Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
173/12.0TBAVV-A.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CHEQUE PRESCRITO
TÍTULO EXECUTIVO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
MÚTUO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Invocando o exequente, no seu requerimento executivo, a relação jurídica subjacente aos cheques, ou seja, que entre ele e o executado foi celebrado um contrato de mútuo, e não tendo as partes subscrito outro documento, pode o cheque valer como documento com a virtualidade de documentar tal mutuo e, assim, ser título executivo por força do disposto no Artº 46º/c) do CPC visto aquele contrato estar sujeito a forma legal que não se reveste de natureza mais solene do que a subjacente à emissão dos cheques.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

J.., Executado nos autos à margem citados, não se conformando com a douta sentença proferida, vem da mesma interpor Recurso de Apelação.
Alega e, após, conclui que:
1- O recorrente não se pode conformar com a decisão que julgou judicialmente improcedente a oposição à execução e à penhora, e em consequência ordenou o prosseguimento dos autos de execução.
2- Decidiu o Tribunal a quo, quanto às invocadas inexistência de relação jurídica subjacente e inexequibilidade dos títulos dados à execução, que os cheques dados à execução constituem títulos executivos atentos os princípios da abstracção, da literalidade e da generalidade dos títulos cambiários, não podendo de forma alguma o recorrente concordar com o entendimento apresentado pelo Tribunal a quo.
3- Quanto à questão da inexequibilidade do título executivo considerou o Tribunal a quo que o executado/oponente emitiu o cheque nº 5117348037 no montante de 10.000,00 euros e o cheque nº 6017348036 no valor também de 10,000,00 euros, ambos datados de 01/03/2009 e sacados sobre o Banco.., a favor do exequente/oposto.
4- Salvo o devido respeito, não poderia ter o Tribunal a quo considerado que os cheques constituem títulos executivos, isto porque resulta claro que a data aposta nos cheques foi efectuada pelo exequente, tal como o endosso o foi, o que já havia sido admitido pelo exequente no processo nº 349/09.7TBAW.
5- O exequente na petição de execução comum com o nº 349/09,7T8AW nada disse ou mencionou sobre a alegada relação jurídica subjacente, simplesmente porque ela não existe,
6- Face aos elementos carreados aos autos, o Tribunal a quo deveria ter considerado que a relação subjacente a estes cheques existe, mas não entre as partes, que nunca tiveram qualquer relação negocial, mas sim entre o exequente e o clube de futebol "A..", a quem o exequente emprestou tais montantes, que entraram nos cofres do clube.
7- Com efeito, o executado não tem, nem nunca teve qualquer relação jurídica negocial com o Exequente que justifique os cheques dados à execução, e muito menos qualquer relação negocial que justifique que o executado deva ao exequente a quantia peticionada requerimento executivo, uma vez que à data do empréstimo ao clube de futebol, o aqui executado era presidente do clube, e apenas actuou na qualidade de presidente, convencionando sempre com o exequente que tal montante seria pago pelo A.., mais tarde quando o clube tivesse verbas.
8- Por outro lado, tal decisão não atendeu ainda ao facto da falta de data de emissão num cheque se traduzir na falta de um dos requisitos essenciais enumerados na Lei Uniforme sobre Cheques, o que conduz a que esse título não possa valer como cheque.
9- O Cheque sem preenchimento de data não constitui título executivo, sendo tal entendimento sufragado pelo Acórdão da Relação do Porto, 09,3,1999, CJ III, p. 19." O cheque a que falta o requisito da indicação da data em que é passado não vale como cheque, e portanto não vale como título executivo. E como não demonstra por si só, que se constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária, não constitui título executivo nos termos da alínea c) do artº 46º do CPC/revisto"
10- A ordem de pagamento dada ao banco e concretizada num cheque implica, em princípio, um reconhecimento unilateral de uma dívida, o que dele faz um título executivo desde que o seu portador invoque a obrigação donde faz derivar o direito a ver satisfeito esse pagamento coercivo.
11-Não tendo sido preenchida ou dada a ordem de pagamento pelo executado/oponente, não implica um reconhecimento unilateral de dívida da sua parte.
12-Todavia, não poderia ter o tribunal a quo considerado provada a existência de uma obrigação subjacente ou formal emergente dos cheques, entre o exequente e o executado.
13-Por outro lado, e conforme consta dos autos, quer através do depoimento do executado/oponente, quer através do depoimento do exequente/oponido, os cheques foram entregues pelo executado, sem que neles estivesse contida a data e o endosso.
14-À luz do entendimento perfilhado pelo Acórdão da Relação de Coimbra 16.05.1996, CJ, III, p. 45: " O cheque entregue em branco só é válido desde que completado nos termos dos acordos realizados, nada na lei fazendo presumir que a simples entrega do cheque contém em si a anuência para seu preenchimento."
15- Ao considerar os cheques como título executivo a douta sentença fez uma errada interpretação dos artigos 2° da lei Uniforme dos Chegues e arts. 46° do Código de Processo Civil, e violou por erro na apreciação da prova o disposto no artigo 712° nº 1 al. a), artigo 655° n.o 1 do CPC, sendo o correcto o sentido acima plasmado e de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento.
16-Considerou o Tribunal a quo que uma vez que o valor mutuado não ultrapassa os € 20.000,00 nem os € 25.000,00, poderá igualmente concluir-se no sentido de que a validade de tal contrato não estava dependente da sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado, sendo certo, porém que tal contrato para ser válido deveria ter sido celebrado por documento escrito assinado pelo mutuário.
17-Todavia, o artigo 1143° do código civil dispõe que para o contrato de mútuo superior a 20,000,00 euros é necessária a celebração da escritura pública, o que não sucedeu.
18-Por outro lado, o simples facto de ter sido emitido à ordem do exequente os cheques em causa nos autos, não tem a virtualidade de se mostrar verificado a exigência de forma, relativa à necessidade de celebração do contrato em causa por documento escrito assinado pelo executado,
19-Ao decidir como decidiu a douta sentença violou o disposto no artigo 1143° do Código Civil, uma vez que deveria ter considerado nulo o contrato de mútuo.
20-Por outro lado não se pondo em causa o princípio da livre apreciação da prova, sempre se dirá que, os pontos já supra referenciados, dados como provados na douta sentença a quo foram incorrectamente julgados, porque quer os documentos juntos aos autos, quer o depoimento das testemunhas, quer a insuficiência do requerimento executivo teriam de levar à prova de que os cheques cerne dos presentes autos não constituem título executivo, e que não existiu qualquer relação jurídica subjacente aos mesmos entre o executado e o exequente.
21-E ainda que da prova produzida nos autos resulta amplamente provada que a dívida subjacente à quantia exequenda é da responsabilidade de um 3° e não do executado, e não erroneamente como a sentença recorrida, refere que os cheques em questão constituem títulos executivos.
22-O Oponente demonstrou ainda que os cheques não foram datados nem preenchida a ordem de pagamento, não tendo o Exequente/oponido, como lhe incumbia demonstrado a existência de uma relação subjacente aos cheques entre o executado e o exequente.
23-A matéria de facto apurada teria o Tribunal a quo necessariamente de concluir pela inexequibilidade dos cheques, e teria igualmente de concluir que nenhuma relação subjacente existia entre exequente e executado.
24-Ao decidir em contrário, à matéria de facto alegada e provada em audiência de julgamento, a sentença violou por erro na apreciação da prova o disposto no artigo 712º n.o 1 al. a) artigo 6550 n.o 1 do CPC

D.. contra-alegou, concluindo que:
1.ª – A execução a que o executado deduziu oposição não se funda em cheques como títulos cambiários mas antes valendo meros quirógrafos da relação subjacente que lhes deu origem.
2.ª – Por isso é que o exequente alegou no requerimento executivo os factos
constitutivos dessa relação subjacente que se traduziram num empréstimo gratuito que o exequente em má hora fez ao executado.
3.ª – Os cheques em causa são, assim, meros quirógrafos, assinados pelo devedor que neles apôs a quantia de que se constituiu devedor.
4.ª – Dados os montantes de tais cheques, inferiores a 25.000,00 € não ocorre qualquer nulidade por inobservância da forma legal, dado o que prescreve o art.º 1.143.º do Código Civil.
5.ª – Finalmente, a decisão sobre a matéria de facto não enferma de qualquer vício antes está devidamente fundamentada e de acordo com os documentos juntos aos autos e a prova testemunhal produzida em julgamento.
6.ª – De resto, o recorrente não especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados nem indica com exactidão as passagens da gravação em que funda o alegado erro na apreciação da prova, o que é causa de rejeição do recurso.
7.ª – A douta sentença recorrida não enferma, assim, de qualquer vício, quer quanto à decisão da matéria de facto quer à matéria de direito, pelo que deverá ser integralmente mantida.
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Para melhor compreensão, exaramos, abaixo, um breve resumo dos autos.
J.. intentou oposição à execução e à penhora contra D.. tendo invocado a excepção de caso julgado; que a relação jurídica subjacente aos cheques juntos aos autos não existiu, sendo que o exequente nunca emprestou ao executado o montante em causa; que, de qualquer forma, o contrato de mútuo invocado pelo exequente sempre teria que ser considerado nulo; que os cheques em causa foram datados e endossados à ordem do exequente por um terceiro que não o executado, pelo que os mesmos nunca poderiam ser considerados títulos executivos; e, por fim, que o crédito do executado penhorado nos autos principais deverá ser considerado impenhorável.
O exequente veio contestar a aludida oposição, pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a aludida excepção de caso julgado.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedentes tanto a oposição à execução como a oposição à penhora, deduzidas pelo executado J.. contra o exequente D.., devendo a execução prosseguir os seus normais termos.
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Das conclusões acima exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir:
1ª - Não poderia ter o Tribunal a quo considerado que os cheques constituem títulos executivos?
2ª - O Tribunal a quo deveria ter considerado que a relação subjacente a estes cheques existe, mas não entre as partes, que nunca tiveram qualquer relação negocial, mas sim entre o exequente e o clube de futebol "A.."?
3ª - Deveria ter sido considerado nulo o contrato de mútuo?
4ª - Os pontos dados como provados na douta sentença a quo foram incorrectamente julgados?
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Iniciemos a discussão pelo invocado erro de julgamento da matéria de facto (4ª e 2ª questões).
O Recrdº expressamente invocou a inadmissibilidade do recurso nesta matéria, em virtude de não se especificarem os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, nem se indicarem, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda o alegado erro na apreciação da prova.
O Recrte., notificado para se pronunciar sobre esta questão, alegou que o recurso versou essencialmente sobre matéria de direito e que, relativamente à matéria de facto impugnada não mencionou as passagens de gravação da audiência final, dado a mesma não ter sido gravada. Contudo, mencionou os pontos de facto incorrectamente julgados porque, quer os documentos juntos aos autos, quer o depoimento das testemunhas, quer a insuficiência do requerimento executivo, teriam de levar á prova de que os cheques não constituem título executivo e que não existe, entre as partes, relação jurídica subjacente aos mesmos.
Decidindo!
Conforme decorre do que se dispõe no Artº 640º/1 do CPC (o presente recurso foi interposto já na vigência do atual Código de Processo Civil, pelo que, por força do disposto no artigo 5.º/1 da Lei 41/2013 de 20/06, este diploma é-lhe aplicável), quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa...
Nenhum destes comandos se mostra cumprido.
Donde, e sem necessidade de outros considerandos, a questão em apreciação não merece reflexão, devendo o recurso, nesta parte, ser rejeitado.
Igual destino, e pelas mesmas razões, tem a questão enunciada em 2º lugar, também ela pressupondo impugnação da decisão sobre matéria de facto que não vemos ter sido implementada nos moldes legais.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Quando o executado entregou ao exequente os cheques infra aludidos, o primeiro não preencheu a parte de tais cheques relativa à data,
2. a qual foi preenchida por outra pessoa que não o exequente.
3. A conta bancária relativa aos cheques em questão encontra-se encerrada desde 20 de Dezembro de 2007.
4. No âmbito dos autos principais, foi penhorado “um crédito que o executado J.. detém sobre o exequente no valor de € 22.621,61 euros em consequência do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito de um recurso interposto na execução para pagamento de quantia certa – processo n.º 349/09.7TBAVV do Tribunal Judicial de Arcos de Valdevez – que correu termos contra o aqui executado e no âmbito da qual este último pagou ao aqui exequente a referida quantia, ficando este à ordem do exequente, até ao montante de 22.621,63 euros.”.
5. O aludido valor de € 22.621,63 havia sido depositado pelo executado à ordem da Sr.ª Solicitadora de Execução no âmbito do processo n.º 349/09.7TBAVV, para garantia da quantia exequenda do referido processo.
6. No processo que correu termos sob o n.º 349/09.7TBAVV, a oposição à execução e à penhora foi, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, transitado em julgado em Abril de 2012, julgada procedente, tendo-se determinado a extinção dessa execução.
7. Após o trânsito em julgado do acórdão aludido em 6., no âmbito de tal processo o executado requereu a devolução do montante aludido em 5.
8. Entre finais de 2008 e inícios de 2009, o exequente emprestou ao executado, a pedido deste, a quantia de € 20.000,00.
9. Para pagamento de tal quantia, o executado emitiu à ordem do exequente os cheques nºs 5117348037 e 6017348036, cada um deles com o montante de € 10.000,00, sacados sobre o Banco...
10. Tais cheques, apresentados a pagamento em 01/04/2009, foram devolvidos, por falta de provisão, em 03/04/2009.
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A QUESTÃO JURÍDICA:
Cumpre agora que nos detenhamos sobre a 1ª questão que enunciámos, a saber, que não poderia o Tribunal a quo ter considerado que os cheques constituem títulos executivos.
Esta é uma falsa questão.
Na verdade, como bem decorre da sentença o Tribunal afastou a exequibilidade dos cheques enquanto tais.
Ponderou-se na sentença que “os cheques em questão nunca poderiam valer, enquanto títulos de crédito, como títulos executivos, sendo certo que o direito de acção, relativamente a tais cheques enquanto títulos de crédito, se encontra prescrito.
Permanece, todavia, a questão, aliás, intensamente debatida, tanto na doutrina como na jurisprudência e que está longe de ser pacífica, de saber se, apesar de prescrita a obrigação cartular, mostrando-se prescrito o direito de acção, os cheques continuam a valer como título executivo enquanto documentos particulares nos quais se reconhece uma obrigação pecuniária.”
E isto tendo por base o que se dispunha no Artº 46º/c) do CPC, segundo o qual os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º, passaram a ter a natureza de título executivo.
E, depois de alinhar as correntes jurisprudenciais em causa, veio a concluir-se que “Acompanhando Lebre de Freitas, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 2001, CJ, tomo I, pág. 85, que “tendo o exequente embargado estruturado o seu requerimento executivo... fazendo apelo aos princípios da abstracção e da literalidade, sem que esse documento possa consubstanciar um reconhecimento de dívida por parte do embargante para com ele nos termos do artº 458º do C.C., não pode aceitar-se que o mesmo valha como título executivo ao abrigo do disposto na alínea c) do artº 46º do CPC.”.
Quanto a nós, aderimos a este último entendimento, o qual parece ser actualmente o seguido na maioria das decisões jurisprudenciais.
Com efeito, com a prescrição da obrigação cartular, a obrigação que passa a ser exigida é a obrigação causal. Assim sendo, não pode dispensar-se a sua invocação, caso ela não transpareça do cheque.”
Termos em que, não tendo o Tribunal considerado os cheques em execução títulos executivos por força da sua caracterização como títulos de crédito, soçobra a questão que nos ocupa.
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E podemos dedicar-nos à análise da questão enunciada em 3º lugar – a nulidade do contrato de mútuo e sua repercussão na execução.
Alega o Recrte. que, por um lado, o artigo 1143° do código civil dispõe que para o contrato de mútuo superior a 20,000,00 euros é necessária a celebração da escritura pública, o que não sucedeu. E, por outro, o simples facto de terem sido emitidos à ordem do exequente os cheques em causa nos autos, não tem a virtualidade de mostrar verificada a exigência de forma, relativa à necessidade de celebração do contrato em causa por documento escrito assinado pelo executado.
No que tange á primeira sub-questão – a relativa ao disposto no Artº 1143º do CC – dificilmente a mesma se compreende, já que os valores em causa se compreendem fora do campo de exigência de escritura pública. O que os factos revelam é a celebração de um empréstimo de 20.000,00€!
Diversa é a possibilidade de considerar verificada a exigência de forma ali consignada – documento assinado pelo mutuário – através da emissão dos cheques.
Consignou-se na sentença que “No caso sub-júdice, o exequente, no seu requerimento executivo, invoca a relação jurídica subjacente ao cheque, ou seja, invoca que entre ele e o executado foi celebrado um contrato de mútuo, tendo o exequente emprestado ao executado a quantia global de € 20.000,00, não tendo este entregue tal quantia ao exequente.
Está, assim, satisfeito aquele pressuposto constante da al. c) do artº 46º.
Assim sendo, os cheques dados à execução valem como títulos executivos, enquanto documentos particulares, mesmo considerando que as datas constantes dos mesmos não foram apostas pelo executado.”
E, tendo-se partido para a análise da concreta questão da nulidade do mútuo, veio a concluir-se pela respectiva improcedência.
Ponderou-se para o efeito que “A factualidade alegada pelo exequente no requerimento executivo configura um contrato de mútuo.
...
O artigo 1143º do CC (na sua actual redacção, entrada em vigor em 21/07/2008), estipula que “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.”. Este preceito legal, na sua anterior redacção, estipulava que “o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública, e o de valor superior a 2.000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.”.
...
Como foi decidido no acórdão do TRP de 18/1272000 (in www.dgsi.pt) «"emprestar " tem o significado de confiar uma coisa a outra com a condição de ser restituída, ceder temporariamente. Quem mutua propõe-se entregar certa coisa durante um determinado período de tempo, reobtendo depois aquilo que prestou.... Por sua vez, o mútuo é gratuito quando as partes convencionam o não pagamento de juros como retribuição.».
Assim, o empréstimo de certa quantia em dinheiro implica a transferência desse dinheiro do mutuante para o mutuário, tornando-se propriedade deste; e, por consequência, e, em princípio, só este pode dispor desse dinheiro, como emerge do conteúdo do direito de propriedade (artigo 1305º do CC).
Ora, in casu, resultou provado que, entre finais de 2008 e inícios de 2009, o exequente emprestou ao executado, a pedido deste, a quantia de € 20.000,00.
Para pagamento de tal quantia, o executado emitiu à ordem do exequente os cheques nºs 5117348037 e 6017348036, cada um deles com o montante de € 10.000,00, sacados sobre o Banco ...
Tais cheques, apresentados a pagamento em 01/04/2009, foram devolvidos, por falta de provisão, em 03/04/2009.
Pode, pois, concluir-se que o exequente e o opoente celebraram um contrato de mútuo, gratuito, na medida em que não foi convencionado o pagamento de juros.
Uma vez que o valor mutuado não ultrapassa os € 20.000,00 nem os € 25.000,00, poderá igualmente concluir-se no sentido de que a validade de tal contrato não estava dependente da sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado, sendo certo, porém, que tal contrato, para ser válido, deveria ter sido celebrado por documento escrito assinado pelo mutuário.
No caso sub-júdice, tendo o executado, para pagamento da quantia mutuada, emitido à ordem do exequente os cheques em causa nestes autos, deverá concluir-se no sentido de que a aludida exigência de forma, relativa à necessidade de celebração do contrato em causa por documento escrito assinado pelo executado (mutuário), se encontra observada.
Sendo que, in casu, os documentos escritos assinados pelo mutuário onde se encontra plasmado o aludido acordo são os próprios cheques, dos quais consta o valor global da quantia mutuada, que se encontram emitidos à ordem do exequente e que foram assinados pelo executado.
Na verdade, como foi decidido no acórdão do TRP de 06/10/2008 (in www.dgsi.pt), “entendemos que quando o valor do cheque se situa entre o montante de 2000€ e 20.000€ – intervalo a que o art. 1143º do CC impõe condições de validade – e se enuncie, para além disso, no requerimento executivo a causa da obrigação causal da emissão do cheque, causa esta que pode ser impugnada pelo executado, terá de o cheque, mesmo que prescrito, de valer como título executivo, nos termos da al. c) do art. 46º do CPC, entendendo-se este como mero documento particular assinado pelo devedor.”
A propósito da questão que nos ocupa estão delineadas no Supremo Tribunal de Justiça duas correntes opostas: uma, de que é exemplo o Ac. do STJ de 21/10/2010, segundo a qual nada obsta a que o cheque seja invocável no âmbito das relações imediatas como mero quirógrafo duma relação obrigacional causal, não sujeita a particular forma legal, justificadora da ordem de pagamento dada pelo executado a favor do exequente desde que este, no requerimento executivo tenha alegado os factos constitutivos desse débito causal – não mencionado no próprio cheque – nos termos consentidos pelo art. 810º-3-c) do CC (Procº 172/08, www.colectaneadejurisprudencia.com); outra, de que é expressão o Ac., também do STJ, de 20/11/2003, de acordo com o qual o cheque apresentado a pagamento após o prazo definido na lei não é título executivo, sendo irrelevante a alegação pela exequente na petição inicial da relação subjacente à emissão do título (Procº 3738/2003, ídem)
A polémica terá sido originada em consequência da redacção do Artº 46º/c do CPC, introduzida em 1995.
Antes desta data, a redacção da alínea c) previa que pudessem ser título executivo as letras, livranças, cheques, extractos de facturas, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis.
Com a reforma, a mesma alínea passou a dispor que os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art. 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto, podem servir de base á execução.
Neste particular, consigna-se que é aplicável, atenta a data de celebração do negócio jurídico, o Artº 46º/c do CPC na redacção de 2003 (DL 38/2003 de 8/03).
A partir de então (1995), delinearam-se diversas correntes de opinião sobre a idoneidade dos títulos de crédito para servir de título executivo, como mero documento particular, quando, como é o caso dos autos, à relação cartular faltam requisitos essenciais para valer como título de crédito.
Para uns, o cheque apesar de prescrito ou de lhe faltarem requisitos legais essenciais, constituiria um documento particular assinado pelo devedor que importava o reconhecimento de uma obrigação pecuniária – Ac. da Rel. de Lisboa, de 18-12-97, C. J. XXII, V, pág. 129. Para outros, o título de crédito prescrito a que faltassem os requisitos legais para valer como título de crédito, não poderia, por si só, ser tido como documento que importe o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação pecuniária – cfr. Ac. RC de 6-02-2001, CJ XXVI, I, pág. 28 e do STJ de 16-10-2001 (Ref. 5624/2001), CJSTJ-IX, III, pág. 89. Finalmente, foi adoptada uma solução intermédia em que o título de crédito prescrito ou a que faltassem os requisitos legais para valer como tal, poderia preencher a previsão da al. c) nº 1 do art. 46º, se a relação subjacente à emissão do título de crédito fosse de natureza não formal e essa causa fosse alegada no requerimento inicial de execução de modo a poder ser impugnada pelo executado – Ac. STJ de 18-01-2001, CLSTJ, IX, I, pág. 71.
Actualmente, e como demos conta acima subsistem as duas últimas correntes.
Assim, na melhor das hipóteses, a viabilidade de considerar o cheque como documento particular exequível (a que faltem requisitos para valer como título de crédito) está, em qualquer dos casos, dependente da circunstância de o negócio jurídico subjacente não carecer da observância de forma legal, o que, no caso que nos ocupa, não se perspectiva.
Na verdade, tendo sido celebrado um mútuo pelo valor de 20.000,00€, o Artº 1143º do CC é claro ao fazer depender a respectiva validade da observância de uma determinada forma – o documento assinado pelo mutuário.
Poderemos, então, considerar observada tal forma legal a partir da assinatura aposta nos cheques?
A fim de melhor enquadramos a questão, socorremo-nos da tentativa de sistematização levada a cabo no Ac. do STJ de 21/10/2010 (onde estava em causa a celebração de um contrato de compra e venda de pinheiros para pagamento dos quais foram emitidos diversos cheques).
Ponderou-se ali que “a matéria da exequibilidade dos títulos de crédito pode encarar-se segundo três perspectivas jurídicas bem diferenciadas. Assim:
A) Em primeiro lugar, podem os mesmos surgir na execução como verdadeiros e próprios títulos de crédito , sendo invocados pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – sendo, para tal, obviamente necessário que se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo....
B) Em segundo lugar – e não se verificando algum dos requisitos ou condições imperativamente previstos na respectiva LU para o exercício do direito e acção conferido ao titular ou portador legítimo do título – pode valer tal título de crédito como mero quirógrafo ou documento particular, assinado pelo devedor, que contenha ou implique o reconhecimento da obrigação causal subjacente – desde logo, como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no art. 458º do CC, ou seja, implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário.
Nesta peculiar situação, a presunção de existência da relação fundamental, decorrente do regime estabelecido no referido art. 458º, implica a dispensa de o credor exequente invocar os respectivos factos constitutivos, recaindo naturalmente sobre o executado o ónus de ilidir ou afastar tal presunção no âmbito da oposição à execução que deduza. Ou seja: valendo o título ou documento particular invocado pelo exequente como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, a execução está em condições de prosseguir mesmo que a relação subjacente não conste do documento que corporiza essa declaração unilateral, nem seja explicitamente afirmada, nos seus factos constitutivos, pelo exequente no requerimento executivo – implicando a presunção legal, afirmada pelo referido art. 458º, que compete ao executado pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente confessado ou reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor/exequente.
C) Em terceiro lugar, podem valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo , revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório: como é evidente, esta terceira perspectiva funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respectiva emissão, não beneficiando, consequentemente, da presunção afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o exequente o ónus de invocar e demonstrar os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da execução.
Neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título ; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva, sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que – embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda – indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda.
Saliente-se que esta terceira e ampla perspectiva acerca da delimitação do elenco dos títulos executivos extrajudiciais foi possibilitada – e decorre directamente – do objectivo, prosseguido pelo legislador na reforma de 1995/96, de ampliação das condições de exequibilidade dos documentos particulares, assinados pelo devedor e que indiciem, com um razoável grau de probabilidade, a existência da obrigação exequenda, com vista a evitar a duplicação das vias declaratória e executiva, embora com o inevitável custo de uma maior litigiosidade no enxerto declaratório que possibilita ao executado controverter a existência da obrigação que surge como causa de pedir da execução: embargos de executado e actual oposição à execução.
...
Note-se ainda que esta ampla perspectiva acerca da exequibilidade dos documentos particulares mereceu expressa consagração na reforma de 2003 da acção executiva: apesar da ampla desjudicialização da tramitação desta, a al. b) do nº3 do art. 810º veio consagrar expressamente a atrás citada possibilidade de o requerimento executivo conter uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido executivo , quando não constem do próprio título executivo (situação mantida na reforma de 2008 - artigo 810.º/1-e)) – acentuando, deste modo, a inevitável quebra do princípio da auto-suficiência do título executivo : os elementos essenciais da obrigação exequenda podem, deste modo, resultar, quer do próprio documento que serve de título executivo, quer de uma actividade complementar de alegação e prova pelo exequente – que extravasa manifestamente a simples possibilidade – sempre contemplada na lei de processo – de, na fase liminar da execução, se tornar a obrigação certa, líquida e exigível, quando o não fosse já em face do título.”
Aqui chegados, cumpre assinalar que “o cheque não importa um acto de reconhecimento, directo e expresso, de uma dívida do executado no confronto do exequente, mas antes uma ordem de pagamento, dirigida a um banqueiro, em benefício do potencial credor da mobilização de fundos decorrente da emissão e entrada em circulação do cheque”.
Nessa medida, como bem se explicou no Ac. que vimos transcrevendo, não há lugar a beneficiar da presunção contida no Artº 458º/1 do CC “apenas convocável quanto àquelas declarações confessórias que, pela sua natureza, importem um reconhecimento unilateral, expresso e directo, de uma dívida no confronto do exequente”. Mas já nada obsta a que, nas relações imediatas, o cheque se possa invocar como quirógrafo de uma relação obrigacional causal, não sujeita a particular forma legal “desde que..., no requerimento executivo, (se) tenha alegado os factos constitutivos desse débito causal – não mencionado no próprio cheque dado à execução – nos termos actualmente consentidos, de forma expressa, pelo art. 810º, nº3, al. c) do CPC”. E isto porque se pode entender que a emissão do cheque “constitui um facto que, com toda a probabilidade, revela a existência e admissão pelo devedor de uma obrigação causal subjacente à respectiva emissão, delineada, nos seus elementos constitutivos essenciais, pelo credor no requerimento executivo”.
Retornando ao caso sub-júdice, podemos, sem margem para dúvidas, concluir que a possibilidade do título de crédito (a que faltem os requisitos legais para valer como tal), valer como documento particular previsto no Artº 46º/c) está dependente de ser alegada a relação subjacente e de esta ser de natureza não formal.
No caso dos autos o negócio jurídico alegado como relação subjacente à emissão dos cheques traduzia-se num contrato de mútuo relativamente ao qual se exige a observância de uma determinada forma – o documento assinado pelo mutuário.
Trata-se, pois, por força do disposto no Artº 1143º do CC, de um contrato formal, e, assim, nulo por vício de forma (Artº 220º do CC).
Contudo, tendo a causa da subscrição dos cheques em execução sido alegada no requerimento executivo e, embora esta tenha natureza formal, a verdade é que, tendo-a, não se exige forma mais solene do que aquela que o título cambiário observa.
Nessa medida, e na senda da jurisprudência dos tribunais superiores, os cheques aqui em causa podem valer como título executivo nos termos do Artº 46º, nº 1 al. c).
Neste sentido o Ac. do STJ de 15/10/2013, proferido no âmbito do Procº 1138/11.4TBBCL-A.S1 (visível no sítio www.dgsi.pt).
Deste modo, a apelação tem que considerar-se improcedente.
***
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
Guimarães, 13/03/2014
Manuela Fialho
Edgar Valente
Paulo Barreto