Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
103/06.8TAPRG.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
TIPO OBJETIVO DO ILÍCITO
OMISSÃO FACTOS ACUSAÇÃO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – O tipo objetivo do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº1, al. b), do CPP, consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente [no caso, na não entrega de carta de condução no prazo concedido para o efeito pelo tribunal], estando o agente previamente advertido de que o não acatamento dessa ordem acarreta para si responsabilidade criminal. Assim, o crime consuma-se com a omissão do ato cuja prática foi ordenada.
II – Para o integral preenchimento do tipo objetivo de ilícito é indispensável que a ordem seja suscetível de ser cumprida pelo seu destinatário, ou seja, in casu, que o arguido tivesse a possibilidade de entregar a carta de condução, por a ter na sua posse ou disponibilidade sobre ela, pois que só essa circunstância torna exigível que atuasse em conformidade com a determinação que lhe foi dirigida, o que tem de ser factualmente alegado na respetiva acusação e, obviamente, provado em audiência de julgamento.
III - Não tendo sido alegado no libelo acusatório, explicita ou implicitamente - v.g. referindo que o arguido não procedeu à entrega daquele documento «como podia e devia» -, que o arguido tinha a carta de condução em seu poder quando lhe foi dada a ordem para a entrega, ou durante o período estipulado para o efeito, falta a alegação de facto que consubstancia elemento típico objetivo do crime em questão, omissão que não pode ser suprida em sede de julgamento com recurso ao mecanismo da alteração, não substancial ou substancial, de factos (arts. 358º e 359º, ambos do CPP).
IV – Não estamos no domínio do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº2, al. a), do CPP), porquanto se verifica impossibilidade legal de indagação pelo tribunal recorrido da matéria de facto omissa, essencial para descoberta da verdade material e boa decisão da causa [o tribunal não deixou de investigar tal facto; tal cognoscibilidade estava-lhe legalmente vedada].
V – Sendo a matéria de facto provada [a minguadamente descrita na acusação] inidónea a preencher na sua plenitude a tipicidade objetiva do imputado crime de desobediência, impõe-se, antes, a absolvição do arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum Singular nº 1636/16.3JAPRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 1, por sentença proferida e depositada no dia 31.01.2007 (fls. 82 a 85 e 87, respetivamente), foi decidido:
“Nestes termos o Tribunal decide julgar a acusação procedente por provada e, em consequência:

- Condenar o arguido J. M. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348°, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 480 (quatrocentos e oitenta euros).”

▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido J. M. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 306 a 314 – ref. 2295995):

“1ª) Só pode praticar o crime de Desobediência do art.348º, nº 1, al. b) do CP, quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem transmitida.
2ª) Não constando da acusação, nem da fundamentação de facto da decisão recorrida, os factos ou eventos da vida real do arguido que, pelo menos de uma forma implícita, permitam com segurança concluir que ele tinha em seu poder ou dispunha do acesso à carta de condução que devia entregar, impõe-se a absolvição do recorrente do ilícito em questão.
3ª) A matéria de facto assente, tal como se apresenta na sentença a quo (vide pontos 1 a 3 dos factos provados), é inidónea a preencher a tipicidade objectiva do crime de Desobediência, verificando-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada do art.410º, nº 2, al. a) do CPP, pois o Tribunal recorrido deixou de investigar factos essenciais à decisão da causa (ainda que não constantes da acusação).
4ª) Isto posto, a aplicação dos princípios do acusatório e do contraditório e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impedem que, nesta fase do processo, a apontada insuficiência possa ser colmatada através do reenvio dos autos à 1ª instância para novo julgamento, alargando-se o conhecimento do Tribunal a novos eventos que viabilizassem a formulação de um juízo segundo o qual o arguido podia, efectivamente, cumprir a ordem que lhe tinha sido determinada.
5ª) Cabendo, antes, lançar-se mão do entendimento ínsito no Ac. U.J. nº 1/2015 do S.T.J., proferido em 20.11.2014 e publicado em Diário da República, 1ª Série, de 27.01.2015, nos termos do qual qualquer “acrescento” de factos no sentido de suprir eventuais deficiências ao nível da alegação dos elementos constitutivos do crime assacado ao arguido equivale a transformar uma conduta que não é punível como tal, noutra que o é, com preterição das garantias asseguradas pelo art.32º, nºs 1 e 5 da CRP, o que acarreta a absolvição do arguido do crime de Desobediência por que foi condenado em 1ª instância. SEM PRESCINDIR,
6ª) Da simples leitura da sentença a quo extrai-se que nada foi apurado quanto à personalidade do arguido, suas condições pessoais e situação económica, factores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco (não taxativo) do art.71º, nº 2 do CP, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.
7ª) O julgamento decorreu sem que o recorrente estivesse presente, o que pode ter dificultado o apuramento da factualidade atinente às suas condições pessoais e situação económica.
8ª) Porém, o Tribunal tem o poder-dever de, oficiosamente, socorrer-se do disposto no art.340º do CPP para investigar os factos sujeitos a julgamento, procedendo autonomamente às diligências que, numa perspectiva objectiva, possam ser razoavelmente consideradas necessárias, de modo a habilitar-se a proferir uma decisão justa, não lhe sendo consentido remeter-se a uma atitude passiva e meramente dependente da iniciativa probatória dos sujeitos processuais.
9ª) In casu, o Tribunal a quo não procedeu a qualquer diligência para suprir o seu défice de conhecimento, carecendo a sentença recorrida de elementos que permitissem, conscienciosamente, levar a bom termo o procedimento de determinação da pena e de fixação da razão diária da mesma, dentro dos parâmetros legais dos arts.71º, nº 2, e 47º, nº 2 do CP.
10ª) Por outro lado, concluindo pela impossibilidade de obtenção daqueles elementos, deveria o Tribunal a quo consignar essa impossibilidade na motivação da matéria de facto, preferencialmente, dando conta das diligências realizadas, pois só assim resultará inequívoco que a ausência de factos relativos às condições pessoais e económicas não procedeu da sua inércia.
11ª) Tal omissão configura o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevenido no art.410º, nº 2, al. a) do CPP, determinante do reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.426º, nº 1 do CPP, circunscrito às questões (de facto) pertinentes para a decisão sobre a determinação da medida concreta da pena e fixação do seu quantitativo diário (condições pessoais e económicas do arguido).
12ª) A sentença recorrida violou assim, entre outros, os arts.348º, nº 1, al. b), e 47º, nº 2, e 71º, nºs 2 e 3 do CP, e 410º, nº 2, al. a), 340º, 368º, e 369º do CPP.”

Conclui peticionando seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, julgar-se verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por esta se apresentar atípica em relação à disposição do art. 348º, nº 1, al. b) do CP, o que, nesta fase processual, afigurando-se inviável o reenvio dos autos à 1ª instância, tem como consequência a absolvição do arguido do crime aqui em mérito, ou, assim não se entendendo, julgar-se verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por o Tribunal a quo ter determinado a medida da pena que impôs ao arguido com total omissão da factualidade inerente às suas circunstâncias pessoais, sociais e económicas, cabendo, por conseguinte, reenviar o processo à 1ª instância para novo julgamento, restrito ao apuramento de tais elementos, a que se seguirá a prolação de nova sentença, com determinação da pena em função do que vier a ser apurado.

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que formula as seguintes conclusões (fls. 317 a 321 - ref. 2348288):

“I. O Tribunal A QUO condenou o arguido/recorrente J. M. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348°, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 480 (quatrocentos e oitenta euros).
II. Dispõe o art.º 348º, n.º 1, al. b) do C.P. que é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias quem faltar à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se na ausência de disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação.

III. Resulta dos factos declarados provados que:
1. Por sentença proferida e transitada a 18 de outubro de 2005, no Processo Abreviado n.º 144/05.2GBPRG no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foi o arguido condenado em pena de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de cinco meses, sendo advertido para entregar a carta de condução de que era titular no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
2. O arguido, naquele prazo de 10 dias, que se iniciou no dia 19 de Outubro de 2005, não procedeu à entrega da sua carta de condução como para o efeito havia sido notificado, bem sabendo que essa conduta o fazia incorrer na prática de um crime.
3. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(…)
IV. No caso concreto, o arguido foi notificado da sentença, tendo sido advertido para entregar a carta de condução de que era titular no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal. O arguido/recorrente fez tábua rasa do teor da advertência, não tendo entregue a carta de condução no prazo mencionado.
V. O arguido/recorrente agiu dolosamente, ciente da ilicitude da sua conduta, razão pela qual se acha incurso na prática do crime de desobediência pelo qual foi condenado.
VI. Posto isto, o arguido/recorrente foi condenado na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 480 (quatrocentos e oitenta euros).
VII. A matéria de facto dada como provada na decisão recorrida é completamente omissa quanto à situação económica do arguido, o que se terá ficado a dever à circunstância de este não ter comparecido em audiência e, por isso, não lhe terem sido tomadas declarações a esse respeito.
VIII. Porém, é entendimento jurisprudencial consolidado nomeadamente, o acórdão do TRG de 18-10-2010 (processo n.º 22/09.6TABCL.G1), disponível em http://www.dgsi.pt. que o limite mínimo da taxa diária (€ 5) está reservado para as pessoas que vivam no limiar mínimo existencial ou, abaixo dele, em situações de indigência: salvo nos casos de situações de miséria (ou quase), não pode a multa ser fixada em montante tão próximo do limite mínimo que faça perder a sua eficácia penal.
Assim, apesar da ausência de elementos relativamente à condição económica do arguido, entendemos que não se justifica ordenar oficiosamente a realização de qualquer diligência probatória, por se reportar adequado fixar em € 6 o quantitativo diário da multa, situado muito próximo do mínimo, tendo em conta a capacidade normal de trabalho de uma pessoa da idade do arguido/recorrente – 43 anos de idade.
IX. Assim, tendo presente que a taxa diária da multa nunca é o resultado de uma mera operação matemática, havendo sempre que apelar ao prudente arbítrio do juiz, concluímos que o montante fixado em primeira instância, situado muito próximo do seu mínimo, mostra-se perfeitamente adequado, perante o caso concreto.
X. Face ao acima exposto, concluímos que o Tribunal A QUO não violou nenhuma das disposições legais elencadas pelo arguido/recorrente.”

Peticiona seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que suscita a extemporaneidade do recurso formulado pelo arguido e, em conformidade, pugna pela rejeição do recurso (cf. arts. 420º, nº1 e 414º, nº2, ambos do CPP), em decisão sumária (cf. art. 417º, nº6, do aludido diploma legal) – fls. 326/7 - ref. 7103581.

▪ Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do C. P. Penal, o arguido/recorrente apresentou resposta (fls. 329 a 331 - ref. 180648) na qual contesta o parecer do Ministério Público em segunda instância, invocando factualidade e disposições legais que, no seu entender, asseguram a tempestividade do recurso.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II.1 – Questão prévia - da tempestividade do recurso:

No parecer por si deduzido, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscita a questão da extemporaneidade do recurso interposto pelo arguido.

Alega, para tanto, que o arguido foi julgado na sua ausência, pelo que em conformidade com o disposto no art.º 333, nº2 do CPP, o prazo para a interposição de recurso conta-se, apenas, a partir da notificação da sentença que ao mesmo deve ser feita. No caso, o arguido foi notificado da sentença a 21/01/2020 e o recurso que dela interpôs apenas foi apresentado em juízo a 12/06/2020, o que significa, claramente, que o mesmo foi apresentado a destempo, porque fora do prazo de 30 dias previsto no art.º 411, n.º1, al. a) do CPP.
Em conformidade, peticiona a rejeição do recurso, nos termos do disposto no art.º 420, n.º 1 e art.º 414. n.º 2, ambos do CPP.

Na sua resposta, o recorrente esgrime argumentos no sentido da tempestividade do recurso, invocando, em súmula, que:

- O arguido só foi notificado pessoalmente da sentença que o condenou em 26 de março de 2020 – cf. refª 2261112.
- Decorrendo a audiência de julgamento na ausência do arguido – faltoso e ausente desde o início –, este deve ser notificado da sentença condenatória, não se iniciando o prazo para a interposição do recurso, que é de 30 dias, antes dessa notificação, a qual deve assumir natureza pessoal – cf. as disposições conjugadas dos arts.113º, nº 10, 2ª parte, 333º, nºs 2, 3, 5 e 6, e 411º, nº 1, al. a) do CPP.
- Ora, em circunstâncias normais, tal prazo só começaria a correr em 27 de março de 2020.
- Sucede que no período compreendido entre 9 de março de 2020 e 2 de Junho de 2020, todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito de processos considerados não urgentes, como é o caso destes autos, ficaram suspensos, por força do regime excecional de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença a ele associada COVID 19 – cf. a Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, mais concretamente o prevenido no seu art.7º, nº 1, posteriormente alterado pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, e, bem assim, o art.6º, nº 2 deste último diploma e os arts.8º e 10º da Lei nº 16/2020, de 29 de Maio.
- Temos, pois, que o prazo para a interposição do recurso por parte do arguido só se iniciou em 3 de junho de 2020, terminando, sem multa, em 2 de julho de 2020.
- Donde, tendo sido dada entrada judicial, via Citius, ao presente recurso em 12 de junho de 2020, muito antes do términus do prazo legalmente cominado para o efeito, é evidente que não se verifica a propalada causa obstativa do conhecimento do mesmo.

Cumpre decidir:
Diremos desde já que a razão se encontra do lado do recorrente.
Efetivamente, o arguido, julgado na ausência, nos termos e para efeitos do disposto no art. 333º, nº2 do Código de Processo Penal (CPP), só foi notificado pessoalmente da sentença condenatória [e prestou TIR] no dia 26 de março de 2020 – cf. fls. 301 a 304 [refª 2261112].
Dessarte, em condições normais, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 411º, nº1, al. b) e 333º, nº5, ambos do CPP, o prazo de 30 dias para interposição do recurso, contado desde a data da notificação ao arguido da sentença, iniciar-se-ia, no caso, em 27.03.2020.
O presente recurso foi apresentado no dia 12/06/2020 (cf. fls. 306).
Sucede, porém, que a Lei nº 1-A/2020 veio aprovar medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, constando entre essas medidas as atinentes aos prazos processuais e diligências que devam ou não ser praticadas no âmbito dos processos e procedimentos, que correm termos, para além do mais, nos tribunais judiciais e no Ministério Público – cfr. art. 7º.
Tal diploma legal foi publicado em 19 de março e entrou em vigor no dia seguinte (artº 11º), devendo produzir efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de março (Artº 10º), ou seja, desde 09/03/2020, vindo, depois, a ser alterada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de abril.
Publicada em 6 de abril, a citada Lei nº 4-A/2020, através do seu artº 2º, alterou o artº 7º da mencionada Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, em diversos pontos, contendo um novo conjunto de normas aplicáveis aos prazos processuais e actos processuais, sendo certo que, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2 daquele artº 7º, no que concerne aos processos de natureza não urgente – como é o caso do ajuizado –, estipulou-se que todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais e Ministério Público ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar por decreto-lei.
Ora, a Lei nº 16/2020, de 29 de maio, no seu artº 8º, procedeu à revogação do artº 7º e dos nºs. 1 e 2 do artº 7º-A, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, que, como se viu, além do mais, determinavam a suspensão de prazos para a prática de actos processuais em processos não urgentes que corressem termos nos tribunais judiciais, tendo entrado em vigor no 5º dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, no dia 03/06/2020.
Por conseguinte, a partir de 03/06/2010, no que tange aos prazos que estavam em curso em 09/03/2020 e que se suspenderam com o regime especial de suspensão em vigor desde essa data, retomou-se (1) a respectiva contagem com a entrada em vigor da citada Lei nº 16/2020, de 29 de maio.
Resumindo: por virtude do aludido regime especial, os prazos judiciais no âmbito dos presentes autos (que não têm natureza urgente), estiveram suspensos desde o dia 09/03/2020 até ao dia 02/06/2020, devendo retomar-se a respectiva contagem em 03/06/2020, com a entrada em vigor da citada Lei nº 16/2020, de 29 de maio.
Assim, face ao predito enquadramento legal aplicável, ressuma claro que o recurso deduzido nos autos pelo arguido é tempestivo.
Com efeito, o prazo de 30 dias para dedução do recurso somente se iniciou no dia 03.06.2020, pelo que, tendo sido interposto no dia 12/06/2020, a sua tempestividade está plenamente assegurada.
Improcede, assim, a questão da extemporaneidade do recurso suscitada pelo Exmo. PGA no parecer que deduziu nos autos (fls. 326/7).
*

II.2 – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (2).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar são as seguintes:
A) Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº2, al. a) do Código de Processo Penal, quanto ao não preenchimento da tipicidade do crime previsto no art. 348º, nº1, al. b), do CP.

B) Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº2, al. a) do Código de Processo Penal, quanto às circunstâncias pessoais, sociais e económicas do recorrente.
*
III – APECIAÇÃO:

III.1 - Do alegado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº2, al. a) do Código de Processo Penal (por esta se apresentar atípica em relação à previsão do art. 348º, nº1, al. b), do CP):

Alega o arguido/recorrente, neste segmento recursório [conclusões 1ª a 5ª]:

“1ª) Só pode praticar o crime de Desobediência do art.348º, nº 1, al. b) do CP, quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem transmitida.
2ª) Não constando da acusação, nem da fundamentação de facto da decisão recorrida, os factos ou eventos da vida real do arguido que, pelo menos de uma forma implícita, permitam com segurança concluir que ele tinha em seu poder ou dispunha do acesso à carta de condução que devia entregar, impõe-se a absolvição do recorrente do ilícito em questão.
3ª) A matéria de facto assente, tal como se apresenta na sentença a quo (vide pontos 1 a 3 dos factos provados), é inidónea a preencher a tipicidade objectiva do crime de Desobediência, verificando-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada do art.410º, nº 2, al. a) do CPP, pois o Tribunal recorrido deixou de investigar factos essenciais à decisão da causa (ainda que não constantes da acusação).
4ª) Isto posto, a aplicação dos princípios do acusatório e do contraditório e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impedem que, nesta fase do processo, a apontada insuficiência possa ser colmatada através do reenvio dos autos à 1ª instância para novo julgamento, alargando-se o conhecimento do Tribunal a novos eventos que viabilizassem a formulação de um juízo segundo o qual o arguido podia, efectivamente, cumprir a ordem que lhe tinha sido determinada.
5ª) Cabendo, antes, lançar-se mão do entendimento ínsito no Ac. U.J. nº 1/2015 do S.T.J., proferido em 20.11.2014 e publicado em Diário da República, 1ª Série, de 27.01.2015, nos termos do qual qualquer “acrescento” de factos no sentido de suprir eventuais deficiências ao nível da alegação dos elementos constitutivos do crime assacado ao arguido equivale a transformar uma conduta que não é punível como tal, noutra que o é, com preterição das garantias asseguradas pelo art.32º, nºs 1 e 5 da CRP, o que acarreta a absolvição do arguido do crime de Desobediência por que foi condenado em 1ª instância.”

Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada [transcrição]:
«II - Fundamentação de facto
A - Da realização da Audiência de Julgamento e com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida e transitada a 18 de Outubro de 2005, no Processo Abreviado n.º 144j05.2GBPRG no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foi o arguido condenado em pena de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de cinco meses, sendo advertido para entregar a carta de condução de que era titular no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.
2. O arguido, naquele prazo de 10 dias, que se iniciou no dia 19 de Outubro de 2005, não procedeu à entrega da sua carta de condução como para o efeito havia sido notificado, bem sabendo que essa conduta o fazia incorrer na prática de um crime.
3. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. Por decisão proferida em 03.10.2005, no âmbito do Processo Abreviado n.º 144/05.2GBPRG, que correu termos no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foi o arguido condenado na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no montante global de € 660,00.
Por decisão proferida em 02.04.2004, no âmbito do Processo Sumaríssimo nº577/ 03.9GTVRL, que correu termos no Tribunal Judicial Vila Real, foi o arguido condenado na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no montante global de € 240,00.»

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:

«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
…»
No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provado, comungando do douto e cristalino ensinamento do Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças [in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26], cumpre ter presente:
“Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”
Dito isto, temos que no corpo motivador do douto recurso, o recorrente explicita melhor o facto que entende omitido na fundamentação de facto da sentença recorrida (omissão que já provinha da acusação) e que era essencial, indispensável para o preenchimento do tipo objetivo de crime de desobediência que lhe foi imputado e pelo qual veio a ser condenado.

Assim, menciona o arguido (pág. 4, in fine, e pág. 5 do recurso):

«O preenchimento do tipo de ilícito do crime de Desobediência do art.348º do CP, que é o que está em apreciação nestes autos, depende da efectiva detenção do bem que deve ser entregue.
Isto é, traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem transmitida.
Realmente, é da própria natureza das coisas que quem não tem consigo determinado bem, nem pode dispor dele, não comete o crime de desobediência por não o entregar, pois não lhe é possível cumprir.
Ora, a imputação de que o arguido, no período de tempo fixado para a entrega, tinha a carta de condução em seu poder, ou, pelo menos, de que podia dispor dela ou obtê-la para a entregar, é “facto” que não consta, quer da acusação – e tinha de constar, pois é aí que se descrevem todos os factos (elementos constitutivos do crime) que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido: art.283º, nº 3, al. b) do CPP –, quer da factualidade considerada provada pelo Tribunal recorrido.
E a apontada insuficiência não pode ser colmatada ou substituída pela imputação genérica dos factos relativos aos elementos subjectivos – “Agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” –, os quais, naturalmente, pressupõem a prova prévia dos factos concernentes aos elementos objectivos do crime.»

Vejamos.

Entendemos que, salvo melhor opinião, não colhem, para este efeito, os argumentos aduzidos pelo arguido no seu douto recurso.

Prescreve o art. 348º, nº1, al. b), do Código Penal:

“1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque [in “Comentário do Código Penal”, anot. 4 ao art. 348º, p. 825], o tipo objectivo do crime em questão consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente. O crime consuma-se com a prática do acto cuja omissão foi ordenada ou com a omissão do acto cuja prática foi ordenada.
Ainda a propósito do preenchimento do tipo objetivo de ilícito, Cristina Líbano Monteiro [in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, anot. constante de § 19 ao art. 348º, p. 357], acrescenta que «só se deve obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida, como é próprio de um comando dirigido a alguém em concreto, pela situação e capacidades do particular destinatário. De impossibilita nemo tenetur. O problema põe-se sobretudo quanto à vertente impositiva da obediência, ou seja, nos casos em que desobedecer é omitir a conduta imperada. A impossibilidade de praticar o ato pode ser física ou até legal. Por exemplo: a pessoa não ter competência para praticar o ato que é intimada a praticar (Osório II 227).»
Ou seja, no caso, para a condenação pelo crime imputado não basta a prova de que o arguido não entregou a carta de condução de que era titular no prazo judicialmente concedido para o efeito, advertido que estava de que não o fazendo incorreria em responsabilidade criminal. Exigia-se ainda que a acusação alegasse e que se provasse que o arguido tinha a carta de condução em seu poder. Ou, pelo menos, algum facto de que inevitavelmente resulte que podia dispor dela para efetuar a entrega.
Conforme doutamente se expende no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 03/03/2014, processo nº 5/12.9PABRG.G1, relator Desembargador Fernando Monterroso, acessível em www.dgsi.pt, [ainda que reportado a crime de desobediência por não entrega de arma num posto policial] (3) «Quem não tem consigo determinado bem, nem pode dispor dele, não comete o crime de desobediência por não o entregar, porque não lhe é possível cumprir. É algo que decorre da própria natureza das coisas.»

E acrescenta-se: «A imputação de que o arguido tinha a arma e os documentos em seu poder, ou, pelo menos, de que podia dispor deles para os entregar, é «facto» que não consta da acusação e tinha de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime. Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação do arguido, não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação. É que a acusação fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32 nº 5 da Constituição, estrutura o processo penal. A acusação deverá conter a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena – art. 283 nº 3 al. b) do CPP.»

Ora, in casu, frisa-se, não se alega no libelo acusatório, explicita ou implicitamente - v.g. referindo que o arguido não procedeu à entrega daquele documento «como podia e devia» -, que o arguido tinha a carta de condução em seu poder quando lhe foi dada a ordem para a entrega, ou durante o período estipulado para a entrega.
Como se alerta ainda no douto aresto em que nos louvamos, «Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos essenciais à condenação com a prova dos mesmos. A circunstância de determinado facto resultar da prova arrolada na acusação, não dispensa a sua alegação

Neste sentido, veja-se ainda o acórdão do Tribunal Constitucional nº 674/99, de 15/12/1999, disponível no sítio da internet daquele tribunal, onde se decidiu:

Julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República” [sublinhado do relator].
Igual entendimento subjaz ao decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 20.11.2014 e publicado no Diário da República, I Série, de 27.01.2015, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal.
Não se olvida que a questão em apreço no presente recurso não coincide totalmente com a abordada no predito AUJ, porquanto o facto aqui omitido na acusação e na fundamentação de facto da sentença recorrida constitui elemento constitutivo, mas de natureza objectiva, do tipo criminal pelo qual o recorrente foi condenado; contudo, como ressuma da fundamentação desse douto aresto, válida igualmente para o caso que nos ocupa, a impossibilidade de recurso em julgamento ao mecanismo da alteração não substancial ou substancial de factos, prevista nos arts. 358º e 359º do CPP, respetivamente (cfr. ainda art. 1º, al. f) do mesmo diploma legal) é comum no que tange ao colmatar omissões acusatórias atinentes a factos que constituam elementos constitutivos do crime em questão, quer sejam de natureza objetiva quer sejam de natureza subjetiva; assim, não se pode recorrer ao mecanismo do art. 358º visto que a “alteração” em causa, com integração ex novo da factualidade em falta, desde logo assumiria indubitável caráter substancial, no sentido de que conduziria à imputação ao arguido de um crime que antes dela não se podia ter por verificado por falta da integral tipicidade do mesmo, ou seja, transformaria uma ação atípica e, como tal, não punível, num comportamento criminalmente tipificado; por outro lado, a inviabilidade de recurso a uma alteração substancial de factos fundamenta-se na circunstância de que só se pode alterar aquilo que antecipadamente, no momento próprio, se alegou, não servindo este mecanismo legal para suprir absolutas omissões da acusação, que fixa o objeto processual, atinentes à narração de factos concretos essenciais para o preenchimento do tipo de crime imputado ao arguido. Procedimento contrário equivaleria a transformar uma conduta, que não é punível como crime, noutra que o é, com violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no art.32º, nºs 1 e 5 da CRP.
Consequentemente, em concordância com a sobredita jurisprudência e com o entendimento defendido pelo recorrente, julgamos que não seria lícito ao Tribunal recorrido suprir, por via da introdução de factos não articulados na acusação, a insuficiência da matéria de facto provada, na parte relativa à situação e capacidade do recorrente, destinatário da ordem, poder vir a cumpri-la efectivamente.
Diferentemente, discordamos do entendimento jurídico adotado pelo recorrente de que estamos ainda no domínio do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o qual, a existir, pressupunha, à partida, por via da sua declaração por este Tribunal, a aplicação do disposto no art. 426º do CPP, no sentido do reenvio do processo para novo julgamento com a finalidade específica de adoção dos procedimentos processuais tendentes ao suprimento desse vício.
É que tal posição, salvo o devido respeito, é contraditória com a concomitantemente alegada impossibilidade legal de indagação pelo tribunal recorrido da matéria de facto omissa, essencial para descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Como vimos, por força do princípio da investigação vigente no nosso direito processual penal é atribuído ao juiz o poder-dever de ordenar oficiosamente a produção de todos os meios probatórios que julgue necessários para atingir os sobreditos fitos; porém, tal atividade judiciária surge balizada pelo princípio do acusatório [constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº5, da Constituição da República Portuguesa], isto é, não se pode espraiar para além do objeto do processo tal como definido pelos termos da acusação e da contestação (esta última, no caso, inexistente).
Donde, o tribunal a quo, contrariamente ao que alega o recorrente, não «deixou de investigar factos absolutamente essenciais para a justa decisão da causa»; tal cognoscibilidade estava-lhe legalmente vedada.
Por conseguinte, e porque face à matéria de facto apurada descrita nos pontos 1 a 3, a conduta do arguido é inidónea a preencher na sua plenitude a tipicidade objectiva do imputado crime de desobediência, impõe-se, do ponto de vista jurídico, a sua absolvição pela prática desse crime, revogando-se, em conformidade, a douta sentença proferida em 1ª instância.
E, assim sendo, face à procedência do primeiro fundamento, ainda que com as sobreditas nuances jurídicas, fica prejudicado o conhecimento sobre a segunda questão suscitada no douto recurso.
*

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

Julgar procedente a invocada atipicidade da conduta do arguido J. M., face à insuficiência da matéria de facto provada, e, em conformidade, concedendo provimento ao douto recurso por ele interposto, absolvê-lo da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº1, al. b), do CP, revogando-se assim a douta sentença recorrida.

Sem custas (arts. 513º, nº1, a contrario, do CPP).
Guimarães, 8 de fevereiro de 2021,

Paulo Correia Serafim (relator)
Maria Augusta Fernandes

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Contrariamente ao que sucede com a figura da “interrupção”, que inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo (cfr. Artº 326º, nº 1, do Código Civil), na suspensão, esgotado o respectivo o período, o prazo retoma a sua contagem normal.
2. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
3. Em idêntico sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.01.2015, processo nº 2162/12.5TABRG.G2, relator Desembargador João Lee Ferreira [reportado a um caso de não entrega no tribunal dos documentos de veículo apreendido por autoridade policial], acessível em www.dgsi.pt.