Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
111/18.6T9VRL-A.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
REMESSA MEIOS COMUNS
ATRASO TRAMITAÇÃO PROCESSUAL
ARTº 82º
Nº 3 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Tendo sido deduzido pedido de indemnização civil num processo criminal, o juiz só pode remeter as partes para os tribunais civis em duas situações: se as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou se forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal (artigo 82º, nº 3 do Código de Processo Penal).
2. Um atraso na tramitação processual para poder qualificar-se como intolerável, tem de ser insuportável, inadmissível, inaceitável. Não estando o arguido privado de liberdade, um atraso, mesmo que de alguns meses, não pode considerar-se intolerável, tanto mais quanto acaba por ser compensado pela desnecessidade de intentar um novo processo.
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.


I.
Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da secção penal do tribunal Relação de Guimarães.

No processo comum com intervenção de tribunal singular que, com o nº 111/18.6T9VRL, corre termos pelo juízo local criminal de Vila Real foi proferido o seguinte despacho:
Os presentes autos encontram-se em fase de julgamento.
Notificadas as partes para, querendo, se pronunciar, sobre o envio do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente para os meios comuns, veio a demandada companhia de seguros e a demandante, pugnar pelo indeferimento.
Cumpre apreciar e decidir.
É certo que no processo penal vigora o princípio da suficiência do processo penal – cfr. artigo 7.º, n.º 1, do código de processo penal, significando que no processo penal se devem decidir todas as questões conexas com a prática de um crime, bem como o princípio da adesão – cfr. artigo 71º, do mesmo diploma legal, que determina que o pedido civil conexo com o crime deve ser deduzido no processo penal, também é certo que as partes podem ser remetidas para os meios comuns quando as questões meramente civis retardem a realização do processo penal – cfr. artigo 82.º, n.º 3, do código de processo penal.
Atendendo a que o processo tem uma audiência de julgamento marcada, para o dia 18 de março de 2020, que a demandada companhia de seguros solicitou o envio de documentação referente a uma eventual compensação/indemnização que o falecido F. S. recebia da segurança social suíça, que a obtenção de tais documentos, a comprovar-se o que alega a demandada, determinará a reformulação do pedido, com a sua eventual redução, a eventual intervenção da segurança social suiça ou da portuguesa a peticionar o reembolso do que foi pago, a demora na obtenção de tal documentação, é manifesto que o processo penal não pode mais continuar a aguardar a realização de tais esclarecimentos, para apuramento dos danos, com relevância meramente civil.
Assim sendo, por entender que as questões cíveis retardam o normal desenrolar do processo penal, determino a remessa das partes civis para os meios comuns, nos termos do artigo 82.º, n.º 3, do código de processo penal.
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Inconformada, a demandante P. S. por si e em representação de seus filhos menores interpôs recurso para este tribunal, concluindo-o do seguinte modo ( transcrição):

1. O despacho recorrido decidiu pela remessa das partes civis para os meios comuns, com fundamento no retardamento para o processo penal.
2. Ora, nos termos do artigo 71º do CPP, o pedido cível deverá, em regra, ser objeto do processo onde o crime seja alvo de decisão.
3. Sendo certo que, de acordo com o artigo 82º, nº3 do CPP, o tribunal pode remeter as partes para os meios comuns quando as questões do pedido de indemnização civil retardem de forma intolerável o andamento do processo penal.
4. De todo o modo, esse poder não é (nem pode ser!) arbitrário e discricionário!
5. Ademais, o atraso de que fala o artigo 82º, nº3 do CPP, reporta-se a um atraso inaceitável, e não simples protelamento!
6. Ora, para fundamentar a douta decisão recorrida, o tribunal a quo invocou os seguintes factos como fundamento para ser colocado em causa o normal desenrolar do processo penal:
a. Audiência marcada para o dia 18 de março de 2020;
b. Obtenção dos documentos pedidos à segurança social suíça pode retardar o normal desenrolar do processo penal;
c. A possível reformulação do pedido feito pelos demandantes nos presentes autos pode retardar o normal desenrolar do processo penal;
d. A eventual intervenção da segurança social suíça ou portuguesa a peticionar o reembolso pode retardar o normal desenrolar do processo penal.
7. Não podemos concordar que a intervenção de um terceiro na ação,a entrega de documentação e a eventual reformulação do pedido pelos demandantes seja geradora de um atraso intolerável!

De facto,

8. A audiência de julgamento marcada para dia 18 de março de 2020 foi adiada sine die!
9. Nos presentes autos foi ordenada a realização de nova peritagem, que ainda não consta dos autos, relativamente à qual poderá existir pedidos de esclarecimentos.
10. O tribunal a quo não fundamenta a razão de temer que a obtenção dos documentos pedidos à Segurança Social Suíça venha a retardar o processo, autoridade reconhecida por ser eficiente, tipicamente sem delongas no tratamento dos assuntos nos quais colabora!
11. que daquelas autoridades dependem
12. A existir a possibilidade de reformulação do pedido formulado pelos demandantes, os demandantes terão de respeitar o prazo que lhes seja concedido para o efeito, que nunca será lato e que não será suscetível de retardar consideravelmente o andamento dos autos!
13. A eventual intervenção de um terceiro no processo não é motivo para a remessa do pedido de indemnização civil para os meios comuns, até porque as regras processuais relativas à intervenção, quer acessória quer principal, encontram-se positivamente previstas na lei, respeitando prazos curtos!
14. Não se antevê, assim, de que forma tal intervenção pudesse ter um impacto relevante no andamento dos autos!
15. Uma vez que, não cremos que nenhuma das situações que têm por base os fundamentos apresentados pelo Meritíssimo Juiz gerem um atraso inaceitável!
16. Ademais, in casu, não estamos perante o risco de prescrição!
17. E ambas as partes, tanto a demandante como o demandado, se opuseram à remessa do pedido de indemnização civil para os meios comuns!
18. A manutenção, nos presentes autos, do pedido de indemnização civil traria sérias vantagens no que concerne à economia processual e à celeridade, uma vez que, in casu, a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil estão funcionalmente ligadas!
19. Por fim, refira-se que a manutenção do pedido de indemnização civil no processo penal é a opção que melhor tutela os demandantes, aqui recorrentes no sentido em que tal solução será a mais célere, o que é relevante visto que era o malogrado F. S. que assegurava o rendimento familiar que se perdeu, sendo que a aqui recorrente, mulher do falecido, não exerce qualquer atividade profissional, enfrentando os demandante dificuldades financeiras,
20. Ou seja, os valores peticionados no pedido de indemnização civil são absolutamente indispensáveis para assegurar uma vida digna aos ora recorrentes!
21. Resta-nos concluir pela suficiência do processo penal para resolver todas as questões que interessem à decisão da causa, sejam elas penais ou não penais, de acordo com o princípio da suficiência do processo penal (artigo 7º do CPP).
22. Não vislumbramos qualquer motivo que torne imperativo a rmessa das partes civis para os tribunais comuns
23. O despacho impugnado violou o disposto nos artigos 71º, 72º, nº1 (a contrario) e 82º, nº3 do CPP!

Termos em que,
Deve ser revogado o douto despacho e em sua substituição ser decidido que deverá o Tribunal a quo apreciar o pedido de indemnização civil em devido tempo apresentado e admitido nos presentes autos.
Assim fazendo, V. Ex.as farão a já acostumada Justiça!

Respondeu ao recurso o Ministério Público em primeira instância defendendo a sua improcedência.
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Remetidos os autos a este tribunal veio o ministério público dizer não ter interesse em contradizer ou impugnar as questões em debate, reconhecendo, contudo, o acerto da resposta do ministério público em primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
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Foi, entretanto, obtida a informação de que o julgamento em primeira instância se encontra agendado para 10.02.2021.
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Após os vistos foram os autos à conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam o respetivo âmbito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Analisando a síntese conclusiva resulta patente que a única questão a solver é a de saber se deve ou não ser confirmada a decisão de remeter as partes civis para os meios comuns.

Como é incontroverso vigora no nosso código de processo penal o princípio de adesão, de acordo com o qual o pedido civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo sê-lo em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artigo 71º do CPP).
É esta, por assim dizer, a regra a observar, baseada num princípio geral de solidarização (usando a expressão de José Ribeiro de Faria in Estudos de Homenagem a Cunha Rodrigues, I, 394). As exceções a essa regra estão no artigo 72º do mesmo código do processo, cabendo ao lesado a possibilidade de delas se prevalecer.

Ocorre, contudo, que a lei para além de dar ao lesado a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, deduzir em separado o pedido civil, concede também ao tribunal a possibilidade de oficiosamente, ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando:

a) as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa; ou
b) foram suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal (artigo 82º, nº 3 do CPP).

Trata-se de uma manifestação da natureza jurídica civilística da relação processual do enxerto, consagrando-se a sua autonomia, a qual se comprime e reduz quando há que dar prevalência aos interesses perseguidos pelo processo penal, mas que sempre se reafirma quando cessam as razões que fundamentam a aderência (cfr. José Costa Pimenta in CPP, anot, 2ª edição, Rei dos Livros, 267). Trata-se, no dizer do mesmo autor, de uma válvula de segurança destinada a evitar a falência prática do sistema de adesão.
Desde que há 30 anos essa opinião foi proferida, a prática judiciária tem demonstrado que o princípio de adesão consagrado no Código de Processo Penal não só não é perturbador do processo penal, como tem grandes vantagens permitindo uma solução abrangente e definitiva sobre ambas as vertentes - civil e criminal- da questão em apreço, respeitando-se o ordenamento normativo como um todo.
De facto há claras vantagens em resolver no processo penal todas as questões que decorrem do facto criminoso.
A principal razão é, desde logo, a economia processual e de meios.
Ninguém ignora como é penoso para o cidadão comum o recurso a tribunal. É penoso pelo tempo que demora, pelos custos que envolve, pelas emoções que provoca. E, assim, se com um único processo o cidadão lesado vir a sua questão resolvida, sente essa possibilidade como uma inegável vantagem. E a economia de meios, decorre também da unidade do acervo probatório e da celeridade na obtenção da decisão final unitária. Mas outra razão, não menos importante, agora sob o ponto de vista do prestígio da justiça, é a possibilidade de evitar casos julgados contraditórios, consoante os mesmos factos sejam analisados no tribunal civil ou no tribunal criminal.

Retomando a orientação do artigo 82º nº 3 do CPP, já vimos que o juiz, numa decisão que não pode ser arbitrária ou discricionária, só pode remeter as partes para os tribunais civis se entender que não tem condições de decidir rigorosamente a questão civil, ou se houver o risco de atrasar intoleravelmente a decisão a proferir nos autos.
Foi esta última razão a que motivou o tribunal a decidir não conhecer, no processo criminal, do pedido civil. De facto, estando o julgamento marcado para 18 de março de 2020 e constatando o tribunal que “a demandada companhia de seguros solicitou o envio de documentação referente a uma eventual compensação/indemnização que o falecido F. S. recebia da segurança social suíça, que a obtenção de tais documentos, a comprovar-se o que alega a demandada, determinará a reformulação do pedido, com a sua eventual redução, a eventual intervenção da segurança social suíça ou da portuguesa a peticionar o reembolso do que foi pago, a demora na obtenção de tal documentação”, considerou manifesto que o processo penal não podia mais continuar a aguardar a realização de tais esclarecimentos para apuramento de factos com relevância meramente civil.
Esta conclusão não sustenta suficientemente a opção pela exceção que a remessa das partes para os tribunais civis deve constituir.
Desde logo, porque a lei exige que o atraso no processo penal seja intolerável, isto é, insuportável, inadmissível, inaceitável. E um atraso, mesmo que de alguns meses, não estando o arguido privado de liberdade, de modo nenhum se pode considerar intolerável, tanto mais quanto um eventual atraso acaba por ser compensado com a desnecessidade de intentar um novo processo. Aliás, no caso em apreço, não tendo sido realizado o julgamento na primeira data agendada ele acabou por ficar adiado, tendo sido reagendado para 09/09/2020 e depois para 10/02/2021 e o atraso não ficou a dever-se a qualquer questão relacionada com o pedido civil.
Por outro lado, não é a circunstância de o pedido civil poder vir a ser reduzido que introduz complexidade na questão e o mesmo se diga de um eventual pedido de reembolso por parte da segurança social.
Assim, no confronto entre as vantagens e desvantagens decorrentes da decisão recorrida, não há dúvida de que estas superam aquelas, tanto mais quanto os demandantes, como se percebe, valorizam a circunstância de resolver definitivamente e num único processo a questão que envolve o falecimento do marido e pai, certamente, emocionalmente penosa.

Não há, pois, razão para remeter para o tribunal civil a discussão do pedido formulado no processo criminal, devendo o julgamento a realizar proceder também à apreciação do pedido civil.

III.
DECISÃO.

Em face do exposto acordam os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam que o julgamento a realizar no processo principal abranja a apreciação do pedido de indemnização civil formulado nos autos.
Sem custas.
Notifique e comunique, de imediato, à primeira instância.
Guimarães, 08 de fevereiro de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho