Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
278/09.4TBVLN-D.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
REQUISITOS
REGISTO
PENHORA
VEÍCULO
POSSE
COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: É manifesta a falta de fundamento da oposição mediante embargos de terceiro quando a penhora de veículo automóvel tenha sido realizada e registada em momento anterior ao da sua compra e aquisição da posse.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – Relatório;

Apelante (s): Manuel (embargante);
Apelado (s): Rafael (exequente);

Manuel instaurou autos de embargos de terceiro, contra Rafael pedindo que seja declarado que é o proprietário do veículo automóvel de matrícula 12-65-…; que seja declarada nula, por ilegal, e ordenado o levantamento da penhora de que o veículo em causa foi objeto nos autos de execução em causa, sendo ainda ordenada a restituição ao embargante de todos os documentos respeitantes ao dito veículo e ser o exequente condenado no pagamento dos danos patrimoniais e morais sofridos pelo embargante.

Foi proferida decisão a julgar os embargos totalmente improcedentes, por não provados, e condenado o embargante como litigante de má fé em multa que se fixou em 7 Ucs e ainda na indemnização, pedida pelo embargado, sendo certo que os autos não fornecem elementos para fixar desde já, devendo a mesma vir a ser fixada, oportunamente, de acordo com as regras estabelecidas no artigo 543º, n.º 2, do CPC.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs aquele embargante o presente recurso de apelação, em cuja alegação formula, em súmula, as seguintes conclusões:
1. É doutrina e Jurisprudência assente que o registo não é fonte de aquisição de direito de propriedade e a posse dos bens a ele sujeitos mas apenas a faz presumir e publicita a respectiva situação pertinente ao comércio jurídico.
2. Tal não significa necessariamente que o Embargante, quando promoveu o registo da sua aquisição, tivesse tido, de modo imediato e automático da pendência de penhora sobre o veículo que comprou na medida em que não acedeu ao teor registral do mesmo.
3. A penhora garante um direito de crédito enquanto a venda e compra transmite um direito real v.g. o direito de propriedade e a posse sendo que, estes, prevalecem sobre aquele.
4. O próprio Despacho liminar de admissão dos presentes Embargos, proferido em 22/11/2013, julgou que se verificava “suficientemente indiciada a existência do invocado direito de propriedade do embargante, que se revela(va) ofendido com a requerida penhora”.
5. A ofensa ao direito de propriedade e à posse do Embargante não ocorreu com o registo da penhora mas sim com a efectiva apreensão do veículo a qual apenas foi efectuada em 7 de Agosto de 2013 conforme Auto de Apreensão de Veículo Automóvel da Guarda Nacional Republicana constante dos autos de execução.
6. Assim, quando é concretizada a penhora era o Embargante única e exclusiva proprietário do veículo em causa.
7. Daí que, tal penhora, seja ilegal.
8. O Embargante não defende, nos presentes autos uma posição cuja falta de fundamento não desconhece, não falseia deliberadamente os factos, não omite factos essenciais e não utiliza o processo comum objectivo ilegal e, por fim, não visa dificultar a acção da justiça nem impedir a descoberta da verdade.
9. A litigância de má fé pressupõe uma atitude processual, mais que temerária, dolosa. Não é, manifestamente aquela que o Embargante assume nos autos.
10. Pelo contrário, o Embargante limitou-se a denunciar as causas e razões que, na sua perspectiva, afectam o seu direito de propriedade e posse. E fá-lo de forma compreensível e não escandalosamente ilícita, imoral e antijurídica.
11. Não se justifica, pois, a sua condenação por litigância de má fé.

Pede que se revogue a sentença recorrida ou se ordene o prosseguimento dos autos para colheita de mais prova – e se absolva o Embargante do pedido de condenação por litigância de má fé.

Não houve contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artigo 639º, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26.06 (doravante CPC).

As questões suscitadas pelo recorrente podem sintetizar-se nos seguintes itens:

a) Requisitos dos embargos de terceiro: ilegalidade da penhora;
b) Litigância de má fé;

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade considerada provada na sentença é a seguinte:

1 – O embargado instaurou contra ML e JL os autos de execução n.º 278/09.4TBVLN-C.
2 – No âmbito dessa execução foi penhorado o veículo automóvel de matrícula 12-65-…, ligeiro de passageiros da marca Opel, penhora essa registada no dia 30 de maio de 2013.
3 – O embargante Manuel comprou o veículo automóvel de matrícula 12-65-…, ligeiro de passageiros da marca Opel a ML, no dia 06 de junho de 2013, data em que foi efectuado o respectivo registo de propriedade.
4 – No dia 06 de junho de 2013, o embargante entrou na posse do veículo em questão, utilizando-o nas suas deslocações, pagando sua manutenção e reparações.

*****

2. De direito;



a) Requisitos dos embargos de terceiro: ilegalidade da penhora;

O objecto de recurso versa sobre matéria de direito.
A oposição por embargos de terceiro visa a defesa da posse ou de qualquer direito incompatível com acto judicial ordenado ou realizado, como seja o caso de penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens – artº 342º, nº1, do CPC.
Esgrime, então, o recorrente, como um dos fundamentos do recurso interposto, que relevante, para efeitos de procedência dos presentes embargos de terceiro, é o momento da apreensão judicial do bem, ou dito de outro modo, o da apreensão efectiva, material do veículo automóvel, e não o da realização da penhora ou o do seu registo.
Mas não lhe assiste razão.
Desde logo, o citado artº 342º, nº1, refere-se expressamente ao acto de penhora, sendo que o artº 755º, do CPC, por remissão do artº 768º do CPC, preceitua que a penhora de veículo automóvel se realiza por comunicação electrónica do agente de execução. Não carece de uma apreensão material do mesmo.
Argumenta ainda o recorrente que o registo não é fonte de aquisição de direito de propriedade, mas apenas o faz presumir, além de que a penhora apenas garante um direito de crédito enquanto a venda e compra transmite um direito real, v.g. o direito de propriedade e a posse, sendo que estes prevalecem sobre aquele.
Trata-se de mero raciocínio que em teoria é válido, mas desde que o acto de compra, enquanto modo de aquisição derivada da propriedade, seja anterior ao registo da penhora.
É que são inoponíveis à execução os actos de disposição dos bens penhorados, sem prejuízo das regras do registo – artº 819º do Código Civil (CC).
Ora, no caso em apreço, contrariamente à tese do recorrente, quando foi realizada e registada a penhora do veículo (em 30.05.2013), o embargante, aqui recorrente, não era dono nem possuidor do veículo em causa, pois que o adquiriu em 06.06.2013.
Ou seja, a penhora de tal veículo realizou-se e foi registada em data anterior à da compra e da aquisição da posse do mesmo por parte do embargante.
Daí que é manifesto que tal acto de disposição depois do registo da penhora é ineficaz em relação ao exequente.
Tal veículo, à data da penhora, era, portanto, um bem da executada.
Não se vislumbra assim qualquer fundamento legal plausível para a apontada ilegalidade da penhora.
Razão pela qual, sem necessidade de mais considerandos porque despiciendos, a apelação nesta parte tem necessariamente de improceder.

b) Litigância de má fé

O apelante pretende ainda a alteração da sentença recorrida na parte respeitante à sua condenação como litigante de má fé com os argumentos de que, por um lado, não defendeu posição cuja falta de fundamento não desconhecia, não falseou os factos, não omitiu factos essenciais, não utilizou o processo com um objectivo ilegal nem visou dificultar a acção da justiça ou impedir a descoberta da verdade e, por outro lado, não teve uma atitude processual dolosa.
Quid iuris?
Quanto a esta problemática, sob a epígrafe “Responsabilidade no caso de má fé – Noção de má fé”, dispõe o artº 542º, nº 2, alínea a), do CPC, que é considerada litigante de má fé a parte que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar [al. a)].
“É corrente distinguir má fé material (ou substancial) e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, actua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem actuar com má fé instrumental, podendo portanto o vencedor da acção ser condenado como litigante de má fé.” Como ensinam LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, in Código de Processo Civil, Anotado, volume 2.º, Coimbra Editora, 2003, p.196,
Na essência, a má fé traduz-se na violação do dever de probidade, de boa fé processual que os artºs 7º e 8º do CPC impõem às partes – dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-10-98, p.98B782, in dgsi.pt)
Com a reforma processual de 1995/96, houve substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer na aludida vertente substancial quer instrumental, e tanto na vertente subjectiva como na objectiva.
Reportando-nos ao caso em análise, a conduta processual assumida pelo embargante, ao deduzir os presentes embargos de terceiro, é enquadrável no referido artº 542º, nº 2, al. a), ou seja, atenta a factualidade provada (a penhora do veículo foi registada em 30.05.2013, enquanto que a sua compra e posse pelo embargante ocorreu em 06.06.2013), é manifesto que o embargante, senão teve conhecimento antes, como acentua o tribunal recorrido, pelo menos quando deduz os presentes embargos ficou a saber que, aquando da compra e tomada de posse do veículo em questão, já tinha sido realizada a penhora.
Logo, não tinha qualquer fundamento legal para deduzir os presentes embargos de terceiro.
Demonstra, pois, uma atitude, senão dolosa, pelo menos imbuída de evidente negligência grave.
É que o referido artº 342º, nº1, do CPC, é lapidar quanto ao fundamento dos embargos de terceiro, fazendo depender a dedução destes do acto da penhora e não da apreensão ou imobilização do veículo.
E da realização da penhora (e do seu registo) antes da compra e tomada de posse do veículo em questão teve (ou podia ter) conhecimento quando deduziu os presentes embargos, até porque procedeu ao registo de tal aquisição em momento posterior ao do registo da penhora.
Deste modo, pode-se até concluir que o meio processual usado não deixou de constituir um expediente dilatório com vista a protelar o normal andamento da execução, impedindo a realização da justiça e, consequentemente, que o exequente/embargado receba o seu crédito.

Como quer que seja, afigura-se que, nestas circunstâncias concretas, ao deduzir os embargos de terceiro, o recorrente não podia nem devia de forma alguma ignorar que, pelo menos com negligência grave, deduzia oposição com manifesta falta de fundamento, pelo que a sua condenação como litigante de má fé se mostra legalmente justificada.

Procede totalmente a apelação.

Sumariando:
É manifesta a falta de fundamento da oposição mediante embargos de terceiro quando a penhora de veículo automóvel tenha sido realizada e registada em momento anterior ao da sua compra e aquisição da posse.


III – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


Guimarães, 15.01.2015
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva