Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
290/15.4T8PRG.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DA PROVA POR TESTEMUNHAS
COMPROPRIEDADE
DIVISÃO MATERIAL DO PRÉDIO
FRACIONAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS
POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A proibição legal de fracionamento de terrenos aptos para cultura em parcelas com área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para a zona onde os mesmos se inserem, não obsta a que, operada a divisão material de um prédio rústico em parcelas com área inferior se consolidem por usucapião as situações possessórias subsequentemente constituídas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

S. A., residente no lugar do …, freguesia de …, em Vila Real, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra S. A. e mulher, R. P., e M. R. e marido, R. R., todos residentes na mesma freguesia, os primeiros no lugar da … e os segundo no lugar do …, pedindo a condenação destes a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre ¼ indiviso de um prédio, que identifica, e a reconhecerem que lhe assiste o direito de preferência na aquisição da quota indivisa, igualmente correspondente a ¼, que os primeiros RR venderam aos segundos RR, sendo estes substituídos pelo demandante na respectiva titularidade e ordenando-se o correspondente registo de aquisição a seu favor.

Devidamente citados os RR, apenas os segundos vieram contestar, sustentando que o preço acordado e pago foi superior ao declarado na escritura pública, ascendendo a €10.000,00, e bem assim que a parcela de terreno vendida se encontra delimitada do restante terreno há cerca de 80 anos e que desde então a vêm possuindo como seu fossem seus únicos proprietários, pelo que a adquiriram por usucapião, peticionando, em via reconvencional, o reconhecimento desse seu direito.
Pugnam ainda pela improcedência da acção.

Notificado, o A. respondeu à reconvenção, admitindo que o prédio foi dividido materialmente, mas sustentando que essa divisão viola a proibição de fracionamento constante do artigo 1376º do Código Civil e que, a ser considerada admissível, a parcela dela resultante confina com a sua, pelo que sempre lhe assistiria direito de preferência relativamente à transmissão operada, ao abrigo do disposto no artigo 888º do Código Civil, deduzindo a pertinente alteração do pedido e da causa de pedir.
Após contraditório dos Reconvintes e convite ao aperfeiçoamento dirigido ao Autor e a que este correspondeu, foi realizada audiência prévia, no decurso da qual se proferiu despacho saneador, admitindo-se a reconvenção e a alteração da causa de pedir e do pedido, seguido de despacho a identificar o objecto do litígio e a identificar os temas de prova, que não mereceu qualquer reparo.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar totalmente improcedentes a acção e a reconvenção.

Inconformado, o Autor interpôs recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1 - Estando em causa na presente acção de preferência o preço real do respectivo negócio que os próprios contratantes alegaram ter sido simulado em virtude de o declarado na escritura ser muito inferior ao real, respectivamente 500€ e 10.000€, aceita-se que fosse admitida prova testemunhal por haver um princípio de prova documental;
2 - Contudo, tendo os segundos RR (compradores) alegado que o preço por eles referido como sendo o real (10.000€) foi pago em duas prestações iguais (de 5.000€ cada uma), o princípio de prova documental existe em relação à primeira delas consistindo em documento comprovativo de uma transferência bancária desse valor de uma conta da titularidade dos compradores para outra dos vendedores;
3 - Em relação à outra prestação (também de 5.000€) alegadamente paga em dinheiro, considerou-se na sentença também constituir um princípio de prova documental um comprovativo de transferência da quantia de 6.000€ da conta dos RR compradores para a conta do pai da Ré mulher compradora e comprovativo do levantamento, no mesmo dia, dessa mesma importância;
4 - Ora, a nosso ver, esses dois documentos (um comprovativo de transferência e outro de levantamento) de forma alguma poderiam considerar-se princípio de prova documental do pagamento da referida segunda prestação, pela simples mas decisiva razão de que não ostentam qualquer relação objectiva com o aludido pagamento. Além disso, porque tendo sido alegado que o indicado montante (6.000€) tinha sido para pagar a prestação (5.000€) e à solicitadora (1.000€), este último pagamento só foi efectuado cerca de mês e meio depois. Além disso, como também era preciso pagar as demais despesas (custos da escritura e registo) é de presumir que também a essas se destinasse o levantamento efectuado (até porque os RR não alegaram ter utilizado outro dinheiro), caso em que a respectiva importância já não seria suficiente;
5 - Sendo acolhido, como esperamos, este nosso entendimento com a consequente anulação da decisão de dar como provado o pagamento da referida segunda prestação, tanto basta para a acção ser julgada procedente, reconhecendo-se ao A. o seu direito de preferência pelo preço constante da escritura, ou pelo preço de 5.000€ que este aceita e admite ter sido efectivamente pago;
6 - Mesmo que assim não se entenda, deverá anular-se a decisão da matéria de facto correspondente ao alegado preço real e respectivo pagamento (pontos 9, 10, 11 e 12 da "Fundamentação" da sentença recorrida porque se baseou nos depoimentos dos 1ºs RR. vendedores, já que, tendo sido requeridos pelos 2ºs RR. compradores e não tendo eles contestado, nunca podiam resultar em confissão, sendo que o A. tomou expressa posição no sentido de não serem admitidos;
7 - Se também assim não se entender, não podia a Mma Juiz a quo desatender o depoimento da co-Ré vendedora por ser "hesitante e reticente" e "revelar uma evidente parcialidade". Tratando-se de uma pessoa que teve participação directa e pessoal na escritura e, precisamente, por isso, dizendo ter visto nessa circunstância, o pagamento (em notas) da alegada segunda prestação, o facto de o seu depoimento não ser credível devia ser analisado e valorado como tal para, em conjugação com os demais, servir de base à decisão sobre a factualidade em questão;
8 - Acresce que a restante prova produzida se mostrou insuficiente e inquinada das maiores contradições e inverosimilhanças, mais que suficientes para o julgador não poder furtar-se a sérias e insanáveis dúvidas, tanto bastando para que a matéria em causa não pudesse ser dada como provada;
9 - Desde logo, quanto à Ré mulher vendedora que tanto diz que viu o dinheiro como logo a seguir diz que não sabe (v. min. 9.20) e a seguir volta a dizer que viu mas não saber mais nada (v. min. 11.35). Além disso, disse que quem pagou foi o Zé (só podendo referir-se ao pai da Ré compradora (v. min. 9.20), J. R., quando este afirmou peremptoriamente nem sequer ter ido à escritura e o marido dela disse quem lhe deu o dinheiro foi o R. R. (v. min. 6.45);
10 - Também o depoimento do Réu marido vendedor S. A. foi de molde a suscitar muitas dúvidas, nomeadamente quanto à declaração do preço na escritura (v. min. 2.53) e à razão da respectiva simulação, assim como quanto ao alegado preço da compra e venda ("o que lhe veio à cabeça"- v. min. 7.40) e por dizer que os compradores não regatearam quando, segundo a testemunha M. M., o máximo que aquele terreno poderia valer era 3 ou 4.000€ ( v. min. 4.00) e 10.000 "nunca, nem pensar" (v. min. 5.58). De igual ou maior inverosimilhança com a consequente falta de credibilidade se reveste o mesmo depoimento no tocante à posse do prédio. Decerto que ninguém acreditará que o dono de um prédio revele total desconhecimento ("não tenho ideia nenhuma" - v. min. 8.00) sobre quando esse seu prédio passou para as mãos de outra pessoa;
11 - Igualmente pouco credível se mostrou o depoimento do pai da Ré mulher compradora, o mencionado J. R.. Desde logo, porque, apesar de dizer ter sido ele a tratar de tudo com a solicitadora (v. min. 12.13), nem saber se ele próprio ou outra pessoa falou com os vendedores sobre o preço a constar da escritura (v. min. 14.10). Não menos incompreensível é o facto de primeiro dizer que foi a Lamego no dia da escritura porque acompanhava sempre o genro (R. R. - Réu marido comprador) para depois dizer que também precisou de lá ir para depositar um cheque (v. min. 22.20 e 22.42) e apesar de andar sempre com o genro, não o acompanhou na circunstância mais importante que foi a celebração da escritura (v. min. 12.13), além de que a testemunha M. F. (funcionária bancária com quem tratavam de tudo na Banco A, agência de Lamego) o desacreditou ao praticamente assegurar que naquele dia (da celebração da escritura) "nem um nem outro" (referindo-se ao sogro e genro) fizeram qualquer outra transacção, além da transferência e levantamento de 6.000€ (v. min. 12.04), ou seja, não foi efectuado qualquer depósito;
12 - Por tudo quando fica exposto, o recorrente entende que, com base numa mais correcta análise e valoração crítica e conjugada de toda a prova, devia concluir-se pela não demonstração da factualidade constante dos pontos 9, 10, 11 e 12 da "Fundamentação" da sentença recorrida cuja decisão contrária expressamente se impugna;
13 - Assim não se tendo entendido e decidido entende o A. que a sentença recorrida não traduz a melhor e mais correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos artigos 393º, 394º e 342º, nº1, 453, nº3 e 1410, nº1, todos do C. C. Civil, enfermando ainda de incorrecta análise e valoração da prova produzida.
Termina, pedindo que se julgue procedente a acção, reconhecendo-se-lhe o direito de preferência pelo preço constante da escritura ou pelo preço de 5.000€ ou, subsidiariamente, que se determine a anulação da decisão de mérito da causa para, após despacho da decisão da matéria de facto, lhe ser dada a oportunidade de se pronunciar quanto ao exercício do seu direito de preferência pelo preço real dado como provado e, no caso afirmativo, proceder ao depósito da quantia em falta correspondente à diferença entre o preço declarado e o que se deu como provado (10.000€).
Igualmente inconformados, os RR/Reconvintes também recorreram, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

1 - Na presente ação o autor/reconvinte propunha-se ver reconhecido o direito de preferência na aquisição da quota indivisa de 1/4 que os réus/reconvintes adquiriram através de escritura de compra e venda com referência ao prédio rústico, de que são comproprietários na proporção de 3/4 (três quartas), composto de vinha da região demarcada do Douro, com a área de 2.624m2, sito no lugar das …, freguesia de …, inscrito na matriz cadastral respetiva sob o art.º 333 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 111;
2 - Os réus/reconvintes alegaram nos artigos 8º a 21º da contestação/reconvenção que o prédio rústico, inscrito na matriz sob o art.º 333, do qual eram comproprietários na proporção de 1/4 (um quarto), foi por acordo entre os seus comproprietários dividido de facto há mais de 80 (oitenta) anos, dando origem a uma parcela de terreno composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 32,50 m2, uma construção arruinada, com a área de 12,00 m2 e terreno de cultura, com a área de 546,m2, a vinha da região demarcada do Douro e cultura de sequeiro (batatas e cebolas);
3 - Mais alegaram, nos citados artigos 8º a 21º a contestação, que, por si e antepossuidores, vêm possuindo a identificada parcela de terreno há mais de 80 (oitenta) anos, praticando atos que corporizam o corpus e convictos (animus) de serem os proprietários exclusivos da identificada parcela do rústico ajuizado;
4 - Pretendiam, além do mais, que fossem reconhecidos como proprietários, com exclusão de outrem e por via da usucapião, atenta a divisão de facto referida e aquisição mencionada, da identificada parcela de terreno;
5 - A M.ª Juíz “ a quo” entendeu que o fracionamento em causa violava o preceituado no art.º 1376º do Código Civil, conjugado com o enunciado no art.º 1º da Portaria n.º 202/70 de 21 de abril, e como tal, era anulável face à disciplina consagrada no art.º 1379º, n.º 1 do Código Civil, uma vez que a área registada do prédio rústico (2.624 m2), e consequentemente da parcela a desanexar, é inferior à unidade mínima de cultura fixada para terreno de sequeiro;
6 - E, ainda que assim não se entendesse, entendeu que não resultou provado que a utilização exclusiva da parcela a autonomizar, como consequência da divisão, tivesse sido feita na convicção de serem os réus/apelantes e antepossuidores proprietários exclusivos da mesma, assim conduzindo à integração do corpus e animus necessário à aquisição por usucapião. Certo é que,
7 - O autor/reconvindo no artigo 8º da Resposta declarou aceitar “…expressamente os factos novos alegados pelos R.R. nos art.ºs 8 a 26 da contestação”, pelo que se tem por admitida por acordo (confissão) a respetiva factualidade;
8 - No douto despacho saneador que procedeu à fixação do objeto do litígio e temas de prova foi fixado como objeto do litígio “A aquisição por usucapião por parte dos segundos réus de parcela autonomizada do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial, com a consequente desanexação”;
9 - E, assente por acordo a factualidade (confissão) conducente á aquisição por usucapião por parte dos segundos réus de parcela autonomizada do prédio em mérito (art.º matricial 333), não foi a mesma considerada como tema de prova;
10 - E, porque estavam assentes tais factos, não foi admitida a prova por confissão da factualidade vertida nos art.ºs 8º a 21º da contestação/reconvenção porque tal matéria factual se encontrava assente, bem como não foi admitida a requerida prova pericial porque os factos que com a mesma os réus/apelantes pretendiam demonstrar – 8.º e 9.º da contestação – se encontravam assentes;
11 - Pese embora (i) o autor/apelado tenha aceite e confessado a totalidade da matéria factual tendente ao reconhecimento da peticionada divisão em substância, por via da usucapião, do identificado prédio rústico (art.º 333) e (ii) tal factualidade não ser tema de prova, porque não controvertida, a M.ª Juiz “ a quo” surpreendentemente omitiu, truncou e desvirtuou a factualidade assente, a saber: a) Omitiu a factualidade assente vertida nos art.ºs 14º, 16º, 17º e 18º da contestação/reconvenção, a qual surpreendentemente não cuidou de dar como não provada nos precisos termos alegados; b) Truncou a factualidade constante do art.º 15º da contestação/reconvenção ao suprimir o seguinte facto relevado a negrito: “…E, por morte dos mesmos - ocorrida há cerca de 20 anos - a parcela de terreno tocou em sorte (partilha) ao demandado/vendedor que a passaram a possuir como se de coisa exclusivamente sua se tratasse”; c) Desvirtuou a factualidade constante dos art.ºs 16º e 18º da contestação/reconvenção ao criar a factualidade constante do ponto 20. dos factos provados;
12 - Daí não ter dado como não provada a factualidade assente pelas partes e vertida nos art.ºs 14º, 16º, 17º e 18º da contestação/reconvenção, sendo certo que a confissão e/ou a aceitação dessa factualidade está na disponibilidade das partes; Certo é que,
13 - A livre apreciação da prova não abrange os factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão das partes - art.º 607º, n.º 5 do C.P.C. - sendo nula a sentença por excesso de pronúncia - art.º 615º, n.º 1, alínea d) do C.P.C. - que conheça de questões que não podia tomar conhecimento (normas violadas na douta sentença impugnada);
14 - No caso sub judice os factos estavam assentes, restando à M.ª Juiz “a quo” dar como provada a factualidade art.ºs 14º, 15º, 16º, 17º e 18º da contestação/ reconvenção, determinante para avaliar a aquisição por via de usucapião da parcela de terreno autonomizada, não lhe assistindo o direito de os apreciar e fixar ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova;
15 - Verificada a nulidade em mérito é míster, além de ser a mesma declarada, repor a factualidade assente pelas partes, aditando-se e retificando os factos provados, da seguinte forma: (i) Aditar-se o ponto 27. com a seguinte matéria: “E, desde essa altura, os pais do demandado/vendedor - R. F. e José - passaram a possuir a parcela atribuída como se de coisa exclusivamente sua se tratasse” - art.º 14º da contestação/reconvenção; (ii) Retificar-se a factualidade constante do ponto 19. da matéria de facto provada com o seguinte sentido: “E, por morte dos mesmos - ocorrida há cerca de 20 anos - a parcela de terreno tocou em sorte (partilha) ao demandado/vendedor que a passaram a possuir como se de coisa exclusivamente sua se tratasse”; - art.º 15º da contestação/reconvenção; (iii) Suprimir-se a factualidade constante do ponto 20. porque redutora e indevidamente aglutinadora de factualidade assente com alcance substancialmente diferente; (iv) Aditar-se o ponto 28. com a seguinte matéria: Os demandados/compradores, por si desde o ato de transmissão de propriedade, e antepossuidores (demandados/vendedores e pais do demandado/vendedor) estão na posse da identificada parcela de terreno há mais de 80 (oitenta) anos, possuindo-a como se de coisa sua se tratasse - art.º 16º da contestação/reconvenção; (v) Aditar-se o ponto 29. com a seguinte matéria: Respeitando rigorosamente as suas estremas e divisórias com total exclusividade, autonomia e independência - art.º 17º da contestação/reconvenção; (vi) Aditar-se o ponto 30. com a seguinte matéria: Aí granjeando batatas, cebolas e vinha, habitando, ocupando e permitindo a ocupação do armazém, quer por pessoas quer para a guarda de alfaias agrícolas - Art.º 18º da contestação/reconvenção;
16 - E, caso se entenda que não se verifica a arguida nulidade, resulta claro que se consideram admitidos por acordo os factos que não forem impugnados - art.º 574º, n.º 2 do CPC - e expressamente foram aceites pelo autor/reconvindo (art.ºs 8º a 2º da contestação/reconvenção);
17 - Consequentemente, tal realidade tem que estar refletida nos factos provados, dados por assentes no douto despacho sanador, de forma a evitar-se uma decisão surpresa quanto à sua fixação, tanto mais que não houve lugar à produção de prova sobre os mesmos; Acresce que,
18 - Contrariamente à tese perfilhada na douta sentença, tem a jurisprudência dos nossos tribunais superiores entendido que o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião e que verificados os pressupostos da usucapião, não deve negar-se o reconhecimento da propriedade ao beneficiário apenas por razões ligadas ao fracionamento ou emparcelamento de prédios rústicos;
19 - Com efeito, demonstrado que há mais de 80 (oitenta) anos o autor/reconvindo e os réus/reconvintes, através dos seus antepossuidores (Manuel, R. F., António e J. F.), acordaram na divisão do prédio dos autos, em quatro sortes, ou seja, quatro parcelas de terreno, sendo que a que assim ficou a pertencer aos réus/reconvintes tem as características elencadas em 13. a 15. dos factos provados;
20 - E exercendo essa posse há mais de 20 anos de forma pública e pacífica (cfr. pontos 13. a 23. dos factos provados, bem como os constantes dos art.ºs 14º, 15º, 16º, 17º, 18º da contestação/reconvenção que se têm por assentes) adquiriram os réus/reconvintes o direito de propriedade sobre a parte especificada da coisa comum. - Cfr. artigos 1252.º, 1287.º, 1288.º, 1296.º e 1297.º “a contrario”, todos do Código Civil;
21 - Razão pela qual se impunha que fosse julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional constante do pedido deduzido na contestação/reconvenção sob os pontos 2º, 3º e 4º;
22 - Ao não decidir no sentido pugnado o M.º Juiz “a quo” violou, por erro de interpretação e aplicação, o preceituado nos artºs 1252.º, 1287.º, 1288.º, 1296.º e 1297.º “a contrario”, todos do Código Civil.
Os segundos RR apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo A..
Este, por sua vez, não apresentou contra-alegações no recurso interposto por aqueles.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões de ambos os recursos são as seguintes:

- Se a decisão recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia;
- Se, por ter sido admitida por acordo, devia ter sido dada como provada a matéria vertida nos artigos 14º a 18º da contestação;
- Se, face a essa matéria, devia ter sido julgado procedente o pedido reconvencional, não obstante o regime previsto no artigo 1376º do Código Civil;
- Se deve ser anulada a decisão da matéria de facto relativa ao preço real alegadamente pago pelos segundos aos primeiros RR (€10.000,00), por não ser admissível prova por testemunhas quanto à segunda prestação em que o mesmo foi alegadamente desdobrado e, a ser proferida idêntica decisão, dada oportunidade ao Autor para exercer a preferência pelo indicado preço de €10.000,00;
- Se foi mal julgada a matéria vertida nos pontos 9, 10, 11 e 12 do elenco dos factos provados, devendo dar-se tal matéria como não provada e, consequentemente, reconhecer ao A. direito de preferência na transmissão operada pelo valor declarado na escritura ou por €5.000,00.
*
III. FUNDAMENTOS:

Os factos
Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1 - Encontra-se inscrita em nome do A., a aquisição, na proporção de 1/4, do prédio rústico composto de vinha da região demarcada do Douro, com a área de 2.624m2, sito no lugar das …, dita freguesia de …, inscrito na matriz cadastral respectiva sob o art. 333 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº111;
2 - Essa quota indivisa foi adquirida pelo A. por contrato de compra e venda às suas anteriores titulares, R. F. e Maria que, por sua vez, a adquiriram, em comum e partes iguais, por sucessão nas heranças de seus pais, Manuel e C. F. de quem foram as únicas e universais herdeiras, compra aquela formalizada por escritura de compra e venda elaborada na Conservatória do Registo Predial, no dia 29 de Setembro de 2014;
3 - Sucede, porém que, na realidade, a quota-parte que integrava as heranças dos citados Manuel e C. F. era de 9/16, ainda não tendo sido formalizada a compra do restante 5/16, em virtude de na sequência do falecimento do citado Manuel as mencionadas suas filhas (que venderam ao A.) e sua sobreviva mulher (C. F.) apenas terem promovido o registo da indicada fracção (1/4) que venderam ao A;
4 - Na sequência da referida aquisição pelo A. promoveu este o correspondente registo a seu favor na citada Conservatória, onde o mesmo se mostra efectuado pela Ap. nº 971 de 2014/09/29;
5 - Sucede que no dia 6 de Agosto do corrente ano de 2015, por escritura pública intitulada de compra e venda, em que figuram como primeiros outorgantes S. A. e mulher R. P., e segundos M. R., casada com R. R., outorgada no dia 6 de agosto de 2015, no Cartório Notarial sito na Rua …, em Peso da Régua, da Notária Teresa, exarada a fls 49 a 50 do livro denotas para escrituras diversas n.º 94-A., os primeiros declararam vender aos segundos, «pelo preço de quinhentos euros, que já recebeu» , «um quarto indiviso, que é tudo quanto lhe pertence, do prédio rústico composto por vinha da região demarcada do Douro e cultura arvense de sequeiro, sito no lugar denominado “Travessas”, na freguesia de … (extinta), concelho de Peso da Régua, descrito na Conservatória do Registo Civil, predial, Comercial e Automóveis de Peso da Régua sob o número …, da referida freguesia, aí registado a seu favor, na indicada proporção (….)»;
6 - Os 2ºs RR compradores não eram titulares de qualquer direito sobre o mesmo prédio;
7 - Antes de celebrarem a compra e venda em referência nem os 1ºs nem os 2ºs RR. fizeram qualquer comunicação ao A., dando-lhe conta do projecto desse contrato que se propunham celebrar;
8 - O A. procedeu ao depósito da indicada quantia (500€) do preço da compra e venda celebrada entre 1ºs e 2ºs RR;
9 - A proporção de 1/4 (um quarto) indiviso referida em 5) foi vendida pelos 1ºs. RR. aos 2ºs. RR. pelo preço acordado e efectivamente pago por estes de € 10.000,00;
10 - Importância satisfeita em duas prestações, a saber:
a) Uma primeira prestação no montante de €5.000,00 (cinco mil euros), em 30.12.2014, operada através de transferência bancária da conta titulada por M. R. na Banco A - ...5 - para a conta bancária do demandado S. A.;
b) Uma segunda prestação no montante de €5.000,00 (cinco mil euros) em dinheiro, entregue aos demandados/vendedores na data de celebração da escritura de compra e venda;
11 - Esta última importância pecuniária continha-se na quantia de €6.000,00 (seis mil euros) transferida no dia da escritura - 6 de agosto de 2015 - da identificada conta da M. R. para a conta de seu pai, J. R.;
12 - Desse montante €5.000,00 destinavam-se ao pagamento da parte do preço em dívida e os restantes €1.000,00 à solicitadora a título de provisão de honorários e despesas (preço da escritura, registos, impostos e certidões);
13 - A proporção referida em 5) corresponde a uma parcela de terreno composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 32,50 m2, uma construção arruinada, com a área de 12,00 m2 e terreno de cultura, com a área de 546,m2, a vinha da região demarcada do Douro e cultura de sequeiro (batatas e cebolas);
14 - Parcela essa com as seguintes demarcações e confrontações:
a) A norte a confrontar com AN;
b) A nascente delimita por um muro em pedra sobreposta, a confrontar com S. A.;
c) A poente delimitada por um muro em pedra sobreposta e marcos em pedra, a confrontar com herdeiros de J. F.;
d) A sul delimitada com um muro em pedra sobreposta e marcos em pedra, a confrontar com S. A.;
15 - A identificada parcela de terreno resultou da divisão do prédio rústico identificado, isto há mais de 80 (oitenta) anos;
16 - O rústico em mérito foi em tempos pertença de quatro irmãos - Manuel, R. F., António e J. F. - que há mais de 80 (oitenta) anos o herdaram de seus pais;
17 - Os quais trataram logo de o dividir em quatro sortes, ou seja, quatro parcelas de terreno;
18 - Sendo que uma dessas parcelas de terreno ficou a tocar à R. F. casada com José, pais do demandado/vendedor S. A.;
19 - E, por morte dos mesmos - ocorrida há cerca de 20 anos - a parcela de terreno tocou em sorte (partilha) ao demandado/vendedor;
20 - Desde a altura referida em 19) que as pessoas atrás referidas na parcela referida em 14) granjeavam batatas, cebolas e vinha, aí habitando, ocupando e permitindo a ocupação do armazém, quer por pessoas quer para a guarda de alfaias agrícolas;
21 - Administrando, benfeitorizando (saibrando e plantando vinha), granjeando e colhendo os respetivos frutos;
22 - Continuamente, à vista e com conhecimento de todas as pessoas da respectiva freguesia, sem que alguém, incluindo os demandantes, em momento algum, tenham posto em causa ou perturbado estes seus atos;
23 - Convictos, desde sempre, de serem os proprietários exclusivos da identificada parcela do rústico ajuizado;
24 - O custo da escritura notarial (€ 150,00), registo de aquisição (€ 87,50), certidão de registo predial (€ 15,00) e I.M.T liquidado (€ 25,00);
25 - A parcela referida em 14) confina com a parcela restante do prédio identificado em 1), a confrontar do norte com caminho, do sul com L. L., do nascente com J. D. e do poente com o próprio (outro prédio pertencente ao A. - 358-J) e 2ºs RR (a parte que é o objecto da preferência);
26 - A divergência entre o valor referido em 9) e o preço constante da escritura pública foi efectuada com o propósito de causar prejuízo à Autoridade Tributária, facto comunicado pelo Tribunal, conforme despacho que antecedeu, e ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2 e 607.º, n.º 1 do CPC.

Inversamente, foi dada como não provada a seguinte factualidade:

a) Aos demandantes foi dado prévio conhecimento pelos demandados/vendedores do preço real de venda (€10.000,00), sendo que os mesmos declinaram a proposta de venda por entenderem ser o preço demasiado elevado;
b) A parcela identificada em 25) é constituída por vinha e cultura arvense de regadio, com a área de 1.476m2.

Fundamentando a sua decisão sobre a matéria de facto, a Senhora Juiz a quo escreveu o seguinte:

“Os factos acima elencados resultaram provados na sequência da apreciação crítica e conjugada da prova produzida e analisada em audiência, designadamente:

-o facto 1) a 6) e 13) a 23), não impugnados, resultam pois admitidos por acordo;
- de fls. 5 consta caderneta predial do artigo 333 da extinta freguesia de …, Peso da Régua, contribuindo para prova de tal facto;
- de fls. 6 consta certidão do registo predial relativo ao mesmo artigo, com ¼ inscrito a favor do A., e mais ¼ inscrito a favor dos 2.ºs RR.;
- de fls. 7 verso e 10 e ss. consta escritura pública de compra e venda ao 1.º R.;
- de fls. 8 verso e ss. Consta escritura dos 1ºs. RR aos 2ºs. RR;
- de fls. 28 consta planta topográfica representando a parcela que os 1ºs RR. pretendem ver reconhecida como separada do restante, por usucapião, sendo que se trata de documento efectuado por indicação das partes, não assumindo particular relevo de prova, mas apenas para melhor visualizar/situar a parcela referida.
- de fls. 31 verso consta documento comprovativo de transferência efectuada da conta de M. R. para S. A., no valor de € 5000,00, de 30-12-2014, contribuindo para prova do modo que abaixo melhor se valora;
- de fls. 32 consta transferência, em 6-8-2015, da conta de M. R. para a conta de J. R., de € 6000,00, bem como levantamento na mesma data, da conta deste último, também de € 6000,00, contribuindo para prova de que a proveniência dos € 6000,00 levantados advém da conta da Ré M. R., e contribuindo nessa medida, em conjugação com a prova que abaixo melhor se valora, para prova do facto 10).
- de fls. 33 consta recibo de honorários de Joana, solicitadora, no valor de € 1000,00, emitido em 17/9/2015, contribuindo para prova do valor de honorários pagos.
- de fls. 33 verso consta o recibo do valor de € 150,00 de honorários do Cartório Notarial, em nome da Ré M. R..
- de fls. 34 consta o valor de € 87,50 relativos a emolumentos de registo pagos relativos ao prédio com a descrição 888, Poiares, e de fls. 35, recibo do pagamento de € 15,00 de pedido de certidão permanente relativa ao prédio.
- de fls. 36 consta documento comprovativo do pagamento de IMT, no valor de € 25,00.
-de fls. 75 verso e 76 consta comprovativo de recebimento da transferência de M. R. por S. A., contribuindo para prova de tal pagamento.
- Em depoimento de parte, S. A. nada admitiu de relevo confessório, sendo que, no mais, refere que não lhe foi dado conhecimento do preço, nem sequer do negócio realizado entre os RR.
Uma vez que nenhuma outra prova concreta e positivamente valorada foi produzida acerca da comunicação do negócio e venda, foi tal comunicação dada por não provada.
- Em depoimento de parte, requerido pelos co-RR., J. M., que trabalha e reside na Bélgica, depôs, admitindo o vertido nos artigos 6.º e 7.º, al. a) e b) da contestação dos co-RR.
O mesmo diz que vendeu o prédio pelo valor de € 10000,00, e que colocaram outro valor por causa dos impostos. Que foi o Sr. R. R. que lhe fez a proposta. Que o negócio foi acordado antes, em 15 ou 16/12/2014, quando estava em Portugal de férias e nessa altura deu os seus elementos para ser feita a transferência bancária, que foi feita no valor de € 5000,00.
Que os outros € 5000,00 lhe deu no dia da escritura, explicando que não fez nova transferência porque se fosse feita a transferência do estrangeiro, pagava mais imposto, e assim pediu em mão.
Pese embora as suas declarações não assumam relevo confessório, devem ser livremente apreciadas pelo Tribunal, conforme as regras da livre apreciação da prova.2
2 Quanto à possibilidade de valoração da prova testemunhal pelo Tribunal, quanto à prova dos factos da simulação invocada pelo Réu, designadamente quanto ao preço real do negócio, no âmbito da relação com terceiros, há que reter o disposto no artigo 393.º do C.C.:
«1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento.»

Já o artigo 394.º dispõe que:
«1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.».
Pese embora a redacção do artigo, utilizando somente o elemento literal de interpretação, pareça impor que a prova testemunhal fique arredada no caso de convenções contra o teor de documento autêntico, a doutrina e jurisprudência têm vindo a entender de modo diverso. Aliás, em sentido diverso escreveu-se designadamente no Acórdão do S.T.J. de 7-2-2017 (www.dgsi.pt, processo 3071/13.6TJVNF.G1.S1) que:
«O n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil veda a prova testemunhal para demonstração de convenções que contrariem ou ampliem o conteúdo de documentos autênticos ou particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, independentemente da data dessas convenções.
7- O n.º 2 do mesmo artigo 394.º manda aplicar essa proibição de meio de prova ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocados pelos simuladores.
8- Muito embora tal tenha sido proposto nos trabalhos preparatórios do Código Civil, a letra da redacção final do preceito não autoriza, ainda que por via indirecta, o recurso à prova testemunhal e consequentemente (artigo 351.º CC) à prova por presunção judicial.
9- Porém, a doutrina e a jurisprudência, inspiradas nos argumentos do Autor da 1.ª proposta (por sua vez seguindo os coevos Códigos Civis Italiano e Francês) e receando a rigidez do preceito, admitem que se utilize prova testemunhal desde que, a montante, surja um “princípio” (ou “começo”) de prova que crie uma convicção que as testemunhas podem sedimentar.
10- Essa tese pode aceitar-se com três condições: o princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade; o documento não ser usado como facto – base de presunção judicial; reconhecer-se que se trata de uma laboração da doutrina e da jurisprudência oportunamente arredada do “jure constituto” e, em consequência, a ser tida em consonância com os artigos 9.º e 10.º do Código Civil.
11- A prova testemunhal será sempre, nestes casos, complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de “fumus bonni juris”.»
Assim, seguindo uma Doutrina com entendimento mais flexível da letra da Lei, numa interpretação assente na Ratio Legis, seria de admitir a prova testemunhal enquanto complemento de prova documental que forneça um princípio de prova e torne assim verosímil a convenção contrária a documento autêntico, formando parcialmente a convicção do Tribunal, o qual terá na prova testemunhal apenas um complemento da convicção formanda.
No caso dos autos, será, pois, de valorar o depoimento do co-Réu e das testemunhas trazidas pelo R. que invoca ter sido parte no acordo simulatório, atenta a prova documental junta aos autos, traduzida quer no comprovativo de transferência de € 5000,00 da conta da Ré compradora para a conta do R. vendedor, quer do comprovativo do levantamento de € 6000,00 pelo pai da Ré compradora, no próprio dia da outorga da escritura, e ainda comprovativo de transferência da mesma quantia da conta do R. comprador para a conta do seu sogro. Tais documentos, inequivocamente, quando conjugados, constituem um forte princípio de prova, cuja prova testemunhal apenas vem coadjuvar, cimentando a convicção do Tribunal.
Assim, tendo em conta, conforme abaixo melhor se explanará, a prova documental traduzida nas transferências efectuadas e levantamento efectuado no dia da escritura, as declarações do mesmo foram valoradas positivamente para prova do valor real da compra e venda, uma vez que de forma coerente, foram ao encontro da demais prova abaixo valorada.
- em depoimento de parte, requerido pelos co-RR., R. P., que trabalha e reside na Bélgica, admitiu o referido em 6.º da contestação dos co-RR.
Diz que foi o marido quem negociou e ela não assistiu, sendo que a venda não foi por € 500,00.
Que o José já tinha falado com o sogro do 2.º Réu, em Agosto, para venderem o terreno por € 10000,00. Que € 5000,00 foi por transferência.
Os outros € 5000,00 não sabe bem quando e no dia da escritura não se recorda de haver pagamento. Diz que o marido lhe mostrou o dinheiro em casa.
No entanto, mostrou-se hesitante, reticente, alterando algumas coisas que dizia consoante achava ou não que devia falar, pelo que toda a sua postura, quer corporal, quer modo de prestar depoimento, revela uma evidente parcialidade, não tendo o seu depoimento sido atendido pelo Tribunal.
- a testemunha M. M., pai do A., refere que nunca lhe constou ou lhe foi dito que os 1ºs. RR. queriam vender o prédio por € 10.000,00, até porque o terreno valerá talvez uns € 3000.00.
Diz que não sabe bem a medida, mas que tem videiras e lameiro com bardo.
O seu testemunho demonstrou-se vago e sem concretização, pelo que em nada contribuiu para prova ou infirmação dos factos em apreço.
- a testemunha J. R., trabalhador da construção civil, que vive em Poiares, amigo dos 1.ºs RR. e pai da 2ª Ré, diz que foi ele quem negociou com os 1ºs. RR. Que em agosto já tinha falado com ele, mas sem fechar negócio. Que sabia que o terreno estava á venda há muitos anos. Que disseram que era caro e foram para casa pensar.
Que em meados de Dezembro ele, a filha e o genro foram falar com o 1.º R. e fizeram negócio, no café, acordando no preço de € 10.000,00. Que € 5000,00 foram logo pagos por transferência, dado que o J. M. indicou a conta ao R. R..
Quem tratou da transferência foi a M. F., do Banco A de Lamego.
Que combinaram a escritura para 6 de Agosto, sendo o resto do valor a pagar aquando da escritura.
Que foi a Solicitadora, Dra. Joana, que tratou de tudo.
O J. M. disse que podiam tomar conta do terreno logo em Agosto.
Que não assistiu à escritura, nem lá estava.
Que acha que ficou a constar o valor de € 500,00 para “fugir um bocadinho” ao fisco…
Diz que o R. R. transferiu € 6000,00 da conta dele para a sua, no mesmo dia, porque não tinha caderneta e ficava mais caro levantar o dinheiro assim.
Diz que como o R. R. não tinha caderneta, teria que pagar mais € 6,00 para levantar o dinheiro, e por isso é que transferiu para si e depois ele levantou com a sua caderneta € 6000,00, dos quais € 1000,00 eram para a solicitadora.
Depôs de forma espontânea e segura, relatando os factos com coerência, e de forma consentânea com a documentação junta e comprovativa das transferências e levantamentos efectuados, no que acabou por contribuiu, atento o princípio de prova documental quanto ao pagamento da quantia diferente da constante da escritura, para prova do pagamento do preço de € 10.000,00 fixados para a escritura, na medida em que corrobora e explica a prova documental apresentada.
- a testemunha M. F., bancária no Banco A da Régua, diz ser prima dos 1ºs. RR.
Que a prima sempre mostrou interesse no terreno do Sr. J. M.. Que a testemunha só efectuou uma transferência e um levantamento.
Confrontada com os documentos de fls. 31 e 32, confirma.
Diz que quando alguém não traz a caderneta, tem de pagar € 6,00 para fazer levantamentos.
Que do modo que fizeram, com transferência da conta de um para a do outro, o sogro levantava com a caderneta e não pagavam mais.
À semelhança da testemunha anterior, adianta uma justificação cabal e plausível para as transferências e levantamentos efectuados, contribuindo para prova de que a proveniência do dinheiro levantado pelo pai da Ré M. R. era dela e, atendendo a que o mesmo ocorreu na data da escritura, para prova de que se destinou ao pagamento do preço restante da escritura e honorários, em conjugação com a demais prova, designadamente documental, a que supra se faz referência.
- a testemunha Joana, solicitadora, escusou-se a depor, ao abrigo do sigilo profissional, tendo apenas respondido quanto à nota de honorários por si apresentada, confirmando o documento de fls. 7, e que recebeu o valor em 6-8-2015, não sabe como, mas sabe que o depositou em conta dois dias depois, em numerário. Que em 28-8 tem outro depósito na mesma quantia.
Quanto a fls. 8, confirma ter sido o valor da escritura.
Contribuiu para prova do pagamento dos seus honorários, em conformidade com os factos provados, pela forma segura e coerente com que depôs, nessa parte.
- quanto aos factos não provados, não foi produzida prova no sentido de que os RR. deram conhecimento ao A. da venda pelo valor real, ou mesmo pelo valor da escritura, pelo que se deu tal facto como não provado, bem como a área e cultura da parcela referida em 25);
- a prova dos factos 8) e 24) consta dos documentos acima referidos e que contribuíram para a respectiva prova.
- a prova do facto 26) resulta das declarações de J. R. e da conjugação do depoimento de parte do 2.º Réu, analisados conjuntamente com os documentos juntos aos autos, e sendo a única explicação lógica e plausível para a diferença de valores constantes da escritura e reais, pelo que se dá como provado com base em presunção judicial retirada da conjugação da referida prova.
- o facto 25), tendo em conta os demais factos tidos como provados, em 13) a 23), relativos à ocupação de parte do prédio acima identificado, a parte sobrante necessariamente tem as confrontações identificadas, conforme resulta da globalidade da prova produzida, e porque se trata da parte restante de um prédio concretamente identificado.
- concretamente quanto aos factos 9) a 12), retendo o acima exposto (designadamente em nota de rodapé -2-) acerca da valoração da prova testemunhal, e tendo em conta o depoimento de J. R., M. F., e declarações de parte do co-Réu, a valorar livremente de acordo com o já mencionado, conjugadas com os documentos de fls. 31 e 32 que comprovam transferência de € 5000,00 para a conta do vendedor e posteriormente de € 6000,00 da conta da Ré M. R. para a conta do pai, e levantamento por este, no mesmo dia (por sinal, o dia da outorga da escritura definitiva), da referida quantia, [ sendo que € 1000,00 terão sido para despesas da escritura, o que se afigura compatível com a prova documental produzida e depoimento da solicitadora inquirida, no mesmo sentido], têm-se tais factos por provados.
De facto, face a tais documentos, o Tribunal não pode deixar de ficar com a convicção de que o preço realmente pago pelos compradores foi de € 10.000,00, sendo que tal convicção resultante da análise dos documentos mencionados, sai reforçada pela prova testemunhal aludida”.
*
O direito

Sustentam os RR/Recorrentes que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea d), do Novo Código de Processo Civil(1).

Dispõe este normativo:
“1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.
Como ensinava o Professor Alberto dos Reis (2), a nulidade por excesso de pronúncia “está em correlação com o 2º período da 2ª alínea do artigo 660º” (equivalente ao artigo 608º, n.º 2, segunda parte, do Novo Código de Processo Civil), acrescentando que “proíbe-se aqui ao juiz que se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso”.
(…)”
Lembrava ainda que as questões não se confundem com as considerações, argumentos ou razões aduzidos pelas partes, nem com os factos. Estes são um elemento para a solução da questão, mas não a própria questão.
Ora, é precisamente aí que os recorrentes situam a nulidade imputada à sentença, argumentando que o tribunal omitiu, truncou e desvirtuou a factualidade vertida nos artigos 14º a 18º da contestação oportunamente apresentada e cuja realidade foi expressamente reconhecida pelo Autor.
Sendo assim, entendemos que não lhes assiste razão.
Se, porventura, a Senhora Juiz a quo omitiu, truncou ou desvirtuou factos relevantes para a decisão da causa é questão que não contende com a validade da sentença, integrando antes erro de julgamento, sindicável pela Relação nos termos previstos no artigo 662º, números 1 e 2, alínea c), do NCPC – nesse sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 20.1.2015 (relator Henrique Antunes) (3), onde se escreveu que “(…) os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença (…)” e bem assim que “ “(…) a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (…)”.
Assim enquadrada a questão, resta, pois, aferir se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, quer no que concerne aos factos invocados pelos RR, quer aos invocados pelo A., recordando-se que este sustenta que deviam ter sido dados como não provados os factos vertidos nos pontos 9, 10, 11 e 12 do elenco dos factos provados.
Antes, porém, importa apreciar uma outra questão impropriamente suscitada pelo A. em sede de impugnação da matéria de facto.
Trata-se da invocada inadmissibilidade dos depoimentos de parte dos primeiros RR, a pedido dos segundos, sobre o preço realmente ajustado e pago.
Pois bem.
Os aludidos depoimentos foram requeridos na contestação oportunamente apresentada pelos RR compradores e deferidos por despacho proferido na audiência prévia, o qual, admitindo apelação autónoma [artigo 644º, n.º 2, alínea d)], não foi objecto de recurso e, como tal, já não pode ser sindicado.
Questão distinta, que adiante trataremos, é a do valor probatório dos depoimentos em causa, designadamente se podem valer como confissão.
Prosseguindo.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016 (4), “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
No caso vertente, o A. (5) cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, fundamentando a sua discordância quanto à decisão dos pontos de facto impugnados na circunstância de não existir começo de prova por escrito em relação ao segundo pagamento no valor de €5.000,00 alegadamente feito pelos compradores aos vendedores e, consequentemente, ser inadmissível prova por testemunhas a respeito dessa matéria, na circunstância de a simulação de preço não poder ser confessada pelos primeiros RR, por estes não terem assumido na lide uma posição distinta e antagónica com a dos contestantes, e, finalmente, na inconsistência dos depoimentos prestados por aqueles RR e pela testemunha J. R., pai da Ré M. R., por contraposição com o depoimento, que proclama ter sido isento e seguro, prestado pela testemunha M. M., seu pai. Sustenta, outrossim, que o depoimento da testemunha M. F. se mostra inócuo.
A apreciação das duas primeiras razões enunciadas, atinentes à admissibilidade da prova por testemunhas e da prova por confissão quanto ao preço real concretamente dado como provado, precede, logicamente, a do erro de julgamento propriamente dito, decorrente da valoração que foi feita dos referidos depoimentos de parte e dos depoimentos das testemunhas.
Invertendo a ordem pela qual foram colocadas, diremos que as declarações prestadas pelos primeiros RR não foram valoradas como confissão, mas antes apreciadas livremente pelo tribunal, como expressamente se escreveu na motivação da decisão de facto, acima transcrita.
Por outro lado, não vislumbramos qualquer fundamento para circunscrever a admissibilidade de prova testemunhal sobre o preço real da venda ao montante da transferência efectuada a favor do vendedor, documentada a fls. 31 verso, vedando-a quanto ao diferencial entre esse valor e o valor alegado pelos compradores.
Desde que se considere, na esteira do entendimento defendido por Vaz Serra, que, não obstante a formulação irrestrita dos números 1 e 2 do artigo 394º do Código Civil, é admissível prova por testemunhas de convenção contrária ao conteúdo do documento autêntico quando exista um começo ou princípio de prova por escrito (6), as testemunhas terão, até por imperativo legal, de depor com verdade e “precisão sobre a matéria dos temas da prova” (artigo 516º, n.º 1 do NCPC), ainda que estes, eventualmente, excedam o âmbito do escrito indiciador da desconformidade invocada.
Acresce que, muito embora não tenha tido como destinatários os vendedores, mas o pai da compradora - que, acto contínuo, procedeu ao levantamento do montante creditado -, a transferência documentada a fls. 32 foi efectuada no próprio dia da escritura e o diferencial entre o respectivo valor e o valor do segundo pagamento alegadamente feito àqueles corresponde ao montante dos honorários pagos pelos compradores à solicitadora Joana, conforme recibo inserto a fls. 33.
Cremos, pois, que também esses documentos constituem um começo de prova por escrito que legitima o recurso à prova testemunhal, esconjurando os perigos que se quiseram afastar com a proibição desta no específico âmbito de que nos ocupamos.
Aqui chegados, importa apreciar a impugnação da matéria de facto propriamente dita, tendo em vista estabelecer se esta padece ou não de erro de julgamento e, no caso afirmativo, proceder à sua modificação, dando como não provados os factos vertidos nos pontos 9, 10, 11 e 12 do elenco dos factos provados.
Ora, ouvida a prova produzida em audiência e analisada a prova documental constante dos autos, entendemos que não existe qualquer erro de julgamento da matéria de facto, porquanto a nossa convicção sobre os pontos de facto impugnados pelo A. coincide com a formada pela Senhora Juiz a quo, cuja motivação secundamos.
Limitar-nos-emos a enfatizar que o teor dos documentos apresentados pelos RR compradores e a que já fizemos referência, conjugado com os depoimentos dos RR vendedores, do pai da Ré compradora, a testemunha J. R., e das testemunhas M. F. e Joana formam um todo coerente e credível, demonstrativo de que o preço real da venda não foi de €500,00, mas de €10.000,00.
Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª instância, conforme com a prova produzida, mantêm-se inalterados os pontos de facto impugnados pelo A., pelo que inexiste o erro de direito invocado no pressuposto da sua modificação (7).
Prevenindo essa possibilidade, pede o A. que lhe seja dada oportunidade para exercer a preferência pelo indicado preço de €10.000,00.
Trata-se, manifestamente, de uma questão nova.
Com efeito, o A. nunca antes se propôs exercer a preferência por aquele preço, mas apenas por €5.000,00.
Ora, como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa permitir a modificação destas, corrigindo eventuais erros, pelo que não se destinam a criar decisões sobre matéria nova, não apreciada pelo tribunal de categoria inferior.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (8) vigora, no âmbito do processo civil, “um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no Tribunal de recurso”.
Sublinhando a mesma ideia, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 17 de Novembro de 2016, sentenciou que “os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido”, acrescentando que “em sede recursória o que se põe em causa e se pretende alterar é o teor da decisão recorrida e os fundamentos desta. A sua reapreciação e julgamento terão de ser feitos no seio do mesmo quadro fáctico e condicionalismo do qual emergiu a sentença proferida e posta em crise” e bem assim que “devem circunscrever-se às questões que já tenham sido submetidas ao Tribunal de categoria inferior e aos fundamentos em que a sentença se alicerçou e que resultaram da prova produzida e carreada para os autos, salvo, naturalmente, as questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos imprescindíveis ao seu conhecimento”.
Daí que esteja vedado a esta Relação conhecer da questão agora suscitada.
Adiante.
É agora altura de apreciar a alteração factual requerida pelos Reconvintes.
Sustentam esses RR que o tribunal omitiu, truncou e desvirtuou a factualidade vertida nos artigos 14º a 18º da contestação oportunamente apresentada e cuja realidade foi expressamente reconhecida pelo Autor.
E, efectivamente, o A., no artigo 8º da resposta à reconvenção, admitiu expressamente a realidade daqueles factos, motivo pelo qual os mesmos não foram incluídos nos temas da prova, como se imporia se não estivessem assentes, na medida em que interessavam à procedência do pedido reconvencional.
Mais. Argumentando que tais factos se encontravam assentes, o tribunal recorrido, aquando da admissão dos meios de prova, restringiu os depoimentos de parte do A. e dos RR vendedores, requerido pelos Reconvintes, aos demais factos a que foram indicados, com exclusão daqueles.
Logo, esses factos deviam ter sido incluídos no elenco dos factos provados.
E, em abono da verdade - discordando-se aqui dos recorrentes -, pensamos que o foram quase integralmente, embora com um alinhamento diferente e com ligeiras alterações ao nível da redacção, evitando repetições desnecessárias.
Concordando-se com a metodologia seguida, pensamos que, por certo involuntariamente, se desvirtuou uma parte relevante da alegação, atinente ao período de tempo durante o qual os recorrentes, por si e antepossuidores, vêm exercendo a posse exclusiva sobre a questionada parcela com os limites que lhe foram assinalados.

Com efeito, essa posse perdura desde a divisão material do prédio comum, ocorrida há mais de 80 anos, e não, como se consignou, desde a data em que a parcela coube em partilhas aos RR S. A. e mulher.
Determina-se, por conseguinte, a alteração do ponto 20 do elenco dos factos provados, bem como a anexação a ele dos três seguintes (21, 22 e 23), formando um único com o seguinte teor:

“Há mais de 80 anos que os segundos RR, por si e antepossuidores, vêm granjeando batatas, cebolas e vinha na aludida parcela, habitando a casa e ocupando e permitindo a ocupação do armazém nela existentes, quer por pessoas quer para a guarda de alfaias agrícolas, administrando, benfeitorizando (saibrando e plantando vinha), granjeando e colhendo os respetivos frutos, o que sempre fizeram continuamente, à vista e com conhecimento de todas as pessoas da freguesia, incluindo o Autor, sem oposição de ninguém e na convicção de serem os seus exclusivos donos”.
Estribando-se nestes factos, invocam os RR/Recorrentes a aquisição por usucapião do direito de propriedade exclusiva sobre a parcela por si concretamente possuída, cujo reconhecimento peticionaram em via reconvencional, verberando contra a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente tal pedido.

Foram dois os argumentos usados pela Senhora Juiz a quo para justificar a sua decisão, a saber:

- A divisão pretensamente operada viola a proibição legal de fraccionamento estabelecida no artigo 1376º do Código Civil;
- Não ficou provado que, aquando da divisão do prédio, os comproprietários pretendessem pôr termo à indivisão e, consequentemente, que os segundos RR, por si e antepossuidores, tivessem possuído a parcela em questão na convicção de serem seus proprietários exclusivos.

Será assim?
Pensamos que não.
O último argumento é frontalmente contrariado pelos factos alegados e dados como provados na 1ª instância, agora ampliados, donde já resultava que os primeiros RR praticaram actos de posse sobre a ajuizada parcela “convictos, desde sempre, de serem os (seus) proprietários exclusivos (…)”.
É certo que, como resulta do artigo 1406º do Código Civil, os comproprietários podem acordar no uso da coisa comum, mantendo-se a indivisão.
Mas também podem pôr termo à indivisão por acordo, outorgando a competente escritura pública ou dividindo materialmente o prédio (portanto, sem obediência à forma legal).

Neste caso, como advertem Pires de Lima e Antunes Varela (9), “cada consorte apenas poderá adquirir a posse da parte que lhe couber e a divisão da coisa só se consumará após o decurso do prazo de usucapião”.
É essa igualmente a lição da jurisprudência.

Como se pode ler no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.09.2013 (relator Granja da Fonseca), “I - A compropriedade ou propriedade comum configura-se como um conjunto de direitos coexistindo sobre toda a coisa a que a mesma respeita, e não sobre qualquer realidade ideal ou imaterial, como a quota, ou sequer sobre uma parte dessa mesma coisa. II - Os comproprietários têm o direito de pôr termo à indivisão por acordo dos consortes (celebrando escritura pública de divisão ou dividindo materialmente o prédio comum, passando, neste caso, cada um deles a possuir exclusivamente cada parte determinada até adquirir a propriedade singular por usucapião) ou através de acção judicial de divisão de coisa comum”.
Assim também se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa de 4.7.2006 (relator Carlos Moreira).

Eis o seu sumário:

“1. Não constitui uso anormal do processo, nos termos do artº 665º do CPC, a pretensão de, gorada que foi a tentativa de divisão, por via administrativa de prédio misto em regime de compropriedade, se pretender tal divisão, por via judicial, mediante a invocação da usucapião.
2. A usucapião pode fundamentar a divisão de prédio em regime de compropriedade, maxime se os comproprietários dividiram verbalmente o prédio e passaram a exercer a posse exclusiva sobre a parcela ou quinhão que acordaram ficar a pertencer-lhe”.
Por outro lado, constitui entendimento doutrinal e jurisprudencial sedimentado que o instituto jurídico da usucapião prevalece sobre a proibição legal de fracionamento, mesmo depois da nova redacção do artigo 1379º do Código Civil, introduzida pela Lei 111/2015, de 27 de Agosto, por via da qual os actos de fracionamento, primitivamente feridos de anulabilidade, passaram a ser sancionados com a nulidade.
Já o defendiam Pires de Lima e Antunes Varela (10), em comentário ao citado artigo 1379º, na sua versão original, nos seguintes termos: “Se através de um negócio jurídico nulo (v. g. por falta de forma) se realizar um fraccionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fraccionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião”.
Ainda na doutrina, perfilham o mesmo entendimento Carvalho Fernandes e Durval Ferreira (11), o primeiro dos quais sublinha que “Sendo o direito adquirido ex novo, ele é imune aos vícios que afectassem o direito antes incidente sobre a coisa”.

Foi esse igualmente o entendimento acolhido no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.4.2017 (relator Nunes Ribeiro), cujo sumário se transcreve:

“I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC). II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa. III - A eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento de um prédio não constitui, por si só, fundamento para recusar a usucapião, porquanto nenhum dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, veio impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes do loteamento ilegal (…)”.
E ainda no acórdão da Relação de Évora de 8.6.2017 (relator Mário Serrano).
Como aí se discorre, reportando-se especificamente às normas que proíbem o fraccionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima e distinguindo-as das normas que visam impedir loteamentos ilegais, “Se se pode afirmar que as normas (cfr. Portaria nº 202/70) que fixam essa área mínima ainda são normas de direito público (ainda que o mesmo já não se possa dizer da proibição de fraccionamento, que essa já é de direito privado, por prevista apenas no artº 1376º do C.Civil), o certo é que os interesses que se visam acautelar com tal fixação já não relevam do domínio da ordem pública (como, ao que se julga, os relativos a loteamentos ilícitos), sendo antes de cariz essencialmente económico, na medida em que se prendem com o desenvolvimento e competitividade da actividade agrícola nacional (como se pode ver do preâmbulo do Decreto-Lei nº 384/88, de 25/10, diploma que regia sobre o emparcelamento rural e cujo Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 103/90, de 22/3, manteve, no seu artº 53º, os valores das unidades de cultura constantes daquela Portaria de 1970 – situação ainda inalterada, à luz do novo regime da estruturação fundiária, aprovado pela Lei nº 111/2015, de 27/8, que revoga aquela legislação anterior). Nesse conspecto, deve entender-se que as normas impeditivas do fracionamento não se situam, manifestamente, em plano de prevalência sobre as relativas à usucapião”.
Transpondo estes ensinamentos para o caso concreto que nos ocupa, é forçoso concluir que, face ao acervo fáctico dado como provado, traduzido na divisão material do prédio comum operada há mais de 80 anos e na posse exclusiva, integrada pelo “corpus” e pelo “animus”, desde então exercida pelos RR/Reconvintes, por si e antepossuidores, sobre uma das parcelas resultantes dessa divisão, deve proceder a aquisição a seu favor, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre tal parcela, distinta e autónoma da que pertence ao A..
Resta acrescentar que, transitada em julgado a presente decisão, compete aos RR/Reconvintes promover a regularização da situação matricial e registral do imóvel cuja propriedade exclusiva ora lhes é reconhecida.
Improcede, pois, a apelação interposta pelo A. e procede, parcialmente, a interposta pelos RR/Reconvintes.

*
IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo A. e parcialmente procedente o interposto pelos RR/Reconvintes, M. R. e marido, R. R., revogando-se, nesse segmento, a sentença recorrida e declarando-se que aqueles RR são proprietários, com exclusão de outrem e por via da usucapião, de uma parcela de terreno resultante da divisão material do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Peso da Régua sob o n.º 888º e inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob o artigo 333, parcela essa composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 35,20 metros quadrados, uma construção arruinada, com a área de 12 metros quadrados, e terreno de cultura a vinha e sequeiro, com a área de 546 metros quadrados, a confrontar do norte com AN, do nascente, onde se acha delimitada por um muro em pedra sobreposta, com S. A., do poente, onde se acha delimitada por um muro em pedra sobreposta e marcos em pedra, com herdeiros de J. F. e do sul, onde se acha igualmente delimitada por um muro em pedra sobreposta e marcos em pedra, com S. A..
No mais, confirma-se o decidido.
O A. suportará as custas da sua apelação.
As custas da apelação dos RR/Reconvintes serão suportadas por estes e pelo A. na proporção de ¼ e ¾, respectivamente.

Guimarães, 1 de Fevereiro de 2018

João Peres Coelho
Pedro Damião e Cunha
Maria João Matos


1. Diploma a que pertencerão os restantes preceitos citados sem indicação de origem.
2. Código de Processo Civil Anotado, Volume V, página 142.
3. Disponível, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt.
4. Disponível, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt.
5. A alteração factual propugnada pelos RR/Recorrentes será apreciada posteriormente.
6. Nesse sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, página 344.
7. Note-se que a preferência tem de ser exercida pelo preço real, ainda que este seja diferente do declarado, pelo que, se o réu alegar na contestação que o preço por si realmente pago foi superior ao constante do instrumento de venda, o autor pode, ao abrigo do disposto no artigo 265º do NCPC, ampliar o pedido de modo a exercer a preferência por esse preço, prevenindo a hipótese da sua demonstração, mediante o ulterior reforço do depósito inicialmente efectuado. Todavia, pode também optar por excluir o exercício da preferência por preço superior ao declarado, assumindo o risco de sucumbência da acção se este ficar aquém do real. Ora, no caso vertente, o autor, notificado da contestação dos réus, não manifestou a intenção de preferir pelo preço alegado por estes, superior ao declarado, mas apenas por um valor intermédio entre ambos, que não se apurou ter sido o realmente ajustado e pago.
8. Estudos Sobre o Processo Civil, 2ª Edição, página 395.
9. Código Civil Anotado, volume III, 2ª edição, página 390.
10. Idem, página 269.
11. Lições de Direitos Reais, página 247 e Posse e Usucapião, página 501 e seguintes e páginas 525 a 536.