Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
96/10.7TBCHV.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: RECURSO
COMODATO
QUESTÕES DE OFICIOSO CONHECIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Nas questões de conhecimento oficioso, é sempre lícita a sua apreciação pelo tribunal de recurso, ainda que não tenham sido decididas ou sequer colocadas na instância recorrida.
II - O despacho saneador só constitui caso julgado quanto às questões concretamente apreciadas; não tendo sido, anteriormente, submetida a apreciação a eventual preterição de litisconsórcio necessário passivo, não ocorre caso julgado, podendo o tribunal ad quem apreciar essa invocada excepção.
III – Constitui comodato a ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário.
IV - É generalizado o entendimento de que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer.
V – Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – RELATÓRIO.


1. A…, viúvo, residente na R. de Santo António, nº 173, 3º andar, Chaves, intentou a presente acção comum ordinária contra R… e mulher M…, também residentes na aludida rua e número, mas no 2º andar, pedindo que se declare que é usufrutuário do prédio que identifica no artº 1º da sua petição, que se condene os réus a restituir-lhe o 1º e 2º andares do dito prédio, livres de pessoas e bens, bem como o pagar-lhe €17.100,00, por cada um dos ditos locais, a título de ocupação indevida dos mesmos desde Outubro de 2006, e, por fim, a quantia de €900,00 mensais (€450,00 por cada andar) desde a data da citação até efectiva entrega dos mesmos.
Para tanto, alega que o réu é comproprietário da raiz do aludido prédio, sendo o autor titular do direito de usufruto, ao abrigo do qual e por mera tolerância, há mais de 18 anos autorizou os réus a habitar o 2º andar, acabando estes, em 2004, por tomar também conta do 1º andar, o que ocorreu contra a sua vontade, tendo este, desde Outubro 2006 pedido a entrega do 1º andar, a que se seguiu o pedido de entrega também do 2º andar, o que nunca ocorreu, sendo certo que, desde então, pelo menos, deixou de poder arrendar tais espaços.

2. Contestaram os RR dizendo terem vindo morar para Chaves, para o dito 2º andar, por veemente pedido do autor e sua esposa, pais do réu, tendo efectuado várias obras nesse local, a expensas suas, concluindo, assim, que não se trata de “mera tolerância”, mas antes vontade expressa do autor e que a ocupação do 1º andar deriva de determinação do autor.
Negam que o autor alguma vez lhes tenha pedido a entrega dos ditos locais, sendo tudo isto uma manobra de uma irmã do réu, que domina o pai de ambos, o aqui autor, que já não está capaz de decidir o que quer que seja, atenta a sua idade. Concluem ainda que não existe o fundamento invocado para a restituição (necessidade de arrendamento para obtenção de rendimentos) uma vez que a parte de trás do 1º andar e o quarto andar estão desocupados.

3. Foi proferida sentença que:
a) Declarou que o autor é usufrutuário do prédio urbano sito na Rua de Sto António, freguesia de Santa Maria Maior, Chaves, composto de casa de habitação de rés-do-chão, 1º, 2º, 3º, 4º andares e águas furtadas que confronta do norte com herdeiros de G…, do nascente com Rua de Sto António, do sul com M… e poente com Á…, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artº 2611º da freguesia de Stª Maria Maior, concelho de Chaves e descrito na Conservatória do Registo Predial de Chaves sob o nº 56.788;
b) Condenou os réus a restituir-lhe a parte do 1º e 2º andares, que ocupam, do dito prédio, livres de pessoas e bens;
c) Absolveu os réus do pedido de pagamento da quantia de €17.100,00, por cada um dos ditos locais, pela ocupação indevida dos mesmos desde Outubro de 2006, e, ainda, da quantia de €900,00 mensais desde a data da citação até efectiva entrega dos locais.

4. Inconformado, apelou o autor, rematando as suas conclusões nos seguintes termos:
(…)
Terminam pedindo que proceda a excepção de ilegitimidade e se absolvam os RR da instância ou, caso assim não se entenda, se revogue a decisão em crise, porque elaborada à margem da prova produzida e erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis.

Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
(A) O réu é comproprietário da nua propriedade, na proporção de metade indivisa, do prédio urbano sito na rua de Sto António, freguesia de Santa Maria Maior, Chaves, composto de casa de habitação de rés-do-chão, 1º, 2º, 3º, 4º andares e águas furtadas que confronta do norte com herdeiros de G…, do nascente com Rua de Sto António, do sul com M… e poente com Á…, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artº 2611º da freguesia de Stª Maria Maior, concelho de Chaves e descrito na Conservatória do Registo Predial de Chaves sob o nº56.788.
(B) A outra metade indivisa da nua propriedade prédio pertence a M… .
(C) Correu termos no Tribunal Judicial de Chaves, sob o nº 1346/06.0TBCHV acção de divisão de coisa comum na qual foi declarada a divisibilidade do prédio descrito em A).
(D) O réu e M…, adquiriram a nua propriedade do imóvel descrito em A), através de doação feita em comum e partes iguais por S… e A…, aqui autor, através de escritura pública outorgada no ano de 1978.
(E) Os doadores reservaram para si o usufruto vitalício do prédio descrito em A), tendo a doadora falecido a 28 de Dezembro de 1995.
(F) O 1º andar encontra-se dividido em duas partes.
(G) A parte confinante com a rua de Stº António do 1º andar do prédio referido em A), desde 1 de Janeiro de 2003 até 30 de Abril de 2004, esteve arrendado à Câmara Municipal de… que pagava uma renda de €450,00 mensais.
(1º) Há mais de 18 anos que os usufrutuários permitiram que os filhos passassem a habitar duas das fracções do prédio descrito em A), ocupando os réus o 2º andar e, logo que foi edificado, a M…, o 4º andar.
(3º) O autor reside no 3º andar do prédio referido em A).
(4º) Quando cessou o contrato de arrendamento referido em F) o réu ocupou o referido espaço para guardar objectos que lhe pertencem.
(7º) O réu recusa-se a entregar esse espaço ao autor.
(8º) Bem como a pagar uma renda pela ocupação do espaço.
(9º) Impossibilitando o autor de o arrendar.
(14º) Actualmente, a M… vive com o autor no 3º andar.
(15º) A partir de 1980 o autor e sua mulher diziam insistentemente aos réus que viessem morar para Chaves.
(16º) O 1º andar foi dividido em duas partes diferentes com diferentes acessos.
(17º) O 2º andar foi objecto de obras suportadas pelo réu.
(18º) No decurso das obras do 2º andar o autor visitava-a diariamente.
(19º) Actualmente, o 4º andar do prédio descrito em A) encontra-se desabitado.


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O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (artº 635º, nº4, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
***
Primeira questão: preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Vem a arguição sustentada na circunstância de os andares cuja sentença ordenou a restituição ao autor, se situarem num imóvel do qual os RR e a irmã do R R…, F…, são donos em comum e partes iguais da raiz ou nua propriedade e o A. usufrutuário.
Invocam, por isso e nas suas palavras, que, dada a natureza da relação jurídica em apreço, a sentença recorrida, por ausência de vinculação de Fernanda Sarmento, não pode produzir o seu efeito útil normal, isto é, não pode resolver o conflito de interesses duma forma concludente e, que, portanto, os RR, desacompanhados da co-titular da raiz indivisa não podem proceder à solicitada restituição.
Em sede de contra-alegações e acerca da questão, o apelado defende a impossibilidade de se tomar conhecimento dela por se configurar como questão nova, nunca antes colocada pelos RR ao tribunal a quo, além de que a decisão recorrida pode produzir pleno efeito sem a demanda da co-proprietária de raiz.
Constitui jurisprudência reiterada e pacífica o entendimento de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova.
Na verdade, “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em regra, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas” – Abrantes Geraldes, «Recursos em Processo Civil, Novo Regime», pag.90.
É que o nosso sistema jurídico consagra um âmbito de recurso objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.
Todavia, este sistema apresenta-se mitigado com excepções de que são exemplo relevante as questões de conhecimento oficioso, nas quais é sempre lícita a apreciação pelo tribunal de recurso ainda que não tenham sido decididas ou sequer colocadas na instância recorrida.
Já na obra de Amâncio Ferreira intitulada «Manual dos Recursos em Processo Civil», (7ª ed., Almedina, Coimbra, 2005), pode ler-se, a dado passo, na pag. 156, que o tribunal de recurso pode «conhecer de questões novas, ou seja, não levantadas no tribunal recorrido, desde que de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado» e que essas questões podem referir-se «à relação processual (v.g. a quase totalidade das excepções dilatórias, nos termos do artº 495º)»; no mesmo sentido, encontramos, hoje, «Recursos no novo Código de Processo Civil», de Abrantes Geraldes, Almedina, pag.88.
Da acta de fls. 96, dada a ausência de arguição, foi proferido despacho saneador genérico, declarando as partes legítimas.
Desde sempre vem estatuído e hoje encontra consagração no actual artº 595º, nº3, alínea a) do Código de Processo Civil, que o despacho saneador só constitui caso julgado quanto às questões concretamente apreciadas e, assim, não tendo sido submetida à apreciação do Sr. Juiz a quo a eventual preterição de litisconsórcio necessário passivo, não ocorre o falado caso julgado, podendo o tribunal ad quem apreciar essa invocada excepção.
De acordo com o artº 30º do diploma que temos vindo a citar e no que agora releva, o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se esse interesse pelo prejuízo que advenha da procedência da acção. Os titulares do interesse relevante para tal efeito são os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, salvo indicação da lei em contrário.
O litisconsórcio necessário vem previsto no artº 33º, nos termos do qual é indispensável a presença conjunta de diversos autores e/ou diversos réus, sob pena de ineficácia da sentença.
No caso sub judice é tão notória a insustentabilidade da tese dos apelantes que não nos deteremos em grandes considerações. Na verdade, alegando o autor ser usufutuário de um prédio ocupado em duas fracções pelos RR e sendo o pedido o de restituição desse espaço, como poderia a outra co-proprietária de raiz que não ocupa esse espaço ter interesse directo em contradizer? E porque razão a sentença que condena os RR a restituir o espaço ao usufrutuário não conseguiria produzir o seu efeito útil, se só eles ali vivem?
A demanda contra a irmã do réu marido seria susceptível de integrar uma falta de interesse processual em agir, uma vez que não consta da petição qualquer actuação sua que configure uma violação do hipotético direito do autor, nem dela é reclamada qualquer actuação.
Concluindo, não ocorre litisconsórcio necessário passivo e improcede a excepção deduzida.

Relembrando-se que são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso, verificamos que apesar de ter feito apelo a inúmeros depoimentos ao longo do seu douto articulado, daquelas não se colhe qualquer referência a uma requerida alteração da matéria de facto, pelo menos na forma exigida pelo Código de Processo Civil.
Nesta matéria, rege agora o artº 640º que, no que ao ónus do recorrente interessa, é similar ao anterior artº 685º-B.
Assim, segundo o nº1 daquele, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Lidas as doutas alegações, não se colhe nem que concretos pontos de facto considera incorrectamente julgados, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Vai, por isso e nesta parte, rejeitado o recurso.

Quanto ao mérito da acção:
Cumpre apreciar e valorar juridicamente os factos apurados, sendo inquestionável que o tribunal, na aplicação do direito, não está vincluado à alegação das partes.
Da matéria provada deve, em primeira linha, ter-se presente que, através de escritura pública outorgada no ano de 1978, o aqui autor e sua mulher, já falecida, doaram aos seus filhos, o réu e M…, o prédio identificado nos autos, reservando para si o usufruto vitalício do mesmo.
Nos termos do artº 1439º do Código Civil usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, significando, assim, que, à míngua de qualquer outra factualidade que tenha a virtualidade de retrair legalmente esse direito, ao autor é-lhe lícito opor-se a quaisquer actos que belisquem a plenitude do mesmo.
Vem provado que há mais de 18 anos que o usufrutuário autor permitiu que o seu filho, ora réu, passasse a habitar o 2º andar do prédio.
Como também está apurado que quando cessou o contrato de arrendamento sobre parte do 1º andar, que havia sido celebrado com a respectiva Câmara Municipal (30.04.2004), o réu ocupou o referido espaço para guardar objectos que lhe pertencem.
Quanto ao 2º andar:
A matéria provada consubstancia, sem margens para dúvidas, que o autor celebrou com os réus um contrato de comodato previsto no artº 1129º do Código Civil, aí definido como aquele que, sendo gratuito, uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Trata-se de um contrato real quoad constitutionem, que só se completa pela entrega da coisa, onde não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante.
Apesar do comodante poder impor ao comodatário certos encargos (cláusulas modais) há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza (artº 1131º do CC) e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição (artº 1132º do Código Civil).
Também assim entendeu o STJ, no seu acórdão de 06.05.1982, nº069776 (www.dgsi.pt) ao dizer que «Preenche a figura do comodato a ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário».
A circunstância dos RR terem feito a vontade ao autor e terem vindo viver para Chaves em nada belisca a completa subsunção do acordo ao contrato de comodato, antes se sediando na motivação da celebração do mesmo. De notar, de resto, que os apelantes não indicam que exacto requisito daquela figura jurídica não ocorre no caso em apreço, sendo que, como já abordou a sentença recorrida, a falta de estipulação de prazo de entrega a isso não prejudica.
Na verdade, estabelece o artº 1137º do Código Civil que se os contraentes não convencionarem prazo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente da interpelação (nº1) e, não havendo determinação do uso, logo que lhe seja exigida (nº2).
Ora, apesar de se ter provado que o autor e a sua falecida mulher insistiram para que os RR viessem morar para Chaves, relativamente ao imóvel está somente provado que os primeiros passassem a habitar o 2º andar e nada mais.
Mas será que a factualidade provada integra o conceito jurídico de “uso determinado”?
É generalizado o entendimento de que «o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, volume II, 440; Vaz Serra, R.L.J. 114, 21 e 22; acórdão do S.T.J. de 29 de Setembro de 1993, B.M.J. 429, 807; acórdãos da Relação do Porto de 26 de Janeiro de 1984, 6 de Junho de 1991, 11 de Janeiro de 1994, in, respectivamente, C.J. 1984, Tomo 1, 231, 1991, Tomo 3, 246, 1994, Tomo 2, 173)» - cf. ac. STJ de 26.06.97 (itij).
E, deste modo, «Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil» - acórdão do mesmo tribunal e fonte, datado de 15.12.2011.
Como neste último se diz, «a lei num contrato intuitu personae e gratuito como é o comodato não quis obviamente que o comodante que entregou coisa sua para utilização do comodatário ficasse na contingência de não mais a poder reaver» e «a vinculação do comodante ao contrato estabelecido apenas se justifica quando o comodante se comprometeu durante determinado período à cedência da coisa a favor de outra pessoa ou à cedência da coisa para uso determinado, rectius, para utilização específica, pois, tratando-se de um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado contratualmente por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário», posição com a qual não podiamos estar mais de acordo.
Daí que tenha de proceder o pedido de restituição do 2º andar e de improceder, aqui, a apelação.
Quanto à ocupação parcial do 1º andar:
De relevante nesta rubrica vem provado que está dividido em duas partes, uma delas arrendada à Câmara Municipal de … até 30 de Abril de 2004, data a partir da qual o réu ocupou o referido espaço para guardar objectos que lhe pertencem, recusando-se a entregar esse espaço ao autor.
Portanto, no que a esta ocupação concerne, os réus não detêm qualquer título que a legitime, com isso violando o direito de usufruto de que o autor é titular, tendo em conta o que acima se escrever acerca do respectivo conteúdo.
Dispõe o artº 1253º, al.b), do Código Civil que são havidos como detentores ou possuidores precários os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito.
Pode definir-se actos de mera tolerância como aqueles que por razões de amizade, cortesia, familiaridade ou boa vizinhança alguém deixa praticar relativamente ao objecto de um direito de que é titular, mas que, pela sua própria natureza, são precários e subjaz-lhes a eminência de serem proibidos em qualquer momento.
Sendo uma uma situação de corpus sem animus possidendi, não integra o conceito jurídico de posse acolhido pela nossa lei civil no artº 1251º do CC.
Nessas circunstâncias, mesmo com o decurso do tempo, é insusceptível de, por si só, criar qualquer direito que possa conflituar com o de usufruto e, por isso, também não impede o autor de ver deferida a sua pretensão de pôr fim à ocupação que o réu faz de parte do 1º andar.
Também aqui falece a arguição dos recorrentes.
***
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Guimarães, 6 de novembro de 2014
Raquel Rego
António Sobrinho
Isabel Rocha

Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora):
I – Nas questões de conhecimento oficioso, é sempre lícita a sua apreciação pelo tribunal de recurso, ainda que não tenham sido decididas ou sequer colocadas na instância recorrida.
II - o despacho saneador só constitui caso julgado quanto às questões concretamente apreciadas; não tendo sido, anteriormente, submetida a apreciação a eventual preterição de litisconsórcio necessário passivo, não ocorre caso julgado, podendo o tribunal ad quem apreciar essa invocada excepção.
III – Constitui comodato a ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário.
IV - É generalizado o entendimento de que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer.
V – Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.