Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1982/22.7T8GMR.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. No decurso de um processo especial de revitalização (PER), todos os credores da empresa devedora, ainda que não tenham ido aos autos em causa reclamar o seu crédito, estão sujeitos à regra de paralisação (standstill) das acções para cobrança de dívidas, imposta pelo art. 17º-E,1.
2. Esse efeito standstill visa conceder ao devedor um “escudo protector”, que lhe permita negociar com os credores com alguma “tranquilidade”, sem ser interrompido por acções de cobrança de dívidas que continuamente agridam o seu património e que inviabilizem a possibilidade da condução bem-sucedida das negociações com os credores.
3. Não pode uma entidade bancária, que seja um dos credores da empresa em revitalização, valendo-se do facto de ter acesso irrestrito à conta bancária da empresa junto de um dos seus balcões, debitar a mesma do valor que lhe é contratualmente devido, pois isso equivaleria a uma “acção executiva privada”, a qual está tão proibida pela lei como qualquer verdadeira acção executiva a intentar num Tribunal Estadual, e redundaria numa grosseira violação da regra da igualdade dos credores.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

E... - Confecções Lda propôs a presente acção declarativa contra Banco 1... SA., peticionando a condenação desta na restituição da quantia de € 13.469,89, acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Alega, para o efeito, que durante a pendência de PER a Ré debitou da conta bancária da Revitalizanda aquele valor e na sequência de desconto de letra de cambio de que era portadora, valendo-se do acesso à conta e passando à frente dos demais credores e do plano de pagamentos aprovado.
Indicou meios de prova.

Citada, a Ré contestou a acção, confessando o movimento bancário mas rejeitando qualquer ilicitude ou injustificação ao mesmo (o PER não tem efeito suspensivo das obrigações da Revitalizanda e esta satisfez outras obrigações a outros credores na pendência do PER).
Indicou meios de prova.

Replicou a Autora, em suma, reforçando a vantagem tida pela Ré face aos demais credores com o acto que praticou e alertando que outros pagamentos houve mas por serem essenciais para assegurar o seu funcionamento e viabilidade económica e financeira.
As partes prestaram esclarecimentos, por solicitados, e foi junto expediente relacionado com o PER.
Teve lugar a audiência prévia, com a finalidade de aproximar os interesses das partes e permitir-lhes alegarem sobre a questão controvertida.
Porque entendeu estar perante questão de natureza estritamente jurídica, o Tribunal informou as partes da sua pretensão em conhecer imediatamente do mérito, o que não mereceu oposição das partes.
Foi então proferida sentença que julgou procedente a acção e, consequentemente, condenou a a pagar/restituir à Autora a quantia de 13.469,89, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva prevista para as obrigações de natureza civil, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Inconformada com esta decisão, a ré dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (629º,1, 644º,1,a, 638º, 645º,1,a, e 647º,1 CPC.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da sentença que julgou procedente a presente acção e, em consequência, condenou a Ré Banco 1..., S.A. a pagar à Autora E... - Confecções Unipessoal, Lda. a quantia de € 13.469,89, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
2. O Tribunal a quo entendeu que a Ré se aproveitou do facto de ter acesso ao saldo da conta bancária da Autora para se pagar do crédito que tinha à revelia, quer do compromisso que estava a assumir nas negociações do PER, quer do compromisso que os demais credores estavam também a assumir.
3. Contudo, salvo o devido respeito e melhor entendimento, a referida decisão contraria, por um lado, o princípio da igualdade entre credores, bem assim como o princípio da liberdade contratual e, por outro, o regime instituído para o processo especial de revitalização.
4. O Tribunal a quo socorreu-se do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 13 de Abril de 2021, onde foi entendido que, se o processo especial de revitalização determina a suspensão da execução e, consequentemente, a penhora de saldos bancários, face à regra da igualdade, o Banco onde o devedor tem conta não poderá fazer seus os respectivos saldos bancários.
5. O referido Acórdão refere, por um lado, que ao procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral lançamento a débito na conta do cliente duma responsabilidade contratual do mesmo, aplica-se o efeito do “standstill”, sob pena de criação de uma situação de desigualdade entre credores. E, por outro, que a generalidade dos actos extrajudiciais, como o caso do devedor manifestar, casuisticamente, a vontade de pagar uma sua obrigação, estão excluídos do efeito Standstill, até porque o devedor/revitalizando continua a sua actividade e a gerir os seus bens.
6. Acontece que, se o devedor opta por, casuisticamente, pagar uma sua obrigação a um dos seus credores, durante a pendência do processo especial de revitalização, estamos claramente perante uma situação de manifesta desigualdade de tratamento entre credores, nomeadamente quanto ao pagamento dos respectivos créditos.
7. O entendimento sufragado pelo referido Acórdão entra em manifesta contradição quando se baseia no princípio da igualdade para incluir no efeito standstill uma compensação bancária, mas, por outro lado, ignora o referido princípio ao admitir a possibilidade de pagamento pelo devedor a um dos credores durante a pendência do processo especial de revitalização.
8. Sendo que o pagamento efectuado pelo devedor a um dos credores é um acto voluntário, ao contrário da referida compensação, uma vez que, o débito na conta do devedor decorre de um contrato livremente celebrado com o devedor e não de um acto unilateral.
9. Durante a pendência do processo especial de revitalização, a Autora, por um lado, procurou negociar com a Ré o pagamento de outras letras a si endossadas e, por outro, efectuou pagamentos a alguns fornecedores.
10. O princípio de igualdade de tratamento entre os vários credores não foi assegurado, considerando que a Autora / revitalizanda efectuou pagamentos a credores / fornecedores, em detrimento dos créditos titulados pela Ré Banco 1..., S.A.
11. Por outro lado, durante a pendência do processo especial de revitalização, a Autora manteve a prossecução da sua actividade, bem assim como a administração dos respectivos bens.
12. O despacho de nomeação do administrador judicial provisório não produz os mesmos efeitos que a sentença de declaração de insolvência, ou seja, não determina o vencimento imediato das obrigações do devedor nos termos do disposto no artigo 91.º do CIRE.
13. No processo especial de revitalização, antes pelo contrário, as obrigações do devedor mantêm-se exactamente nos mesmos termos anteriormente existentes, sendo que, nos termos do n.º 10 do artigo 17.º-F do CIRE, somente o despacho de homologação do plano é que vincula os credores, o qual, no caso em apreço, foi proferido a 17 de Dezembro de 2021.
14. As obrigações da devedora / revitalizanda apenas se modificaram precisamente aquando da homologação do plano de recuperação, sendo que, até então, as obrigações da devedora se mantiveram nos termos anteriormente existentes.
15. Não ocorreu um vencimento antecipado das obrigações (artigo 91.º do CIRE), tal como os contratos bilaterais não ficaram suspensos até que o administrador de insolvência opte pela execução ou pela recusa do cumprimento (artigo 102.º do CIRE).
16. A devedora não ficou despojada dos seus poderes de administração e de disposição do seu património para a generalidade dos actos (artigo 81.º do CIRE), daí que manteve a sua actividade e, inclusivamente, efectuou pagamentos a credores precisamente de forma a manter essa actividade.
17. O n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE dispõe que a decisão de nomeação de administrador judicial provisório obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as acções em curso com idêntica finalidade.
18. Discute-se se a Ré Banco 1..., S.A. podia efectuar o débito na conta bancária titulada pela Autora para pagamento da letra de câmbio vencida no valor de € 13.414,50 durante a pendência do respectivo processo especial de revitalização.
19. O despacho de nomeação de administrador judicial provisório não produz qualquer efeito sobre os contratos vigentes, os quais se mantêm nos termos anteriormente acordados, podendo inclusivamente o devedor continuar com o respectivo cumprimento até, pelo menos, ao despacho de homologação do plano de recuperação.
20. As obrigações do devedor só se modificam com o despacho de homologação do plano de recuperação.
21. O débito na conta bancária da Autora para pagamento da letra de € 13.414,50 não configura um acto equivalente a uma acção de cobrança de dívida, nem tão pouco a uma penhora de saldos bancários, uma vez que esse débito não configura um acto unilateral da Ré Banco 1..., S.A.
22. A Ré Banco 1..., S.A. efectuou o referido débito da conta bancária titulada pela Autora, uma vez que estava contratualmente autorizada a fazê-lo, contrato esse que, como se viu, não se modificou com a prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório.
23. O acto de débito na conta bancária da Autora não configura um acto unilateral da Ré Banco 1..., S.A., nem esta se aproveitou do facto de ter acesso àquela conta em detrimento dos demais credores.
24. Antes da prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório, já a Ré Banco 1..., S.A. podia proceder ao débito na conta bancária titulada pela Autora, conforme estava contratualmente autorizada a fazer, acto esse que não estava na disponibilidade dos demais credores, nem então, nem depois da prolação do referido despacho.
25. Os demais credores da Autora, nomeadamente, fornecedores nunca tiveram autorização para movimentar a conta bancária por si titulada, pelo que não ficaram numa situação de desvantagem após a prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório.
26. A Ré Banco 1..., S.A. não se colocou numa situação de vantagem relativamente aos demais credores, antes pelo contrário, manteve-se precisamente na mesma situação em que estava antes da prolação do despacho de nomeação de administrador judicial provisório.
27. E esse débito na conta bancária titulada pela Autora não lhe causou quaisquer constrangimentos, uma vez que se provou nos presentes autos que a Autora efectuou vários pagamentos a fornecedores durante a pendência do processo especial de revitalização.
28. Não permitir que a Ré Banco 1..., S.A. pudesse proceder ao débito na conta bancária titulada pela Autora, para pagamento da letra em causa, configuraria, por um lado, uma violação das disposições contratuais celebradas com a própria Autora (as quais não se modificaram com o referido processo) e, por outro lado, uma verdadeira desvantagem da credora Banco 1... perante os demais credores.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a sentença que julgou procedente a acção e condenou a Ré a proceder ao pagamento à Autora da quantia de € 13.469,89, acrescida de juros de mora desde a data de citação., com todas as consequências, conforme é de JUSTIÇA

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida, e sumariando assim a sua posição:

I. Na pendência do Processo Especial de Revitalização, não podem instaurar-se quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a sociedade devedora. Também e por maioria de razão, não podem ser retiradas, unilateralmente, quaisquer quantias da sua conta bancária que resulte um tratamento privilegiado de um credor – sendo-lhe aplicável a ratio legis do efeito standstill consagrado no art.º17-E, n.º1 do CIRE.
II. O banco credor, não podendo executar a letra, também não poderá aproveitar a circunstância da conta de depósitos à ordem da sociedade ter sido provisionada, para debitar tal conta, e afectá-la ao pagamento de uma letra em débito cujo valor reclamou no PER e por eventuais incumprimentos anteriores ao seu início.
III. “Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exactamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.” (Sumário do Acórdão do STJ, de 13/04/2021, processo n.º 6521/16.6T8LRS.L1.S).

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se a pendência do PER, associada ao regime jurídico deste decorrente permitia que a credora Banco 1... tivesse, fora desse processo de revitalização, debitado a conta da empresa devedora no montante do seu crédito.
O problema só surge porque a pendência do PER veio sobrepor à relação contratual privada supra-referida uma superestrutura jurídica constituída por feixes de relações, obrigações, proibições e imposições, que interfere (ou pode tendencialmente interferir) directamente naquela.
Assim sendo, a resposta à questão que a recorrente colocou a este Tribunal terá de emergir directamente do Regime Jurídico do Processo Especial de Revitalização, pois deste decorrem limitações, intrusões e distorções ao que seria o normal decorrer do feixe de relações contratuais privadas.

III
Com relevo para a decisão da causa, em face dos documentos oferecidos – seja os que constam do PER, como as letras, contrato negociado entre as partes e extractos de conta - e que merecem reparo e da confissão pela Ré dos essenciais factos, o Tribunal recorrido considerou provada a seguinte factualidade:

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à indústria de confecção de vestuário em série.
2. A Ré é uma instituição financeira que se dedica à actividade bancária, praticando operações activas e passivas de crédito.
3. No exercício da sua actividade comercial, a Autora acordou com a Ré a abertura de uma conta bancária na sua agência de ... pela qual ambas as partes aceitaram que aquela aí depositaria ou receberia fundos financeiros e daria ordens para pagamento de suas responsabilidades financeiras – conta bancária nº ...30.
4. Neste contexto, a Autora estabeleceu com a Ré outras relações bancárias, tais como operações de desconto de títulos de crédito, em concreto, letras de câmbio, nos termos das quais, sendo sacadora de letras de câmbio sobre clientes seus e aceites destes, a Autora entregava e endossava tais títulos à Ré, dela recebendo os fundos neles cartulados de forma antecipada, em relação à sua data de vencimento, atingida a data de vencimento, o título seria pago pelo aceitante à Ré e, não o sendo, seria debitado à A. na referida conta bancária.
5. De acordo com 4, a Autora preencheu, assinou e apresentou à Ré os seguintes documentos escritos:
a) “Proposta para desconto de letras” datada de 24/03/2021, tendo por base uma letra de câmbio n.º ...96, emitida em 22/03/2021, com vencimento a 10/05/2021, na importância de €13.414,50, sacada pela A. e aceite pela sociedade “R..., LDA.”;
b) “Proposta para desconto de letra” datada de 24/03/2021, tendo por base uma letra de câmbio n.º ...96, emitida em 22/03/2021 com vencimento a 10/05/2021, na importância de €18.230,06, sacada pela A. e aceite pela sociedade “W... Unipessoal, Lda.”;
c) “Proposta para desconto de letra” datada de 04/05/2021, tendo por base uma letra de câmbio n. º ...96, emitida em 04/05/2021, com vencimento a 14/06/2021, na importância de €5.273,32, sacada pela A. e aceite pela sociedade “P... Unipessoal, Lda.”.
6. As referidas “propostas de desconto” foram aceites e aprovadas pela Ré.
7. Dessa forma, as letras de câmbio em apreço entraram na esfera jurídica da Ré (por via de endosso).
8. A Ré adiantou à Autora as quantias tituladas nas letras (desconto), creditando assim a quantia global de €36.935,88 na conta n.º ...30 da Autora.
9. No dia 26/04/2021, a Autora instaurou um Processo Especial de Revitalização (PER), com vista a estabelecer negociações com os seus credores, de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
10. Esse processo correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... – Juiz ..., sob o nº 2221/21.....
11. No dia 03/05/2021 foi proferido despacho de admissão do referido PER e nomeação de AJP.
12. No dia 04/05/2021, foi publicado no portal citius o despacho id. em 11.
13. Nesse processo, a Ré peticionou a existência e verificação do seu crédito, no montante global de €36.985,16, acrescido dos juros vincendos, despesas, comissões e demais encargos até efectivo e integral pagamento da dívida, alegando, para o efeito, ser portadora das três letras de câmbio supra id., por via de endosso pela sacadora “E... - Confecções UNIPESSOAL, LDA.”, aqui A., por as ter descontado e não terem sido pagas nas datas dos respectivos vencimentos.
14. O Sr AJP reconheceu o crédito da aqui Ré.
15. No dia 01/10/2021, a Ré informou os autos daquele PER que a letra de câmbio por si reclamada do valor de €13.414,50, aceite pela sociedade “R..., Lda.” foi, no entretanto, paga.
16. Ou seja, atingida a data de vencimento de tal letra em 10/05/2021 e sendo dela portadora (por via de endosso fundado na relação bancária de desconto), a 18.05.2021 a Ré debitou/liquidou na conta da Autor o montante de €13.469,89.
17. E integrou esse valor no seu património.
18. No dia 11/10/2021, a credora G... SA apresentou requerimento no PER com o seguinte teor: “(…) devem, a devedora e a Banco 1..., explicar quem fez o pagamento da letra de câmbio a que se refere a Banco 1..., pois que, se foi paga pela revitalizanda, estaremos em face de um pagamento que trata com privilégio injustificado a Banco 1...”.
19. No dia 05/11/2021, a aqui Autora disse, além do mais, no PER o seguinte: «- Assim, a Banco 1... era titular de créditos derivados de desconto de títulos de crédito nos quais figurava como sacadores fornecedores da devedora e esta figurava como aceitante.
“4º- Existe, contudo, uma letra de cambio sacada pela devedora e aceite de terceiro (situação contrária à supra descrita) e que foi descontada na Banco 1... pela devedora – doc. nº ....
5º- Ora, essa letra foi paga no dia 18/05/2021 conforme se verifica do extracto da conta bancária que se junta – doctº nº 2.
6º- Mas esse pagamento só ocorreu porque a Banco 1... de modo próprio, ou seja, por acto unilateral não comunicado à devedora, sacou-lhe o respectivo montante da conta.
7º- Assim, a devedora não praticou qualquer acto de pagamento.
8º- Foi o próprio credor (Banco 1...) quem se fez pagar do crédito sacando o respectivo montante da conta bancária daquela.»
20. Por seu turno, no uso do contraditório, veio a R. pronunciar-se no PER da seguinte forma: “Quanto à redução do seu crédito, esclarece-se que a letra de câmbio em causa estava no giro comercial, tendo percorrido “o seu normal percurso”, pelo que, na sequência do seu vencimento (em Maio passado) foi a mesma paga por débito na conta da Devedora/sacadora. Salienta-se, ainda, neste campo, porque parece estar a haver a alguma confusão a esse respeito, que um processo especial de revitalização, como o presente, não tem os efeitos de uma declaração de insolvência, Desde logo não o tem quanto às dívidas da revitalizanda, que não se vencem imediatamente (como sucederia em caso de insolvência), razão pela qual não só a devedora pode manter o pagamento das suas obrigações, como até o deve fazer. É certo que, as mais das vezes, as sociedades que se apresentam a PER pretendem com isso suspender todos os pagamentos, mas tal não decorre da lei, nada obrigando, ou sequer aconselhando, a que assim seja.”
21. Após tais esclarecimentos, a 13/11/2021 o credor G... SAS.A. dirigiu ao PER o seguinte requerimento: “Aquela quantia tem que ser devolvida, sob pena de pactuarmos com um credor que se cobra coercivamente do devedor durante um processo de revitalização, e, perdoem-nos a ligeireza, tudo “nas barbas” do tribunal e dos outros credores, credores que, como é evidente, “ficam a ver navios”. É que, entre o mais e se na pendência do processo de revitalização, não podem, nos termos do n.º 1, do artigo 17.º-E, do CIRE, instaurar-se quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a empresa, também e por maioria de razão, não podem ser retiradas, unilateralmente (como por acordo), quaisquer quantias de que resulte um tratamento privilegiado de um credor. Para lá disso e se o plano aprovado prevê, por exemplo, um perdão de 20% do capital, qualquer credor que obtenha o pagamento da totalidade porque, como no caso de que tratamos, tem acesso à conta do devedor, está, salvo melhor opinião e ilegalmente, a contornar o plano.”
22. No dia 06/12/2021, foi então proferido despacho no PER com o seguinte teor: “Afigura-se-nos não competir ao Tribunal nesta sede e fase determinar a restituição de qualquer valor sacado sobre a conta da Devedora. Todavia, sempre se dirá que se a razão de ser do PER reside na recuperação do devedor, e a nomeação de Administrador Judicial Provisório tem por efeito não só obstar à instauração de novas acções para cobrança de dívidas, como suspender as já em curso, parece-nos de linear clareza que a Banco 1..., não podendo executar a letra em causa, também não poderá aproveitar a circunstância da conta de depósitos à ordem da sociedade ter sido provisionada, para debitar tal conta e afectá-la ao pagamento de uma letra em débito e cujo valor reclamou no PER e por referência a eventuais incumprimentos anteriores ao início do próprio PER.”
23. Este despacho transitou em julgado.
24. Em 17/12/2021 foi proferida decisão homologatória do Plano de Revitalização aprovado, que transitou em julgado.
25. E que, quanto à Ré, enquanto credora, prevê o seguinte: “a) Perdão total de juros vencidos e vincendos; b) Pagamento de 80% do capital; c) Carência de capital durante os primeiros 12 meses a contar da data de trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de Recuperação; d) Pagamento de 80% do capital em 8 anos, sendo o primeiro ano de carência total e o pagamento efectivo de 84 prestações mensais a primeira das quais a vencer no fim do 13º mês após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação; e) A amortização de capital decorrido que seja o período de carência de um ano será efectuada em prestações crescentes nos seguintes termos: 5% no segundo ano, 5% no terceiro ano, 10% no quarto ano, 10% no quinto ano, 10% no sexto ano, 15% no sétimo ano e 25% no oitavo ano; f) Durante o primeiro ano (período de carência) não serão efectuados quaisquer pagamentos.
Relativamente aos credores comuns fica consignado que a prestação de capital a pagar mensalmente, nos termos acima propostos, terá um valor mínimo de 50€, com acerto na última prestação, antecipando-se assim o pagamento de alguns credores, detentores de créditos de valor mais reduzido, de forma a permitir à empresa regressar à sua actividade normal o mais rapidamente possível.”
26. As supra id. letras de câmbio resultaram de pedidos de reforma de anteriores letras, a saber:
a) Letra de € 14.905,00 foi objecto do pedido de reforma de 24/03/2021, tendo originado a letra no valor de € 13.414,50;
b) Letra de € 20.255,62 foi objecto do pedido de reforma de 24/03/2021, tendo originado a letra no valor de € 18.230,06;
c) Letra de € 7.073,32 foi objecto do pedido de reforma de 04/05/2021, tendo originado a letra no valor de € 5.273,32;
27. As reformas id. em 26 foram acordadas entre a Ré e os aceitantes das letras.
28. A Autora apresentou junto da Ré pedido de reforma das supra id. letras, datado de 12/05/2021, entregue a 17/05/2021 e recebido pela Ré em 18/05/2021:
a) acompanhado da letra no valor de € 10.513,50, com data de vencimento de 15/06/2021 (para a letra de €13.414,50); e
b) acompanhado da letra no valor de € 15.250,00, com data de vencimento de 15/06/2021 (para a letra de €18.230,06).
29. As id. letras não foram reformadas, por já estarem vencidas.
30. As letras no valor de € 18.230,06 e de € 5.273,32 não foram debitadas / liquidadas automaticamente na conta da Autora “E... - Confecções, Lda” pela Ré, por inexistência de saldo disponível na id. conta.
31. A Autora dirigiu à Ré o seguinte email datado de 21 de Julho de 2021: «Bom dia Dr. AA, Conforme é do seu conhecimento, a E... - Confecções encontra-se em PER, contudo, gostaríamos de agilizar consigo uma forma de tentar resolver a questão da letra no valor de 18.230,06€ que se encontra pendente. Neste sentido, e uma vez que estamos com grandes esforços financeiros, gostaríamos de propor uma possível regularização espaçada no tempo de modo a podermos dar cumprimento à mesma. Agradecemos desde já uma resposta ao assunto, Obrigada e bom trabalho, Melhores cumprimento, BB».
32. Em resposta, a Ré Banco 1..., S.A. informou o seguinte: «Boa tarde. Conforme já transmitido telefonicamente da parte da Banco 1... há todo o interesse na regularização desta dívida por acordo, havendo a possibilidade, do mesmo ser celebrado directamente com a aceitante, conforme já preconizado com a letra aceite pela “P...”, cuja proposta se encontra em análise».
33. A Autora E... - Confecções não manifestou junto da Ré discordância com a liquidação da letra de €13.414,50.
34. No decurso do processo especial de revitalização da Autora, foram sendo pagos vários cheques a fornecedores da Autora E... - Confecções.
35. A Ré era contactada pela Autora através da Senhora BB, a qual lhe dava conhecimento da disponibilização de saldo na respectiva conta para o pagamento dos cheques que foram sendo apresentados ao longo daquele período.

IV
Conhecendo do recurso.

A acção foi julgada procedente pelo Tribunal recorrido com fundamento, em resumo, nas seguintes considerações:

a) no decurso de PER a que estava a ser sujeita a Autora, a Ré pagou-se de um crédito que detinha sobre a Autora e surgido antes e vencido na pendência do PER, automaticamente, através do débito do valor de € 13.414,50 e das despesas dessa operação, num total de € 13.469,89 (desconto de letra bancária de que era possuidora e que lhe fora endossada pela Autora, sacadora); a Ré não apresentou a pagamento a letra de câmbio ao seu aceitante;
b) no processo especial de revitalização, a devedora mantém a administração dos bens e dos direitos que é titular, tal como mantém a obrigação do cumprimento das obrigações a que está adstrita;
c) a Banco 1..., não podendo executar a letra em causa [acção executiva, por exemplo], também não poderá aproveitar a circunstância da conta de depósitos à ordem da sociedade ter sido provisionada, para debitar tal conta e afectá-la ao pagamento de uma letra em débito e cujo valor reclamou no PER e por referência a eventuais incumprimentos anteriores ao início do próprio PER;
d) não foi a Autora quem fez o pagamento do crédito à Ré; foi a Ré quem se aproveitou do facto de ter acesso ao saldo da conta bancária – por contratos anteriores ao PER realizados com a Autora, que lhe concedia tal autorização – para se pagar do crédito que tinha, à revelia do compromisso que estava a assumir nas negociações do Plano de Revitalização e à revelia do compromisso que os demais credores também estavam a assumir… .

A ré Banco 1..., SA não concordou com a decisão da primeira instância e veio trazer o assunto a esta Relação, pretendendo a reversão da decisão.
Argumenta em síntese que a referida decisão contraria, por um lado, o princípio da igualdade entre credores, bem assim como o princípio da liberdade contratual e, por outro, o regime instituído para o processo especial de revitalização.
Acrescenta ainda que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2021, no qual o Tribunal recorrido se baseou, entra em manifesta contradição quando se baseia no princípio da igualdade para incluir no efeito standstill uma compensação bancária, mas, por outro lado, ignora o referido princípio ao admitir a possibilidade de pagamento pelo devedor a um dos credores durante a pendência do processo especial de revitalização.
E acrescenta ainda que o princípio de igualdade de tratamento entre os vários credores não foi assegurado, considerando que a Autora (revitalizanda) efectuou pagamentos a credores (fornecedores), em detrimento dos créditos titulados pela Ré Banco 1..., S.A.

Vejamos se lhe assiste razão.
Começando pelo que é evidente, diremos que o acto que foi judicialmente impugnado pela autora (empresa em recuperação) emerge directamente dos contratos bancários celebrados entre si e a Banco 1..., em termos que não levantam a mais pequena dúvida, como aliás emerge dos factos tidos como provados.
Assim é que a Autora acordou com a Ré a abertura de uma conta bancária na sua agência de ... pela qual ambas as partes aceitaram que aquela aí depositaria ou receberia fundos financeiros e daria ordens para pagamento de suas responsabilidades financeiras, tendo a Autora estabelecido com a Ré outras relações bancárias, tais como operações de desconto de títulos de crédito, em concreto, letras de câmbio, nos termos das quais, sendo sacadora de letras de câmbio sobre clientes seus e aceites destes, a Autora entregava e endossava tais títulos à Ré, dela recebendo os fundos neles cartulados de forma antecipada, em relação à sua data de vencimento, atingida a data de vencimento, o título seria pago pelo aceitante à Ré e, não o sendo, seria debitado à A. na referida conta bancária.
E foi ao abrigo desta relação contratual pacífica que a autora preencheu, assinou e apresentou à Ré uma proposta para desconto de uma letra datada de 24/03/2021, tendo por base uma letra de câmbio emitida em 22/03/2021, com vencimento a 10/05/2021, na importância de €13.414,50, sacada pela A. e aceite pela sociedade “R..., LDA”.
A referida proposta de desconto foi aceite e aprovada pela Ré, e dessa forma a letra de câmbio em apreço entrou na esfera jurídica da Ré (por via de endosso), tendo esta adiantado à Autora a quantia titulada na letra (desconto), creditando assim esse valor na conta da Autora.
Sabemos também que no dia 26/04/2021 a Autora instaurou um Processo Especial de Revitalização (PER), com vista a estabelecer negociações com os seus credores, de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização, e no dia 03/05/2021 foi proferido despacho de admissão do referido PER e nomeação de AJP.
Aquando da instauração do PER, a ré peticionou neste a existência e verificação deste seu crédito, alegando, para o efeito, ser portadora da letra de câmbio em causa, entre outras, por via de endosso pela sacadora “E... - Confecções”, por a ter descontado e não ter sido paga na data do vencimento.
Porém, no dia 01/10/2021, a Ré informou os autos daquele PER que a letra de câmbio por si reclamada do valor de €13.414,50, aceite pela sociedade “R..., Lda.” foi, no entretanto, paga. O que sucedeu na realidade foi que atingida a data de vencimento de tal letra em 10/05/2021 e sendo dela portadora (por via de endosso fundado na relação bancária de desconto), a 18.05.2021 a Ré debitou/liquidou na conta da Autor o montante de €13.469,89, e integrou esse valor no seu património.
Ora, temos como pacífico que do ponto de vista da relação contratual estabelecida entre autora e ré, tudo isto é linear, legítimo e inatacável.
O problema só surge porque a pendência do PER veio sobrepor à relação contratual privada supra-referida uma superestrutura jurídica constituída por feixes de relações, obrigações, proibições e imposições, que interfere (ou pode tendencialmente interferir) directamente naquela.
Assim sendo, a resposta à questão que a recorrente colocou a este Tribunal terá de emergir directamente do Regime Jurídico do Processo Especial de Revitalização, pois deste decorrem limitações, intrusões e distorções ao que seria o normal decorrer do feixe de relações contratuais privadas.

Vejamos então.

Na base da criação deste processo especial de revitalização, a que o legislador conferiu natureza urgente, esteve a intenção de criar apoios e incentivos à reestruturação e revitalização do tecido empresarial (Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012 (publicada in DRE 1ª Série de 03/02/2012), que invoca ainda o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal.
Nos termos do art. 17º-A,1 do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas), o processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
Como se escreve no Acórdão do STJ de 27.4.2017, proferido no P. 1839/15.8T8STR.E1.S1, “o PER é um processo de natureza eminentemente urgente, de prazos procedimentais curtos, durante os quais os credores concedem ao devedor um período global de tréguas”.
Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2018, página 33ª e seguintes) aponta como características processuais do PER a voluntariedade, a informalidade, a consensualidade, a estabilidade, a transparência, o contraditório e a celeridade e qualifica-o como um processo pré-insolvencial, um processo de recuperação, um processo hibrido e um processo especial, cuja maior vantagem “é a possibilidade da empresa obter um plano de recuperação sem ser declarada insolvente e que o maior risco é o de, depois de tudo, a empresa não conseguir evitar a declaração de insolvência”, e que visa “realizar dois objectivos: o objectivo (imediato) de renegociação do passivo e o objectivo (mediato) da recuperação de empresas”.
A empresa apresenta no tribunal competente para declarar a sua insolvência requerimento comunicando a manifestação de vontade de se submeter a um processo especial de revitalização (art. 17º-C,3).
Recebido esse requerimento, o juiz nomeia, de imediato, por despacho irrecorrível (nº 8), administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto no n.º 1 do artigo 32.º e nos artigos 33.º e 34.º, com as devidas adaptações (art. 17º-C,5).
Nos termos do art. 17º-E,1, a decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação. Estamos perante aquilo que a jurisprudência e a doutrina costumam chamar o efeito “standstill”, ou, em português, o efeito de paralisação.
E dessa mesma decisão decorre que a empresa fica impedida de praticar actos de especial relevo, tal como definidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório (nº 2). E ainda, determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações e até à prolação dos despachos de homologação, de não homologação, caso não seja aprovado plano de recuperação até ao apuramento do resultado da votação ou até ao encerramento das negociações nos termos previstos nos n.os 1 e 5 do artigo 17.º-G.
Tenha-se ainda em mente que a decisão de homologação do plano vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17º C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal (artigo 17º F, n.º 10).
Podemos parar por aqui: já ficou elencada a mais importante interferência do regime do PER no normal desenvolvimento da contratação privada: instaurado o processo de revitalização, e mal o Juiz profira o despacho a nomear o administrador judicial provisório, fica impedida, ope legis, a instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a empresa, e ainda ficam suspensas, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, as acções em curso com idêntica finalidade.
E foi assim que a decisão recorrida chegou ao resultado que nós vimos supra: basando-se neste segmento legal, efectuou o seguinte raciocínio: estamos a falar de um crédito que a própria Banco 1... veio reclamar ao PER; a empresa em recuperação não procedeu ao pagamento voluntário desse crédito, antes pelo contrário, veio contestar a conduta da Banco 1..., considerando-a abusiva. Ora, se a Banco 1... não pode executar a letra em causa, intentando uma acção executiva, por exemplo, também não pode aproveitar-se da circunstância de ter acesso irrestrito à conta de depósitos à ordem da sociedade, debitando tal conta, e afectar o valor retirado ao pagamento de uma letra em débito e cujo valor reclamou no PER, e por referência a eventuais incumprimentos anteriores ao início do próprio PER.
E colocada a questão nestes termos, só podemos concordar com a interpretação do Tribunal recorrido.
Com efeito, a decisão recorrida acolheu-se a, e seguiu, a jurisprudência definida pelo Acórdão do STJ de 13/04/2021 (Relator: António Barateiro Martins).

Este Acórdão, perante um caso concreto em tudo análogo ao destes nossos autos, analisou a questão jurídica subjacente e elencou os seguintes argumentos:

a) a disciplina jurídica do Processo Especial de Revitalização (PER) é um “poço sem fundo” de dúvidas, de situações incompletamente previstas ou mesmo omissas, exigindo não raras vezes, para a devida interpretação/aplicação das suas normas, um prévio enquadramento dogmático, com o apelo aos valores e princípios que presidem à consagração legal da recuperação de empresas e, por via disso, a argumentos teleológicas e sistemáticas, tudo para surpreender o verdadeiro sentido e alcance da norma em causa do PER e/ou até para integrar a lacuna evidente.
b) A Lei 16/2012, de 20 de Abril – no seguimento compromisso assumido (no quadro de programa de auxílio a Portugal, em 2012) de alterar o regime de insolvência constante do CIRE – assinalou uma mudança de paradigma no nosso Direito de Insolvência, ao consagrar o primado da recuperação em detrimento do primado da liquidação, tendo em vista a recuperação do tecido empresarial português.
c) O supra referido efeito standstill é uma consequência/efeito imposto pela própria lógica do PER, na medida em que concede ao devedor um “escudo protector”, um “período de graça”, que irá permitir ao devedor negociar com os credores com alguma “tranquilidade”, sem ser interrompido por acções de cobrança de dívidas que continuamente agridam o seu património e que inviabilizem a possibilidade da condução bem-sucedida das negociações com os credores.
d) É discutido o alcance total desse efeito standstill, sendo certo que pelo menos o abranger as acções executivas é um dado incontroverso.
e) E discute-se abundantemente quais os procedimentos/acções judiciais que cabem na expressão em causa [também se discute se se incluem os procedimentos cautelares e quais], sendo – é onde se quer chegar – que a ratio, a natureza e a finalidade do PER impõem que, além dos procedimentos/acções judiciais, também certos procedimentos extrajudiciais devam ser incluídos no efeito/período de standstill constante do art. 17.º-E/1 do CIRE [como o faz a já referida Ley Concursal Espanhola, também nos art. 588.º, 589.º e 590.º, ao falar na proibição e na suspensão das execuções judiciais e extrajudiciais]. É, claramente, o caso da compensação bancária sub judice.
f) É certo que o devedor em PER mantém a administração dos bens e direitos de que é titular (com a ressalva constante do art. 17.º-E/2 do CIRE)
g) Se no efeito standstill está incluída a proibição de instauração ou a suspensão das execuções para cobrança de dívidas e as acções declarativas para cobrança de dívidas, todos os credores que tenham execuções a correr termos contra o devedor em PER terão, enquanto este pende, as suas execuções suspensas, o que significa, no que aqui interessa (em termos argumentativos), que penhoras de depósitos bancários, ainda que iminentes, não se poderão realizar durante a pendência do PER.
h) E se os depósitos bancários não podem ser penhorados – não podendo a generalidade dos credores, ainda que detentores de títulos executivos, obter a garantia/preferência concedida pela efectivação da penhora – também não poderá, por respeito à mais elementar regra de igualdade, o banco onde o devedor tem conta fazer seus quaisquer saldos bancários do devedor, ao abrigo de compensação convencional que haja sido livre e contratualmente acordada pelas partes (banco e devedor) nos termos da sua autonomia privada (art. 405.º do C. Civil).
i) É a solução imposta pelo princípio da igualdade entre credores.
j) O efeito Standstill é um “escudo protector” concedido pela lei ao devedor/revitalizando, que, todavia, não fica impedido de dele prescindir e de, caso a caso, cumprir as suas obrigações e movimentar, para tal, as suas contas/saldos bancárias; mas não pode servir nem pode ser usado como “escudo protector” a favor dos credores que estão autorizados, sem a casuística manifestação de vontade do devedor/revitalizando, a debitar unilateralmente os seus saldos bancários e que, por isso, durante o período do Sandstill, se assim poderem proceder, ficam até em melhor situação do que estavam antes (uma vez que ficam, durante tal período, protegidos do “concurso” da generalidade dos credores).
l) Isto porque, olhando para a substância e não apenas para a mera forma, tem que se entender, por interpretação extensiva, que o débito directo na conta do devedor, ainda que ao abrigo de um contrato entre ambos celebrado, é um procedimento idêntico a um acto executivo [é idêntico ao pagamento, na modalidade de entrega de dinheiro (art. 798.º do CPC)] – agredindo do mesmo modo que um acto executivo o património do devedor – sendo-lhe assim aplicável a ratio legis do efeito Standstill (que, fora de qualquer dúvida, obsta a tal agressão) consagrado no art. 17.º-E/1 do CIRE [neste sentido, Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, pág. 53].
m) Outro entendimento que não este iria criar uma incompreensível desigualdade entre credores, e contribuir, em elevado grau, para a perturbação e para o insucesso das negociações em curso, na medida em que, procurando usualmente o devedor (em PER) uma reestruturação do passivo (reestruturação financeira), teríamos um credor que, enquanto decorrem as negociações para tal reestruturação do passivo (tendo reclamado os seus créditos, participado nas negociações e votado com todos os votos decorrentes dos seus créditos reclamados [em que se incluem créditos que entretanto se havia feito pagar através da compensação]), se está a pagar por inteiro dos seus créditos, apenas porque tem acesso directo e irrestrito à conta bancária do devedor.

Subscrevemos na íntegra toda esta argumentação, que assim fazemos nossa.
E assim, temos de concluir que o débito realizado na conta bancária da empresa devedora pela ora recorrente foi indevido, devendo a respectiva quantia ser restituída, como se ordenou na sentença recorrida.
Olhando agora para a argumentação que a recorrente apresentou nas suas conclusões de recurso, não vemos nada que infirme a interpretação que acabamos de expor.
Afirma a recorrente que é o próprio Acórdão do STJ citado na sentença recorrida que entra em manifesta contradição quando se baseia no princípio da igualdade para incluir no efeito standstill uma compensação bancária, mas, por outro lado, ignora o referido princípio ao admitir a possibilidade de pagamento pelo devedor a um dos credores durante a pendência do processo especial de revitalização.
Ora, em nosso entender não existe qualquer contradição, pois o Acórdão explica que o efeito standstill foi criado para proteger o devedor, mas que este pode, pontualmente, se entender melhor para a sua recuperação, prescindir dele. Não pode é ser o credor a contorná-lo.
Dedica a recorrente várias alíneas (pelo menos, 8, 9 e 10) das suas conclusões a tentar demonstrar que a decisão recorrida viola o princípio do tratamento igual dos credores.
Mas não lhe reconhecemos razão no que afirma.

Vejamos algumas conclusões retiradas da jurisprudência dos Tribunais superiores:

1. No Acórdão TRP de 11.4.2018 (Rel- Fátima Andrade) escreve-se que “o nível de protecção do empresário requerente de PER evidencia-se assim e num primeiro plano ao nível das consequências processuais subsequentes à nomeação do administrador judicial provisório indicadas pelo legislador no artigo 17º E do CIRE, nomeadamente suspensão de quaisquer acções para cobrança de dívidas pendentes, bem como a proibição de instauração de novas acções como consequência da instauração do PER e enquanto perdurarem as negociações [em consonância aliás com os princípios 4º e 5º da Resolução de Conselho de Ministros invocada pelo recorrente e supra reproduzidos]”.
Assim, podemos afirmar que o legislador concedeu ao devedor em situação económica difícil um direito potestativo (requerendo um PER, e desde que respeitando os requisitos impostos por lei e verificados pelo Juiz), a bloquear aquilo que seria o exercício normal dos direitos dos credores de se fazerem cobrar pelos meios comuns.
E a dimensão desse direito resulta ainda do artigo 17º-F,6 segundo o qual a decisão de homologação do plano abrange mesmo os credores que não hajam participado nas negociações [vide nesse sentido ainda Ac. TRL de 16/10/2014, Relatora Maria Teresa Albuquerque in www.dgsi.pt/jtrl e Ac. TRP de 18/12/2013, Relator José Almeida in www.dgsi.pt/jtrp].
E recordemos que no caso dos autos foi a própria recorrente Banco 1... que voluntariamente foi reclamar os seus créditos ao PER.

Ora, o princípio da igualdade entre credores está consagrado no art. 194º, que estatui:“1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2- O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável”.

Sendo certo que, como se refere no Acórdão TRP de 14 de Julho de 2020 (Paulo Duarte Teixeira), “o princípio da igualdade dos credores decorre do art. 604º,1 do CC que dispõe “- não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos”. Tal preceito consagra o princípio par conditio creditorum que impõe que, na ausência de circunstâncias que determinem a aplicação de certas excepções, “(…) - os credores estão em pé de igualdade perante o devedor”, visando assim evitar que certos credores obtenham vantagens sobre o património do devedor em detrimento dos restantes. O princípio da igualdade dos credores configura-se por isso como uma “-trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência”, e é, no fundo, uma emanação do princípio da igualdade e, como tal, não basta um tratamento distinto para o violar mas é necessário, que esse tratamento não seja fundado em qualquer razão objectiva que fundamente um tratamento distinto de situações desiguais. Ou seja, sendo este um princípio constitucional (cfr. art. 13º da CRP) é necessário que a “sua derrogação seja ponderada à luz da razoabilidade para que, assim, se possa evitar o arbitramento de discriminações injustificadas”.
Como escrevem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anotado, página 753) “a razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a legalidade da diferença de tratamento dos credores será a que assenta na distinta classificação dos créditos, mas, para além disso, dentro da mesma categoria pode haver motivos para destrinçar em função do grau hierárquico dos créditos, e, inclusivamente, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito”.
E ainda, como se escreve no Acórdão TRC de 18/05/2020 (Rel. Barateiro Martins), “é sabido que toda a disciplina insolvencial constante do CIRE tem como um dos princípios fundamentais o princípio par conditio creditorum ou da igualdade dos credores; e que, em função disso, o plano de insolvência, o plano de recuperação/revitalização e o acordo de pagamento devem obedecer ao princípio da igualdade, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” (como se refere no art. 194.º do CIRE, sobre o princípio da igualdade). Princípio da igualdade – é também sabido – que tem uma dimensão material, o que significa que devem ser tratadas igualmente situações iguais e distintamente situações distintas, sendo que, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade ou ser uma desigualdade justificada. Assim, haverá casos em que as discriminações contidas num acordo de pagamento podem ser consideradas justificadas com base numa leitura material do princípio da igualdade; como também haverá casos em que uma diferença ostensiva de tratamento dos créditos configura uma violação não negligenciável, logo, fundamento para a recusa de homologação do acordo de pagamento”.
Sendo este o enquadramento do princípio da igualdade dos credores, cumpre então perguntar se a decisão recorrida o postergou, como pretende a recorrente.
E a resposta é claramente negativa. Pelo contrário, foi a actuação da recorrente, ao passar à frente dos outros credores e ao retirar directamente o montante do seu crédito da conta bancária que o devedor tem junto de si, que a colocou numa situação de manifesto favorecimento. De tal forma, que nem se compreende o porquê de ter vindo reclamar os seus créditos ao processo de revitalização. Se o seu entendimento era (como a sua conduta parece demonstrar) o de que, apesar da pendência do PER, ela podia continuar a cobrar-se individualmente (com cobertura contratual, é certo), mas passando à frente dos outros credores todos, então não necessitava de ter reclamado os seus créditos.
O argumento do contrato bancário é, salvo o devido respeito, um argumento vazio. Começámos por dizer que à luz do contrato bancário celebrado entre as partes, a recorrente tinha direito a debitar a conta do devedor nos montantes contratualmente devidos. Se não existisse o PER, claro.
Mas também todos os outros credores, com base nos inúmeros contratos celebrados com o devedor, tinham o direito a receber deste as quantias contratualmente devidas, e em caso de incumprimento, o direito de intentar acção declarativa ou executiva para, agredindo o património do devedor, ver satisfeitos os seus créditos. E uma parte do património do devedor a que todos os credores tinham o direito de aceder era o saldo das suas contas bancárias. É assim por demais evidente que a ora recorrente, ao valer-se do facto de ser ela a instituição bancária na qual existiam as contas bancárias do devedor para se fazer pagar do seu crédito, criando assim uma espécie de acção executiva privada, colocou-se numa posição insustentável de privilégio face aos outros credores que, não tendo acesso directo e irrestrito à conta bancária do devedor comum, tinham de recorrer a uma acção executiva, a qual estava paralisada pelo PER.
E assim, ao contrário do que a recorrente afirma, foi a sua actuação de se fazer pagar voluntariamente, em violação da regra do standstill, acedendo à conta bancária que a devedora tem junto de um dos seus balcões, que criou a desigualdade entre os credores, proibida pela lei.
De nada adianta a recorrente, nas conclusões 21, 22 e 23 querer fazer passar a ideia que não houve um acto unilateral da sua parte, porque o certo é que foi isso mesmo que se passou, em violação da regra do standstill, supra analisada. 
O conteúdo da conclusão 24 é um puro truísmo, inútil.
O conteúdo da conclusão 25 é, salvo o devido respeito, um erro lógico, pois a conclusão não emerge da premissa fáctica, a qual, sendo verdadeira, não dá cobertura à conclusão que se retira. A situação de desvantagem dos outros credores emerge directamente de eles estarem sujeitos à regra do standstill, enquanto a ora recorrente conseguiu contorná-la elegantemente e sem ter de intentar acção executiva.
A conclusão 26 contém outro truísmo inútil.

E assim, em conclusão, a sentença recorrida não merece censura, sendo confirmada na íntegra.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, e confirma na íntegra a sentença recorrida. 

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 9.3.2023

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)