Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4735/21.6T8VNF.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEFICIÊNCIA DA DECISÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CERTIDÃO EMITIDA POR OFICIAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO DELIBERAÇÃO SOCIAL
NULIDADE
SIMULAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
BONS COSTUMES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A parte inicial do n.º 4 do art.º 607º dirige um comando ao juiz cujo sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões e, de entre os factos, apenas os relevantes.
II - Muito embora o CPC em vigor não contenha uma norma idêntica ao n.º 4 do art.º 646.º do CPC revogado, tendo em consideração o comando que emerge da parte inicial do n.º 4 do art.º 607º, deve expurgar-se da decisão de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, juízo de valor ou conclusivo e os factos irrelevantes.
III – A impugnação da decisão de facto pressupõe um erro de julgamento; a deficiência da decisão de facto, pressupõe que o tribunal não se pronuncie sobre algum facto essencial para a resolução do litigio.
IV - A certidão emitida por um Oficial de Justiça, tendo por objecto elementos documentais extraídos de um processo, constitui um documento autêntico e faz prova plena quanto a tais elementos na medida em que se trata de um documento emitido por um oficial público, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído e os factos são atestados com base na percepção da mesma.
V – Mas já não faz prova plena na parte em que certifica a data do trânsito em julgado de determinada decisão, na medida em que tal “certificação” traduz um juízo pessoal do Oficial de Justiça, que inclusive envolve considerações de natureza jurídica.
VI - A legitimidade de um terceiro (credor de um acionista) para impugnar uma deliberação social de uma sociedade comercial, com fundamento na sua nulidade, radica no disposto no art.º 286º do CC: a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado.
VII - O regime da simulação é aplicável aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso de uma deliberação social, com os seguintes requisitos. (1) um acordo entre o declarante e um terceiro, sujeito externo ao negócio unilateral, (2) no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade do declarante (único), objecto do negócio unilateral (3) com o intuito de enganar terceiros.
VIII - A caducidade é uma forma de extinção de direitos que actua quando estes, devendo ser exercidos em determinado prazo, o não sejam. Assim a consequência da caducidade é a extinção do direito e não a nulidade.
IX - Os efeitos do abuso de direito, serão os correspondentes à forma de actuação do titular, determinando, em regra, a “paralisação” dos efeitos do direito abusivamente exercido.
X – A suspensão dos prazos determinada pelo n.º 1 do art.º 6º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de Fevereiro de 2021, não se aplicava à tramitação, nos tribunais superiores, de processos não urgentes.
XI - O prazo suplementar de três dias a que se refere o art.º 139º, n.º 5, do CPC, não se soma ao prazo de interposição de recurso ou de reclamação para efeito de determinação da data do trânsito em julgado da decisão judicial.
XII - O trânsito em julgado aplica-se a toda a decisão e não a segmentos do decisório, caso os tenha; o caso julgado é que se pode aplicar individualmente, a segmentos do decisório, caso os tenha.
pelo menos em regra, que os motivos ou o fim da deliberação sejam contrários aos bons costumes.”
XIII – Os “bons costumes” reconduzem-se ao conjunto, fluido e indeterminado, que varia de acordo com o espaço e o tempo, de regras de conduta, extrajurídicas, aceites como boas pela consciência social dominante.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: AA
Recorrido: S..., S.A
*

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

AA intentou a presente acção declarativa de anulação de deliberações sociais, sob a forma de processo comum, contra S..., SA, pedindo sejam declaradas nulas as deliberações sociais de aumento de capital social da R, de amortização das ações da acionista AA e de redução do capital social da R e seja ordenado o cancelamento dos registos de tais atos societários.

Alegou para tanto e em síntese (que não segue a ordem da petição inicial), o seguinte:

Desde 2013 a Ré tinha o capital social de € 600.000,00 distribuído pelos seguintes accionistas:
a) 398.026 acções, pertencentes à accionista AA;
b) 198.974 acções, pertencente ao accionista BB;
c) 1.000 acções, pertencente ao accionista CC;
d) 1.000 acções, pertencente ao accionista DD;
e) 1.000 acções, pertencente à accionista EE.

A 17/07/2013, a A. intentou contra os referidos AA, BB, o ex-marido DD, CC e a mulher deste, um procedimento cautelar de arresto, o qual correu termos na extinta Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial ..., sob o Proc. n.º 4857/13.....

Por decisão de 14/08/2013, foi decretado o arresto, entre outros bens, (dinheiros e imóveis), de 398.026 acções de AA e de 198.974 acções do BB.

O arresto foi concretizado a 06/09/2013, com a entrega à agente de execução de todas as referidas acções.

Os requeridos foram citados pela Agente de Execução, por cartas de 31/10/2013, da sentença que decretou o arresto, juntamente com a petição inicial e demais peças processuais, para, querendo, deduzirem oposição, não tendo sido deduzida oposição.

Na referida data o CA era constituído por CC, como Presidente e BB, como vogal.

Na sequência da conversão em nominativos dos valores mobiliários ao portador, a 04/12/2017 AA e BB entregaram à Agente de Execução as 597.000 acções nominativas.

A 30/01/2014, a A. intentou contra todos os referidos requeridos e outros a acção definitiva, a qual correu termos sob o Proc. n.º 589/14...., do J ... do Juízo Central Cível ..., tendo sido proferida sentença 18/12/2018 que, em síntese e no que releva, condenou a Ré AA a pagar à  A. metade da quantia de € 1.992.425,84 atualizada, desde os levantamentos, saques e transferências até .../.../2011 e acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, à taxa legal dos juros civis e declarou, além do mais, nula por simulação, a cessão (efectuada a 14/05/2012) da quota de € 120.000,00 ao Réu BB e depois aumentada (a 22/05/2013) para o valor de € 198.974,44.

Da referida sentença foi interposto recurso para esta Relação, que confirmou a decisão.

Foi interposta revista excepcional, que foi rejeitada, mas foi ordenada a baixa do processo para a Relação se pronunciar quanto às invocadas nulidades do Acórdão recorrido.

Esta Relação, por Acórdão de 11/02/2021 decidiu “julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus AA e FF, BB, CC e GG e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do “Dispositivo”, condenando a Ré AA a pagar à Autora metade da quantia sonegada às heranças abertas por óbito de seus pais.
No mais, decide-se manter a sentença recorrida.”

Este acórdão não foi objecto de reclamação, pelo que em virtude da declaração da nulidade da cessão de quota supra referida a 11/02/2021, as 198.974 regressaram ao património da AA.

A 10/03/2021 a AA entregou a BB uma carta datada de 05/0372021 a comunicar a renúncia ao cargo de Presidente do CA, que ocupava desde 19/03/2021.

A 19/03/2021, os accionistas da Ré, incluindo o BB, deliberaram um aumento em € 51.000,00 do capital social da Ré, elevando-o de € 600.000,00 para € 651.000,00.

O filho de AA, BB subscreveu € 50.000, dinheiro que é da mãe e GG, mulher de CC, subscreveu € 1.000.

 Esta deliberação teve como único motivo habilitar a Ré com o capital social necessário para permitir a amortização das acções da AA.

O BB interveio na referida Assembleia como acionista e figura na Acta que ficava titular de 248.974 acções, o que não respeita a decisão judicial de 12/02/2021 do Tribunal da Relação de Guimarães, transitada em julgado em 25/02/2021.

Por deliberação do seu Conselho de Administração de 26/04/2021, a R. amortizou 597.000 acções ordinárias nominativas, com o valor nominal de € 1,00 cada pertencentes à accionista AA, representativas de 91,71% do capital social da Ré.

Na mesma data de 26/04/2021, por deliberação da assembleia geral universal, o capital social da Ré foi reduzido para € 54.000,00.

Aquelas 597.000 acções estavam oneradas com um arresto decretado a 14/08/2013, que havia sido convertido em penhora a 21/04/2021.

Nos termos do pacto social, o direito de amortizar a participação social devia ser exercido em 90 dias após o conhecimento do arresto, o que não sucedeu, pelo que caducou, constituindo abuso de direito pretender exercê-lo posteriormente.

Com as sucessivas deliberações a AA conseguiu eliminar a sociedade Ré do seu património, subtraindo-a ao pagamento da sua dívida à A. e serviu-se desse facto para obter a sua declaração de insolvência.

Nem o CA da Ré quis amortizar as acções da AA, nem esta quis aceitar tal amortização.

As referidas deliberações estão interligadas e obedecem a um único fim: impedir que as 597.000 respondessem pelo cumprimento da obrigação de AA de pagar à A. a quantia que foi judicialmente condenada a pagar.

As referidas deliberações são nulas por simulação absoluta e abuso de direito, como o são também pelo facto de, pelo seu conteúdo, ofender preceitos legais inderrogáveis e os bons costumes, nos termos do art.º 56.º, n.º 1, al.s c) e d), do CSC.

A R. contestou  por excepção, invocando a incompetência material do tribunal e ilegitimidade passiva e por impugnação invocou que o Ac. da RG de 11/02/2021 apenas transitou em julgado a 19 de maio de 2021, data em que se esgotava o prazo para a A. interpor recurso para o STJ na medida em que ficou vencida e tendo em consideração a suspensão dos prazos processuais imposto pelas Leis n.º 1-A/2020 e 4-B/2021, pelo que só nessa data a decisão proferida fez ingressar no património da acionista AA as 198.974 acções de que era titular BB ou, quando muito, no dia em que foram penhoradas – a 21/04/2021 – pelo que é falso que a 19 de março BB já não era acionista; a Ré foi notificada da penhora a 23 de Abril de 2021, pelo que só nessa data estavam reunidas as condições que permitiam a amortização obrigatória, uma vez que dela e da redução do capital social, não resultavam ofendidos a intangibilidade do capital, nem o limite mínimo do número de sócios.

Notificada para o efeito, a A pronunciou-se quanto às exceções invocadas, pugnando pela sua improcedência.

Com dispensa da audiência prévia, foi  proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções invocadas, definiu o objeto do litígio – “aferir dos pressupostos de verificação de nulidade das deliberações sociais tomadas nas assembleias gerais da R. de 19-3-2021 e 26-4-2021 e da deliberação do Conselho de Administração da R. de amortização das acões da acionista AA” - e os seguintes temas de prova: “apurar se as deliberações de aumento de capital, amortização de ações e redução de capital social são nulas por consubstanciarem atos absolutamente simulados; e apurar se as deliberações de aumento de capital social, amortização de ações e redução de capital social são nulas por terem sido praticadas em abuso de direito.“

Realizou-se o julgamento, o qual foi reaberto na sequência de um requerimento da A.

Foi proferida sentença que decidiu:
Pelo exposto,
a) absolvo a R S..., SA, dos pedidos contra si deduzidos.
Custas pela A- artigo 527°, n.º 1 e 2 CPC.

Interpôs a A. recurso, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Nos termos da alínea a) do n.º 5, do art.º 6.º-B, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, à Lei n.º 1-B/2020, de 19/03, a tramitação de processos não urgentes nos tribunais superiores não ficou suspensa, pelo que os prazos para a prática dos actos subsequentes a qualquer decisão final, proferida na 1.ª Instância ou nas instâncias superiores, continuaram a correr e, consequentemente, os recursos deviam ser interpostos nos prazos legalmente fixados (de 15 ou 30 dias, consoante os casos), e a arguição de nulidades, os requerimentos de rectificação de erros materiais e a reforma da sentença (ou acórdão) deviam igualmente ser apresentados no prazo supletivo legal de 10 dias;
2. Com excepção da parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do “Dispositivo” (€ 996.212,92), que foi revogada, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no PROC. N.º 589/14.... em 11/02/2021 e notificado às partes em 12/02/2021, formou dupla conforme relativamente a todos os segmentos decisórios da sentença de 1.ª Instância, designadamente o da subalínea iii), da alínea e), que declarou nula a cessão da quota de € 120.000,00, feita ela Ré AA ao Réu BB, depois, sucessivamente aumentada para o valor de € 198.974,44, e convertida em igual número de acções;
3. Em razão da dupla conforme, tal acórdão não era susceptível de recurso ordinário, como, aliás, a própria RECORRIDA afirmou no art.º 24.º da sua contestação;
4. Da análise conjugada das declarações prestadas em depoimento de parte pelo representante legal da RECORRIDA, BB, e pela testemunha, HH, resulta claramente provado que a AA e todos os demais Réus no PROC. N.º 589/14.... tiveram conhecimento de que o “Ac. de 11/02/2021” foi notificado às partes, nas pessoas dos respectivos mandatários, em 12/02/2021;
5. Conforme alegado pela RECORRENTE na petição inicial e não impugnado pela RECORRIDA, os ali Réus não deduziram reclamação do “Ac. de 11/02/2021”, conformando-se com o nele decidido em toda a sua extensão;
6. Nos termos do n.º 5, do art.º 635.º do CPC, «Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.»
7. Tal significa que todos os segmentos decisórios da sentença de 1.ª Instância confirmados pelo “Ac. de 11/02/2021” formaram caso julgado material em relação a ambas as partes, AUTORA e RÉUS, em 25/02/2021, uma vez que nenhuma das partes reclamou, arguiu nulidades ou requereu a sua reforma quanto aos referidos segmentos decisórios;
8. Ao ter dado por assente nos “...” n.ºs 6 e 60 que o acórdão pelo “Ac. de 11/02/2021” transitou em julgado em 19/05/2021, nomeadamente, quanto ao segmento decisório da subalínea iii), da alínea e), da sentença recorrida, o Tribunal a quo fez errada apreciação da matéria de facto e errada aplicação do direito, tendo violado em concreto o disposto no n.º 5 do art.º 635.º do CPC;
9. Importa, assim, rectificar os enunciados desses dois “...”, conferindo-se-lhes as seguintes outras redacções:
“... n.º 6”

O decretado arresto garantia o pagamento à Autora de um crédito de € 996.212,92, acrescido de juros de mora à taxa legal desde 05/02/2014, que a acionista AA fora judicialmente condenada a pagar-lhe por sentença proferida em 18/12/2018, no Proc. n.º 589/14...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ... (PROC. N.º 589/14....), posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021, [que] foi objeto de recurso de revista excecional e transitou em julgado a 25-02-2021, quanto à parte dispositiva da sentença de 1.ª instância confirmada por esse acórdão.
“... n.º 6o”
Em 25-02-2021, a decisão proferida – Acórdão - no processo nº 589/14.... transitou em julgado na parte dispositiva da sentença recorrida que confirmou, fazendo regressar ao património da acionista AA as 198.974 ações de que era titular o seu filho BB.
10. A RECORRENTE alegou na petição inicial que o “Ac. de 11/02/2021” não foi objecto de reclamação por parte dos respectivos Recorrentes, que dele não recorreram nem reclamaram, o que a RECORRIDA não impugnou, pelo que não podia o Tribunal a quo deixar de considerar esses factos admitidos por acordo (art.º 574.º, n.º 2 do CPC), admissão essa que, por ter força probatória plena, não está sujeita à livre apreciação da prova (art.ºs 356.º, n.º 1, e 358.º, n.º 1, ambos do CC).
11. E por serem relevantes para a apreciação da questão do caso julgado formado pelo “Ac. de 11/02/2021” em relação, nomeadamente, ao segmento decisório da subalínea iii, da alínea e) do dispositivo da sentença recorrida objecto daquele acórdão, deverá ser aditado ao rol dos “...” novo número com o seguinte enunciado:
“... n.º (…)”
Os Recorrentes no Proc. n.º 589/14.... não reclamaram nem recorreram do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021.
12. Considerando as preposições de “...” indicadas nos n.ºs 9 e 11 destas conclusões, por ser facto essencial para a apreciação da actuação fraudulenta da AA, mancomunada com os demais accionistas, para transferir do seu património para a esfera patrimonial do seu filho BB a sociedade RECORRIDA, e, desse modo, subtrair as suas acções à responsabilidade pelo pagamento da dívida à RECORRENTE, deve ainda ser aditado aos “...” novo número com o seguinte teor:
“... n.º (…)”
Para a aprovação da deliberação de aumento de capital social tomada na assembleia geral de 19/03/2021, foram essenciais os votos favoráveis da própria AA, sem os quais esse aumento não teria acontecido, atento o n.º 2, do artigo 19.º do pacto social da RÉ, que dispõe: “As deliberações referentes a alteração do contrato de sociedade e a aumentos de capital social só poderão ser tomadas se obtiverem os votos favoráveis de accionistas que representem, pelo menos, setenta e cinco por cento do capital social.”
13. Como corolário das conclusões 11 e 12, supra, e admitindo que as mesmas sejam sufragadas por este Tribunal Superior, devem então ser eliminadas as alíneas “S” e “T” dos “...”, e aditados aos “...” dois novos números com a seguinte redacção:
“... n.º (…)”
A partir de então (25/02/2021), a AA ficou irreversivelmente constituída na obrigação de pagar à Autora a quantia de € 996.212,92, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação;
“... n.º (…)”
A partir de então (25/02/2021), a accionista AA viu-se novamente investida na titularidade das 597.000 acções nominativas, do valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de 99,5% do capital social da RÉ;
14. Porque as datas e as taxas consideradas na liquidação dos juros de mora se mostram admitidas por acordo, nos termos do art.º 574.º, n.º 2 do CPC, o enunciado da alínea “E” dos “...” deve ser transferido na íntegra para o rol dos “...”, mediante aditamento de um novo número com a seguinte redacção:
“... n.º (…)”
Na data da amortização das acções (26/04/2021), o crédito da AUTORA sobre a accionista AA ascendia ao montante de € 1.284.104,81, cifrando-se presentemente (29/08/2021) em € 1.311.671,25, considerando os juros de mora (desde 05/02/2014, à taxa de 4% ao ano) e juros compulsórios vencidos (desde 19/05/2021, à taxa de 5% ao ano) até ao presente (29/08/2021).
15. A cronologia dos14 (catorze) factos acima datados e identificados nas alíneas a) a n), do Ponto 3., do capítulo III.3, supra, desta alegação, que aqui, por economia, se dão por reproduzidos, todos eles dados como provados, respectivamente, nos “...” n.º 43, 35 e 36, 37, 39, 41, 42, 3 e 347, 57 e 61, 48, 49, 50, 53 e 62 (seguindo a ordem das alíneas, supra), e pela confissão da RECORRIDA no art.º 49.º da contestação (quanto ao facto da al. j)), em que decorreu e se decompôs toda a actuação concertada dos accionistas da RECORRIDA a partir da data da prolação do “Ac. de 11/02/2021” para transferirem do património da AA para a esfera patrimonial do filho BB, das 597.000 acções detidas por aquela, conjugada com as declarações prestadas pelo depoente de parte, BB, e os demais accionistas da RECORRIDA, acima transcritas, aliadas ainda às regras da experiência, determinam que sejam dados por assentes e, destarte, transferidos para o rol dos “...”, os enunciados fácticos constantes das alíneas “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “U”, “V” e “W” dos “...”, que, também por economia, aqui não se transcrevem e se dão por integradas e reproduzidas;
16. A renúncia da AA ao cargo de Presidente no Conselho de Administração da RECORRIDA, poucos dias depois de ter sido nomeada nesse cargo para o quadriénio de 2021/2024, conforme consta dos “...” n.º 42, foi o primeiro passo de uma estratégia montada e concertada com os demais accionistas a seguir à prolação do “Ac. de 11/02/2021”, para, mediante as três deliberações sociais sucessivamente tomadas, respectivamente, em 19/03/2201 (aumento de capital social), 26/04/2201 (amortização das acções) e 26/04/2021 (redução do capital social), transferir para o património do filho BB as 597.000 acções de que era titular no capital social da RECORRIDA e, desse modo, alcançar o fim último de sonegar essas acções à penhora e pagamento do crédito da RECORRENTE;
17. Os accionistas não quiseram aumentar o capital social, mas apenas, por via dessa operação, dotar a RECORRIDA com o capital mínimo que permitisse depois ao Conselho de Administração promover a amortização das acções da AA e, desse modo, frustrar ou impedir a sua penhora e venda judicial.
18. Também a deliberação de amortização das acções da AA não teve por fim defender os demais accionistas — que no seu conjunto representavam uma participação irrisória de 7,4% — da entrada de estranhos no capital da RECORRIDA, nem teve por fim defender a própria sociedade, já que esta, em si mesmo, se confundia com a própria accionista AA, atenta a percentagem de 99,5% que detinha no seu capital social;
19. Na verdade, a vontade subjacente e oculta na deliberação de amortização das acções tomada pelo Conselho de Administração não teve qualquer correspondência ou coincidência com a vontade declarada de amortizar as acções da AA, mas antes prosseguiu o fito único de as retirar da alçada de uma possível penhora judicial promovida pela Recorrente, que já tinha a execução de sentença em curso;
20. Por isso, todas estas três deliberações, interligadas e instrumentalizadas entre si, são deliberações nulas por simulação fraudulenta;
21. Consequentemente, devem ser transferidos para o rol dos “...”, os enunciados fácticos constantes das alíneas “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “U”, “V” e “W” dos “...”, cujos teores, para o efeito, aqui se dão por integrados e reproduzidos;
22. A alínea “Y” dos ”...” constitui manifesto erro de julgamento da matéria de facto, face às declarações esclarecedoras produzidas sobre esse assunto pelo depoente BB na reabertura da audiência de julgamento de 16/’3/2021;
23. Importa, assim, que seja levado à matéria assente, pela inclusão de um novo número nos “...”, o seguinte facto:
 “... n.º (…)”
O dinheiro com que o BB subscreveu € 50.000,00 no aumento de capital social da RÉ era dinheiro da sua mãe, AA.
24. Por efeito do “Ac. de 11/02/2021”, que formou caso julgado me 25/02/22021, a accionista AA viu-se reinvestida nessa data na titularidade das as 198.774 acções que antes pertenciam ao filho BB;
25. Assim, a aprovação da deliberação de aumento de capital social da RECORRIDA tomada na assembleia geral de 19/03/2021, com os votos do BB, que não era accionista, é nula por força violação do art.º 14.º, no 2, do pacto social da sociedade, e ainda do n.º 1 do art.º 379.º do CSC, disposições estas que a sentença recorrida violou;
26. Na data (26/04/2021) da deliberação do Conselho de Administração da RECORRIDA de amortizar as 597.000 acções da AA, já esse direito-dever havia caducado há anos, uma vez que estando elas arrestadas desde 06/09/2013, e tendo o arresto sido notificado aos seus então administradores em 31/10/2013, aquele órgão social dispunha de um prazo de 90 dias para o declarar, o que não fez;
27. Consequentemente, essa deliberação é nula por abuso de direito, o disposto nos art.ºs 280.º e 334.º do CC, que a sentença recorrida violou, para além do disposto no n.º 4, do art.º 347.º do CSC;
28. Em 21/04/2021, o arresto das acções foi convertido em penhora (“FP” n.º ...7), retroagindo-se os efeitos desta à data do arresto – art.º 822.º do CC, o que significa, portanto, que as acções consideram-se penhoradas desde 06/09/2013;
29. Pelo seu conteúdo e efeitos, os actos praticados — as deliberações aqui em causa — em obediência a uma estratégia de deslocar do património da AA a participação social na RECORRIDA para o património do filho BB, são eivados de pura má fé, absolutamente contrária aos mais elementares valores de honestidade e de lealdade que enformam a vida em sociedade e, mais grave que tudo, ao dever de acatamento e respeito pelas decisões dos Tribunais, com a agravante de com isso ter atentado intencionalmente contra o legítimo direito da RECORRENTE à satisfação integral do seu crédito, mantendo a AA intocado o bem de maior valor que possuía — e que ainda possui através do filho BB —, qual seja a participação de 99,5% no capital social da RECORRIDA, representada pelas 597.000 acções que lhe foram amortizadas;
30. Por tais razões e fundamentos, as referidas três deliberações caiem na alçada da previsão da al. d), do n.º 1, do art.º 56.º do CSC, sendo nulas por ofensa dos bons costumes, disposição esta que o Tribunal a quo violou frontalmente;
31. Em relação a cada uma das deliberações existiu acordo simulatório entre os accionistas, uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o intuito de enganar terceiros, no caso, a RECORRENTE;
32. Nos termos do n.º 2, do art.º 240.º do CC, tais deliberações são nulas por simulação.
33. Ao não ter declarado a nulidade de tais deliberações, o Tribunal a quo violou, entre outras, as disposições do art.º 240.º e 286.º do CC.

A Ré contra-alegou concluindo que a sentença recorrida não merece qualquer crítica pelo que deve manter-se, julgando-se o recurso improcedente.
           
2. Questões a decidir

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

As questões que cumpre apreciar são:
i) no âmbito da decisão de facto, saber se:
- os factos provados n.º 6 e 60 foram incorrectamente julgados;
- deve ser aditada aos factos provados, a matéria indicada nas conclusões 11 e 12 e em consequência devem ser eliminadas as alíneas S e T dos factos não provados e aditada a matéria indicada na conclusão 13;
- a alínea E dos factos não provados foi incorrectamente julgada, devendo ser julgada provada com a redacção constante da conclusão 14;
- devem ser considerados provados os enunciados fácticos constantes das alíneas E, F, G, H, I, J, L, M, U, V e W dos factos não provados;
- a alínea Y dos factos não provados foi incorrectamente julgada, devendo ser julgada provada com a redacção constante da conclusão 23
           
ii) no âmbito do direito aplicável, saber se:
- a deliberação de aumento de capital social da recorrida tomada na assembleia geral de 19/03/2021, é nula por força violação do art.º 14.º, n.º 2, do pacto social da sociedade, e ainda do n.º 1 do art.º 379.º do CSC;
- a 26/04/2021 o direito-dever do Conselho de Administração da recorrida de amortizar as 597.000 acções da AA, já havia caducado e, assim, é nula por abuso de direito, atento o disposto nos art.ºs 280.º e 334.º do CC, que a sentença recorrida violou, para além do disposto no n.º 4, do art.º 347.º do CSC;
- as deliberações em causa nos autos são nulas por ofensa dos bons costumes, nos termos da al. d), do n.º 1, do art.º 56.º do CSC;
- as deliberações em causa nos autos são nulas por simulação, nos termos do n.º 2, do art.º 240.º do CC.

3. Fundamentação de facto

Consignou-se na decisão recorrida (sem quaisquer sublinhados ou negritos por não terem qualquer cabimento numa decisão de facto):
Factos Provados (relevantes para a decisão a proferir)
1- Por deliberação do seu Conselho de Administração de 26/04/2021, a Ré amortizou 597.000 ações ordinárias nominativas, com o valor nominal global de € 597.000,00 (cada ação com o valor nominal de € 1,00), pertencentes à acionista AA, representativas de 91,71 % do seu capital social, que naquela data ascendia ao montante de € 651.000,00.
2- Na mesma data de 26/04/2021, por deliberação da assembleia geral da R, o seu capital social foi reduzido para € 54.000,00 (cinquenta e quatro mil euros).
3- Para viabilizar aquela amortização de ações, a acionista AA e os demais acionistas, reunidos em assembleia geral de 19/03/2021, haviam deliberado um aumento de € 51.000,00 do capital social da RÉ, elevando-o de € 600.000,00 para a cifra de € 651.000,00.
4- Nesta última assembleia geral, votando favoravelmente a deliberação de aumento de capital social da RÉ, participou o filho da acionista AA, BB, como acionista-titular de 198.974 ações.
5- As 597.000 ações amortizadas estavam oneradas com um arresto decretado por sentença de 14/08/2013, que havia sido convertido em penhora a 21/04/2021.
6- O decretado arresto garantia o pagamento à Autora de um crédito de € 996.212,92, acrescido de juros de mora à taxa legal desde 05/02/2014, que a acionista AA fora judicialmente condenada a pagar-lhe por sentença proferida em 18/12/2018, no Proc. n.º 589/14...., do Juízo Central Cível ... - Juiz ... (Proc. n.º 589/14....), posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021, foi objeto de recurso de revista excecional e transitou em julgado a 19-5-2021.
7- A mencionada amortização foi efetuada pelo valor nominal das ações, no montante de € 597.000,00.
8- Em 02/01/2008, a RÉ era uma sociedade por quotas e tinha o capital social de € 448.919,00, representado por três quotas, duas com o valor nominal igual de € 222.165,00, cada uma representativa de 49,49%, tituladas pelos dois irmãos da AUTORA, II e AA, e uma terceira com o valor nominal de € 4.589,00, representativa de 1,02%, titulada por JJ, pai da A e dos seus referidos irmãos.
9- Por escritura pública de 02/01/2008, o sócio II dividiu a sua quota de € 222.165,00 em duas novas quotas, que cedeu: Uma no valor nominal de € 133.299,00, à sócia AA, pelo preço de € 800.000,00; Outra no valor nominal de € 88.866,00, à própria sociedade RÉ, pelo preço de € 600.000,00.
10-Ainda em pagamento do preço global destas cessões de quotas, que na realidade foi de € 1.740.000,00, por escritura pública de compra e venda celebrada na mesma data de 02/0112008, a RÉ transmitiu ao II, o prédio urbano, de que era dona e legítima possuidora, constituído por pavilhão industrial, sito no Parque Industrial ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...81-..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...16. H-Pela mesma escritura aludida supra, a sócia AA unificou as suas duas quotas numa só quota, com o valor nominal de € 355.464,00.
12-Em resultado dessas divisão, cessões e unificação de quotas, o capital social da RÉ (€ 448.919,00) passou a ser representado por três quotas com os valores nominais de: € 4.589,00, pertencente ao sócio JJ; € 355.464,00, pertencente à sócia AA; € 88.866,00, pertencente à RÉ, como quota própria.
13-0 sócio JJ morreu em 29/05/2011, e deixou, por legado testamentário, a quota de € 4.589,00 à filha AA, posteriormente adjudicada na partilha das heranças dos pais outorgada pelos três irmãos por escritura pública de 04/04/2012.
14-Ficou então o capital social da RÉ (€ 448.919,00) distribuído da forma seguinte: € 4.589,00, pela sócia AA; € 355.464,00, pela sócia AA; € 88.866,00, pela RÉ, como quota própria.
15-Por contrato particular de "Divisão e Cessão de Quota" celebrado em 14/03/2012,a sócia AA dividiu aquela sua quota de € 355.464,00 em duas novas quotas, uma com o valor nominal de € 120.000,00, que cedeu gratuitamente - doação - ao seu filho BB, e outra com o valor nominal de € 235.464,00, que reservou para si, dando origem a nova composição do capital social da RÉ com as seguintes quatro quotas: € 4.589,00, titulada pela sócia AA; € 235.464,00, titulada pela sócia AA; € 120.000,00, titulada pelos ócio BB; € 88.866,00, titulada pela RÉ, como quota própria.
16-Por escritura pública de 22/05/2013 os sócios AA e BB, por si e em representação da RÉ, S..., LDA, procederam aos seguintes atos:
A sócia AA unificou as suas duas quotas de € 4.589,00 e € 235.464,00, numa só quota com o valor nominal de € 240.053,00; Amortizaram a quota própria da RÉ, do valor nominal de € 88.866,00, sem o pagamento de qualquer contrapartida, com o aumento proporcional das quotas dos sócios AA e BB, para os valores nominais de, respetivamente, € 299.299,96 e € 149.619,04; Aumentaram o capital social da RÉ para o montante de € 597.000,00, sendo o aumento de € 148.081,00 realizado por incorporação de reservas livres de igual montante, com o aumento proporcional do valor nominal da participação social de cada um dos sócios AA e BB para os valores de, respetivamente, € 398.025,56 e € 198.944,44.
17- Em consequência destas operações, o capital social da RÉ, agora no montante de € 597.000,00, ficou distribuído por duas quotas dos valores nominais de: € 398.025,56, pertencente à sócia AA; € 198.974,44, pertencente ao sócio BB.
18-Por escritura pública de 30/05/2013,procedeu-se a um novo aumento do capital social da RÉ, no montante de € 3.000,00, mediante a entrada de três novos sócios, CC (CC), contabilista da RÉ e pessoa da máxima confiança da sócia AA, FF (DD), marido (atualmente divorciado) da sócia AA e pai do sócio BB, e EE (EE), amiga íntima da sócia AA, tendo cada um deles subscrito uma quota de € 1.000,00.
19- O novo capital social da RÉ (€ 600.000,00) ficou distribuído por cinco quotas dos valores nominais de: € 398.025,56, pertencente à sócia AA; € 198.974,44, pertencente ao sócio BB; € 1.000,00, pertencente ao sócio CC; € 1.000,00, pertencente ao sócio DD; € 1.000,00, pertencente à sócia EE.
20-Assegurado o número mínimo exigido pelo art.º 273.° do CSC, todos os sócios, pela mesma escritura deliberaram transformar a RÉ em sociedade anónima, passando a designar-se "S..., SA", com o mesmo capital social de € 600.000,00, representado por seiscentas mil ações ordinárias ao portador, com o valor nominal de € 1,00 cada uma, distribuídas pelos seguintes cinco acionistas:398.026 ações, do valor nominal global de € 398.026,00, pertencentes à acionista AA; 198.974 ações, do valor nominal global de € 198.974,00, pertencente ao acionista BB ações, do valor nominal global de € 1.000,00, pertencente ao acionista CC; 1.000 ações, do valor nominal global de € 1.000,00, pertencente ao acionista DD;1.000 ações, do valor nominal global de € 1.000,00, pertencente à acionista EE.
21-Após a morte do pai, JJ (29/05/2011), a AUTORA entrou em litígio com a irmã, AA, alegando que esta havia sonegado às heranças dos pais muitas centenas de milhar de euros que teria retirado e feito desaparecer das contas do pai.
22-A A., em 17/07/2013, promoveu contra todos os envolvidos, a AA, o filho, BB, o ex-marido, DD, o contabilista da RÉ, CC, e a mulher deste, GG (GG), um procedimento cautelar de arresto, o qual correu termos na extinta Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial ..., sob o Proc. n.º 4857/13.... - posteriormente passou a Apenso A, do PROC. n.º 589/14.....
23-Por sentença proferida em 14/08/2013, foi decretado o arresto, entre outros bens (dinheiros e imóveis), das 398.026 ações da AA e das 198.974 ações do BB.
24-A diligência do arresto foi concretizada pela Agente de Execução em 06/09/2013, com a entrega a esta das 597.000 ações pela própria AA, que assinou o respetivo auto de apreensão.
25- Após concluídas as diligências de apreensão dos bens arrestados, os Requeridos, AA, DD, BB, CC e GG, foram citados pela Agente de Execução, por cartas de 31/10/2013, da sentença que decretou o arresto, juntamente com a petição inicial e demais peças processuais, para, querendo, deduzirem oposição.
26- Nessa data (31/10/2013), o Conselho de Administração da RÉ era integrado pelo contabilista, CC, como Presidente, e pelo BB, como Vogal, designados, que haviam sido, para o quadriénio 2013/2016.
27- Nenhum dos Requeridos deduziu oposição ou interpôs recurso da sentença que decretou o arresto.
28- Entretanto, na sequência da conversão em nominativos dos valores mobiliários ao portador imposta pela Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio, a AA e o BB, em 04/12/2017, entregaram à Agente de Execução, depositária das ações arrestadas, as correspondentes 597.000 ações nominativas.
29- Terminadas as diligências do arresto, a A. interpôs em 30/01/2014, contra todos os Requeridos, e ainda o II e mulher, a competente ação definitiva - o PROC. N.º 589/14.... - a que o procedimento de arresto foi apensado.
30-Por sentença proferida em 18/12/2018, o Tribunal de 1ª Instância julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência (v. Doc. 1): "(…) Declarou "a sonegação, por parte da Ré AA, às heranças abertas por óbito de seus pais, da quantia de € 1.992.425,84 (um milhão novecentos e noventa e dois mil quatrocentos e vinte e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos); " Declarou "a perda da Ré AA sobre metade da quantia sonegada em favor da Autora; "Condenou "a Ré AA no pagamento de metade da quantia sonegada à Autora, atualizada, desde os levantamentos, saques e transferências aludidas no facto provado n.º 49 até .../.../2011 (data do falecimento de JJ); "Condenou "a Ré AA a pagar os juros de mora, sobre a quantia aludida em c), desde a citação até integral pagamento, à taxa legal dos juros civis; "Declarou "nulos, por simulação: A compra e venda celebrada através da escritura pública aludida no facto provado n.º 54; A doação com reserva de uso e habitação a que se reporta o facto provado n.º 57; A cessão da quota de € 120.000.00 ao Réu BB, a que se refere o facto provado n.º 58, depois sucessivamente. aumentada para o valor de € 198.974.44. e convertida em igual número de ações; A transferência da verba de € 54.222,88 (cinquenta e quatro mil duzentos e vinte e dois euros e oitenta e oito cêntimos) para BB;" Determinou "o cancelamento das inscrições registrais da aquisição do direito de propriedade efetuadas na sequência dos negócios declarados nulos na alínea e);".
31- A tal decisão seguiu-se o recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães pelos Réus AA, DD, BB, CC e GG, cujo acórdão de 13/02/2020 confirmou em pleno a sentença de 1.ª instância.
32- Interpuseram depois os réus/apelantes recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido, por acórdão de 02/12/2020, rejeitado "a presente revista excepcional, mas determinando a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães para se pronunciar sobre as invocadas nulidades do acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 617. n.º 5, 2.ª parte, do CPC. ".
33-Nesse seguimento, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu em 11/02/2021, um segundo acórdão pelo qual decidiu: "julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus AA e FF, BB, CC e GG e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do "Dispositivo", condenando a Ré AA a pagar à Autora metade da quantia sonegada às heranças abertas por óbito de seus pais. No mais, decide-se manter a sentença recorrida."
34- Na sequência da nulidade, por simulação, declarada pelas referidas decisões judiciais, dos atos de transmissão mencionados na al. e) do segmento decisório da sentença de La Instância (v. Doe. 16 e art.º 41.°, supra), regressaram ao património da AA, entre outros bens, as 198.974 acções nominativas representativas do capital social da RÉ, até então tituladas pelo filho BB.
35- A 23/02/2021, o filho BB e o ex-marido DD, em representação da AA, deslocaram-se a casa da A, em ..., para procurar negociar uma redução do valor da dívida para um montante que a AA estaria disposta e em condições de pagar imediatamente.
36- Essa reunião foi mantida apenas com o marido da A, Eng. HH, que prontamente recusou essa possibilidade.
37-Frustrada esta primeira abordagem, os mesmos BB e DD solicitaram nova reunião ao Eng. HH, a qual teve lugar em 04/03/2021, tendo o filho da AA apresentado uma proposta concreta de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), a pagar nos seguintes termos: € 700.000,00 imediatos; Entrega de uma fração autónoma pelo valor de € 100.000,00, ou pagamento deste valor no prazo de 6 meses, e o pagamento de € 200.000,00 em prestações anuais durante cinco anos.
38- Tal proposta foi rejeitada pela A, e o BB ficou de falar com a mãe para tentar melhorar o valor oferecido.
39-A 06/03/2021, contactou telefonicamente o Eng. HH e apresentou uma nova proposta, agora pelo valor de € 1.050.000,00 (um milhão e cinquenta mil euros).
40- O Eng. HH comprometeu-se a falar com a A. e a comunicar-lhe a decisão até à 2.a feira seguinte, 08/03/2021.
41-No dia 08/03/2021, telefonou ao BB, comunicou-lhe que a proposta não era aceite.
42-A 10/03/2021 a AA entregou ao filho BB, Vogal do Conselho de Administração, uma carta datada de 05/03/2021 a comunicar a renúncia ao cargo de Presidente que ocupava nesse órgão social, com efeitos a partir de 19/03/2021.
43-A renunciante AA tinha sido designada em assembleia geral de 17/02/2021, Presidente do Conselho de Administração da RÉ para o quadriénio de 2021/2024.
44- A deliberação de aumento de capital social referida em 1 teve, pois, como único motivo habilitar a RÉ com o capital social necessário para permitir a amortização das ações da AA.
45- Deste aumento, o filho BB subscreveu € 50.000,00, e uma nova acionista, GG, mulher do contabilista CC, admitida a tomar parte na assembleia geral, subscreveu € 1.000,00.
46- O capital social da RÉ ficou assim fixado em € 651.000,00, representado por igual número de ações nominativas de € 1,00 cada, distribuídas por seis acionistas: AA: 398.026 ações; BB: 248.974 ações; CC: 1.000 ações; DD: 1.000 ações; EE: 1.000 ações; GG: 1.000 ações.
47-Ainda na mesma assembleia geral, os acionistas deliberaram: "aceitar a renúncia ao cargo de Presidente do Conselho de Administração de AA, com efeitos à data de hoje", "designar os novos membros do Conselho de Administração, para completar o mandato 2021-2024, em virtude da renúncia acima referida", com a nomeação do BB, como Presidente, e da EE, como Vogal; que a vogal do Conselho de Administração, EE, não será remunerada."
48-No dia 26/04/2021, o Conselho de Administração da RÉ, agora integrado pelo filho BB, como Presidente, e pela amiga EE, como Vogal, deliberou amortizar as ditas 597.000 ações pelo respetivo valor nominal de € 597.000,00, a ser pago "no fim do segundo exercício subsequente à amortização" - o que significa, no final de Dezembro de 2023.
49- E no próprio dia 26/04/2021, trataram os mesmos administradores de entregar uma comunicação escrita dessa deliberação à AA, que pronta e pacificamente a recebeu, aceitou e assinou.
50- Na sequência dessa deliberação do Conselho de Administração, os acionistas, na mesma data de 26/04/2021, reunidos em assembleia geral universal, com a presença da AA, apesar de já não ser acionista, deliberaram a redução do capital social da RÉ, de € 651.000,00 para o valor € 54.000,00, com a seguinte distribuição de ações: BB:50.000 ações; CC: 1.000 ações; DD:1.000 ações; EE:1.000 ações; GG: 1.000 ações.
51- A AA e II, procederam à avaliação da sociedade, recorrendo, para o efeito, a técnicos-economistas, que lhe atribuíram à data - em Novembro de 2007- o valor de € 4.109.000,00(quatro milhões cento e nove mil euros).- fls 213 verso
52- Volvidos cerca de treze anos, a sociedade RÉ, transformada em anónima em 2013 tem mantido solidez financeira, como se infere dos IES's do período de 2006 a 2020, em que a evolução dos capitais próprios, caixa/bancos e EBITDA, entre outros vetores, tem apresentado uma enorme regularidade, liquidez e robustez financeira, conforme se colhe do quadro seguinte:

ANO               CAPITAL                               CAIXA  E
                  PRÓPRIO                                 BANCOS                                EBITDA
2006             € 2.030.492,92                       € 834.461,01              € 79.597,20
2007 € 2089.482,58                        € 436.398,07              € 77.268,40
2008 € 1.646.846,72                       € 374.968,39              € 166.476,26
2009 € 1.677.674,63                       € 381.764,89              € 40.001,43
2010 € 1.720.152,81                       € 523.276,47              € 87.116,62
2011 € 1.733.171,97                       € 771.073,67                           € 39.503,53
2012 € 1.676.031,97                       € 460.677,12                           € 28.065,56
2013 € 1.721.288,99                       € 398.594,85              € 74.475,39
2014 € 1.793.652,50                       € 373.904,83              € 138.417,35
2015 € 1.893.782,78                       € 468.671,32              € 169.386,97
2016 € 1.971.405,32                       € 336.674,28              € 138.666,22
2017 € 2.022.678,16                       € 325.861,95              € 105.915,70
2018 € 2.071.044,05                       € 285.458,59              € 94.865,87
2019 € 2.141.437,45                       € 362.639,91               € 129.083,30
2020 € 2.186.130,15                       € 1.736.195,22                       € 95.566,34
53-A AA requereu a sua declaração de insolvência a 07/05/2021, e logrou alcançar através da sentença declaratória da insolvência proferida em 18/05/2021, no Proc. n.º 2582/21...., do Juízo de Comércio ... - Juiz ..., entretanto objeto de embargos deduzidos pela aqui A.
54-A primeira deliberação (aumento de capital social) visou dotar a sociedade da cifra de capital necessária para viabilizar a amortização das ações da AA, sem o qual tal amortização era inviável, uma vez que, face ao disposto no art.º 276.°, n." 5 do CSC, não era possível a RÉ ver o seu capital social reduzido à cifra de € 3.000,00.
55-Os então acionistas, AA, DD, BB e CC, entre outros requeridos, foram citados da sentença do arresto por cartas de 31/10/2013.
56-Nessa data, o Conselho de Administração da RÉ era constituído pelos acionistas CC, como Presidente, e BB, como Vogal, ambos requeridos na ação de arresto.
57-Entretanto, em 21/04/2021, o arresto das ações foi convertido em penhora, retroagindo-se os efeitos desta à data do arresto, pelo que as ações se consideram penhoradas desde 06/09/2013.
58- Só depois do conhecimento desta penhora é que o Conselho de Administração da RÉ declarou a amortização das 597.000 ações da AA.
59-De acordo com o teor da ata da assembleia geral universal de 19/03/2021 as deliberações nela tomadas, nomeadamente a da constituição da assembleia geral em modo universal e a do aumento de capital social da RÉ, foram aprovadas pelo BB, que as votou favoravelmente, tendo subscrito € 50.000,00 do aumento e passado, alegadamente, a ser titular de 248.974 ações, conforme aquela ata e lista de presenças.
60- Só a 19-5-2021 a decisão proferida- Acórdão- no processo n" 589/14.... transitou em julgado, fazendo regressar ao património da acionista AA as 198.974 ações de que era titular o seu filho BB.
61-A 21-4-2021, ações arrestadas foram penhoradas na execução n° 154/21.... como parte integrante do património da AA por iniciativa da aqui A.- fls 412 e ss.
62-A acionista AA foi declarada insolvente por sentença de 18-5-2021 proferida no processo n° 2582/21.... do J3 deste Juízo do Comércio.
63- A A foi notificada dessa sentença no dia 19-5-2021.
64-Face aos capitais próprios (€ 2.186.130,55), resultado apurado (€ 95.566,34) e valores depositados em caixa e bancos (€ 1.736.195,22) apresentados no final do exercício de 2020 (v. Quadro no art.º 94.°, supra, e Doc. ...2), a RÉ não tinha quaisquer necessidades de ordem estrutural ou económico-financeira que justificassem um aumento do seu capital social pelo valor de € 51.000,00.
65- O artigo 12° do Pacto Social da R dispõe: "Um- Sem prejuízo de disposições legais diversas, são obrigatoriamente amortizadas pelo respectivo valor nominal as ações cujos títulos sejam penhorados, arrestados, ou envolvidos em qualquer providência judicial ou administrativa que possa implicar ulterior transmissão da titularidade das respectivas ações. Dois- ( ... ) Três- O pagamento da contrapartida da amortização de ações nos casos previstos nos dois números antecedentes será efectuado no fim do segundo exercício, subsequente à amortização".
           
Factos Não Provados (com relevância para a decisão a proferir)
A- Que por efeito da amortização referida em 1, a AA VIU o seu património reduzido a um valor alegadamente insuficiente para cumprir as obrigações vencidas perante os seus credores.
B- Que com esse pretexto, em 07/05/2021, requereu e obteve a sua declaração de insolvência, por sentença de 18/05/2021- Proc. n." 2582/21...., do Juízo de Comércio ... - Juiz ....
C- As sucessivas três deliberações - (i) de aumento de capital social; (ü) de amortização de ações; (iii) de redução de capital social - visaram, exclusivamente, colocar a AA numa situação fictícia de insolvente e, desse modo, impedir a satisfação do crédito da AUTORA sobre a mesma ex-acionista.
D- Que, depois de muito pressionada e de ser confrontada com documentos entretanto obtidos pela AUTORA, que confirmavam que os pais eram possuidores de significativo património financeiro, a irmã AA, já nos últimos meses de 2012, acabou por admitir que utilizara € 1.400.000,00 das contas do pai, alegadamente doados por este, para pagar a quota adquirida ao II.
E- Na data da amortização das ações (26/04/2021), o crédito da A sobre a acionista AA ascendia ao montante de € 1.284.104,81, cifrando-se presentemente (29/08/2021) em € 1.311.671,25(um milhão trezentos e onze mil seiscentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), considerando os juros de mora (desde 05/02/2014, à taxa de 4% ao ano) e juros compulsórios vencidos (desde 19/05/2021, à taxa de 5% ao ano) até ao presente.
F - Que nem o Conselho de Administração da RÉ quis amortizar as ações da AA nem esta quis aceitar tal amortização.
G- Ou seja, não existiu qualquer correspondência entre a vontade declarada e a vontade real do Conselho de Administração da RÉ no que respeita à deliberação de amortização das ações da AA, que efetivamente não quis amortizar.
H- De igual modo, da parte da KK não existiu qualquer coincidência entre a vontade declarada - por mera conformação e/ou omissão de oposição - e a vontade real de aceitar tal amortização.
I- Tudo não passou de um mero mecanismo para transferir a participação da AA no capital social da RÉ para o património do filho BB, que, por via dos pretéritos aumento e redução de capital social, passou a ser titular de uma participação de 92,60%, assim colocando-a a salvo dos seus credores, nomeadamente da AUTORA.
J- Com este expediente, a AA, ainda que formalmente através do filho BB, seu verdadeiro testa de ferro, continua a manter a propriedade e o controlo total sobre a RÉ.
K- Ainda por efeito das mesmas deliberações, a AA alcançou dois outros intentos: (i) "anulou" a penhora sobre as suas 597.000 acções, efectivada em 21/04/2021 mas com efeitos retroagidos a 06/09/2013 em virtude da conversão do arresto decretado em 14/08/2013; (ü) ocultou na esfera jurídica do filho BB, seu verdadeiro testa de ferro, a participação maioritária que detinha na RÉ.
L- Mas o mais grave de tudo isto é que tais deliberações derrogaram os efeitos da decisão judicial proferida no PROC. N.º 589/..., nomeadamente, quanto à reversão para a AA das 198.944 ações até então tituladas pelo filho BB, e quanto à condenação no pagamento à AUTORA da quantia de € 996.212,92 e juros vencidos e vincendos desde a citação naquela acção (05/02/2014).
M - A deliberação de aumento de capital da RÉ tomada em assembleia geral universal de 19/03/2021 (v. art.ºs 62.° a 70.°, supra, e Doc. ...1), não teve em vista o aumento de capital social propriamente dito, como a deliberação do Conselho de Administração de 26/04/2021 não visou amortizar as ações da AA para defesa dos interesses da RÉ, como, por fim, a deliberação de redução do capital social tomada em assembleia geral universal de 26/04/2021 não teve por objetivo essa redução.
N- Todas estas três deliberações, interligadas e instrumentalizadas entre si, são deliberações simuladas, no sentido de ocultarem o que verdadeiramente os seus autores, acionistas e administradores da RÉ, quiseram realizar: deslocar do património da AA para o património do filho BB a participação social que aquela detinha na RÉ representada pelas 597.000 ações amortizadas, sonegando-as à penhora que já as onerava, com a intenção de prejudicar a AUTORA, frustrando-lhe a satisfação do seu crédito.
O- Através dos respetivos advogados, encetaram-se então negociações com vista à resolução desse diferendo, que decorreram no período de Janeiro a Maio de 2013, que quase culminaram com a celebração de um acordo.
P- Todavia, esse acordo gorou-se basicamente porque, no último momento, já com a respetiva minuta praticamente fechada, a AA não aceitou a condição imposta pela AUTORA, de aquela quantia poder ser aumentada caso viesse a apurar-se que a verba global que retirara das contas bancárias do pai era superior ao valor que admitira, isto porque faltava ainda verificar os extratos de movimentos de uma conta no Banco 1... que a irmã recusara facultar.
Q- Paralelamente à frustração de tal acordo, a A. veio a saber que, no decurso das negociações, a irmã AA tratara de transferir para o filho BB uma boa parte do seu património (avultadas quantias em dinheiro, ações representativas do capital social da RÉ, casa de habitação, etc., como havia transmitido um imóvel de valor significativo para o contabilista CC, como se disse (v. art.º 24.°, supra), pessoa da sua máxima confiança, entretanto, elevado à condição de acionista e Presidente do Conselho de Administração da RÉ.
R- Descobriu ainda a A. a doação da quota de € 120.000,00 no capital social da RÉ que a sua irmã fizera ao filho BB em 14/05/2012 (v. art.º 21.°, supra, e Doc. ...), e as operações posteriores de aumento do capital social e transformação da RÉ em sociedade anónima, com aquele último a ficar detentor de 198.974 ações.
S- A partir de então (11/02/2021), a AA ficou irreversivelmente constituída na obrigação de pagar à A. a quantia de € 996.212,92, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, presentemente (29/08/2021) no montante global de € 1.311.671,25.
T - A partir de 11/02/2021, a acionista AA viu-se novamente investida na titularidade das 597.000 ações nominativas, do valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de 99,5% do capital social da RÉ.
U- Na sequência da prolação do segundo acórdão do T.R. de Guimarães, que colocou um ponto final no litígio judicial, a AA encenou uma tentativa velada de negociação do pagamento da dívida à AUTORA.
V-Pese embora tivesse ficado de falar com a mãe e de apresentar nova solução, o BB não mais deu sinal de si, revelando que as tentativas de negociação do pagamento da dívida não passaram de insidiosa encenação.
W - A partir de então, e porque absolutamente ciente de que a A, rapidamente iria promover a execução da referida sentença, a AA, de forma concertada com os restantes acionistas, levou a cabo uma sucessão de atos societários no âmbito da RÉ para se libertar das 597.000 ações, subtraindo-as ao seu património, e, desse modo, impedir que as mesmas respondessem pela dívida a que fora condenada.
X. Para promover a amortização das suas 597.000 ações no capital social da RÉ, o que, no entanto, não era legalmente possível porque a sociedade, atento o disposto no art. ° 276.°, n.º 5, do CSC, não podia ficar reduzida ao capital remanescente de € 3.000,00, a acionista AA, em concertação com os demais acionistas, o filho, BB, o ex-marido, DD, o contabilista, CC, e a amiga, EE, reunidos em assembleia geral universal datada de 19/03/2021- precisamente a data em que se produziam os efeitos da sua renúncia ao cargo de Presidente do Conselho de Administração - deliberaram um aumento de capital social da RÉ, no montante de € 51.000,00, elevando-o à cifra de € 651.000,00.
Y- O dinheiro com que o BB subscreveu este aumento faz parte de dinheiros da mãe, AA, que esta seguramente mantém ocultados em contas de terceiros da sua confiança, provavelmente do próprio filho BB.
Z- Com estas sucessivas deliberações, a AA, pura e simplesmente, conseguiu eliminar a sociedade RÉ do seu património, subtraindo-a ao pagamento da sua dívida à AUTORA e, mais grave ainda, servindo-se depois desse facto para obter a sua declaração de insolvência.
AA- A AA bem sabia que a sua participação social tinha um valor superior a € 4.000.000,00.
BB- A AA, sabendo que as suas ações estavam arrestadas e que a todo o momento o arresto podia ser convertido em penhora, tratou rapidamente de prover a RÉ com as condições mínimas de capital para que o Conselho de Administração pudesse declarar a amortização de tais ações.
CC- Para isso, mancomunou-se com os demais accionistas para, no âmbito dos respectivos órgãos sociais - Assembleia Geral e Conselho de Administração -, tomarem as deliberações necessárias para deslocar a sua participação social na RÉ para a esfera juridica do filho BB.
DD- Assim, numa aparência de legalidade, deliberaram o aumento de capital social da RÉ, com o filho BB a subscrever € 50.000,00; de seguida, o Conselho de Administração deliberou amortizar as 597.000 ações da AA, que esta, enquanto destinatária direta de tal deliberação, aceitou pacificamente, não se lhe opondo; por fim, novamente os acionistas deliberaram reduzir o capital social para € 54.000,00, no qual o filho BB, por via da subscrição no referido aumento, garantira o domínio total sobre a RÉ com uma participacão social de 92,60%.
EE- Ou seja: a deliberação de aumento de capital social foi um ato preparatório e instrumental das duas deliberações posteriores: (1) a do Conselho administração de 26/04/2021, que declarou a amortização das 597.000 ações da AA; (2) a da assembleia geral universal do mesmo dia 26/04/2021, que deliberou a redução do capital social da RÉ para € 54.000,00.
FF- Na base daquela primeira deliberação não existiu da parte dos acionistas da RÉ, a começar pela AA - então titular de uma participação social de 99,5% e cujos votos foram imprescindíveis à sua aprovação -, qualquer vontade real de aumentar o capital social da sociedade.

4. Decisão de facto

4.1. Enquadramento jurídico: Matéria de facto / Matéria de direito e conclusiva - Factos relevantes - Ordenação lógica

A apreciação da decisão de facto da sentença recorrida reclama que se deixem aqui consignadas algumas notas de enquadramento jurídico.

O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe:
“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados….”

Assim e em primeiro lugar, na parte citada, este normativo dirige um comando ao juiz cujo primeiro sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões.

Ou seja: resulta claro deste normativo que na fundamentação de facto apenas cabem asserções de facto e não asserções conclusivas, genéricas, matéria de direito.

A este respeito Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 19-22, referindo-se à  “linguagem dos enunciados de facto”, 19-22, refere que deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(…)
(…) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.”

E também Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 350-351, refere:
“A decisão de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação parcial do julgamento.
(…)
Outro vício que pode detetar-se (...), pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito (…).
(…)
Por isso, a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito.”

Contendo a sentença juízos conclusivos ou matéria de direito, coloca-se a questão de saber como o resolver.

Hoje não existe nenhum normativo idêntico ao antigo artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva.
Mas o princípio que estava subjacente ao preceito não desapareceu, como tem vindo a decidir a jurisprudência.

Assim:
- no Ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
 “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art.º 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.

- no Ac. desta RG de 20.09.2018, proc. 778/16.0T8BCL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg em cuja fundamentação consta:
“O Código do Processo Civil de 2013 eliminou o citado preceito [646º n.º 4 do CPC de 1961], no entanto é de considerar que se mantém tal entendimento, interpretando a contrario sensu o n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados. Ou seja o tribunal só pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida “os factos” e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis, o que é uma operação intelectual bem distinta.

- no Ac. desta RG de 11.10.2018, proc. 616/16.3T8VNF-D.G1, consultável no mesmo sitio do anterior, onde consta:
“ De resto, ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do art.º 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito), (…) que tal não permite concluir que pode agora o juiz incluir no elenco dos factos provados meros conceitos de direito e/ou conclusões normativas, e as quais, a priori e antecipada e comodamente, acabem por condicionar e traçar desde logo o desfecho da acção ou incidente, resolvendo de imediato o “thema decidendum”.

- no Ac. do STJ de 19/01/2023, processo 15229/18.7T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj consta do respetivo texto que “por imperativo do estatuído no artigo 607º nº 4 do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.”
Este mesmo Ac. refere ainda que “saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida.”

É objecto de intensa discussão a distinção entre matéria de facto e de direito.

Tal discussão não tem aqui cabimento.

Apenas se impõe notar que: i) só casuisticamente se poderá afirmar o que é facto e o que é Direito; ii) em traços gerais podemos assentar que: a) é matéria de facto tudo o que respeita às ocorrências da vida real, todos os acontecimentos concretos da vida, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, sejam eles realidades do mundo exterior, como realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo; b) é matéria de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei e dos negócios jurídicos.

Não é apenas a lei que define os direitos e deveres das partes; os negócios jurídicos, o concretamente acordado entre as partes, “dentro dos limites da lei”, são a primeira fonte desses direitos e deveres (cfr. art.ºs 398º n.º 1 do CC e 405º n.º1, ambos do CC).

Os negócios jurídicos visam a produção na esfera jurídica das partes (ou de terceiros, nos casos em que a lei o admita, máxime contrato a favor de terceiro) de determinados efeitos jurídicos. Esses efeitos jurídicos traduzem-se em direitos e deveres.

Assim, constitui matéria de facto a celebração do negócio jurídico e o seu concreto conteúdo, ou seja, o que foi efectivamente acordado entre as partes; constitui matéria de direito apurar, através da interpretação e integração desse negócio – tarefa subordinada às regras jurídicas que constam dos art.ºs 236º a 239º do CC – quais os efeitos jurídicos dele decorrentes, ou seja, os direitos e deveres que dele emergem para as partes (ou para terceiros, nos casos em que a lei o admita).

Em segundo lugar e no que tange à seleção dos factos a enunciar, a mesma tem por objecto os factos essenciais relevantes para a boa decisão da causa.

E são relevantes (cfr. Manuel Tomé Soares Gomes, ob. cit., pág. 14, que seguiremos de perto):

- os factos essenciais à procedência das pretensões deduzidas, ou seja, aqueles que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tais pretensões, na perspetiva do efeito pretendido, segundo as regras de repartição do ónus da prova; 
- os factos essenciais suscetíveis de integrar os fundamentos de exceção perentória deduzida ou que deva ser objeto de conhecimento oficioso.

De entre os factos essenciais, há que destacar os que respeitam a factualismos complexos tendentes a preencher conceitos de direito indeterminados ou cláusulas gerais (culpa, necessidade do locado para habitação, justa causa, abuso de direito, boa fé, alteração normal das circunstâncias, posse, sinais visíveis e permanentes para efeitos de servidão de passagem, etc.).
Nesse tipo de factualidade, o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio.
Tais concretizações ou complementaridades fácticas podem ser introduzidas no objeto da prova, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC (…)”

Mais adiante, pág. 15, acrescenta que:
“A aferição da relevância dos factos para a resolução do caso deverá ser feita em função de três vectores confluentes:
(i) Em primeiro lugar, o referencial normativo traçado na facti species legal, simples, complexa ou concorrente, em que se inscreve a pretensão deduzida ou a exceção perentória em causa, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da prova, numa perspetiva aberta do quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal possa vir, a final, a considerar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC; 
(ii) Em segundo plano, o contexto factológico narrativo alegado pelas partes (…)
(iii) Por fim, o contexto histórico ou real do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova.
Os três vectores referidos – o referencial normativo, o contexto factológico narrativo e o contexto factual histórico – representam um esquema de base, triangular, fundamental para delinear tanto o objeto da prova a submeter a instrução na audiência final como para administrar as provas, no sentido de apurar tudo o que se revele necessário e útil para a decisão da causa. 
Com efeito, o referencial normativo indica o quadro das soluções de direito plausíveis, incluindo a repartição do ónus da prova, para que melhor se possa divisar o alcance jurídico de cada facto submetido a prova e o coeficiente de esforço probatório exigido a cada uma das partes.  
Por sua vez, o contexto factológico narrativo permite situar dada espécie factual no universo de cada uma das versões apresentadas pelos litigantes, de modo a ter presente o sentido que ali lhe é dado e a sua coerência como os restantes segmentos fácticos em causa. Tal perspetiva integrada evitará sobreposições, aporias ou mesmo contradições entre os juízos probatórios e proporcionará maior economia na própria atividade instrutória. 
Por fim, o contexto histórico do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova, permite pôr em linha o contexto narrativo das partes com a sua matriz factológica, no sentido de um maior apego à dimensão real dos factos, possibilitando, consequentemente, uma concretização ou complementação dos juízos probatórios, quando tal se afigura útil para a subsequente análise jurídica.”

E no mesmo sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3ª Edição, Almedina, pág. 704, anotação ao art.º 607º referem:
“A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas processuais, sejam de normas de direito material”.

Em terceiro lugar, importa assinalar um aspecto, que, com inusitada frequência, se vem verificando não ser tido em conta, mas que é de extrema importância e que diz respeito à ordem de enunciação dos factos relevantes.

A este respeito refere Tomé Gomes, in ob. cit. pág. 19-22: “ Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto (…) na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto, só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.”

E Abrantes Geraldes, in Sentença Cível, pág. 7, nota 8, consultável in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf (sublinhados nossos):
“No que concerne à matéria de facto provada, deve evidenciar, de forma imediata, coerente e lógica, a realidade sob apreciação, o que de modo algum se satisfaz com a colagem de diversos elementos que nem sequer internamente se mostram ordenados. Tal como acontece com um puzzle, em que o encaixe das peças se revela imprescindível à representação da imagem, também a realidade que o Tribunal considera apurada apenas ganha sentido com a ordenação dos diversos segmentos da matéria de facto. Ainda que se mantenha o número de componentes, o amontoado de peças (ou o arrazoado de factos) não permite perceber a imagem (ou a realidade) em que se integra cada um dos elementos. Acresce que determinados segmentos da matéria de facto apenas revelam o seu verdadeiro sentido depois de contextualizados, atendendo, por um lado, ao modo como foram alegados e, por outro, aos motivos por que foram considerados provados.”

E mais adiante – pág. 10-11 – refere o mesmo autor (sublinhado nosso): “… na enunciação dos factos apurados o juiz deve usar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.
Por isso é inadmissível (tal como já o era anteriormente) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.
Este objectivo – que o bom senso já anteriormente deveria ter imposto como regra absoluta – encontra agora na formulação legal um apoio suplementar, já que o art. 607º, nº 4, 2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma sequência desordenada de factos atomísticos.”

4.2. Impugnação da decisão de facto
4.2.1. Os requisitos do art.º 640º do CPC

Dispõe o art.º 640º do CPC, cuja epigrafe é “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)”

Não releva dar aqui conta do percurso legislativo percorrido até se chegar à norma em referência – para tal cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 194-195.

Apenas importa considerar que em tal percurso “…foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” – aut. e ob. cit. pág. 194

O mesmo autor, in ob. cit. pág. 196-197, procede a uma síntese da jurisprudência quanto às exigências legais quando o recurso de apelação envolva a impugnação da matéria de facto, nomeadamente quanto ao “lugar” (alegações ou conclusões) em que as mesmas devem ser observadas e que são:

a) o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, dizendo em nota (307) que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, conforme dispõe o art.º 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões;
b) deve ainda especificar, na motivação, os concretos meios de prova, constantes do processo (documentos ou confissões reduzidas a escrito) ou de registo (depoimentos que não foi possível gravar, mas que foram reduzidos a escrito, como sucede com cartas rogatórias) ou gravação nele realizada (depoimentos orais prestados em audiência que ficaram gravados em áudio ou vídeo), que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objecto de impugnação;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação tenha por base, no todo ou em parte, a prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere pertinentes;
d) o recorrente deixará, expresso, na motivação, a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação critica dos meios de prova produzidas.

Impõe-se acrescentar algumas precisões.

Relativamente ao referido em b), não basta ao recorrente indicar os concretos meios de prova que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida.
Impõe-se ao recorrente o “ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente:  cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 797), ou seja, o recorrente tem o ónus de indicar as razões pelas quais aqueles meios de prova permitem se considere provado, ou não provado, consoante for o caso, o facto impugnado.
No fundo, o recorrente tem de fazer uma análise crítica dos meios de prova que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida.

Relativamente ao referido na alínea c), como consta do sumário do Ac. do STJ de 18/06/2019, proc. 152/18.3T8GRD.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
III - A alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de que a impugnação da matéria de facto com base em prova gravada tanto se pode fazer mediante a indicação dos concretos segmentos da gravação como mediante a transcrição deles.
IV - Todavia, transcrever os depoimentos é reproduzir objetivamente, sem fazer intervir qualquer subjetividade, filtro ou juízo apreciativo, aquilo que as pessoas ouvidas declararam (verbalizaram).
V - Não vale como transcrição uma “resenha” (sic) ou aquilo que “em suma” (sic) terão referido as pessoas de cujos depoimentos o recorrente se quer fazer valer.
VI - Neste caso não se está senão perante a interpretação dada pelo recorrente aos depoimentos em causa, e não, como é devido, perante uma transcrição objetiva do teor desses depoimentos.

Em terceiro lugar, ainda quanto ao referido em c), a alínea a) do n.º 2 do art.º 640º rege para a hipótese de os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados e o recorrente não dar cumprimento ao ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, nem proceda à transcrição dos excertos que considere relevantes.
E, caso se verifique esta hipótese, determina a rejeição do recurso “na respectiva parte”, ou seja - e é isto que se quer relevar - , na parte relativa aos meios probatórios que tenham sido gravados.
Se acaso a parte tiver invocado, além de meios probatórios que tenham sido gravados, outros meios de prova – documentos, perícia - nesta parte, quanto a estes meios de prova, a impugnação não pode ser rejeitada.

Finalmente e como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 200, a análise do cumprimento destes ónus deve ser realizada “à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça”.

4.2.2. Da modificabilidade da decisão de facto
O art.º 662º do CPC, com a epigrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, dispõe:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
(…)”

Está em causa saber como a Relação deve mover-se no domínio da modificabilidade da decisão de facto motivada pela impugnação da decisão de facto.

A apreciação, pela Relação, da decisão de facto impugnada, não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj)

O sentido deste normativo é o de impor à Relação o dever de modificar a decisão de facto, sempre que havendo impugnação da matéria de facto e no respeito do principio do dispositivo quanto ao objecto do recurso, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, entendendo-se que:
i) incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do citado  art.º 662º],  à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1 e em sentido semelhante os Ac.s do STJ de 14/09/2021, proc. 60/19.0T8ETZ.E1.S1, de 13/04/2021, proc. 2395/11.1TBFAF.G2.S1 todos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj) assumindo-se o mesmo como tribunal de instância (Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, 6ª edição, pág. 331 e 332);
ii) no processo de formação de uma convicção autónoma, a Relação não está adstrita “aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido (o Ac. do STJ, de 20.12.2017, proc. 3018/14.2TBVFX.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj), tendo plena aplicação o disposto no art.º 413º do CPC.

De referir ainda que na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, caso a Relação proceda à alteração da mesma e se verifique ser necessário, em função da reapreciação conjunta e global dos factos, alterar algum facto não impugnado, pode a Relação fazê-lo a bem da coerência daquela decisão (cfr. Ac. do STJ de 29/04/2021, proc. 684/17.0T8ABT.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

4.3. Deficiência da decisão de facto

Realidade diversa da impugnação da decisão de facto, que pressupõe um erro de julgamento, é a deficiência da decisão de facto, que está plasmada no art.º 662º n.º 2 alínea c) onde se dispõe que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Actualmente poderá afirmar-se que haverá deficiência quando o tribunal não se pronuncie sobre algum facto integrante dos temas da prova ou, como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 352, a decisão de facto será deficiente se houver “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”; será caso de ampliação da matéria de facto, quando tiver sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litigio ( cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 353).

4.4. Da livre apreciação da prova e motivação da decisão de facto
O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe que “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

A análise crítica das provas a que se refere o n.º 4 citado, significa, em primeiro, uma análise conjugada de toda a prova produzida e em segundo uma análise segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e da experiência, dispondo, a este respeito, o n.º 5 do art.º 607º que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, o que tem em vista a prova por declarações de parte, salvo na parte em que constituam confissão, a prova documental escrita a que falte algum dos requisitos exigidos na lei, a prova pericial, a prova por inspecção e a prova testemunhal, provas relativamente às quais a lei dispõe, expressamente (cfr.  artºs 466º n.º 3 do CPC e art.ºs. 366º, 389º, 391º e 396º do CC, respectivamente), que estão sujeitos à livre apreciação do tribunal.

O n.º 4, ao determinar que o juiz especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, impõe que o juiz explique como se convenceu com as provas que se produziram, que motive a decisão de facto.

Assim, a motivação consiste em exarar o raciocínio do tribunal para uma dada decisão de facto e deve conter, para além da indicação dos concretos elementos probatórios que lograram aceitação por parte do tribunal, as razões ou motivos dessa aceitação.

São estes dois factores - o convencimento e a dificuldade de apurar a verdade - que se misturam e impõem que o juiz explique como se convenceu com as provas que à sua frente se produziram.

Refere Manuel Tomé Soares Gomes, Da Sentença Cível, CEJ, 2014, https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 29:
A motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.”

Por outro e no que tange à formulação dos juízos probatórios, importa não esquecer que a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ªEdição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436).

Ou seja: a prova judicial não tem que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca dos factos a provar; a prova judicial nunca é a realidade naturalística das coisas; o que a prova judicial deve determinar é um grau de probabilidade (do facto) tão elevado que baste para as necessidades da vida.

Como refere Manuel Tomé Soares Gomes, in ob. cit. pág. 25:
“… a valoração da prova, por parte do tribunal, consubstancia[-se] na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio pragmático sobre as ocorrências da vida. “

E mais adiante, pág. 26: “prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso.“

O disposto no art.º 607º também é aplicável à  Relação nos termos do disposto no art.º 663º n.º 2 do CPC, mas com as devidas adaptações, porquanto, muito embora na eventual reapreciação da decisão da matéria de facto caiba à Relação formar a sua própria convicção quanto à  prova produzida, tal reapreciação não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão.

Assim refere-se no Ac. desta RG de 04/04/2019, processo 1012/15.5T8VRL-AV.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg (sublinhado nosso), “ a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.“

Por outro lado, uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, o juiz da 1ª instância encontra-se numa posição privilegiada para proceder à sua valoração, já que, através da imediação, tem acesso ao comportamento das partes e das testemunhas, o que lhe permite aferir, de forma cabal, da respectiva espontaneidade e credibilidade.
Tal não sucede com a Relação, que apenas dispõe do registo de som e não também de imagem.

Mas essa é uma consequência das opções assumidas pelo legislador, ou seja, a Relação reaprecia a decisão da matéria de facto com base nos elementos que lhe estão acessíveis.
Não tendo a Relação aquele elemento – imediação – e não havendo elementos probatórios que lhe permitam formar um juízo seguro de que existe erro de valoração da prova, deverá ser dada prevalência à decisão da 1ª Instância.

Assim refere Ana Luísa Geraldes, in «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609:.
«Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».

4.5. Em concreto
4.5.1. Cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC.

A recorrente cumpriu os ónus que lhe são impostos pelo art.º 640º, pelo que se impõe analisar a mesma.

4.5.2. Impugnação v. deficiência

Integra impugnação da decisão de facto a alegação da recorrente de que a matéria indicada nos pontos 6 e 60 dos factos provados e alíneas S, T, E, F, G, H, I, J, L, M, U, V, W e Y foi incorrectamente julgada e integra deficiência da decisão de facto a alegação da recorrente de que deve ser aditada à decisão de facto a matéria indicada nas conclusões 11 e 12.

As duas questões serão analisadas separadamente

4.5.3. Impugnação da decisão de facto

A - Consta dos pontos 6 e 60 dos factos provados:
6- O decretado arresto garantia o pagamento à Autora de um crédito de € 996.212,92, acrescido de juros de mora à taxa legal desde 05/02/2014, que a acionista AA fora judicialmente condenada a pagar-lhe por sentença proferida em 18/12/2018, no Proc. n." 589/14...., do Juízo Central Cível ... - Juiz ... (Proc. n.º 589/14....), posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021, foi objeto de recurso de revista excecional e transitou em julgado a 19-5-2021.

60- Só a 19-5-2021 a decisão proferida- Acórdão- no processo n" 589/14.... transitou em julgado, fazendo regressar ao património da acionista AA as 198.974 ações de que era titular o seu filho BB.

A recorrente impugna estes dois pontos dos factos provados no segmento em que se refere que o Ac. desta Relação de 11/02/2021, proferido no processo 589/14...., transitou em julgado a 19/05/2021.

O tribunal recorrido considerou que “a matéria dos artigos 6° (…) resulta do teor da sentença e acórdãos proferidos no processo n" 589/14.... a fls 86 verso (…)” e que “A matéria do artigo 60° resulta do teor da certidão de fis 85 verso que certifica narrativamente que a sentença foi objeto de recurso e que transitou em julgado a 19-5-2021. “

A recorrida alega que a referida certidão - emitida no âmbito do processo  589/14...., pela secretaria do J ... do Juízo Central Cível ... – Tribunal Judicial da Comarca ..., a 02/06/2021 - constitui um documento autêntico.

Vejamos a última questão

O art.º 363º n.º 2 do CC dispõe que são documentos autênticos os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.

E o art.º 369º n.º 1 dispõe que o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar.

O n.º 1 do art.º 370º do CC dispõe que presume-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço.

Mas passando do plano formal, para o plano do valor probatório, o n.º 1 do art.º 371º do CC dispõe que os documentos autênticos [só] fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

Em concreto

A certidão emitida pela Sra. Escrivã Auxiliar do J ... do Juízo Central Cível ... – Tribunal Judicial da Comarca ..., no âmbito do processo 589/14...., tendo por objecto elementos documentais dele extraídos, constitui um documento autêntico e faz prova plena quanto a tais elementos na medida em que se trata de um documento emitido por um oficial público, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído e os factos são atestados com base na percepção da mesma.

Mas isso já não sucede quanto à menção que a decisão proferida transitou em julgado a 19/05/2021, porquanto a mesma traduz um juízo pessoal da Sra. Oficial de Justiça, que inclusive envolve considerações de natureza jurídica.

Neste sentido afirmou-se no Ac. da RP de 05/02/2015, processo 3724/12.6TBVFR.P2, consultável in www.dgsi.pt/jtrp:
“Uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação – artº 628º, do CPC.
Na operação que conduz a tal consideração – conclusão ou juízo – confluem factos objectivos do processo (data da notificação às partes e verificação de que, no período de tempo julgado relevante nenhum recurso foi interposto e nenhuma reclamação foi deduzida) e aplicação de normas legais (desde logo, as relativas à data em que juridicamente se presume feita a dita notificação e, depois, as que determinam se e em que prazo ou até quando o recurso ordinário podia e devia ter sido deduzido ou a reclamação apresentada).
Aqueles (factos) percepcionáveis e extraíveis directamente do processo e reportáveis ou narráveis na certidão pelo documentador dele depositário público, têm a força probatória dos originais, a qual, porém, pode ser invalidada ou modificada por confronto com aquele (original), designadamente pela pessoa contra quem for apresentada – artºs 383º, nº 1, e 385º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
Estas (normas), na medida em que implicam a sua escolha, interpretação e aplicação e, por isso, tarefa de índole jurídica para que lhe falta legitimidade e competência funcional (ainda que, ressalve-se, disponha de plena capacidade e saber), escapam ao acto de certificação e, por isso, àquela força probatória, podendo naturalmente a operação ser questionada em termos normais no plano do erro de direito (já não no do factual ou da prova).”

Destarte, não tem fundamento a alegação da recorrida de que a certidão junta aos autos, na parte em que se refere à data do trânsito em julgado, constitui um documento autêntico.

Saber em que data transitou em julgado uma dada decisão, constitui matéria de direito, para cuja apreciação releva saber em que data foi notificada às partes e se houve, ou não, reclamação ou foi interposto recurso.

Através da consulta do sistema Citius nesta Relação foi certificado que o referido Acórdão foi notificado às partes a 12/02/2021 e não foi apresentada  reclamação nem foi interposto recurso de revista.

Destarte impõe-se concluir que é caso de aditar estes dois factos à decisão de facto.

Destarte e em face do até aqui exposto duas conclusões se impõem:
- a referência, nos pontos 6 e 60, ao trânsito em julgado, devem ser eliminadas;
- deve ser aditado aos factos provados que o Acórdão proferido por estas RG no âmbito do processo 589/14...., do J ... do Juízo Central Cível ... – Tribunal Judicial da Comarca ..., foi notificado às partes a 12/02/2021 e não foi apresentada reclamação nem foi interposto recurso de revista.

Mas este aditamento não pode ser efectuado no âmbito dos 6 e 60.

Não pode ser aditado ao ponto 6 porque no mesmo padece de um lapso e de incongruências.

Quanto ao lapso, consta do referido ponto 6 (e consta também dos ponto 30 e 60) que a 18/12/2018 foi proferida sentença no Proc. n.º 589/14...., do Juízo Central Cível ... - Juiz ... quando, na realidade, como resulta da certidão junta a fls. 85 e segs. do processo físico, a sentença foi proferida a 04/02/2019.

Quanto às incongruências, consta do ponto 6 que a sentença proferida no Proc. n.º 589/14.... foi “posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021, foi objeto de recurso de revista excecional….”, quando na realidade:
- da referida sentença foi interposto recurso de apelação para a Relação de Guimarães, que por acórdão de 13/02/2020 confirmou a sentença recorrida (cfr. ponto 31 dos factos provados);
- do referido acordão foi interposta revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão de 02/12/2020 decidiu “rejeitar a presente revista excepcional, mas determinando a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães para se pronunciar sobre as invocadas nulidades do acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 617.º, n.º 5, 2ª parte, do CPC" (cfr. ponto 32 dos factos provados);
- a 11/02/2021 a Relação de Guimarães proferiu um segundo acórdão pelo qual decidiu "julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus AA e FF, BB, CC e GG e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do "Dispositivo", condenando a Ré AA a pagar à Autora metade da quantia sonegada às heranças abertas por óbito de seus pais. No mais, decide-se manter a sentença recorrida." ( cfr. ponto 33 dos factos provados).

Não pode ser aditado ao ponto 60, porque além de tudo o já referido, o segmento “…fazendo regressar ao património da acionista AA as 198.974 ações de que era titular o seu filho BB.” - , integra matéria de direito.

E o mesmo sucede no ponto 34, que tem o seguinte teor:
34- Na sequência da nulidade, por simulação, declarada pelas referidas decisões judiciais, dos atos de transmissão mencionados na al. e) do segmento decisório da sentença de 1.ª Instância (v. Doc. ...6 e art.º 41.°, supra), regressaram ao património da AA, entre outros bens, as 198.974 acções nominativas representativas do capital social da RÉ, até então tituladas pelo filho BB.

Em face do exposto impõe-se:

- relegar para a fundamentação de direito a questão do trânsito em julgado do Acórdão desta RG proferido a 11/02/2021 no âmbito do processo n.º 589/14...., do Juízo Central Cível ... - Juiz ...;

- uma vez que resulta da certidão junta aos autos que a sentença referida nos pontos 6 e 30 foi proferida a 04/02/2019, certidão essa que neste domínio constitui documento autêntico (art.ºs 363º n.º 2, 369º n.º e 370º n.º 1 do CC) e faz prova plena quanto a tal data ( cfr. art.º 371º n.º 1 do CC), impõe-se alterar os pontos 6 e 30 dos factos provados de forma que, onde consta 18/12/2018, passe a constar 04/02/2019;

- a fim de evitar incongruências, impõe-se eliminar a parte do ponto 6 que tem o seguinte teor:”…. posteriormente confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021, foi objeto de recurso de revista excecional e transitou em julgado a 19-5-2021.” ;

- eliminar os pontos 34 e 60 por conterem matéria de direito;

- aditar um ponto 33º A com o seguinte teor:
33 – A - O Acórdão proferido no ponto 33 foi notificado às partes a 12/02/2021 e não foi apresentada reclamação ou interposto recurso de revista.

B - Consta da alínea E dos factos não provados:
E- Na data da amortização das ações (26/04/2021), o crédito da A sobre a acionista AA ascendia ao montante de € 1.284.104,81, cifrando-se presentemente (29/08/2021) em € 1.311.671,25 (um milhão trezentos e onze mil seiscentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), considerando os juros de mora (desde 05/02/2014, à taxa de 4% ao ano) e juros compulsórios vencidos (desde 19/05/2021, à taxa de 5% ao ano) até ao presente.

A A. alegou este facto no art.º 8º da PI, que a Ré impugnou no art.º 20º da contestação, na parte em que incorpora juros com ofensa do disposto nos art.ºs 48º, b, e 91º, 2, CIRE, considerando a decretada insolvência da acionista AA.

O ponto em referência procede à liquidação do crédito da A. sobre a acionista AA.

Mas, tendo em consideração o objecto da presente acção – sejam declaradas nulas as deliberações sociais de aumento de capital social da R, de amortização das ações da acionista AA e de redução do capital social da R e seja ordenado o cancelamento dos registos de tais atos societários – e tendo em consideração já resultar dos ponto 30 a 33 – A que a A. é credora de AA, o exacto montante desse crédito é irrelevante para a decisão da causa, o que se comunica ao ponto de facto que não considerou provado esse montante.

Destarte e por irrelevante, elimina-se a alínea E dos factos não provados.

C - Consta das alíneas F, G, H, I, J, L, M, U, V e W dos factos não provados
F - Que nem o Conselho de Administração da RÉ quis amortizar as ações da AA nem esta quis aceitar tal amortização.
G- Ou seja, não existiu qualquer correspondência entre a vontade declarada e a vontade real do Conselho de Administração da RÉ no que respeita à deliberação de amortização das ações da AA, que efetivamente não quis amortizar.
H- De igual modo, da parte da KK não existiu qualquer coincidência entre a vontade declarada - por mera conformação e/ou omissão de oposição - e a vontade real de aceitar tal amortização.
I- Tudo não passou de um mero mecanismo para transferir a participação da AA no capital social da RÉ para o património do filho BB, que, por via dos pretéritos aumento e redução de capital social, passou a ser titular de uma participação de 92,60%, assim colocando-a a salvo dos seus credores, nomeadamente da AUTORA.
J- Com este expediente, a AA, ainda que formalmente através do filho BB, seu verdadeiro testa de ferro, continua a manter a propriedade e o controlo total sobre a RÉ.
L- Mas o mais grave de tudo isto é que tais deliberações derrogaram os efeitos da decisão judicial proferida no proc. n.º 589/..., nomeadamente, quanto à reversão para a AA das 198.944 ações até então tituladas pelo filho BB, e quanto à condenação no pagamento à AUTORA da quantia de € 996.212,92 e juros vencidos e vincendos desde a citação naquela acção (05/02/2014).
M - A deliberação de aumento de capital da RÉ tomada em assembleia geral universal de 19/03/2021 (v. art.ºs 62.° a 70.°, supra, e Doc. ...1), não teve em vista o aumento de capital social propriamente dito, como a deliberação do Conselho de Administração de 26/04/2021 não visou amortizar as ações da AA para defesa dos interesses da RÉ, como, por fim, a deliberação de redução do capital social tomada em assembleia geral universal de 26/04/2021 não teve por objetivo essa redução.
U- Na sequência da prolação do segundo acórdão do T.R. de Guimarães, que colocou um ponto final no litígio judicial, a AA encenou uma tentativa velada de negociação do pagamento da dívida à AUTORA.
V-Pese embora tivesse ficado de falar com a mãe e de apresentar nova solução, o BB não mais deu sinal de si, revelando que as tentativas de negociação do pagamento da dívida não passaram de insidiosa encenação.
W - A partir de então, e porque absolutamente ciente de que a A, rapidamente iria promover a execução da referida sentença, a AA, de forma concertada com os restantes acionistas, levou a cabo uma sucessão de atos societários no âmbito da RÉ para se libertar das 597.000 ações, subtraindo-as ao seu património, e, desse modo, impedir que as mesmas respondessem pela dívida a que fora condenada.

Já deixámos dito supra que na decisão de facto apenas cabem factos e não asserções jurídicas ou juízos conclusivos e quanto aos factos, apenas os relevantes.

Verifica-se que:
- o teor da alínea L é patentemente jurídico, pelo que impõe eliminar a mesma;
- o teor das alíneas J, U e 2ª parte da alínea V - “…revelando que as tentativas de negociação do pagamento da dívida não passaram de insidiosa encenação. “ –, é patentemente genérico e conclusivo, pelo que se impõe eliminar as mesmas
- o facto referido na 1ª parte da alínea V – “ Pese embora tivesse ficado de falar com a mãe e de apresentar nova solução, o BB não mais deu sinal de si,…”, tendo em consideração o que já consta dos pontos 35 a 41 dos factos provados, é irrelevante, pelo que também se impõe eliminar o mesmo.

Avançando

Nas alíneas supra referidas (e não eliminadas), questiona-se a intenção da Ré no que diz respeito à deliberação de 19/03/2021 da assembleia geral da Ré de aumento de capital social, à deliberação do Conselho de Administração de 26/04/2021 de amortização das ações de AA e à deliberação de 26/04/2021 da assembleia geral da Ré de redução do capital social, afirmando-se, em síntese, que não houve qualquer intenção de aumentar o capital social, de amortizar as acções e de reduzir o capital social; tais actos foram um instrumento para transferir a participação da AA no capital social da Ré para o património do filho BB, assim colocando-a a salvo dos seus credores, nomeadamente da A..

Está essencialmente em causa nas citadas alíneas apurar qual a motivação subjacente às citadas deliberações.

Nos autos foi produzida prova documental, prova por depoimento de parte e prova testemunhal.

No entanto, sem efectuar qualquer discussão crítica da prova produzida, a Sra. Juiz a quo limitou-se a dizer que:
 “A matéria de facto não provada resultou de nenhuma prova digna de crédito se ter realizado a seu respeito.”

A recorrente defende que a matéria das alíneas em referência deve ser considerada provada convocando para tanto, um conjunto de factos alinhados cronologicamente, invocando, de forma genérica, as regras da experiência e convocando ainda o depoimento de parte e o depoimento de algumas testemunhas.

Vejamos em primeiro lugar a factualidade provada

A aqui A. intentou procedimento cautelar de arresto contra AA, FF, BB, CC e GG, distribuído à então Vara de Competência Mista ..., com o n.º 4857/13.... (cfr. ponto 22 dos factos provados).

Por decisão de 14/08/2013 foi julgado que a aqui A. era titular de um crédito que “corresponde – pelo menos- a um terço do valor apropriado pela requerida, ou seja, um terço de mais de um milhão e quatrocentos mil euros” e ordenado o arresto de, entre outros bens, 398.026 acções representativas de uma participação com o valor de € 398.026,00 no capital social da aqui Ré, detidas pela requerida AA e 198.974 acções, representativas de uma participação com o valor de € 198.974,00 no capital social da aqui Ré, detidas pelo requerido BB. (cfr. pontos 5 e 23 dos factos provados e o documento ...0 junto com a petição inicial).

Terminadas as diligências do arresto, a 30/01/2014 A. interpôs contra todos os Requeridos e outros, a ação definitiva, distribuída ao J ... do Juízo Central Cível ... sob o n.º 589/14....,  a que o procedimento de arresto foi apensado. (cfr. ponto 29 dos factos provados).

Por sentença de 04/02/2019, foi decidido: "(…) Declaro a sonegação, por parte da Ré AA, às heranças abertas por óbito de seus pais, da quantia de € 1.992.425,84 (um milhão novecentos e noventa e dois mil quatrocentos e vinte e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos); " Declaro a perda da Ré AA sobre metade da quantia sonegada em favor da Autora; "Condeno a Ré AA no pagamento de metade da quantia sonegada à Autora, atualizada, desde os levantamentos, saques e transferências aludidas no facto provado n.º 49 até .../.../2011 (data do falecimento de JJ); "Condeno a Ré AA a pagar os juros de mora, sobre a quantia aludida em c), desde a citação até integral pagamento, à taxa legal dos juros civis; "Declaro nulo, por simulação, a compra e venda celebrada através da escritura pública aludida no facto provado n.º  54; A doação com reserva de uso e habitação a que se reporta o facto provado n. 57; A cessão da quota de € 120.000.00 ao Réu BB. a que se refere o facto provado n. o 58. depois. sucessivamente. aumentada para o valor de € 198.974.44. e convertida em igual número de ações; A transferência da verba de € 54.222,88 (cinquenta e quatro mil duzentos e vinte e dois euros e oitenta e oito cêntimos) para BB;" Determino o cancelamento das inscrições registrais da aquisição do direito de propriedade efetuadas na sequência dos negócios declarados nulos na alínea e);" ( cfr. pontos 6 e 30 dos factos provados)

Da referida sentença foi interposto recurso de apelação para a Relação de Guimarães, que por acórdão de 13/02/2020 confirmou a sentença recorrida. ( cfr. ponto 31 dos factos provados)

Do referido acórdão foi interposta revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão de 02/12/2020 decidiu “rejeitar a presente revista excepcional, mas determinando a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães para se pronunciar sobre as invocadas nulidades do acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 617.º, n.º 5, 2ª parte, do CPC". ( cfr. ponto 32 dos factos provados)

A 11/02/2021 a Relação de Guimarães proferiu um segundo acórdão pelo qual decidiu "julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus AA e FF, BB, CC e GG e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do "Dispositivo", condenando a Ré AA a pagar à Autora metade da quantia sonegada às heranças abertas por óbito de seus pais. No mais, decide-se manter a sentença recorrida." (cfr. ponto 33 dos factos provados)

O referido Acordão foi notificado as partes a 12/02/2021 e do mesmo não foi apresentada reclamação nem interposto recurso. (cfr. ponto 33 - dos factos provados).

Em síntese: AA foi condenada a pagar à aqui A. metade de € 1.992.425,84, acrescida de juros de mora desde a citação.

A 17/02/2201 a accionista AA foi designada Presidente do Conselho de Administração da Ré para o quadriénio de 2021/2024. (cfr. ponto 43 dos factos provados).

Entre 23/02/2021 e 08/03/2021 houve contactos entre o filho e então marido de AA e o marido da aqui A., com apresentação de propostas de pagamento da quantia que AA havia sido condenada a pagar, sucessivamente rejeitadas pela A., datando a última comunicação de 08/03/2021, data em que o marido da A. comunicou a não aceitação da última proposta apresentada. (cfr. pontos 35 a 41 dos factos provados).

A 10/03/2021 AA entregou ao filho BB, Vogal do Conselho de Administração da Ré, uma carta datada de 05/03/2021, a comunicar a renúncia ao cargo de Presidente que ocupava nesse órgão social, com efeitos a partir de 19/03/2021. (cfr. ponto 42 dos factos provados).

A 19/03/2021 realizou-se assembleia geral universal da Ré que deliberou o aumento de € 51.000,00 do capital social da Ré, elevando-o de € 600.000,00 para € 651.000,00, bem como aceitação da renúncia da AA ao cargo de Presidente do Conselho de Administração, com efeitos à mesma data de 19/03/2021, e designação de novos membros desse órgão social, com a nomeação de BB como Presidente, e de EE, como Vogal. (cfr. pontos 3 e 47 dos factos provados).

Deste aumento BB subscreveu € 50.000,00 e uma nova acionista subscreveu € 1.000,00 (cfr. ponto 45 dos factos provados).

A 21/04/2021, o arresto das acções foi convertido em penhora na execução entretanto intentada pela aqui A. sob o n.º 154/21..... (cfr. pontos 5, 57 e 61 dos factos provados).

A 26/04/2021 o Conselho de Administração da RÉ, deliberou amortizar as 597.000 acções pelo respectivo valor nominal de € 597.000,00, a ser pago “no fim do segundo exercício subsequente à amortização”. (cfr. ponto 48 dos factos provados).

A 26/04/2021 os administradores da Ré entregaram uma comunicação escrita daquela deliberação a AA, que a recebeu, aceitou e assinou. (cfr. ponto 49 dos factos provados).

A 26/04/2021 a assembleia geral universal da Ré, com a presença da AA, deliberou a redução do capital social da Ré, de € 651.000,00 para o valor € 54.000,00, com a seguinte distribuição de acções: BB - 50.000 acções; CC - 1.000 acções; DD: 1.000 acções; EE - 1.000 acções; GG: 1.000 acções. (cfr. ponto 50 dos factos provados).

Finalmente impõe-se considerar que no art.º 12º do pacto social da Ré se estipula (sublinhado nosso) que são obrigatoriamente amortizadas pelo respectivo valor nominal as ações cujos títulos sejam penhorados, arrestados, ou envolvidos em qualquer providência judicial ou administrativa que possa implicar ulterior transmissão da titularidade das respectivas ações. ( ... ) Três- O pagamento da contrapartida da amortização de ações nos casos previstos nos dois números antecedentes será efectuado no fim do segundo exercício, subsequente à amortização".

Prevê-se naquela cláusula do pacto social o que a doutrina denomina de amortização “imposta”, “forçada”, “vinculada” ou compulsiva”, admitida no n.º 1 do art.º 347º do CSC e regulada no n.º 4 do mesmo normativo.

Concretamente dispõe o n.º 1 do art.º 347º do CSC que o contrato de sociedade pode impor ou permitir, que em certos casos e sem consentimento dos seus titulares, sejam amortizadas acções.

Analisada toda a referida factualidade, cronológica e concatenadamente, não é possível extrair da mesma que não houve qualquer intenção de aumentar o capital social, amortizar as acções de AA e reduzir o capital social, mas apenas transferir a participação da AA no capital social da Ré para o património do filho BB, assim colocando-a a salvo dos seus credores, nomeadamente da A..

Tendo em consideração que estavam arrestadas 597.000 acções representativas do capital social da Ré, tendo em consideração que AA foi definitivamente condenada a pagar à aqui A. metade de € 1.992.425,84, acrescida de juros de mora desde a citação, tendo em consideração que as propostas apresentadas por AA foram sendo sucessivamente rejeitadas,  era naturalmente previsível que a aqui A. instaurasse uma execução para pagamento de quantia certa (como veio a fazer) e o arresto das acções fosse convertido em penhora (como veio a suceder).

Mas pese embora o pacto social impusesse a amortização em tal situação, a mesma não era viável.

Como resulta dos pontos 18, 19 e 20 dos factos provados, por escritura de 30/05/2013 a Ré aumentou o capital social para € 600.000,00 (tendo ainda passado a ter 5 sócios e sido transformada em sociedade anónima).

Caso se procedesse à amortização das 597.000 acções, o capital social passava a ser de € 3.000,00, pois nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 347º do CSC a amortização de acções nos termos deste artigo implica sempre a redução do capital da sociedade, extinguindo-se as acções amortizadas na data da redução do capital, capital social aquele inferior ao limite mínimo legal de € 50.000,0 como estipulado no n.º 5 do art.º 276º do CSC.

Assim, o que despoleta, justifica, motiva, dá racionalidade à deliberação de 19/03/2021 da assembleia geral da Ré, de aumento do capital social para o montante de € 651.000,00, é, por um lado, a naturalmente previsível instauração pela aqui A. de uma execução para pagamento de quantia certa (como veio a fazer) e a conversão do arresto das acções em penhora (como também veio a suceder) e a necessidade de capacitar a sociedade para proceder à amortização das 597.000 acções, dotando a sociedade do capital social necessário para tal, o que até aí não era legalmente possível, o que, aliás, está reflectido nos pontos 3, 44 e 54 dos factos provados.

 A A. invoca o facto de o aumento de capital ter sido subscrito por BB, filho da A., em € 50.000,00 (cfr. ponto 45 dos factos provados).

Porém, este facto não tem préstimo (pelo contrário) para a questão em referência - apurar se não houve qualquer intenção de aumentar o capital social - , pois é natural que assim seja, tendo em vista manter a sociedade no domínio da família.

Como é consabido, em Portugal, uma grande parte das sociedades anónimas são fechadas, ou seja, o seu capital social é detido por um determinado e restrito número de pessoas, que, ou são da mesma família ou, quando não são da mesma família, são pessoas de confiança do accionista maioritário e detêm uma participação mínima, tratando-se, assim de sociedades anónimas intuitu personae, o que se manifesta ainda em outro tipo de cláusulas, como seja o estabelecimento do direito de preferência dos restantes accionistas em caso de transmissão da participação social.

Assim e neste contexto, aquele facto não permite afirmar que não houve intenção de aumentar o capital social.
Aliás, face ao contexto, é precisamente o contrário.

A racionalidade da deliberação do Conselho de Administração de 26/04/2021 de amortização das 597.000 ações representativas da participação no capital social da Ré de € 597.000, radica na conversão do arresto das 597.000 acções em penhora (cfr. pontos 5, 57 e 61 dos factos provados) e na imposição pelo pacto social da Ré de amortização de tais acções (cfr. ponto 65 dos factos provados).

Finalmente a racionalidade da deliberação de 26/04/2021 da assembleia geral da Ré de redução do capital social para o montante de € 54.000.00 - sendo o capital social de € 651.000,00, amortizadas acções representativas de uma participação no capital social da Ré de € 597.000,00, o capital social fica reduzido a € 54.000,00 – não é, nem mais nem menos, do que uma consequência legal da amortização (cfr. art.º 347º n.º 2 do CSC).

Feito este excurso nada permite afirmar que não houve intenção de aumentar o capital social, deliberar a amortização das 597.000 ou reduzir o capital social para € 54.000,00.

Vislumbra-se, aliás, que a intenção subjacente às deliberações da Ré foi conforme o fim ou função material de cada uma delas, ou seja, quis-se efectivamente aumentar o capital social, amortizar as acções e reduzir o capital social.

Vejamos agora o depoimento de parte do legal representante da Ré, BB e o depoimento de várias testemunhas.

O legal representante da Ré, BB, declarou que fizeram o aumento de capital porque receavam uma possível penhora e queriam manter a sociedade.

A testemunha DD, ex-marido de AA, declarou que fizeram o aumento de capital porque havia o risco de penhora e para segurança da empresa, tendo acrescentado que depois houve outra Assembleia geral onde foi cumprido o pacto social, a obrigação da própria sociedade amortizar e o capital social foi reduzido para € 54.000,00.

A testemunha CC declarou que pensou-se no aumento de capital para uma hipotética amortização das acções por causa da penhora, a empresa não colapsar e ter uma imagem de capital mínimos, revelando saber que AA havia sido condenada a pagar cerca de € 1.000.000,00 à aqui A. e havia o receio da penhora, tendo ainda revelado que não era possível amortizar as 597.000 acções porque, tendo a sociedade o capital social de € 600.000,00, a sociedade ficava com o capital de € 3.000,00, inferior ao mínimo legal de € 50.000,00; a essência do aumento de capital era que, em caso de amortização, a sociedade ficasse com o capital que permitisse manter a empresa; explicou ainda que a entrada da sua esposa, GG, para acionista, visava dotar a sociedade com o número mínimo de sócios (5) porque, aquando da amortização das acções de AA, esta deixaria de ser acionista; referiu ainda que do ponto de vista financeiro a empresa não necessitava do capital social.

A testemunha AA declarou que procederam ao aumento do capital social face à possível penhora das suas acções; a empresa “ia ficar mal” com um capital social de € 3.000,00 e tinha também de ter 5 sócios, tendo revelado que caso fossem penhoradas as acções a empresa não podia ficar com um capital social inferior a € 50.000,00 e um número de sócios inferior a 5, tendo sido com essa ideia que fizeram o que fizeram.

O que fui destes depoimentos, ainda que as explicações não tenham rigor jurídico, é que a motivação dos actos em referência coincide com o seu fim ou função material, ou seja, quis-se efectivamente aumentar o capital social, quis-se amortizar as acções e quis-se reduzir o capital social.

Em síntese:  nada permite afirmar que o propósito da actuação da Ré não fosse aumentar o capital social, amortizar a participação social de AA ou reduzir o capital social, porquanto: i) o aumento do capital social era necessário para, à luz da lei, viabilizar a amortização; ii) a amortização impunha-se em face da penhora e do pacto social; iii)  a redução do capital social é uma consequência legal da amortização, que o propósito dos actos praticados fosse diferente da sua função ou fim material.

Para terminar cumpre referir que a recorrente labora em vários equívocos.

Alega-se que AA não quis aceitar a amortização.
É irrelevante que AA tenha querido ou não aceitar a amortização pois não é necessário o seu consentimento para que a mesma se concretize.
Como dispõe o n.º 1 do art.º 347º do CSC, o contrato de sociedade pode impor ou permitir, que em certos casos e sem consentimento dos seus titulares, sejam amortizadas acções.

Alega-se ainda que os actos praticados foram um instrumento para transferir a participação da AA no capital social da Ré para o património do filho BB.
A consequência da amortização não é (nem podia ser) a transferência da participação social de AA para o seu filho BB, mas sim a extinção das acções amortizadas na data da redução do capital social, como dispõe o 347º n.º 2 do CSC, capital social que efectivamente foi reduzido para € 54.000,00.

Alega-se ainda o facto de a AA ter renunciado ao cargo de Presidente do CA com efeitos a 19/03/2021 e cerca de um mês depois de ter sido designada para o cargo (ponto 42 dos factos provados).
Porém não se vislumbra em que medida ou de que forma é que esta factualidade tem préstimo para a prova dos factos não provados, tanto mais quanto não foi questionada a realidade da intenção de renúncia.

Alega-se também haver contradição entre a factualidade constante dos pontos 3, 44, 45, 48, 54 e 64 dos factos provados.
O que consta dos pontos 3, 44 e 54 resume-se a isto: a deliberação de 19/03/2021, que determinou aumento do capital social da Ré em € 51.000,00, visou dotar a Ré do montante de capital social para viabilizar a amortização das ações da AA, como já acima ficou referido.

O que consta dos pontos 45 (quem subscreveu o aumento de capital social) e 48 (deliberação de amortização) é irrelevante para a presente questão.

O que consta do ponto 64 (a sociedade não tinha necessidades de ordem estrutural ou económico-financeira para aumentar o capital social) limita-se a reforçar o que resulta dos pontos 3, 44 e 54, ou seja, que o aumento de capital se fica a dever à necessidade de viabilizar a amortização das acções de AA.

Não há qualquer contradição entre esta factualidade e a que consta dos factos não provados pois em nenhuma dela se dá como não provada alguma da factualidade acabada de referir.

Em face do exposto:
- elimina-se as alíneas J), L), U) e V) dos factos não provados;
- julga-se improcedente a pretensão da recorrente de se considerar provada a matéria constante das alíneas F, G, H, I, M e W dos factos não provados.

D - Consta da alínea Y dos factos não provados:
Y- O dinheiro com que o BB subscreveu este aumento faz parte de dinheiros da mãe, AA, que esta seguramente mantém ocultados em contas de terceiros da sua confiança, provavelmente do próprio filho BB.

Um primeiro lugar impõe-se observar que a recorrente insiste em invocar o depoimento de BB nos embargos que a mesma deduziu à declaração de insolvência de AA.

O tribunal recorrido já se pronunciou sobre essa questão por despacho de 08/03/2022, tendo considerado que tal prova não podia ser invocada nestes autos.

Tal decisão não foi impugnada, tendo transitado em julgado, pelo que aquela insistência não tem qualquer fundamento.

Em segundo lugar verifica-se que BB declarou que CC lhe passou um cheque a 19 de março, de € 50.000,00 e entregou-o na conta da empresa porque não usa cheques.
A 31 de março transferiu € 50.000,00 para a conta do CC.
O objetivo era amortizar as ações por causa da penhora, porque era o que contrato social exigia.

Entretanto foi reinquirido e declarou que a sua mãe lhe entregou os relógios que a mesma recebeu por herança do seu falecido pai, guardou-os e passados uns anos tais relógios foram vendidos, por ele e por sua mãe, não sabendo ao certo quanto gerou essa venda, mas que foi com o dinheiro da venda que subscreveu o aumento de capital social.

A testemunha CC declarou que entregou um cheque ao BB para dar entrada no caixa porque "já não dava para ir ao Banco" no dia 19, e mais tarde o BB passou o dinheiro para a sua conta, tendo então o cheque sido depositado.

O facto em referência, não é um facto pessoal da Ré.

Face à explicação de BB não é seguro permite afirmar que AA lhe tenha doado os relógios que a mesma havia recebido por óbito de seu pai e que assim integraram o seu património, pois não foi alegado, nem há prova de uma vontade de doar e, além disso, quando se tratou de proceder à sua venda, os mesmos foram vendidos por ambos, também nada permitindo afirmar que AA doou a BB o dinheiro resultante da venda dos relógios.

Destarte, sendo os relógios propriedade de AA, o dinheiro resultante da sua venda também é sua propriedade.

Neste conspecto, impõe-se eliminar a alínea Y dos factos não provados e aditar aos factos provados um ponto 45- A com o seguinte teor:
45 A - A quantia de € 50.000,00 empregue por BB na subscrição do aumento de aumento de capital de 19/03/2021, era de sua mãe.

4.5.4. Deficiência da decisão de facto
4.5.4.1. Invocada pela recorrente

Pretende a recorrente seja aditado aos factos provados, o seguinte:
Os Recorrentes no Proc. n.º 589/14.... não reclamaram nem recorreram do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/02/2021.
           
Para a aprovação da deliberação de aumento de capital social tomada na assembleia geral de 19/03/2021, foram essenciais os votos favoráveis da própria AA, sem os quais esse aumento não teria acontecido, atento o n.º 2, do artigo 19.º do pacto social da RÉ, que dispõe: “As deliberações referentes a alteração do contrato de sociedade e a aumentos de capital social só poderão ser tomadas se obtiverem os votos favoráveis de accionistas que representem, pelo menos, setenta e cinco por cento do capital social.”

E nessa sequência entende que devem ser eliminadas as alíneas S e T dos factos não provados e aditada a matéria indicada na conclusão 13.

Consta das alíneas S e T dos factos não provados:
S- A partir de então (11/02/2021), a AA ficou irreversivelmente constituída na obrigação de pagar à A. a quantia de € 996.212,92, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, presentemente (29/08/2021) no montante global de € 1.311.671,25.
T - A partir de 11/02/2021, a acionista AA viu-se novamente investida na titularidade das 597.000 ações nominativas, do valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de 99,5% do capital social da RÉ.

A matéria referida na conclusão 13 que a recorrente pretende ver incluída nos factos provados é a seguinte:
A partir de então (25/02/2021), a AA ficou irreversivelmente constituída na obrigação de pagar à Autora a quantia de € 996.212,92, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação;

A partir de então (25/02/2021), a accionista AA viu-se novamente investida na titularidade das 597.000 acções nominativas, do valor nominal de € 1,00 cada uma, representativas de 99,5% do capital social da RÉ;

Vejamos

A matéria que a recorrente refere na conclusão 11 está prejudicada, em virtude do aditamento do ponto 33- A.

A matéria que a recorrente refere na 1ª parte da conclusão 12 é patentemente conclusiva, pelo que não tem qualquer cabimento na decisão de facto, pelo que se indefere a sua inclusão nos factos provados.

Quanto à matéria referida na 2ª parte da conclusão 12 e que tem por objecto o  n.º 2 do art.º 19º do Pacto social da Ré, tendo em consideração que foi alegado pela A. no art.º 117º da PI, foi junto pela mesma o referido Pacto social (cfr. doc. ...4 junto ao PE pelo requerimento de 30/08/2021 e que está a fls. 201 do 2º volume do processo físico), face às várias soluções plausíveis de direito cumpre aditá-lo.

Nestes termos adita-se aos factos provados um ponto 66 com o seguinte teor:
66. O n.º 2, do artigo 19.º do pacto social da Ré tem o seguinte teor:
“As deliberações referentes a alteração do contrato de sociedade e a aumentos de capital social só poderão ser tomadas se obtiverem os votos favoráveis de accionistas que representem, pelo menos, setenta e cinco por cento do capital social.”

As alíneas S e T dos factos não provados devem efectivamente ser eliminadas, não pelas razões invocadas pela recorrente, mas por conterem, patentemente, matéria conclusiva e de direito.

E na medida em que a matéria referida na conclusão 13 que a recorrente pretende ver incluída nos factos provados é idêntica à que consta das alíneas S e T dos factos não provados, as razões que ditam a sua eliminação obstam a que se inclua aquela nos factos provados.
 
Nestes termos elimina-se as alíneas S e T dos factos não provados.

4.5.4.2. Oficiosa
Com a petição inicial, a A. juntou um documento n.º ...2, que constitui a comunicação do CA da Ré, a AA, da amortização das 597.000 acções, facto este referido no ponto 49 dos factos provados.

Nessa comunicação o CA afirma que havia sido notificado pela Sra. Agente de Execução no processo 154/21.... da penhora das referidas acções a 23/04/2021.

O documento em causa não foi impugnado.

E o facto é relevante

Assim adita-se aos factos provados um ponto 47 A com o seguinte teor:
47 – A – A 23/04/2021, o CA da Ré foi notificado pela Sra. Agente de Execução no processo 154/21.... da penhora das 597.000 acções, o que foi consignado na comunicação referida no ponto 49.

6. Direito
6.1. Legitimidade substantiva da A. –
Na sentença recorrida e sob a epigrafe “Reconhecimento da qualidade de sócia da A. “ afirma-se que “[d]o teor da certidão comercial da R verifica-se que efetivamente a A aparece registada como sócia da R.”

Estamos perante um lapso manifesto, pois nem a A. o afirma, nem consta da certidão do registo comercial da Ré, que aquela tenha sido sócia ou seja acionista da última, pelo que a legitimidade substantiva da A. para a presente acção de impugnação de deliberações sociais não deriva de tais qualidades.

A legitimidade para a presente acção decorre do facto de invocar a nulidade das deliberações em referência nos autos e do disposto no art.º 286º do CC: a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado.

A lei não reconhece a todo e qualquer terceiro a legitimidade para pedir a nulidade de um negócio jurídico, mas apenas aos terceiros interessados.

Seguindo a lição de Manuel de Andrade, Teoria da Relação Jurídica, II, pág. 198, podemos afirmar que terceiros são todos aqueles que não sendo simuladores ou herdeiros destes, se mostram titulares de uma situação jurídica activa que resultaria afectada, ainda mesmo na sua consistência prática, pela validade do acto simulado, com a ressalva, feita por Luís Carvalho Fernandes, in Estudos sobre a simulação, Quid Júris, pág. 78, quanto aos herdeiros dos simuladores, que poderão ser considerados terceiros desde que se proponham defender um direito próprio contra os actos simulados do autor da herança.

Também Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, anotação ao art.º 286º e Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 481-482 entendem que a nulidade pode ser invocada pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio.

No Tratado de Direito Civil Português, I parte Geral, I, 1999, Menezes Cordeiro refere que a nulidade ou anulação de um negócio são susceptíveis de causar danos ilícitos, fazendo intervir o instituto da responsabilidade civil.

Resulta da factualidade provada que a aqui A. intentou contra AA, FF, BB, CC e GG, um procedimento cautelar de arresto distribuído à então Vara de Competência Mista ..., com o n.º 4857/13...., onde, por decisão de 14/08/2013 foi julgado que a aqui A. era titular de um crédito que “corresponde – pelo menos - a um terço do valor apropriado pela requerida, ou seja, um terço de mais de um milhão e quatrocentos mil euros” e foi ordenado o arresto de, entre outros bens, 398.026 acções representativas de uma participação com o valor de € 398.026,00 no capital social da aqui Ré, detidas pela requerida AA e 198.974 acções, representativas de uma participação com o valor de € 198.974,00 no capital social da aqui Ré, detidas pelo requerido BB. (cfr. pontos 5, 22 e 23 dos factos provados e o documento ...0 junto com a petição inicial);

A A. intentou acção definitiva que, em síntese, condenou AA a pagar à aqui A. metade de € 1.992.425,84, acrescida de juros de mora desde a citação, decisão essa que transitou em julgado.

A 21/04/2021, o arresto das acções foi convertido em penhora na execução entretanto intentada pela aqui A. sob o n.º 154/21..... (cfr. pontos 5, 57 e 61 dos factos provados).

A aqui A., sendo titular de um crédito sobre a acionista da Ré, AA e sendo a mesma sujeito activo da penhora sobre as mesmas, é titular de uma situação jurídica activa que resulta afectada na sua consistência prática, pelas deliberações de aumento do capital social, amortização das referidas 597.000 acções e redução do capital social da Ré.

Em face do exposto, a aqui A. é terceira interessada e nessa medida tem legitimidade substantiva para a presente acção.

6.2. Da simulação
 “Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o ne­gócio diz-se simulado” - art. 240º nº 1 do CCiv.
           
O negócio simulado é nulo” - art. 240º nº 2 do CCiv.
           
A simulação pressupõe, assim, a concorrência de três requisitos: (1) um acordo entre o declarante e o declaratário, (2) no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes, (3) com o intuito de enganar terceiros.
           
Os factos constitutivos destes requisitos devem ser alegados e provados por quem pretenda valer-se da simulação (art.º 342º n.º 1 do CC).

Tal como decorre do art.º 240º do CC para a verificação de uma situação de simulação exige-se a divergência entre a declaração e a vontade real, a existência de conluio simulatório – “pactum simulationis“ – e o intuito de enganar terceiros (realidade diversa da intenção de prejudicar, como refere Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, pág. 555 ).

Destarte, o conceito de legal de simulação assenta na celebração de um acordo entre pelo menos dois sujeitos - declarante e declaratário.

Coloca-se então a questão de saber se o regime da simulação é aplicável aos negócios jurídicos unilaterais, ou seja, negócios cuja perfeição negocial depende uma única declaração de vontade – declarante – não havendo declaratário

A única previsão legal expressa quanto a tal questão é o art.º 2200º do CC, quanto á simulação do testamento e que dispõe:
É anulável a disposição feita aparentemente a favor de pessoa designada no testamento, mas que, na realidade, e por acordo com essa pessoa, vise a beneficiar outra.

No entanto e a partir da referida norma é possível configurar os requisitos de um negócio unilateral simulado ( cfr. A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, Almedina, 2014, pág. 70-71): (1) um acordo entre o declarante e um terceiro, sujeito externo ao negócio unilateral, (2) no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade do declarante (único), objecto do negócio unilateral (3) com o intuito de enganar terceiros.

Na situação dos autos a A. pretende ver declarada a nulidade por simulação de uma deliberação da assembleia geral da Ré de aumento de capital social da R, de uma deliberação do Conselho de Administração de amortização das ações da acionista AA e de redução do capital social da R.

As deliberações dos sócios são decisões adoptadas pelo órgão social de formação de vontade (a colectividade dos sócios) e imputáveis juridicamente à sociedade (J M Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades em Comentário, Volume I, pág. 673, anotação ao art.º 53º e pág. 730, anotação ao art.º 60º).

Numa outra formulação afirma-se:
“Uma deliberação dos sócios é uma declaração que, sendo juridicamente imputável à sociedade, é formada pela manifestação de vontade do conjunto dos titulares de participações sociais, ou seus representantes, detentor do maior número de votos ou de um número de votos que perfaça um certo montante mínimo (maioria qualificada).
Uma deliberação, em termos técnicos (ontológicos), consiste num negócio jurídico unilateral plural, de que resulta uma única declaração de vontade com relevância jurídica. Ainda que haja vontades sobrepostas ou contraditórias, do resultado final não irá afirmar-se qualquer divergência, prevalecendo as declarações de voto maioritariamente emitidas no sentido que fez vencimento. Não há, pois, efeitos diferenciados no resultado final, embora possa haver vontades divergentes.“ (Paulo Olavo Cunha, Impugnação de deliberações sociais, Almedina, 2015, pág. 74, com sublinhados nossos).

O que se acabou de dizer é aplicável, com as devidas adaptações, às deliberações do órgão de administração, quando seja colegial, ou seja, resultam numa única declaração de vontade com relevância jurídica imputável á sociedade.

Analisando a factualidade provada não se encontra na mesma qualquer facto que permita considerar verificados os pressupostos da simulação.

A A. alegou, em síntese, que a deliberação de aumento de capital da Ré tomada em assembleia geral universal de 19/03/2021, não teve em vista o aumento de capital social propriamente dito, a deliberação do Conselho de Administração de 26/04/2021 não visou amortizar as ações da AA e a deliberação de redução do capital social tomada em assembleia geral universal de 26/04/2021 não teve por objetivo essa redução, ou seja, que a Ré, a quem são imputadas aquelas deliberações, não as quis.

Esta factualidade não ficou provada.

A A. alegou também que AA, de forma concertada com os restantes acionistas, levou a cabo uma sucessão de atos societários no âmbito da Ré para se libertar das 597.000 ações, subtraindo-as ao seu património, e, desse modo, impedir que as mesmas respondessem pela dívida a que fora condenada.

Esta factualidade também não ficou provada, sendo certo que, desde logo e à partida, não estava provado que a Ré não queria aumentar o capital social, amortizar as 597.000 acções e reduzir o capital social.
 
Improcede assim a invocada simulação das referidas deliberações e, deste modo a sua nulidade com tal fundamento.

6.3. Da caducidade e do abuso de direito

A caducidade é uma forma de extinção de direitos que actua quando estes, devendo ser exercidos em determinado prazo, o não sejam.
Assim a consequência da caducidade é a extinção do direito e não a nulidade.
Neste conspecto e sendo o pedido formulado a declaração da nulidade das deliberações em causa nos autos, não tem qualquer relevo apreciá-la.
Mas não nos esquivaremos a analisar a questão.

Os efeitos do exercício irregular de um direito ou se se quiser de um direito exercido abusivamente, serão os correspondentes à forma de actuação do titular.
Em principio e em regra, a existência de uma situação de abuso determinará a “paralisação” dos efeitos do direito abusivamente exercido.
Mas se o exercício abusivo do direito causou algum dano a outrem, haverá lugar à obrigação de indemnizar (art.º 483º do CC); se o vício se tiver reflectido na celebração de qualquer negócio jurídico, este será, em principio nulo (art.º 294º do CC) (Antunes Varela, Das Obrigações em geral, I, 6ª edição, pág. 518; idem Coutinho de Abreu, Abuso de Direito, 1999, pág. 77).

Uma vez que as deliberações sociais são negócios jurídicos unilaterais, face àcitada doutrina cumpre apreciar a questão do abuso de direito.

Invoca a A. que 26/04/2021 o direito-dever do Conselho de Administração da recorrida de amortizar as 597.000 acções da AA, já havia caducado e, assim, é nula por abuso de direito, atento o disposto nos art.ºs 280.º e 334.º do CC, que a sentença recorrida violou, para além do disposto no n.º 4 do art.º 347.º do CSC.

O CSC distingue a amortização de acções sem redução do capital social ( art.º 346º do CSC) e com redução do capital social ( art.º 347º do CSC).

No que aos autos respeita, apenas releva a amortização com redução do capital social.

Assim, dispõe o n.º 1 do art.º 347º do CSC que o contrato de sociedade pode impor ou permitir, que em certos casos e sem consentimento dos seus titulares, sejam amortizadas acções, o n.º ... dispõe que a amortização de acções nos termos deste artigo implica sempre a redução do capital social da sociedade, extinguindo-se as acções amortizadas na data da redução do capital, o n.º 3 dispõe que os factos que permitam ou imponham a amortização devem ser concretamente definidos no contrato de sociedade.

O art.º 12º do pacto social da Ré estipula que que são obrigatoriamente amortizadas pelo respectivo valor nominal as ações cujos títulos sejam penhorados, arrestados, ou envolvidos em qualquer providência judicial ou administrativa que possa implicar ulterior transmissão da titularidade das respectivas ações.
Prevê-se naquela cláusula do pacto social o que a doutrina denomina de amortização “imposta”, “forçada”, “vinculada” ou “compulsiva”.

O n.º 4 do art.º 347º do CSC dispõe que no caso de a amortização ser imposta pelo contrato de sociedade, deve este fixar todas as condições essenciais para que a operação possa ser efectuada, competindo ao conselho de administração ou ao conselho de administração executivo apenas declarar, nos 90 dias posteriores ao conhecimento que tenha do facto, que as acções são amortizadas nos termos do contrato e dar execução ao que para o caso estiver disposto.

Também o art.º 234º n.º 2 do CSC dispõe, para as sociedades por quotas, que a deliberação de amortização deve ser tomada no prazo de 90 dias, contados do conhecimento por algum gerente da sociedade do facto que permite a amortização.

Relativamente a esta norma, Raul Ventura, in Sociedade por Quotas, I, 199, pág. 716, afirmava:
“ A função daquele(…) prazo(…) é genericamente não deixar protelar situações de incerteza, que o decurso do tempo só faz agravar, mas concretamente as consequências da sua inobservância variam, consoante a função do prazo: fazem caducar o direito da sociedade de amortizar a quota, quando se trata de amortização compulsiva; permitem ao sócio o exercício de outros direitos, no caso de amortização obrigatória:”

Ainda em relação ao n.º 2 do art.º 234º do CSC António Menezes Cordeiro, in CSC Anotado, 2014, pág. 681 refere:
“A fim de evitar incertezas sobre o titular da quota e o destino da mesma, a deliberação de amortização tem de ser tomada num curto espaço de tempo. Este difere consoante a causa da amortização.
Na amortização ao abrigo de disposição contratual, o prazo da deliberação é de 90 dias, contados do conhecimento por algum gerente do facto que permite a amortização. Passado esse prazo e tratando-se de amortização compulsiva caduca o direito de deliberar a amortização.”

Este autor cita um Ac. do STJ de 18/11/1999, processo 99A891, de que apenas está disponível o sumário in www.dgsi.pt/jstj.
Mas na obra Direito das Sociedades, II, 2017, pág. 387, também relativamente ao art.º 234º n.º 2 refere:
Tratando-se de uma amortização obrigatória: passado o prazo, ela fica igualmente precludida.

Também em relação à norma do art.º 234º n.º 2, Joaquim Taveira da Fonseca, in Amortização de Quotas, consultável in https://www.tdf.pt/images/uploads/25.11.2011-Artigo-Ordem.pdf refere:
“A inobservância do prazo [de 90 dias] faz caducar o direito à amortização. A convocação da assembleia geral dentro do prazo legal ainda que para reunir em data ulterior ao termo do prazo não constitui causa de suspensão ou interrupção da caducidade do direito.”

Carolina Cunha, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, V, 2018, pág. 872 afirma:
“Dispõe o órgão de administração do prazo de 90 dias, a contar do conhecimento do facto, para proceder à declaração de amortização. Parece tratar-se, também aqui, de um prazo de caducidade do direito da sociedade de amortizar as ações afectadas, destinado a evitar que se protelem situações de incerteza.

Jéssica Rodrigues Ferreira, in Amortização de acções, Direito das Sociedades Comerciais em Revista, Fevereiro de 2020, Ano 12, Vol 23, pág. 202 refere:
“Tal declaração [de amortização] deve ser impreterivelmente realizada nos noventa dias posteriores ao conhecimento que o conselho de administração ou conselho de administração executivo tenha do facto, sob pena de caducidade do direito da sociedade de amortizar as acções”.

No Ac. do STJ de 12/07/2022, processo 2180/18.0T8OAZ.P1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj considera-se na nota 16 que a função do prazo de 90 dias “ é não deixar protelar situações de incerteza; e que tem como consequência fazer caducar o direito da sociedade de amortizar a quota.”

A amortização é policausal ( a expressão é de Evaristo Mendes, in Amortização de quotas – Valor das participações – Contrapartida – Intangibilidade do capital – Impugnação de deliberações, consultável in https://www.evaristomendes.eu/p_1_01.html)

Uma das funções da amortização é o “controlo das entradas de novos sócios (a amortização é usada para impedir a entrada ou para afastar da sociedade novos sócios indesejáveis; assegurando desse modo a homogeneidade e funcionalidade da coletividade social) e de defesa contra influências externas (incluindo aquelas que resultam da vinculação de um sócio para com um terceiro, por exemplo um cessionário não consentido da participação)” (cfr. Evaristo Mendes, in ob. cit).

É o que sucede claramente em situações em que ocorre o arresto, a penhora ou uma cessão não consentida pela sociedade.

Assim e nestas situações, a amortização configura-se como um direito da sociedade sujeito a caducidade (e uma obrigação para o conselho de administração ou conselho de administração executivo).

Vejamos agora a factualidade provada.

A aqui A. intentou procedimento cautelar de arresto contra AA, FF, BB, CC e GG, distribuído à então Vara de Competência Mista ..., com o n.º 4857/13..... (cfr. ponto 22 dos factos provados).

Por decisão de 14/08/2013 foi ordenado o arresto de, entre outros bens, 398.026 acções representativas de uma participação com o valor de € 398.026,00 no capital social da aqui Ré, detidas pela requerida AA e 198.974 acções, representativas de uma participação com o valor de € 198.974,00 no capital social da aqui Ré, detidas pelo requerido BB. (cfr. pontos 5e 23 dos factos provados e o documento ...0 junto com a petição inicial).

A A. interpôs contra todos os Requeridos acção distribuída ao J ... do Juízo Central Cível ... sob o n.º 589/14...., a que o procedimento de arresto foi apensado. (cfr. ponto 29 dos factos provados)

Foi proferida sentença que, em síntese, condenou AA a pagar à aqui A. metade de € 1.992.425,84, acrescida de juros de mora desde a citação, sentença essa que, entretanto, transitou em julgado (cfr. pontos 6 e 30 dos factos provados).

A 21/04/2021, o arresto das acções foi convertido em penhora na execução entretanto intentada pela aqui A. sob o n.º 154/21..... (pontos 5, 57 e 61 dos factos provados).

A 23/04/2021, o CA da Ré foi notificado pela Sra. Agente de Execução no processo 154/21.... da penhora das 597.000 acções, o que foi consignado na comunicação referida no ponto 49 dos factos provados. (ponto 47- A dos factos provados)

A 26/04/2021 o Conselho de Administração da Ré, deliberou amortizar as 597.000 acções pelo respectivo valor nominal de € 597.000,00, a ser pago “no fim do segundo exercício subsequente à amortização”. (cfr. ponto 48 dos factos provados).

A 26/04/2021, o CA da Ré entregou a AA a comunicação da deliberação de amortização das acções, que a recebeu. (cfr. ponto 49 dos factos provados)

A 26/04/2021 há muito havia decorrido o prazo de 90 dias sobre o arresto das acções.

Mas o prazo de 90 dias estabelecido no n.º 4 do art.º 347º do CSC conta-se do conhecimento do facto que concretamente determina a amortização.

Como decorre do ponto 47-A, 48 e 49 dos factos provados, o facto determinante da deliberação do CA de amortizar as 597.000 acções não foi o arresto, mas a penhora.

Entre a data em que o CA teve conhecimento da penhora – 23/04/2021 – e a data da deliberação do CA – 26/04/2021 – decorreram 3 dias.

Sendo assim, não se verifica a impetrada caducidade.

Invoca-se, no entanto, o n.º 2 do art.º 822º do CC, o qual dispõe que, tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto.

A ratio legis da citada norma, isto é, o seu escopo e que é determinante para fixar o seu alcance, tem de ser obtida a partir do n.º 1 do mesmo normativo, que dispõe: salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.

Ou seja: o que o n.º 2 visa estabelecer é apenas e tão só que o credor que obteve arresto sobre os bens do executado e, posteriormente, o vê convertido o em penhora (art.º 762º do CPC), no confronto com outros eventuais credores, vê retroagido, à data do arresto, o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.

Sendo este o escopo da norma, a mesma não tem aqui qualquer aplicação, pois não está aqui em causa estabelecer o direito de preferência entre credores.

Carece assim de fundamento a invocação da caducidade.

Quanto ao abuso de direito, dispõe o art.º 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Como refere Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, parte Geral, IV, 2007:
-  “o artigo 334º não comporta uma exegese comum. (…) Estamos, com efeito, perante uma disposição legal que (…) remete para o sistema e para a Ciência do Direito, confiando no intérprete-aplicador a tarefa do seu adensamento” – pág. 242;
- “ o abuso de direito não é “ abuso” nem tem a ver com “ direitos” em si: (…) “ abuso do direito “ é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto multifacetado, internamente complexo e que prossegue, in concreto, os objectivos últimos do sistema.” – pág. 247;
– “ o sistema, no seu conjunto, tem exigências periféricas que se projectam no interior dos direitos subjectivos, em certas circunstâncias; é o desrespeito por essas exigências que dá azo ao abuso do direito”  – pág. 366;
– o abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema em estas se integrem – pág. 369;
- “O abuso de direito deve, antes de mais, ser estudado no terreno, através do conhecimento da literatura que o desenvolveu e da ponderação das decisões que o concretizam.” – pág. 247;
– “Em termos metodológicos: o manuseio do abuso do direito não é compaginável com as tradicionais interpretação e aplicação. Na verdade, o art.º 334º do Código Civil nada permite pela “interpretação” – pág. 24;
– e, finalmente, o abuso de direito tem sido concretizado pela jurisprudência e pela doutrina na base de grandes grupos de situações abusivas – pág. 264.

E, depois, concretiza os diversos tipos de actos abusivos: a “exceptio doli”, o “venire contra factum propium”, a inalegabilidade de nulidades formais, a “supressio”, a “surrectio”, o “tu quoque” e o desequilíbrio no exercício jurídico (pág.s 265 a 349).
 
A recorrente procede a uma invocação genérica do instituto do abuso de direito, ou seja, não identifica qual ou quais dos diversos tipos de actos abusivos se verificaria na situação dos autos.

A única figura com alguma proximidade ao por si invocado, é a “supressio”.
Há supressio quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, se atentar contra a boa-fé; ocorreria, pois, uma supressão de certas faculdades jurídicas, pela conjugação do tempo com a boa-fé.
A supressio acolhe-se na tutela da confiança – ao não exercer o seu direito durante um período significativo de tempo, o seu titular – conhecedor do seu direito e com possibilidade de o exercer - iria facultar, ao agente, uma situação de confiança em que tal exercício não mais teria lugar.
Assim, o exercício de um direito será abusivo se, durante um período significativo de tempo, se verifica uma dada situação, que dá a alguém um direito e essa pessoa, conhecedora do seu direito e com possibilidade de o exercer, nada faz durante esse tempo todo, de tal forma que cria na outra parte a confiança de que esse direito já não será exercido.

No entanto impõe-se precisar que a figura da supressio não tem qualquer aplicação nas situações a que sejam aplicáveis as regras de repercussão do tempo nas situações jurídicas, ou seja, situações sujeitas a prescrição ou a caducidade.

Por outro lado, muito embora o pacto social impusesse a amortização em caso de arresto, o facto de o CA não o ter feito e, entretanto, terem passado cerca de 8 anos sobre o mesmo, não só não o impedia de o fazer quando notificada da penhora, como estava obrigado a fazê-lo, por se tratar de facto novo e também previsto no pacto social como determinante da amortização, pelo que não se verifica nenhuma situação de abuso direito.

Em face do exposto, improcede também o invocado abuso de direito

6.4. Da violação do disposto no art.º 14º n.º 2 do pacto social e n.º 1 do art.º 379º do CSC

Alega a recorrente que na deliberação de aumento de capital, de 19/03/2021 votou BB, que já não era acionista.

Ficou clausulado no artigo 14º n.º 2 do Pacto social da Ré:
Dois – A Assembleia Geral é constituída unicamente pelos accionistas que tiverem direito de voto.

E o art.º 379º n.º 1 do CSC dispõe:
1 - Têm o direito de estar presentes na assembleia geral e aí discutir e votar os accionistas que, segundo a lei e o contrato, tiverem direito a, pelo menos, um voto.

A 19/03/2021 realizou-se assembleia geral universal da Ré, com a acionista AA e os demais acionistas, que deliberou o aumento de € 51.000,00 do capital social da Ré, elevando-o de € 600.000,00 para € 651.000,00, bem como aceitação da renúncia da AA ao cargo de Presidente do Conselho de Administração, com efeitos à mesma data de 19/03/2021, e designação de novos membros desse órgão social, com a nomeação de BB como Presidente, e de EE, como Vogal. (cfr. pontos 3 e 47 dos factos provados).

Nesta assembleia participou o filho da acionista AA, BB, como acionista-titular de 198.974 ações, que votou favoravelmente a referida deliberação. (ponto 4 dos factos provados)

A questão em apreço prende-se com o trânsito em julgado da decisão que declarou nula A cessão da quota de € 120.000.00 ao Réu BB. a que se refere o facto provado n.º 58, depois, sucessivamente, aumentada para o valor de € 198.974.44, e convertida em igual número de ações;

Vejamos de novo a factualidade provada

No âmbito do processo 589/14.... e como consta do ponto 30 dos factos provados, a 04/02/2019 foi proferida sentença cujo decisório tem, no que releva, o seguinte teor:
(…)
e) Declaro nulos, por simulação:
(…)
III. A cessão da quota de € 120.000.00 ao Réu BB. a que se refere o facto provado n.º 58, depois, sucessivamente, aumentada para o valor de € 198.974.44, e convertida em igual número de ações;
(…)”

Consta do ponto 31 dos factos provados, que da referida decisão foi interposto recurso de apelação para a Relação de Guimarães, que por acórdão de 13/02/2020 confirmou a sentença recorrida.

E consta do ponto 32 dos factos provados, que foi interposta revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão de 02/12/2020 decidiu “rejeitar a presente revista excepcional, mas determinando a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães para se pronunciar sobre as invocadas nulidades do acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 617.º, n.º 5, 2ª parte, do CPC".

Consta do ponto 33 que a 11/02/2021 a Relação de Guimarães proferiu um segundo acórdão pelo qual decidiu: "julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus AA e FF, BB, CC e GG e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte relativa à actualização da quantia indicada na alínea c) do "Dispositivo", condenando a Ré AA a pagar à Autora metade da quantia sonegada às heranças abertas por óbito de seus pais. No mais, decide-se manter a sentença recorrida."

Finalmente consta do ponto 33 – A que o Acórdão proferido no ponto 33 foi notificado às partes a 12/02/2021 e não foi apresentada reclamação ou interposto recurso de revista.

Uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação – art.º 628º, do CPC.

Referia Alberto dos Reis, in CPC anotado, Vol. V, pág. 219, que “o trânsito em julgado nunca opera instantaneamente; é sempre necessário que a decisão seja notificada às partes e que sobre a data da notificação decorra o prazo de oito dias [ hoje seria de 30 ou 15 dias] sem qualquer reacção dos interessados. (…)”

E explicava: “ (…) Em primeiro lugar, porque é lícito às partes, dentro dos oito dias [ à época ], fazer uso dos meios facultados pelos art.ºs 667º e 669º [ hoje seriam os artigos 614º a 616º, no caso da sentença da 1ª instância , mas aplicáveis ao acórdão do tribunal da Relação, ex vi art.º 666º n.º 1 do CPC ]; em segundo lugar, porque mesmo dentro da alçada, há casos excepcionais de admissibilidade de recurso ordinário ( …).”

No caso dos autos o Ac. da RG de 11/02/2021 foi notificado às partes por notificação elaborada a 12/02/2021.

A notificação presume-se feita no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja (art.º 248º n.º 1 do CPC).

Neste caso, a notificação presume-se feita no 15 de Fevereiro.

Coloca-se a questão de saber se seria admissível revista normal.

No caso dos autos o Acórdão proferido revogou parcialmente a decisão recorrida, tendo, no segmento revogado, a A. ficado vencida.

Nessa medida não há dupla conforme.

Não existem elementos que permitam determinar o valor da referida actualização para definir a sucumbência.

O art.º 629º, n.º 1, 2ª parte dispõe que em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atende-se somente ao valor da causa.

Desconhece-se o valor da causa.

Mas pode afirmar-se que o mesmo seria de molde a admitir revista normal.
Como é sabido, a admissibilidade da revista excepcional depende sempre e em primeiro lugar, da verificação dos pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista normal, nomeada e concretamente, o valor da causa ( (cfr. Ac. do STJ de 14/07/2022, proc. 1035/21.5T8LSB-A.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma que “só é admissível recurso de revista excepcional caso se verifiquem todos os pressupostos gerais de admissibilidade, significando que a admissão da revista terá que ter o apoio dos arts. 629 nº2 a), b), c), d) e art. 671 CPC ( cf., por ex., Ac STJ de 22/2/2018 ( proc nº 2219/13) Ac STJ de 23/11/2021 ( proc nº 6300/19 ), disponíveis em www dgsi.pt)”).

Verifica-se que do primeiro Acordão da RG foi interposta revista excepcional a qual foi rejeitada, não em virtude de o valor da causa não permitir recurso de revista, mas porque inverificação dos pressupostos da alínea a) do n.º 1 do art.º 672º do CPC.

Neste contexto, era admissível recurso de revista normal do Ac. desta RG de 11/02/2021.

O prazo para interposição do recurso de revista é de 30 dias (art.º 638º n.º 1 do CPC).

Contando 30 dias desde o dia .../.../2021 (dispõe o art.º 279º alínea b) do CC que na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr), o prazo terminaria a 17/03/2021.

Importa, no entanto, verificar o seguinte.

A 01 de Fevereiro de 2021 foi publicada a Lei n.º 4-B/2021, que aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, um artigo 6.º-B cujo n.º1 tinha o seguinte teor:
1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

Mas o n.º 5 deste art.º 6-B dispunha (este normativo foi revogado pelo art.º 6º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que entrou em vigor, como decorre do seu art.º 7º, a 06 de Abril de 2021):
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;

Face a esta norma, a suspensão determinada pelo n.º 1 do art.º 6- B, introduzido pela Lei n.º 4-B/2021, não abrangia a interposição de recurso de revista para o STJ.

Destarte, conclui-se que o prazo de interposição do recurso de revista não se suspendeu, tendo a decisão transitado a 18/03/2021.

De notar que o prazo suplementar de 3 dias a que alude o n.º 5 do art.º 139º (no CPC revogado era o art.º 145º) não se soma ao prazo do recurso.
Assim o decidiu o Ac. do STJ de 10 de fevereiro de 2004, proferido no processo nº 03A4156, consultável in www.dgsi.pt/jstj e em cujo sumário consta:
VI - O prazo suplementar de três dias a que se refere o art.º 145º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, não se soma ao prazo de interposição de recurso ou de reclamação para efeito de determinação da data do trânsito em julgado da decisão judicial, apenas destruindo os efeitos do caso julgado já produzido se no decurso desses três dias for praticado algum ato processual nos termos referidos em tal dispositivo

E no texto refere-se:
É que (…), entende-se que o prazo de três dias concedido pelo art.º 145º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, é um mero prazo de tolerância que não afecta a contagem do prazo para interposição de recurso nem para apresentação de reclamações, nem portanto para o trânsito em julgado da decisão, prazo esse que é de apenas dez dias nos termos dos art.ºs 685º, n.º 1, ou 153º, do Cód. Proc. Civil, e que não é alargado por aquele n.º 5 do art.º 145º.e que não é alargado por aquele n.º 5 do art.º 145º.
Com efeito, este expressamente se refere ao “termo do prazo” para a prática do acto processual, expressão essa, - “termo do prazo” -, mantida na actual redacção desse dispositivo, dada pelo Dec. – Lei n.º 324/2003, de 27/12, e que mostra claramente que o legislador continua a considerar o prazo inicialmente fixado para a prática dos actos processuais, nomeadamente para a interposição de recurso ou reclamação, como um prazo autónomo que se mantém inalterado, apenas concedendo por mera tolerância condicional um outro, subsequente, em condições que indica, mas que não impede que o primeiro se extinga.
Ou seja, a concessão desse prazo suplementar de três dias não constitui alargamento do prazo que existia, mas o aditamento de um outro prazo que tem por objectivo apenas o de destruir os efeitos do caso julgado já produzido pela decisão no termo do prazo de dez dias, na condição de no decurso dos três dias úteis subsequentes ser praticado o acto processual nas circunstâncias determinadas no mesmo dispositivo, funcionando assim como uma espécie de condição resolutiva que origina que, decorrido o dito prazo de três dias sem a prática do acto processual ou sem o pagamento da multa apesar da sua prática, a decisão se considere definitiva desde o termo do prazo de dez dias para reclamação ou recurso, reportando-se o trânsito em julgado a esse termo, já ficando porém esse trânsito nessa data sem efeito se algum acto processual for efectivamente praticado no dito prazo suplementar nas condições indicadas naquele dispositivo.”

Uma última nota para dizer que o trânsito em julgado se aplica a toda a decisão e não a segmentos do decisório, caso os tenha; o caso julgado é que se pode aplicar a segmentos do decisório, caso os tenha.

Ou seja: ao contrário do propugnado pela recorrente, trânsito em julgado e caso julgado não se confundem, tendo campos de aplicação distintos.

Tendo a decisão transitado em julgado a 18/03/2021, a partir daí BB não tinha a qualidade de acionista – as únicas acções de que o mesmo era “titular”, eram as 198.974 acções, cuja cessão foi declarada nula – cfr. pontos 15 a 20 dos factos provados.

Sendo assim, BB não tinha o direito de estar presente, discutir e votar na assembleia da Ré de 19/03/2021, resultando daí violado o disposto no art.º 14º n.º 2 do Pacto social e no art.º 379º n.º 1 do CSC.

Mas então coloca-se a questão de saber se tal determina a nulidade da deliberação.

Recorde-se que a recorrente, não sendo acionista da Ré, só pode invocar a nulidade das deliberações, por tal lhe ser permitido à luz da regra geral do art.º 286º do CC.

Dispõe o art.º 56º n.º 1 do CSC que são nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

De notar que a recorrente, pese embora invoque violação do disposto no art.º 14º n.º 2 do Pacto social e no art.º 379º n.º 1 do CSC e com base nisso a nulidade, não indica a norma que determina a nulidade.

Vejamos

Não está em causa deliberação tomada em assembleia geral não convocada (alínea a))

Também não está em causa deliberação tomada mediante voto escrito ( alínea b)).

Também não está em causa deliberação cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios (alínea c)).
Pelo contrário, como decorre do n.º 1 do art.º 85º, a alteração do contrato de sociedade só pode ser deliberada pelos sócios e o aumento de capital é uma das modalidades de alteração do contrato (art.º 87º do CSC), pois o capital social deve constar obrigatoriamente do contrato de qualquer tipo de sociedade, excepto nas sociedades em nome colectivo em que todos os sócios contribuem apenas com a sua indústria (art.º 9º n.º 1 alínea f) do CSC).

E, pode desde já adiantar-se, a situação em apreço não diz respeito ao conteúdo da deliberação, ou seja, o facto de ter participado na assembleia de 19 de março de 2021 uma pessoa que não era acionista, diz respeito ao procedimento, não ao conteúdo, que é o aumento de capital social da Ré.

Em face do exposto a violação do disposto no art.º 14º n.º 2 do Pacto social e art.º 379º n.º 1 do CSC não dita a nulidade da deliberação de 19 de março, pelo que improcede a pretensão da recorrente com este fundamento.

6.5. Da nulidade por ofensa dos bons costumes

Já foi citada, mas recorde-se que a alínea d) do n.º 1 do art.º 56º dispõe que são nulas as deliberações dos sócios: (…) d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

Em termos gerais e no âmbito do direito civil, os bons costumes têm sido entendidos como abrangendo “os domínios da actuação sexual e familiar” e “ aspectos deontológicos próprios de determinadas esferas de actividade profissional que, não correspondendo a vectores essenciais do sistema, não são de ordem pública” ( António Menezes Cordeiro, in da Boa fé no direito civil, pág. 1222 e Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2014, pág. 230 e no mesmo sentido Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, II, pág.161 e 626).

No que tange à sua concretização, António Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2014, pág. 231, refere que “passa pela sensibilidade pessoal e social do julgador que determinará, nas circunstâncias concretas, quais as normas de conduta sexual e familiar a respeitar ( por ex: não pode haver deliberações destinadas a favorecer casos amorosos) ou que deontologias estão em causa (por ex: deliberações que pretendem bulir com o sigilo profissional, pedindo à administração do Banco que revele negócios concretos).”

Paulo Olavo Cunha in Deliberações sociais – Formação e impugnação, pág. 234 refere que são “contrárias aos bons costumes as deliberações que se traduzam em comportamentos chocantes, numa perspectiva social, designadamente instigando a prática de actividades consideradas ilícitas. Por exemplo, uma deliberação que contribua para a promoção e facilitação da prostituição.
Mas também ofendem os bons costumes as deliberações que promovam um tipo de atuação social que seja vedado por regras de ordem pública. Por exemplo, a assembleia geral deliberar que, para determinados efeitos, os administradores da sociedade deveriam proceder ao pagamento de “luvas” a membros de órgãos de entidades públicas.”

Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2ª edição, pág. 697 refere que “não é fácil imaginar deliberações contrárias aos bons costumes que entrem no campo de aplicação do art.º 56º, 1, d.
Primeiro, por causa da fluidez e indeterminação da noção de bons costumes. Varia consoante os espaços e os tempos. E, num determinado espaço e tempo, é tarefa complicada delimitar as regras de conduta (originariamente extrajurídicas) aceites como boas pela consciência social dominante.
Depois, segundo a alínea d) do n.º 1 do art.º 56º, não é qualquer ofensa dos bons costumes que provoca a nulidade. Eles têm de ser contrariados pelo “conteúdo” da deliberação, pela deliberação considerada em si mesma, pela regulação por ela estabelecida. Não bastando, pelo menos em regra, que os motivos ou o fim da deliberação sejam contrários aos bons costumes.”
           
Finalmente diz-se no texto do Ac. desta RG de 12.03.2020, processo n.º 6604/18.8T8VNF.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg:
Temos em conta, assim, ao falar em bons costumes, um conjunto de regras morais e de conduta social, generalizadamente reconhecidas em dado momento numa sociedade, regras de convivência, de práticas de vida que as pessoas honestas e corretas aceitam comummente, ou seja, a moral social dominante – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 29/11/2011, processo n.º 845/11.6TYLSB.L1-7 (Maria Amélia Ribeiro), e Acórdão da Relação de Coimbra de 14/03/2017, processo n.º 1327/12.4TBLRA.C1 (Fonte Ramos): “Quanto às deliberações enunciadas no art.º 56º, n.º 1, alínea d), do CSC, ou seja, deliberações cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes, é corrente o entendimento de que as mesmas se traduzem em comportamentos chocantes, numa perspectiva social, designadamente instigando a prática de actividades consideradas ilícitas (v. g., uma deliberação que vise facilitar a prática da prostituição ou que incentive ou permita que os administradores da sociedade paguem “luvas” a determinada entidade pública)”.

E no sumário:

“Uma deliberação ofensiva dos bons costumes é aquela que se pode considerar violadora de um conjunto de regras morais e de conduta social, generalizadamente reconhecidas em dado momento numa sociedade, regras de convivência, de práticas de vida que as pessoas honestas e corretas aceitam comummente, ou seja, a moral social dominante, traduzindo-se em comportamentos chocantes, numa perspectiva social, designadamente instigando a prática de actividades consideradas ilícitas.”

O conteúdo das deliberações impugnadas é este: aumento do capital social de € 600.000,00 para € 651.000,00, de amortização das 597.000 acções e de redução do capital social de € 651.000,00 para € 54.000,00 em virtude da amortização das referidas € 597.000,00.

A recorrente não explica em que medida é que o conteúdo destas deliberações é ofensivo dos bons costumes.

O que invoca situa-se no plano do resultado das referidas deliberações.

É certo que estando as acções penhoradas, a sua amortização tem como consequência que o credor fique despojado dessa garantia, uma vez que o objecto da penhora – as acções - deixa de ter existência, já que se extinguem com a redução do capital social (não tendo qualquer fundamento a alegação da recorrente de que ocorre uma transferência das mesmas de AA para BB.

Mas não é menos certo que tal resultado é consentido por aqueles instrumentos legais, próprios das sociedades comerciais, nomeadamente pelo art.º 347º n.º 1 do CSC, ao admitir que o contrato de sociedade imponha, em certos casos e sem consentimento dos seus titulares – como é a penhora da participação social – que sejam amortizadas acções.

Nenhum facto ficou provado que permita concluir que o conteúdo das deliberações viola os bons costumes.

Improcede por isso e também esta causa de nulidade.

Em face e tudo o exposto, o recurso deve ser julgado improcedente e, assim, a decisão recorrida deve manter-se.

7. Decisão
Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e, assim, manter a decisão recorrida.
*
Custas pela recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 11/05/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
           
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
Maria João Matos