconhecimento da ilicitude e censurabilidade, o arguido manifesta insuficiente interiorização das noções de vitimas e danos”.
Por todas estas razões, tem de concluir-se que considerações ligadas à prevenção especial de socialização (o tal prognóstico favorável ao arguido) não permitem fazer um juízo positivo no sentido de que a simples reprovação dos seus actos e a ameaça da prisão satisfazem as finalidades da punição, ou seja, são suficientes para o afastar da criminalidade. Decide-se, portanto, pela não suspensão da pena aplicada.
* *

§3. Perda de objectos
Resta, por fim, anotar que os objectos apreendidos relacionados com a prática do crime serão, por imposição legal, declarados perdidos a favor do Estado (arts.35º e 36º DL 15/93).
* * *

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam no Tribunal Colectivo de Viana do Castelo em condenar o arguido:
a) como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. art.25º/a) DL 15/93, de 22Jan, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
b) no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Uc’s.

Declaram-se perdidas a favor do Estado as substâncias estupefacientes e demais objectos relacionados com o seu manuseamento, corte e preparação.

Oportunamente proceda à destruição das substâncias estupefacientes apreendidas (art.62º DL 15/93).

Ao contrário do crime imputado ao arguido na acusação (tráfico de estupefacientes, p.p. art.21º-1 DL 15/93) – que permitia a sua sujeição a prisão preventiva (pois integra o conceito de “criminalidade altamente organizada”, conforme o disposto nos arts.1º/m. e 202º-1/c. CPP) –, o crime pelo qual o mesmo é condenado no presente acórdão (tráfico de menor gravidade, p.p. art.25º/a. DL 15/93) não permite a aplicação/manutenção dessa medida de coacção [pois, segundo parece (embora a questão não seja pacífica), não integra o citado conceito, nem está abrangido por qualquer das alíneas previstas no art.202º-1 CPP: AcsSTJ 10Out07, proc.07P3780, e RE 26Jun2012, proc.506/11.6GFLLE-A-E1, ambos em www.dgsi.pt]. Em consequência, restitui-se de imediato o arguido à liberdade.
De qualquer forma, atendendo aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, à natureza do crime pelo qual o arguido é condenado e à pena de prisão efectiva que lhe é aplicada, conclui-se que existem probabilidades de o arguido se ver tentado a escapar à acção da Justiça. Nestes termos, e ao abrigo do disposto nos arts.193º, 198º e 375º-4 CPP, sem necessidade da sua audição, o arguido fica sujeito (além do TIR) à medida de coacção de obrigação de apresentação periódica, duas vezes por semana, à 2ª feira e à 5ª feira, no Posto Policial da sua área de residência. Comunique à entidade policial a obrigação imposta ao arguido, solicitando que informem os autos logo que a mesma seja violada.

Após trânsito remeta boletins ao registo criminal.
Comunique (art.64º DL 15/93).
Proceda ao depósito.”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Recurso Interlocutório do M.P. – Marcação de Julgamento e Separação de Processos

2.2. – Do Recurso Interlocutório do M.P. – Marcação de Julgamento e Separação de Processos

O M.P. discordou da decisão interlocutória de 17/4/2 020, tendo por isso interposto o competente recurso.
No recurso da decisão final, manifestou a manutenção do interesse na apreciação do mesmo (ref.ª 46072010).

Neste recurso decidiram-se basicamente duas questões:
- a de o julgamento ser feito presencialmente;
- a de o arguido T. V., único que estava preso, ter sido separado, nos termos do disposto no art.º 30º/1, a), C.P.P. – não prolongamento da prisão preventiva – relativamente a todos os quatro demais.

O M.P. recorrente discorda da decisão proferida, por três grandes linhas de argumentos:
- violação grosseira de lei, por o “julgamento à distância” ser preferencial;
- preterição do princípio do contraditório, antes da separação de processos;
- por ocorrer um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, com a separação – art.º 30º/1, b), C.P.P.
Ora, quanto à invocação deste normativo deve desde já referir-se que o mesmo não obsta à separação, mas constitui mais um motivo para que a mesma seja feita. Com efeito, o art.º 30º/1, b), C.P.P. constitui sim mais um fundamento para a separação de processos e não qualquer obstáculo à mesma.
Ocorre, por exemplo, quando um crime prescreveria, caso o arguido não fosse separado e julgado, num caso em que, se assim não fosse, ocorreria mais um adiamento. O grave risco para a pretensão punitiva do Estado decorreria da dita prescrição, caso o arguido não fosse separado.
Este normativo não constitui pois qualquer óbice à separação de processos efetuada, tratando-se antes de uma outra causa, para a separação de processos – não presente nos autos.

Vejamos pois, os dois demais argumentos.

Quanto à realização do julgamento por via “presencial” ou à “distância”.
Efetivamente e como diz o recorrente, à data estava em vigor por via da pandemia “Covid-19” e quanto à realização de diligências judiciais, a L. n.º 1-A/2020, 19/3, na redação da L. n.º 4-A/20, de 6/4/2 020 e que entrou em vigor no dia 7/4 e, mais particularmente o seu art.º 7º/7.
E, como diz o recorrente, o regime preferencial era o da realização do julgamento à distância – a que alude o respetivo art.º 7º/7, a) e b). Efetivamente, determinava este normativo que os julgamentos urgentes (como é o caso, por um dos arguidos se encontrar em prisão preventiva – art.º 103º/2, a), C.P.P.) se realizariam através de meios de comunicação à distância e, apenas quando isso não fosse possível, presencialmente e só quando estivesse em causa a vida, integridade física, a saúde mental, a liberdade (como é o caso) ou a subsistência imediata dos intervenientes.
Mas aí, no despacho teria de concretizar-se a razão porque não seria possível o julgamento à distância, que podia ser feito via videoconferência, “Webex”, “zoom”, “whatsapp” ou outro meio informático.
E aí, deveria a Senhora Juíza notificar os sujeitos processuais, quando possível na pessoa dos seus representantes legais, no sentido de saber se a realização do julgamento nestes termos era possível.
E, no caso de pretender passar para a via presencial deveria também a Senhora Juíza concretizar o motivo da impossibilidade de utilização desta via, nomeadamente invocando a impossibilidade de alguns dos intervenientes no recurso a estes meios de comunicação, respetiva inviabilidade ou outro motivo.
No despacho recorrido apenas se disse que “uma vez que neste processo vão ser julgados 5 arguidos, conclui-se que a realização do julgamento “à distância” é de todo inviável”.
Não foi porém feito qualquer esforço nesse sentido, nem descriminada a razão da inviabilidade da realização do julgamento, nessa forma.
Ou seja: a não realização do julgamento à “distância”, que era a forma preferencial de realização deste julgamento – e lembre-se que se estava em plena 1ª vaga da epidemia, em que ainda se desconhecia o seu real impacto e consequências e sem vacina ou tratamentos – foi afastada, sem a necessária fundamentação em concreto.
E, mesmo nesta parte, os sujeitos processuais deveriam poder pronunciar-se, sobre a possibilidade de realização do julgamento “à distância”, que não traria riscos acrescidos de “Covid 19”, após notificação do Tribunal.
O Tribunal decidiu-se pois pela realização do julgamento presencialmente, sem fundamentação válida para esse efeito e sem exercício do contraditório.
Porém, não se ficou por aí.
Com efeito e estando em causa o julgamento de cinco arguidos, decidiu-se logo pela separação de processos do arguido preso e julgado – T. V. – dos demais quatro, para não prolongar a prisão preventiva do mesmo (art.º 30º/1, a), C.P.P.).
E, também aqui se referiu simplesmente que “o julgamento conjunto de todos os cinco arguidos implicaria a convocação e presença de um número de intervenientes que não permitiria garantir a necessária segurança sanitária”.
Não se falou nas dimensões da sala de audiências, na possibilidade de cumprimento da regra sanitária de manutenção da distância mínima de 2 (dois) metros entre pessoas ou em qualquer impossibilidade de espaçamento das inquirições de testemunhas de modo a que se não acumulassem no exterior, nem se referindo o tipo de instalações existentes no Tribunal, para espera das testemunhas.
Mais uma vez pois, não se concretizou ou fundamentou a impossibilidade de realização presencial do julgamento, relativamente aos cinco arguidos.
Mas, mais uma vez não se possibilitou o exercício do contraditório quanto a esta decisão, que é relevante no processo e surgiu assim, como “decisão surpresa” para os intervenientes processuais, já que sobre ela não puderam pronunciar-se – o que contraria o disposto nos arts.º 32º/5 C.R.P. e art.º 3º/3 C.C., aplicável via art.º 4º C.P.P.
É que, no caso concreto, M.P. e arguidos poderiam pronunciar-se sobre se ocorriam de facto razões sanitárias para a separação de processos determinada e até sobre se todos os demais arguidos deveriam ser separados ou se todos ou alguns se deveriam manter no processo.
Veja-se que, por exemplo, o M.P. se insurge sobretudo contra a separação de processos, no que se refere aos arguidos T. V. e R. T., já que este teria, nos termos da acusação, uma atividade de venda de estupefacientes por conta e no interesse, do arguido julgado nestes autos.
E, no despacho recorrido também não se fundamenta porque não poderiam ser julgados dois ou até três dos arguidos, por hipótese.
Isto, tanto mais quanto estávamos em Abril de 2 020 e o parzo máximo de duração da prisão preventiva, quanto ao arguido preso só ocorreria em 27 de Dezembro de 2 020. A rapidez no julgamento dos processos não justifica tudo, sobretudo se estão em causa a justiça e a necessidade de contraditório, para que se obtenha uma justiça equitativa, como se pretende nos Estados Democráticos.
Mais, deve dizer-se que nem se referiu estarem em causa as “recomendações das autoridades de saúde” ou as “orientações fixadas pelos Conselhos Superiores competentes” – expressões ainda do referido art.º 7º/b, L. n.º 1-A/2020, 19/3, na redação da L. n.º 4-A/20, 6/4/2020, então vigente.
As primeiras têm a ver com as normas de distância mínima entre as pessoas (dois metros), de etiqueta respiratória e de higienização das mãos.
As segundas estão previstas na Divulgação do C.S.M. n.º 59/20, de 4/3 já que que a n.º 124/20, de 7/5/20 é já posterior à data em que proferido o despacho recorrido. E, na primeira não existiam regras especiais no que se refere à realização de julgamentos, apenas se acolhendo as medidas sanitárias gerais, já referidas.
Do despacho recorrido não se vê em que estas regras sairiam contrariadas, se o julgamento tivesse sido realizado com 2 (dois), 3 (três) ou mesmo 5 (cinco) arguidos.
Considera-se pois, que não existe motivação na decisão para a marcação do julgamento “presencial” ou para a redução de arguidos efetuada, por via da separação de processos; mas mais, que sobre estas questões não foi exercido o contraditório, princípio basilar das jurisdições penais dos países Democráticos.
Para além de o direito ao contraditório ser um direito básico dos sujeitos processuais, o seu exercício habilita também o Juiz a melhor proferir decisão, conhecidas que são as razões de cada um dos sujeitos processuais.
Com efeito, o princípio do contraditório é um princípio processual básico das sociedades democráticas, emanação do princípio do direito a uma “justiça equitativa” (art.º 6º/1 C.E.D.H.) e também Constitucional e legalmente protegido (arts.º 32º/5 C.R.P. e 3º C.P.C., via art.º 4º C.P.P.).
No caso, o contraditório foi omitido na íntegra, quer quanto à marcação do julgamento como presencial, quer quanto à separação de processos do ora arguido, relativamente a todos os quatro demais.
A questão assume tanta mais relevância, quanto as questões suscitadas podiam ter várias abordagens e suscitar várias questões de direito.
Questão que se coloca agora é a do vício, decorrente da preterição do princípio do contraditório.
À primeira vista não se tratará de uma nulidade, definidas através de tipicidades taxativas – arts.º 119º/120º C.P.P. e nos demais casos previstos na lei.
Mas, não faria sentido que, estando em causa Direitos Fundamentais de índole Convencional Internacional e Constitucionalmente protegidos – diretamente aplicáveis e que vinculam entidades públicas e privadas (art.º 18º/1 C.R.P.) – fosse a sua violação considerada como mera irregularidade (art.º 123º/1 C.P.P.), o vício menor e residual em Processo Penal.
E, por isso, há quem entenda que, nos casos em que estão em causa Direitos Fundamentais, a preterição dos mesmos dá ainda lugar ao vício da nulidade, ainda que não diretamente expresso na lei.
Foi aliás assim, que se decidiu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 18/9/2 006, Anselmo Lopes, em www.dgsi.pt. Ali se disse, a propósito destas nulidades, que
“Isto é, para além delas” – as nulidades previstas na lei – “existe um número de situações em que os atos ou omissões processuais podem ser nulos e assim acontece, em especial, quando são afetados direitos e garantias Constitucionalmente consagrados” (…). Senão, “um vício que era considerado como ferido de inconstitucionalidade passaria a ser considerado, pelas regras do processo penal, como uma nulidade sanável ou como um vício menor”.
É que, o Direito só faz sentido se visto numa perspetiva global e de realização da justiça.
E, de facto, não faria sentido que a violação de um dos princípios mais fundamentais do Processo Penal, o do contraditório, desse apenas lugar a uma irregularidade (art.º 123º C.P.P.) e não ao vício mais grave da nulidade.
Suscitada assim em sede recurso esta nulidade e sendo a mesma procedente, há tão-só que declará-la, também quanto ao processado posterior, mais se determinando a renovação deste.
Com o que surge prejudicada a apreciação dos demais recursos interpostos.

Termos em que, se declara procedente o recurso interlocutório do M.P., por via disse se declarando a nulidade do despacho de 17/4/2 020, bem como de todo o processado posterior, incluindo o julgamento e Acórdão proferidos, de modo a cumprir-se o contraditório, pelo menos quanto a eventual separação de processos e eventualmente, quanto à forma de realização do julgamento, se ao tempo da marcação do mesmo houverem opções a fazer quanto à forma da sua realização.
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Razões por que,
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3 – Decisão

a) se julga procedente o recurso interlocutório interposto pelo M.P., por via disso se declarando a nulidade do despacho de 17/4/2 020, bem como de todo o processado posterior, incluindo o julgamento e Acórdão proferidos, de modo a cumprir-se o contraditório, pelo menos quanto a eventual separação de processos e eventualmente, quanto à forma de realização do julgamento, se ao tempo da marcação do mesmo, houverem opções a fazer quanto à mesma.
b) Sem custas, já que o arguido não contraditou o recurso do M.P.
c) Notifique.

Guimarães, 24 de Maio de 2 021

(Pedro Cunha Lopes)

(Fátima Furtado)