Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
650/16.3GBBCL-B.G1
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
APRESENTAÇÃO TARDIA
REGIME DE SANCIONAMENTO
PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) No quadro normativo processual penal vigente a admissão de documentos em sede de audiência de julgamento rege-se pelos princípios gerais da produção da prova e regras estipuladas no artº 340º, do CPP.

II) Nesse âmbito, a apresentação intempestiva de documentos, por referência ao preceituado no artigo 165º, do CPP, fica sujeita ao regime geral previsto para a formulação de qualquer requerimento de prova intempestivo, onde não tem assento a imposição de multa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO:
Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, dos quais foi extraída a certidão que constitui este processo, a assistente S. M. foi condenada, em sede de audiência de julgamento, no pagamento da multa processual, no valor de 2 UC, com fundamento em junção intempestiva de documentos.
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Inconformada com o aludido despacho, a assistente interpôs recurso, apresentando a motivação, que remata com as seguintes CONCLUSÕES:

1. Pretende a assistente que seja revogado o Douto despacho proferido em 20/03/2017, com a referência n.º 152343875, pelo Tribunal de Comarca de Barcelos, exclusivamente na parte em que condenou a assistente em 2 UC a título de custas pela alegada junção intempestiva de documentos e incidente suscitado, porquanto incorrer em erro na interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 165.º, 340.º e 515.º do CPP bem como dos artigos 7.º, 8.º, 27.º n.º 1 do RCP.
2. Se atentarmos ao disposto no art. 165.º do CPP, respeitante à junção de documentos, nenhuma referência é feita à possibilidade de penalização pela apresentação tardia e não justificada do documento, pelo que, nessa medida, é inaplicável o consagrado no art. 27.º, n.º 1 do RCP, cuja aplicação está dependente da previsibilidade da condenação em multa pela prática de determinado ato.
3. Ademais, a tributação do processo em matéria penal segue regras distintas das estabelecidas para os demais processos (não obstante a sua recente convergência num mesmo diploma ¯ o RCP), pelo que no caso de junção de documentos, não há lugar à aplicação subsidiária do art. 423.º.º, n.º .2 do CPC. Nesse sentido ver Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal – II, p. 160, nota 1 e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 16ª ed., em nota ao art. 165.º.
4. Para além disso, tratando-se – como se trata – de junção de documentos no decurso da audiência de julgamento esta norma tem de ser vista em íntima articulação com os princípios gerais reguladores da produção de prova em audiência, designadamente, o princípio da verdade material consagrado pelo artigo 340.º, do CPP.
5. Pelo que: se o documento é relevante (ou possa perspetivar-se relevante) para a descoberta da verdade deve ser junto aos autos a) pela parte, sem penalização, ou b) por determinação do tribunal, nos termos do artigo 340.º, do CPP;
6. Com efeito, tendo em consideração a filosofia e axiologia subjacentes ao processo penal – onde pontificam o valor da liberdade e os princípios da verdade material e da investigação com vista à boa decisão da causa – não se justifica qualquer condenação em multa no caso de aquisição de documento no decurso da audiência e respetiva admissão por o Tribunal o ter considerado necessário à descoberta da verdade. Neste sentido vide Ac. TRP de 03-11-2010, disponível em www.dgsi.pt
7. Por outro lado, a decisão de que ora se recorre quebra o princípio de igualdade de armas pois o Ministério Público, em situação idêntica, está isento do pagamento da multa – artigo 522.º, n.º 1, do CPP.
8. Mas ainda que assim não se entenda — o que não se concede mas apenas se concebe por mero dever de patrocínio —, sempre se dirá que o valor da multa aplicada é excessiva atenta a simplicidade da questão levantada e a da decisão proferida.
9. Não se exigiu um grande trabalho de desenvolvimento e criação intelectual ao Mmo. Juiz a quo na decisão por si proferida, a apreciação de tal questão não prejudicou sequer o regular andamento da sessão, que sempre teria de ser interrompida por não ser possível, à hora a que se iniciou, à extensibilidade dos depoimentos prestados pelo arguido e pela assistente bem como ao grande número de testemunhas produzir toda a prova arrolada numa única sessão
10. Não pode, por isso, deixar de considerar-se desproporcional e injusta a condenação da assistente numa multa de 2 UCs pela junção aos autos de documentos, cuja junção, aliás, foi admitida atenta a sua relevância para a boa decisão da causa, e muito mais sabendo-se que a assistente tem parcas condições económicas, ao ponto de beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e outros encargos com o processo.


Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela assistente ser julgado totalmente procedente e, consequentemente deverá ser revogado o despacho recorrido na parte em que condenou a assistente em 2 Uc’s pela alegada junção tardia de documentos e incidente suscitado – art. 27.º, n.º 1, do RCP

como é de JUSTIÇA!
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Na resposta o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso.
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Nesta Relação, o Ministério Público defendeu a procedência do recurso, concluindo que deve ser revogada a condenação da assistente no pagamento da multa de 2 UC porquanto o documento por si apresentado no decurso da audiência foi aceite em juízo, a coberto do disposto no artigo 340.º do Código Processo Penal, não devendo, por isso, ser sancionado quem, afinal, se bate pela consecução da verdade material.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:

A. Despacho de 20-03-2017:
Relativamente à junção das fotografias agora apresentadas, não obstante a junção das mesmas seja intempestiva, porque poderão ser relevantes para a boa decisão da causa, o Tribunal admite a integração das mesmas nos autos, sem prejuízo de ser a apresentante condenada na multa que se fixa em 2 UC face à referida intempestividade e incidente agora suscitado – art. 27.º, n.º 1, do RCP. Na gravação não é audível a menção ao preceito do RCP, conforme consta da ata de audiência de julgamento.
Já relativamente aos demais documentos (mensagens) considerando a data dos mesmos, a apresentação é tempestiva e poderá revelar-se pertinente para a boa decisão da causa, pelo que ao abrigo do mesmo preceito legal, ou seja, art. 340.º, n.º 1, do C.P. Penal, admito a junção dos ditos documentos aos autos.
Notifique.
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B. Apreciação do Recurso:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No presente caso a única questão suscitada consiste em saber se deve ser sancionada com multa a apresentação de documentos em audiência com fundamento em intempestividade.
Vejamos.
O tribunal a quo admitiu a junção aos autos de documentos que considerou como relevantes para a boa decisão da causa, mas sancionou com multa de 2 UC a apresentação em audiência dos mesmos documentos, por intempestividade e a título de incidente.
Como se extrai da decisão impugnada, o tribunal omitiu a menção à norma legal que prevê a aplicação da sanção, posto que o artigo 340.º do Código Processo Penal, a que faz referência na admissão posterior de outros documentos e que surge como implícito no segmento decisório em escrutínio, não prevê a condenação em multa no caso de formulação intempestiva de requerimento de prova. Por outro lado, o artigo 27.º do RCP estipula os valores e regula critérios para fixação da multa nas hipóteses em que a lei processual prevê a condenação em multa ou penalidade de algumas das partes ou outros intervenientes, ou a condenação por litigância de má fé (n.ºs 1, 2, 3 e 4, do preceito) Para além de proibir a condenação simultânea em multa e taxa sancionatória excecional e de regular o recurso da condenação em multa, penalidade e nessa sanção (n.ºs 5 e 6)..
Acontece que não existe na lei processual penal norma que comine com multa a apresentação tardia de documentos, à semelhança do que sucede no âmbito da lei processual civil, em que se prevê, no artigo 423.º, n.º 2, do Código Processo Civil, a admissão de documentos posterior ao momento próprio, com a expressa menção de que a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Também o despacho impugnado não apela à aplicação subsidiária da aludida norma processual civil.
De todo o modo, importa clarificar que se considera vedado o recurso ao suprimento de lacuna legal e por essa via a aplicação da mencionada norma processual civil Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pág. 160, nota 1, «Entendemos não ser aplicável subsidiariamente o art. 523.º, n.º 2 do CPC [a que corresponde atualmente o artigo 423.º, n.º 2, do Código Processo Civil]. Se o documento for julgado relevante, então deverá juntá-lo oficiosamente, usando dos seus poderes de investigação autónoma (art. 340.º).» , por se não vislumbrar a existência de fundamento para o efeito, nos termos previstos no artigo 4.º do Código Processo Penal Vd. Neste sentido Voto de vencido no Acórdão da Relação do Porto de 13-02-2008, proc. 0647092: «1. Considero que, nesta matéria, não há qualquer lacuna ou omissão de regulamentação da legislação penal que imponha a integração por normas do processo civil, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, do Código de Processo Penal [CPP]. Na verdade, sob a epígrafe: “Quando podem juntar-se documentos”, o artigo 165.º, do CPP estabelece as condições a observar quanto à junção de documentos: “1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.” Nenhuma referência é feita à possibilidade de penalização pela apresentação tardia e não justificada do documento. Para além disso, tratando-se – como se trata – de junção de documentos no decurso da audiência de julgamento esta norma tem de ser vista em íntima articulação com os princípios gerais reguladores da produção de prova em audiência, designadamente, o princípio da verdade material consagrado pelo artigo 340.º, do CPP. E então, de duas uma: se o documento é relevante para a descoberta da verdade deve ser junto aos autos a) pela parte, sem penalização, ou b) por determinação do tribunal, nos termos do artigo 340.º, do CPP; se o documento não é relevante para a descoberta da verdade, então não deve ter lugar qualquer iniciativa do tribunal para o juntar aos autos e deve ser desatendido o pedido de junção feito pela parte». Entendimento que aliás está inteiramente de acordo com a redação posteriormente introduzida pela Lei n.º 20/2013 de 21-02, ao artigo 340.º do Código Processo Penal.. Aliás, sempre o regime processual civil de admissão de documentos se não mostra harmonizável com o processo penal, mormente com os princípios fundamentais da verdade material e da investigação Vd. Germano Marques da Silva, DIREITO PROCESSUAL PENAL PORTUGUÊS, 1, 2013, pág. 88, «O princípio da investigação traduz o poder-dever que incumbe ao tribunal de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando o próprio tribunal as bases necessárias à sua decisão. (…) Exemplos da consagração no Código Processo Penal do princípio da investigação encontram-se nos arts. 290.º, na fase de instrução, e 323.º, 327.º e 340.º, na fase de julgamento.»; e ainda, na pág. 96, «Definido o objecto do processo pela acusação e delimitado consequentemente o objecto do julgamento, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa; contrariamente ao que sucede no processo civil, não existe ónus da prova no processo penal.» (sublinhado nosso) .
No quadro normativo processual penal vigente a admissão de documentos em sede de audiência de julgamento rege-se pelos princípios gerais da produção da prova e regras estipuladas no artigo 340.º, do Código Processo Penal Conforme o entendimento expresso, ainda no domínio da redação original do preceito (artigo 340.º do Código Processo Penal), no Acórdão da Relação do Porto de 03-11-2010, proc. 941/08.7GBVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se declarou «Na consideração da filosofia e axiologia subjacentes ao processo penal – onde pontificam o valor da liberdade e os princípios da verdade material e da investigação com vista à boa decisão da causa – não se justifica qualquer condenação em multa no caso de aquisição de documento no decurso da audiência e respectiva admissão por o Tribunal o ter considerado necessário à descoberta da verdade. (Artigo 340º/1 CPP)»..
Nesse âmbito, a apresentação intempestiva de documentos, por referência ao preceituado no artigo 165.º do Código Processo Penal, fica sujeita ao regime geral previsto para a formulação de qualquer requerimento de prova intempestivo, onde não tem assento a imposição de multa.
Assim, o requerimento para junção aos autos de prova documental na fase da audiência deve ser indeferido quando não se demonstre a impossibilidade de apresentação no momento processual próprio, sendo essa a única consequência prevista na lei para a apresentação tardia e injustificada. No entanto, encontra-se legalmente ressalvada a possibilidade de o tribunal determinar a incorporação nos autos da prova documental de que tome conhecimento por via da apresentação intempestiva por sujeito processual, sempre que considere tal prova necessária ou indispensável à descoberta de verdade material e boa decisão da causa. Conforme decorre do preceituado no artigo 340.º, n.º 1, e n.º 4, alínea a), do Código Processo Penal Vd. Ainda Germano Marques da Silva, DIREITO PROCESSUAL PENAL PORTUGUÊS, 3, 2015, pág. 238, «(…) a junção de documentos que constituam elementos de prova é feita oficiosamente ou a requerimento até ao encerramento da audiência, embora o deva ser nas fases preliminares do processo. Posteriormente a estas fases, a acusação e a defesa só têm o direito de juntar novos elementos de prova se demonstrarem a impossibilidade de junção nas fases anteriores, mas o tribunal pode sempre ordená-la se considerar que o elemento de prova é relevante para a descoberta da verdade»..
Por conseguinte, no presente caso a ordenada junção aos autos dos documentos apresentados pela assistente tem suporte legal no citado preceito, já a condenação em multa não tem apoio legal, impondo-se a revogação, nessa parte, do decidido.
Nestes termos, procede o recurso.
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III. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogam o despacho recorrido de condenação da assistente em multa, por intempestiva apresentação de documentos.
Sem custas.
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Guimarães, 11-07-2017