Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5030/15.5T8BRG.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos termos do art. 26º, nº 1, da CRP, “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”
II - O direito da autora ao apuramento da paternidade biológica, sendo uma dimensão essencial deste direito fundamental, deve prevalecer sem restrições sobre o da “tranquilidade” do suposto pai, por constituir um direito de personalidade de valor social e moral de maior relevância.
III- O artigo 1817º, nº 1), do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º, da Lei nº 14/2009, de 1.04, é materialmente inconstitucional, por contrariar o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade (neste caso «ex vi» do art. 1873°), proclamado nos artigos 18º e 26°, da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

M. F. instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra M. L. e M. R. em que pede que seja declarado que é filha de G. R. (falecido no estado de casado com a 1ª R e pai da 2ª R) e ordenados os consequentes averbamentos ao assento de nascimento da A.
Alega, para o efeito, que a mãe foi empregada doméstica na casa pertencente à família do falecido G. R., aí o conheceu e com ele manteve, pelo menos durante o ano de 1961, um relacionamento amoroso e de cariz sexual, em consequência do qual engravidou e nasceu a A em 18.06.1962.
Mais alega que o falecido G. R. não assumiu a paternidade e, por sua iniciativa, colocou a A, com três anos de idade, numa creche em Braga, depois em colégios internos e na casa de uma senhora que se intitulava sua “madrinha”, para não se tornar pública a sua existência e o relacionamento havido entre a mãe da A e o falecido G. R., sendo todas as despesas suportadas pelo falecido e pela sua família.
Alega, por fim, que sempre cresceu com a noção de que o falecido G. R. era seu pai, o que lhe foi dito pela sua mãe que lhe contou tudo o quanto se havia passado, e, na localidade da sua residência, comentavam diante da própria A que a mesma era filha do “Senhor G. R.”.

As RR M. L. e M. R. apresentaram as respectivas contestações em que alegam ter caducado o direito de propor acção de investigação da paternidade e impugnam a factualidade alegada.

Foi realizada audiência prévia e aí foi proferido despacho saneador que relegou para a decisão final o conhecimento da excepção de caducidade invocada.

Foi realizada prova pericial.

Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal que a respectiva acta documenta.

Foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção procedente e consequentemente:

a) declarar que a Autora M. F. é filha do falecido G. R.;
b) ordenar a remessa de certidão da presente sentença à Conservatória do Registo Civil de Braga a fim de ser averbado ao assento de nascimento da M. F. (com o nº …, do ano de 2010 – resultante de informatização do assento nº …/1962) a paternidade ora declarada bem como a referência aos avós paternos.

Inconformada com a sentença, dela veio recorrer a Ré M. L., formulando as seguintes conclusões:

1.
A sentença recorrida, ao não aplicar o nº 1 do artº 1817º, julgando-o inconstitucional, ao arrepio da jurisprudência uniformizada fixada pelo Acórdão 401/2011 do Plenário do Tribunal Constitucional que se pronunciou pela sua conformidade com a Constituição, viola o direito substantivo, carecendo de qualquer fundamento legal e constitucional a interpretação feita dos normativos legais em causa.

2.
Nos termos do disposto no nº 3 do art. 280º da CRP e al) f do nº1 e nº2 do Estatuto do M.P, impunha -se a este ter recorrido da sentença, como é seu dever legal, do que até à presente data a recorrente não tem notícia.

3.
O incumprimento de tal dever, obrigatório, pelo MP constituí violação da Constituição e da lei ( al) f) do nº1 e nº2 do artº 3º do Estatuto do M.P ), consubstanciando infração disciplinar de cuja notícia a recorrente vem dar aos autos a fim de ser participada ao CSM para os efeitos previstos no aludido Estatuto.

4.
Os fundamentos interpretativos da Lei Constitucional invocados para recusar a aplicação do nº1 do art. 1817º do C.Civil foram já amplamente analisados pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, não suscitando qualquer questão inovadora ou diversa no tocante à interpretação e harmonização dos preceitos Constitucionais aplicáveis.

5.
Para o tribunal a quo, as normas constitucionais que justificam a recusa da aplicação do art. 1817º são o nº 1 do Art 25º, o nº 1 do art. 26º e o nº 1 do artº 36º da CRP.

6.
Os princípios constitucionais em conflito com tais normas são, na perspectiva do tribunal a quo, o princípio da certeza e segurança jurídicas ( art. 2º da CRP), no sentido explanado na sentença, circunscrito à sua vertente patrimonial.

7.
O tribunal a quo defende, erradamente, em defesa da desconformidade constitucional da norma do art. 1817 do CC, a existência de uma linha jurisprudencial e doutrinal evolutiva nesse sentido.

8.
A evolução do pensamento doutrinal e jurisprudencial em matéria de caducidade do direito de reconhecimento da paternidade posterior à entrada em vigor da Lei 14/2009 é contrária, ou inversa, à que vinha sendo produzida antes da referida lei que alongou de dois para dez anos o prazo de caducidade.

9.
No que toca à invocada violação do nº1 do Artº.25º da CRP, tal como já foi apreciado e julgado pelo Tribunal Constitucional, a fundamentação da sentença carece de razão.

10.
O bem jurídico que tal normativo visa acautelar, a integridade física e moral da pessoa humana, não é posto em causa pelo estabelecimento de um prazo de caducidade para o reconhecimento da paternidade.

11.
Os arts. 26º, nº 1 e 36º, nº 1 da CRP têm vindo a ser recorrentemente invocados como fundamento de recusa da aplicação do artº 1817º do C.Civil, gerando conflito das decisões das secções do Tribunal Constitucional.

12.
No Acórdão n.º 401/2011 o Tribunal decidiu o conflito jurisprudencial nos seguintes termos, cuja fundamentação subscrevemos na íntegra: “a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição”

13.
O prazo de caducidade de dez anos previsto no artº1817º do C.Civil não viola o direito fundamental à identidade pessoal nem o direito a constituir família consagrados nos arts. 26º e 36º da CRP.

14.
Após as alterações introduzidas pela Lei n.º 14/2009, que procurou dar resposta à evolução verificada na jurisprudência constitucional, através do alongamento da duração dos prazos de caducidade, o Tribunal voltou a apreciar a constitucionalidade do novo regime de prazos de propositura da ação de investigação de paternidade, mantendo o juízo de conformidade com a lei fundamental.

15.
Neste sentido, entre muitos outros, estão os Acórdãos nºs. 106/2012, 247/2012, 515/2012, 350/2013, 750/2013, 383/2014, 373/2014, 547/2014 e 704/2014, 680/2015, 306/2016.

16.
De todas as decisões de inconstitucionalidade que versaram sobre a anterior redação do artº 1817º CC, podemos concluir que o Tribunal nunca assumiu que a imprescritibilidade era o único regime constitucionalmente conforme, tendo as mesmas sido sempre tomadas por razões atinentes à exiguidade do prazo estabelecido (à época de dois anos) e/ou ao caráter objetivo do termo inicial.

17.
A recorrente entende, de acordo com a doutrina e jurisprudência maioritárias, que a solução legal actual é proporcional e acautela os direitos fundamentais em conflito.

18.
Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios caracterizadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.

19.
Tais princípios revestem-se também de relevante dimensão pessoal, com repercussão na proteção de bens eminentemente pessoais, tais como, no que ao caso em apreço importa, a estabilidade afectiva e emocional ligada aos vínculos familiares constituídos e a reserva da intimidade e estabilidade da vida familiar.

20.
Quer a recorrente, quer a Ré M. R., viram a sua vida privada e familiar profundamente perturbada com o conhecimento da existência da recorrida.

21.
Os interesses de ordem pública invocados na sentença recorrida em defesa da desaplicação da norma do art. 1817º do CC não justificam a imprescritibilidade do direito em questão mas, ao invés, reclamam o estabelecimento de um prazo de caducidade por força da necessidade de uma célere definição do estado e vínculos familiares pessoais.

22.
A douta sentença, ao proferir juízo de inconstitucionalidade do artº 1817º do C. Civil, afastando a sua aplicação ao caso dos autos, é nula, tendo violado, além do art. 1817º do C. Civil, os arts. 2º ( princípio da segurança jurídica e proteção da confiança) e 3º da CRP ( princípio da legalidade do Estado de Direito Democrático), devendo ser revogada, proferindo-se acórdão que julgue procedente a excepção de caducidade invocada pela recorrente nos termos da lei e da Constituição da República Portuguesa e a ação improcedente.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a caducidade do direito da recorrida e revogando-se a sentença proferida.

Houve contra-alegações, nas quais se pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar se é conforme à Constituição o disposto no nº 1 do artº 1817º do Código Civil e, por consequência, aplicável ao caso o prazo de proposição da acção aí previsto.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS:

1. G. R. faleceu no dia - de Outubro de 2012, no estado de casado com M. L..

2. M. R., nascida a - de Abril de 1988, é filha de G. R. e A. F..

3. A Autora nasceu em - de Julho de 1962, na freguesia de Braga (…), concelho de Braga.

4. No assento de nascimento da Autora não se encontra averbado o nome do seu pai e consta como mãe C. P..

5. J. P., avó da Autora, exerceu a actividade de empregada doméstica na casa da família do falecido G. R., em troca da cedência de uma habitação, no que era ajudada pela C. P., mãe da Autora.

6. Por esse motivo, C. P. frequentava as casas da família R. (sitas em Ronfe e em Infias) e manteve um relacionamento amoroso com G. R. que incluiu a prática de relações sexuais de cópula nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam 18.07.1962.

7. Na sequência das relações sexuais mantidas entre a C. P. e o G. R. sobreveio a gravidez da C. P. e, decorrido o seu termo, o nascimento da Autora, inexistindo entre aqueles qualquer relação de parentesco.

8. A mãe da Autora era de uma família humilde e pobre e o falecido G. R. era de uma família nobre e brasonada.

9. A família do falecido G. R. nunca reconheceu a Autora como elemento da família.

10. A mãe e a avó da Autora nunca lhe esconderam que o falecido G. R. era seu pai, o que sempre foi do conhecimento da Autora.

11. A Autora é pessoa humilde e sem instrução.

12. Intentou a presente acção em 23.10.2015.

FACTOS NÃO PROVADOS:

1. O falecido G. R. e a mãe deste souberam do nascimento da Autora.

2. Aquele nunca a assumiu publicamente e tentou ao máximo esconder a sua existência.

3. Por iniciativa do falecido G. R. e da sua mãe, para não tornar pública a existência da Autora e o relacionamento havido entre a mãe da A e o falecido G. R., a Autora foi afastada da mãe e com três anos de idade foi colocada numa creche em Braga, depois em colégios internos e posteriormente em casa de uma senhora que se intitulava sua “madrinha”, sendo as despesas suportadas pelo falecido G. R. e pela sua mãe.

4. Era do conhecimento das companheiras de trabalho da mãe da Autora que esta era filha do falecido G. R.;

5. Na localidade da sua residência comentava-se diante da Autora que a mesma era filha do “Senhor G. R.”.

6. A Autora, com 16 anos, foi viver para casa do falecido G. R., onde permaneceu durante dois anos;

7. O falecido G. R., pelo menos, após os 16 anos da A, relacionou-se com esta como pai e filha.

8. Quando o pai do falecido G. R. morreu, a família do mesmo solicitou a presença da Aurora no seu funeral, tendo esta estado presente no funeral do seu avô com a restante família do pai.

9. O falecido G. R. nunca falou com a R M. L. acerca da Autora.

10. A R M. L. nunca ouviu a nenhum familiar do marido qualquer referência à A nem ao facto de esta ser filha do falecido G. R..

11. O falecido G. R., a R M. L. e toda a família paterna sempre mantiveram contacto com a M. R., receberam-na e dedicaram-lhe grande afecto e apoio nas suas necessidades.

12. A R M. R. nunca ouviu, até à citação, falar da Autora.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A Autora na presente acção pediu que seja declarado que é filha de G. R. e que sejam ordenados os consequentes averbamentos ao seu assento de nascimento.
As Rés, por sua vez, excepcionaram a caducidade do direito da A. por ter decorrido mais de dez anos desde a data em que a A atingiu a maioridade.
Na sentença recorrida entendeu-se existir inconstitucionalidade material do artigo 1817º nº 1 do CCivil, aplicável ex vi art. 1873º do CCivil, concluindo-se pela improcedência da referida excepção da caducidade.
Discorda a Recorrente deste entendimento, ao ponto de alegar que A sentença recorrida, ao não aplicar o nº 1 do artº 1817º, julgando-o inconstitucional, ao arrepio da jurisprudência uniformizada fixada pelo Acórdão 401/2011 do Plenário do Tribunal Constitucional que se pronunciou pela sua conformidade com a Constituição, viola o direito substantivo, carecendo de qualquer fundamento legal e constitucional a interpretação feita dos normativos legais em causa.”

Ora, a questão suscitada no presente recurso tem sido objecto de exaustivo e aprofundado tratamento na jurisprudência e doutrina, estando, a nosso ver, também minuciosamente abordada na sentença recorrida, cujos essenciais fundamentos e decisão nos merecem acolhimento, o que nos dispensa de aqui proceder a um detalhado desenvolvimento da questão jurídica em apreço.
É conhecido que o Tribunal Constitucional, no Acórdão 23/2006, declarou, com força obrigatória geral, que a propositura de acções de investigação de paternidade deixaram de estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade.
Resulta da fundamentação desse Acórdão que na origem da inconstitucionalidade declarada esteve o entendimento de que as acções de investigação de maternidade e de paternidade são imprescritíveis por visarem o reconhecimento de um direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º da Constituição da Republica Portuguesa. E essa identidade pessoal pode ser definida como sendo aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de outras por uma dada vivência pessoal e o direito a essa identidade como um direito fundamental e que tem como componente essencial a identidade genética, e consideram que o conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade integram e são uma das dimensões relevantes desse direito. (1)
Esta ideia da imprescritibilidade das acções de investigação da maternidade e da paternidade estava já a ser perfilhada pelo Tribunal Constitucional, que vinha a entender que “alteração dos dados do problema constitucionalmente relevantes a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização dos testes genéticos de muito elevada fiabilidade” e que “esta alteração não deixa incólume -o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade”. (2)
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/ 11/ 2010, “contrariando esta tendência sucessivamente reafirmada pelo citado Tribunal, a Lei 14/2009, prevendo embora prazos mais dilatados que os que permitia o art. 1817º na redacção dada pela Reforma de 1977, não deixa de constituir um volte-face e um manifesto recuo àquele princípio da imprescritibilidade das ditas acções [e direitos que com elas se visam acautelar]. E é evidente que na sua origem esteve uma ideia ou um objectivo de segurança jurídica e a protecção da «paz da família do pretenso pai ou da pretensa mãe.
Só que, como o STJ já frisou [nos Acs. de 17/04/2008, proc. 08A474 e de 21/09/2010, supra mencionado], “conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a «tranquilidade» do suposto pai (e muito menos de herdeiros a defenderem interesses puramente patrimoniais), sempre deveria prevalecer o primeiro já que (…) esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se insere no direito de personalidade, é um direito inviolável e imprescritível”, e não podem “privilegiar-se direitos patrimoniais perante os direitos pessoalíssimos de personalidade e de identidade e os danos eventualmente causados à reserva da vida privada e familiar do pretenso pai não ficarão agravados com o decurso do tempo” [cfr. também Guilherme de Oliveira, in “Caducidade das Acções de Investigação” – Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol. I, pg. 29 e segs. e 53].
E no que diz respeito à defesa da paz da família do pretenso pai [caso que nos interessa] ou do seu agregado familiar, não deixam também de ser principalmente interesses de ordem patrimonial que lhe estão subjacentes [as expectativas dos herdeiros conhecidos e o evitar de acções com o propósito de «caça fortunas»], os quais, como decorre do que atrás se disse, devem claramente ceder no confronto com o direito pessoalíssimo à identidade pessoal do investigante, de muito maior dignidade constitucional que o da protecção da paz familiar do investigado e/ou dos interesses e expectativas dos herdeiros deste.
Por isso é que, como salientam os doutos arestos do STJ supra referenciados, o direito do investigante à descoberta e/ou à declaração da sua ascendência parental não pode ter entraves temporais ao seu exercício, podendo apenas sofrer restrições em casos em que este exercício constitua um abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelo fim social daquele direito – art. 334º do CCiv. -, como acontecerá necessariamente nos casos em que se demonstre que o único objectivo do investigante é a obtenção de benefícios patrimoniais decorrentes do acesso, como herdeiro, ao património do pretenso pai, em posterior liquidação resultante do seu decesso. (3)
Este entendimento decorre de uma evolução no pensamento jurídico.
Com efeito, começou por defender Guilherme de Oliveira que “devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o «direito ao desenvolvimento da personalidade», introduzido pela revisão constitucional de 1997, «um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e1 proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar, do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua famí1ia, numa palavra, a sua «localização» no sistema de parentesco”.
Adiantava ainda que, “do ponto de vista do suposto pai, deve ter sido considerado o seu «direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar». De facto, a revelação de um filho desconhecido pode ser perturbadora, sobretudo quando, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai, ou pelo decurso do tempo, a revelação é muito surpreendente. Além de surpreendente, pode provocar danos efectivos no agregado familiar do interessado”. (4)
Por isso, concluía o mencionado Professor que o legislador, com a reforma de 1977, impondo para a propositura da acção, o prazo da menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação (artigo 1817º, n.º 1, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código), constituía uma restrição proporcional do direito de investigar a paternidadepara defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a segurança jurídica, a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais» porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir «segurança» aos pretensos pais, do perigo de «envelhecimento das provas» e do uso do direito de investigar só para obter heranças. A Comissão terá pensado que a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de intentar a acção”. (5)
Todavia, reponderando a sua perspectiva sobre a questão da caducidade escreve o mesmo autor que, “voltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram. Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso.
Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador]. Nestas condições, o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada.
Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o «direito ao desenvolvimento da personalidade» [art. 26.º da CRP], introduzido pela revisão constitucional de 1997 — um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar este preceito constitucional, mas não será forçado dizer que ele pesa mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família, numa palavra, a sua localização no sistema de parentesco”.
Deste modo, conclui citado autor: “Em conclusão, creio que os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade. Em face do quadro de direitos constitucionais implicados e de uma valoração particular dos interesses gerais defendidos pela caducidade, julgo que a limitação de agir que resulta do prazo estabelecido pela lei vigente significa uma restrição não justificada, desproporcionada, do direito do filho. Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.° e 1873.° CCiv”. (6)
Mais recentemente, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira sustentam que os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar a paternidade, escrevendo que “não tem sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga-se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade”. (7)
E abono deste entendimento, diz-nos Jorge Duarte Pinheiro, ”já não é razoável a imposição de prazos para a investigação da paternidade ou maternidade. Os testes de ADN permitem determinar com grande segurança a maternidade ou paternidade de uma pessoa, muitos anos após a morte do hipotético progenitor, o que afasta o risco da incerteza das provas. Quanto à caducidade da acção de investigação enquanto instrumento de tutela da segurança jurídica dos herdeiros e de combate da «caça às heranças», estão em causa argumentos de índole predominantemente patrimonial que não superam o interesse do filho no estabelecimento da respectiva filiação. Por fim, a tutela da segurança do pretenso pai está novamente aquém do interesse do filho, em especial num contexto de fiabilidade da prova do parentesco e de prevalência da ideia de responsabilidade parental pelo ser humano que foi gerado. (8)
É certo que o Tribunal Constitucional, por acórdão nº 401/2011, de 22.09.2011, decidiu:” Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
Contudo, nos tribunais superiores mantém-se a divergência jurisprudencial quanto a tal questão, como veremos.

Dispõe o art. 1817º nº 1 do Cód. Civil na redação dada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril que:

1 - A ação de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
2 - Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815.º, a ação pode ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório.
3 - A ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:
a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante;
b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe;
c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
4 - No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação.

Tal prazo aplica-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código.
Apesar do alargamento do prazo geral e do estabelecimento de prazos suplementares para situações igualmente dignas de tutela, e que vão para além daquele (nº 3 alªs a), b) e c) do art.1817) por via da referida alteração legislativa, a jurisprudência mantém-se dividida quanto à sua conformidade com a Constituição.
Efetivamente, uma parte da jurisprudência continua a defender a imprescritibilidade das ações de investigação de paternidade, invocando que a existência de prazo, qualquer que ele seja, para intentar uma ação desta natureza, é inconstitucional.
Tal jurisprudência apoia-se, em regra, na argumentação explanada no anterior Ac.do TC nº 23/06, de 08.02, que declarou inconstitucional o art. 1817º, n.º 1, do CC, na redação anterior à vigente (que previa o prazo de dois anos após a maioridade), nomeadamente no direito do filho ao apuramento da paternidade biológica com uma dimensão de “direito fundamental à identidade pessoal”, o que não se compagina com o estabelecimento de qualquer prazo.
Outra jurisprudência tem defendido a constitucionalidade de um prazo para a interposição de tais ações de investigação de paternidade, desde que o mesmo se mostre razoável, porquanto, importa simultaneamente prevenir situações de incerteza e de ameaça sobre o pretenso progenitor e os familiares deste, bem como situações de caça à herança paterna.
Essa divergência jurisprudencial mantêm-se, mesmo após a prolação do referido Acórdão do Tribunal Constitucional (Ac. nº 401/2011), decidido em plenário, a qual persiste mesmo no próprio Tribunal Constitucional, como é disso exemplo o Ac. nº 418/2018, que julgou inconstitucional «a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa». Diga-se que este acórdão, acabou por ser revogado pelo Acórdão do plenário do mesmo Tribunal, de 3.06.2019, muito embora com vários votos de vencido, que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”
Apesar da argumentação vencedora de tal acórdão, que não nos vincula, divergimos do mesmo na medida em que, não concebemos a constitucionalidade de qualquer norma que estabeleça um prazo legal para que um filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação.
Deste modo, o nº 1 do artigo 1817º do C.Civ, na redação conferida pela Lei 14/2009, alargando o prazo de caducidade (de 2 para 10 anos) e prevendo prazos suplementares que flexibilizam aquele, ainda assim, porque mantém uma limitação temporal para a propositura da ação é, a nosso ver, inconstitucional, pois que restringe os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º nº 2, 26º nº 1 e 36º nº 1 da C.R.P, ou seja, configura uma restrição desproporcionada do direito à identidade das pessoas.
Esta mesma posição da inconstitucionalidade do artigo 1817, nº 1), do C. Civil, é defendida no acórdão do S.T.J., de 16.09.2014, onde expressamente se refere que “A propósito da hipótese concreta da acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições” .

Mais recentemente e no mesmo sentido, no Ac. do STJ de 14.05.2019, proc. 1731/16.9T8CSC.L1.S1, sumariou-se que:

“I - A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
II - O direito da autora ao apuramento da paternidade biológica configura uma dimensão essencial deste direito fundamental, pelo que os meios de reconhecimento da paternidade ou maternidade deverão ser tendencialmente irrestritos, para não limitar em demasia as possibilidades de estabelecimento da filiação dos filhos nascidos fora do casamento.
III - No estádio actual do desenvolvimento científico em que os exames de DNA permitem obter uma quase certeza da paternidade, sectores muito significativos da doutrina e da jurisprudência, bem como a evolução legislativa em áreas relacionadas com os direitos de personalidade e o direito comparado apontam para a ausência de outros valores ou direitos que sobrelevem o direito pessoalíssimo “de conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca genética de cada pessoa”.
IV - O prazo de caducidade de 10 anos, previsto no n.º 1 do art.º 1817.º, n.º 1, do CC, para a investigação de paternidade e aplicável, por via do art. 1873.º do mesmo diploma legal, à investigação de paternidade deve considerar-se, pois, inconstitucional.”

Com efeito, a restrições temporais decorrentes da fixação de um prazo de caducidade para este tipo de acções, quando esteja em causa o reconhecimento de paternidade ou maternidade, não podem ser vistas como proporcionais, por respeito ao direito fundamental à identidade pessoal.
É certo que para os defensores de tal proporcionalidade importa ter em conta: - a segurança jurídica dos pretensos pai e herdeiros; - a perda ou “envelhecimento” das provas, e - o escopo “caça fortunas”.
Todavia, tais argumentos a nosso ver não têm justificação bastante.

Reproduzimos aqui parcialmente, por nos merecer acolhimento, a declaração de voto de vencido do Ac. da RC de 8.09.2015, no proc. 4704/14.2T8VIS.C1, sobre um caso semelhante:

(…)”Conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a “tranquilidade” do suposto pai (ou dos herdeiros a defenderem interesses puramente patrimoniais) sempre deveria prevalecer o primeiro, já que, o mesmo se inscreve num direito de personalidade, socialmente tido como mais relevante, podendo ser criados legislativamente mecanismos de proteção relativamente à estabilidade do património a partir de certo período de tempo, ou recorrer-se à figura do abuso de direito como critério balanceador para equilibrar os interesses em presença.
Países como a Itália, a Espanha e a Áustria, optaram pela imprescritibilidade das ações de investigação de paternidade, por considerarem que a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.
Quanto ao chamado “envelhecimento das provas”, tal questão mostra-se totalmente ultrapassada mediante os avanços científicos.
Os exames de sangue e outros métodos cientificamente comprovados, sustentados no ADN, permitem com elevada fiabilidade a identificação de pessoas.
Na investigação de paternidade a fiabilidade é, de resto, quase total (superior a 99,99%). Ao contrário, se os perfis genéticos do filho e do presumível pai não coincidem em pelo menos dois dos indicadores submetidos à análise, a paternidade é improvável em 100%
Assim, tal argumento não tem já qualquer atualidade.
Relativamente ao argumento “caça fortunas”, remetemo-nos para os mecanismos que o direito já contempla, como o do abuso do direito, a litigância de má-fé, etc., sem prejuízo de outros que a lei poderia vir a contemplar, com vista a prevenir tal escopo dispondo, por exemplo, a ineficácia patrimonial do estabelecimento da filiação em ação intentada decorridos que fossem x anos após o conhecimento dos factos, ou quando se tornasse patente que o propósito que moveu a ação foi o da obtenção de benefícios patrimoniais.
Por fim, importa reforçar que o direito à verdade da filiação biológica não é só um direito do investigante, é também um interesse do Estado.
Como acima referimos, o próprio Estado tem também interesse na concretização da filiação biológica, não só porque, não é possível pensar o Estado sem a família, sendo esta seu núcleo básico, mas também porque a ordem pública impõe o impedimento dirimente absoluto do casamento entre duas pessoas parentes na linha reta ou no segundo grau da linha colateral (artigo 1602.º do Código Civil), o que só pode ser averiguado e exercido se a filiação biológica for verdadeira.
Por isso, sempre que haja demonstração da paternidade biológica, também é do interesse do Estado e da sociedade o seu inevitável reconhecimento legal.
Assim, num possível conflito entre os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da ação e, os argumentos a favor da proteção do suposto progenitor e da caducidade, o peso daqueles é muito superior ao destes.
Aderindo, sem reservas, a estes princípios e à consagração do direito de qualquer pessoa a conhecer a sua ascendência e de estabelecer um vínculo biológico conducente ao estabelecimento de um vínculo jurídico, teremos de concluir, que o legislador não pode limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos quaisquer que sejam.” (…)

Em face do exposto, somos a concluir serem inconstitucionais os prazos estabelecidos nos artigos 1817º e 1873º do C.Civ, porque violam, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais consagrados nos art.ºs 16º n.º 1, 18º n.º 2 e 26º n.º 1 da C.R.P, devendo o direito dos filhos investigantes ser exercitável a todo o tempo, durante a sua vida contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar.
Daí que, não é de aplicar ao caso concreto a nova redação do n.º 1 do art.º 1817º do C.C., impondo-se a conclusão de que a presente ação de investigação da paternidade não caducou, como bem decidiu o tribunal a quo.

Improcede, assim, e na íntegra, a presente apelação.
*
Sumário:

I - Nos termos do art. 26º, nº 1, da CRP, “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”
II - O direito da autora ao apuramento da paternidade biológica, sendo uma dimensão essencial deste direito fundamental, deve prevalecer sem restrições sobre o da “tranquilidade” do suposto pai, por constituir um direito de personalidade de valor social e moral de maior relevância.
III- O artigo 1817º, nº 1), do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º, da Lei nº 14/2009, de 1.04, é materialmente inconstitucional, por contrariar o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade (neste caso «ex vi» do art. 1873°), proclamado nos artigos 18º e 26°, da CRP.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
TRG, 21.05.2020

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves, vencido, com a seguinte Declaração de voto:

- A solução que fez vencimento confirmou a decisão recorrida, não aplicando ao caso o prazo de caducidade do n.º 1 do art.º 1817º, do Código Civil, por violar de forma desproporcionada os direitos fundamentais consagrados nos artigos 16º n.º 1, 18º n.º 2 e 26º n.º 1 da Const. República Portuguesa, e no entendimento de que «deve o direito dos filhos investigantes ser exercitável a todo o tempo, durante a sua vida contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar».
Defendi a tese da constitucionalidade nos acórdãos de 14-03-2014 e de 20-10-2016, que relatei nos processos desta Relação nºs 143/11.5TCGMR e nº 737/13.4TBMDL, e considero que devo manter essa posição, sobretudo depois do acórdão 394/2019 do Plenário do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República n.º 190/2019, Série II de 2019-10-03, que decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante».
O ac. do S.T.J. de 07-11-2019 proferido no processo 317/17.5T8GDM.P1.S2 adere aos fundamentos desse acórdão do Plenário do T.C., e seguidamente sublinha que «sempre razões de prudência e pragmatismo, determinariam o acatamento do entendimento que fez vencimento no citado acórdão. Na verdade o Tribunal Constitucional é, nos termos da Constituição da Republica Portuguesa (art.º 221º e seg, da CRP) o órgão jurisdicional supremo em matéria de apreciação da constitucionalidade das normas de direito positivo em vigor no Estado Português. Ora tendo, recentemente, tal órgão decidido em Plenário que a norma constante do nº 1 do Art.º 1817º do CC, não é inconstitucional seria dificilmente compreensível continuar a defender o contrário, quando a última palavra sobre a matéria pertence àquele Tribunal…!».
Eis as razões por que no caso em apreço julgaria procedente a excepção de caducidade conforme é pugnado pelo recorrente e, consequentemente, revogaria a decisão recorrida.
*
Conceição Bucho


1. Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo 1, pgs. 284-285.
2. Cfr. Acs. nºs 486/2004, de 07/06; de 11/2005, de 09/03 e 282/2005, de 04/08.
3. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 23/11/2010, processo nº 49/07.2TBRSD.P1, in www.dgsi.pt.
4. Cfr. o artigo “Caducidade das Acções de Investigação”, publicado na revista Lex Familiae, n.º 1, 2004, págs. 7-13, e na obra Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, 2004, págs. 52 e 53.
5. Cfr. ob e autor cit, pág. 52 e 53.
6. Cfr. ob. e autor cit. págs. 49-58.
7. Cfr. Curso de Direito de Família, Volume II, Tomo I, 2006, pág. 139.
8. Cfr. Inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, Cadernos de Direito Privado, n.º 15 Julho/Setembro 2006, págs. 32-52.