Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
397/10.4TBCMN.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
DOLO
MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Nos créditos posteriores ao acto impugnado exige-se que o devedor actue com dolo, criando, com artifícios ou sugestões, a aparência de um determinado património que não existe na realidade e pratique o acto com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (artigo 610 al. a) segunda parte, do C. Civil).
2. Nos actos gratuitos não se exige a má-fé, porque são, por natureza, prejudiciais para os credores.
3. A anterioridade do crédito afere-se pela data da sua constituição e não pelo seu vencimento, em que é determinante o momento da constituição da relação obrigacional e não a data da decisão jurisdicional que reconheceu o crédito.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

A… intentou acção declarativa de condenação, contra J… e mulher, M…, e C….
Em síntese, alegou ter um crédito sobre os 1ºs RR. cuja cobrança ainda não conseguiu liquidar dado que os mesmos carecem de património suficiente. Acontece que os devedores declaram doar à 2.ª R. (sua filha) que declarou aceitar, um imóvel pertença daqueles, negócio esse que, porém, foi celebrado apenas com o intuito de impedir o A. de obter a satisfação do seu crédito. Pede o reconhecimento do direito à restituição do bem na medida do seu crédito por funcionamento do instituto da impugnação pauliana e ainda o cancelamento dos registos efectuados com base no acto impugnado.

Contestaram os 1ºs RR. negando qualquer intenção de prejudicar o A. e, de qualquer forma, invocando o benefício da excussão prévia por a sua responsabilidade derivar da posição de fiadores do devedor principal.
O A. replicou sem novidade.
Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou os réus nos termos seguintes:
a) declaro ineficaz, em relação ao A, o acto de alienação do imóvel identificado no ponto 3 dos Factos feito pelos 1ºs RR. a favor da 2ª R, reconhecendo ao A. o direito à respectiva restituição, na medida do seu crédito, podendo executá-lo no património da 2ª R.
b) declaro que a ineficácia indicada em a) supra fica dependente de o A. não conseguir obter a satisfação integral do seu crédito no processo de insolvência indicado no ponto 5 dos Factos.

Inconformados com o decidido, os réus interpuseram recurso de apelação, formulando conclusões.
Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.
Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1.Se há dolo dos réus doadores.
2.Se se deve exigir a má-fé dos doadores e donatária porque se está perante um acto gratuito anterior à constituição do crédito.
3. Ampliação do recurso suscitada pelo apelado no sentido de se definir o momento da constituição da obrigação creditícia dos apelantes.

Vamos conhecer das questões enunciadas.
Fixamos a matéria de facto consignada na decisão impugnada, que se transcreve:
1. O A. intentou contra os 1ºs RR. e contra a sociedade J…, Lda. a acção ordinária com o nº 1467/06.9TBFAF, que correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, no âmbito do qual foi proferida sentença, a 6 de Outubro de 2006, já transitada em julgado, constante a fls. 39 a 44 dos autos, na qual se lê na parte decisória: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a acção parcialmente, por provada, e, em consequência, condena-se os réus a pagar ao A. a quantia de € 798 078,46 (setecentos e noventa e oito mil e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4%, sem prejuízo de outras taxas que, eventualmente, venham a vigorar. Os réus J… e M… poderão invocar o benefício da excussão prévia do património da ré J…, Lda. na satisfação da dívida acima reconhecida” (A a C);
2. Corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe a execução comum nº
1467/06.9TBFAF-A, com o valor de € 815.789,24, acrescida de juros à taxa legal de 4% até efectivo e integral pagamento, constando como título executivo a sentença referida em 1. Nessa execução foi penhorado um prédio rústico,
denominado por “Coutada…”, com a área de 3.288,25 m2, situado no Lugar …, concelho de Fafe, descrito na Conservatória do Registo Predial de Fafe, sob o nº …, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo…, com o valor patrimonial de 65,24 € (D e E);
3. Em 16 de Janeiro de 2006, por escritura pública lavrada a fls. 118 a 119 do livro de escrituras diversas nº 7-E, no Cartório Notarial Privado de Paula Alexandra de Castro Magalhães dos Santos, sito na Rua de Santo António, nº 88 C – 1º esquerdo, freguesia de S. Paio, do concelho de Guimarães, os 1ºs RR. doaram à 2ª R. (sua filha) a fracção autónoma designada pela letra “A”, primeira moradia do lado norte, T-3- de cave, rés-do-chão, primeiro andar e logradouro a norte, nascente e poente, que faz parte integrante do prédio urbano sito no lugar de…, do concelho de Caminha, inscrita na matriz sob o
artigo…e descrita na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº… (F);
4. O A, o 1º R. e a sociedade J…, Lda celebraram um contrato-promessa de compra e venda a 25 de Fevereiro de 2002, com as cláusulas constantes de fls.
40 e 41 dos autos (G);
5. Foi declarada a insolvência da sociedade J…Lda no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, sob o nº 1936/07.3TBFAF (H);
6. A quantia referida em 2 não foi paga (1);
7. Os 1ºs RR. não dispõem de outros bens imóveis com valor ou móveis para que o A. possa obter pagamento do seu crédito (2);
8. Os 1ºs RR. celebraram o negócio referido em 3 para que o imóvel objecto desse negócio não pudesse responder pela dívida resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda outorgado em 25 de Fevereiro de 2002 (3);
9. Os 1ºs RR. sabiam, na data indicada em 3, que o imóvel objecto do negócio aí referido poderia ser penhorado e vendido caso não pagassem voluntariamente a dívida resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda outorgado em 25 de Fevereiro de 2002 (5);
10. No processo de insolvência referido em 5 o A. reclamou a verificação do crédito que detém sobre a insolvente – e que resulta da condenação desta nos termos indicados em 1 –, tendo esse crédito sido reconhecido nesses autos, os quais se encontram actualmente em fase de liquidação do activo (6);
11. No ano de 2000 os 1ºs RR. eram detentores do usufruto e a 2ª R. da raiz ou nua propriedade, de uma fracção autónoma designada pela letra “D”, sita na rua…,na Póvoa de Varzim. No dia 15 de Setembro de 2000 essa fracção autónoma foi vendida a um terceiro (7 e 8).

1 e 2 O tribunal recorrido considerou que os doadores actuaram com dolo porque tiveram a intenção de impedir a satisfação do direito do autor, com a doação que fizeram à sua filha, em Janeiro de 2006, como resulta dos factos provados em 8 e 9 da decisão recorrida, não sendo de relevar a má-fé, porque se trata de um acto gratuito. Apesar de não configurar, de uma forma clara, quando é que nasceu o crédito do autor, afirmou que é credor dos primeiros réus desde, pelo menos, Outubro de 2006.

Os apelantes defendem que, no caso de o crédito ser posterior ao acto, o dolo exigível na segunda parte do artigo 610 nº1 do C.Civil deve traduzir-se na fraude preordenada, consubstanciada no fazer acreditar ao credor que certos bens alienados ou onerados pelo devedor fazem parte do seu património, para obter o crédito, o que se não provou. E a segunda parte do artigo 612 n.º 1 do C. Civil não é aplicável ao caso, porque se está perante um crédito posterior ao acto, e só é de aplicação à situação de crédito anterior, numa interpretação teleológica deste normativo com o artigo 610 n.º 1 al. a) primeira parte do C. Civil. Quando esteja em causa um crédito posterior e o acto seja gratuito, deve exigir-se a má-fé consagrada no n.º 2 do artigo 612 do C.Civil, apoiando-se no Ac. STJ. de 3/06/1992 BMJ.418/737.

O dolo em causa há-de traduzir-se na criação da aparência, através de artifícios, sugestões empregues pelo devedor no sentido de fazer crer ou manter alguém em erro de que o seu património tem uma determinada extensão, é composto por determinado bens, o que não corresponde à realidade. E que o acto impugnado tem, como finalidade, impedir a satisfação do direito futuro do credor. Nesta perspectiva civilística do dolo (artigo 253 do C. Civil) enquadra-se a fraude preordenada.

No caso em apreço, ficou provado que os apelantes doadores doaram o imóvel à sua filha com a intenção de impedir que o crédito do apelado fosse pago com esse bem, como resulta do ponto 8 da matéria de facto da decisão recorrida. Na verdade, o autor tinha um direito de crédito emergente dum contrato promessa de compra e venda, que se traduzia na obrigação da sociedade, de que era sócio e fiador, em celebrar um contrato definitivo, que envolvia a transmissão de algumas fracções de um seu prédio em construção, dentro de um determinado período, cujo limite era 30 de Setembro de 2005. Apesar de ainda não estar concretizado, o que veio a acontecer com a resolução do contrato por incumprimento definitivo, que se verificou com a sentença já transitada em julgado e proferida a 6 de Outubro de 2006, o apelado já tinha um direito de crédito, que o réu marido sabia que se não fosse cumprido pela empresa, teria de cumprir ou arcar com as suas consequências. Daí que, quando sentiu que a empresa não iria cumprir o contrato até ao dia 30 de Setembro de 2005, como resulta dos pontos de facto 5 e 6 da sentença junta fls. 39 a 44, uma vez que o edifício ainda não estava concluído a 14 de Junho de 2006, fez com a sua esposa a doação a favor da sua filha, a 16 de Janeiro de 2006, para evitar que o mesmo garantisse o cumprimento total ou parcial do direito do autor, emergente do contrato promessa celebrado, que não foi cumprido. Daí que possamos concluir que os réus doadores não agiram com dolo ao outorgarem a escritura de doação, porque não utilizaram quaisquer artifícios ou sugestões no sentido fazer crer ou manter em erro o autor de que o seu património tinha uma determinada constituição, incluindo o bem alienado. Limitaram-se a fazer a doação sabendo que, com este acto, iriam diminuir o seu património, impedindo a satisfação do direito de crédito do autor, que se concretizou com o incumprimento do contrato, sendo exigível a partir do trânsito em julgado da decisão que o reconheceu. Apenas se provou um dos pressupostos exigidos no artigo 610 segunda parte da al. a) do C. Civil, para créditos posteriores ao acto, em que este foi realizado com o fim de impedir a satisfação do direito futuro. Não se provou o dolo.

Coloca-se a questão da má-fé dos intervenientes no contrato de doação, uma vez que este é anterior à constituição do crédito, pelo que não deve aplicar-se a segunda parte do n.º1 do artigo 612 do C. Civil que refere “se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé”. A letra do artigo é clara no sentido de que quando se estiver perante um acto gratuito é indiferente que os intervenientes no acto tenham agido de boa ou má-fé. A impugnação será sempre procedente. E da norma não resulta que esta situação só se aplica a créditos anteriores. Por outro lado, quando se exige o dolo nas situações de créditos posteriores, este abrange, necessariamente, a má-fé dos alienantes, porque sabem que, ao impedirem a satisfação do crédito do futuro credor, irão causar-lhe prejuízo. E, se neste caso há necessidade de proteger terceiros nos actos onerosos, porque há correspectividade das prestações, já não se justifica nos actos gratuitos, porque não há contrapartidas. A tutela da liberdade de dispor e do comércio jurídico, em si, não justificam uma interpretação restritiva do preceito, porque pretende-se, com este instituto, proteger os credores dos actos que diminuam o património dos devedores. E só os gratuitos têm esta consequência, porque não há contrapartidas, correspectividade nas prestações. Daí que se compreenda que a segunda parte do n.º 1 do artigo 612 do C. Civil não abranja apenas as situações de créditos anteriores, como defende a maioria da doutrina e jurisprudência. Pois, um acto gratuito acarreta, em geral, diminuição do património, e, consequentemente, prejuízo para os credores, em geral. E este facto é mais prejudicial para o comércio jurídico, em que predominam os actos onerosos, justificador de maior protecção dos terceiros do que nos actos gratuitos, em que o beneficiário nada tem a perder, porque não entregou nada em troca, não prestou qualquer contraprestação. Quanto maiores forem as garantias dos credores, maior facilidade há na concessão de crédito e maior será a circulação de bens, com a realização de actos jurídicos, contribuindo para o desenvolvimento do comércio jurídico e do comércio em geral.

Assim é de concluir que, no caso em apreço, não se verifica um dos pressupostos da impugnação pauliana, na medida em que estamos perante uma doação, em que não se provou que os doadores actuaram com dolo, requisito fundamental.

3. O apelado pretende a ampliação do recurso no sentido de que o seu crédito é anterior à outorga do contrato de doação, porque emerge dum contrato promessa de compra e venda celebrado em 2002, cujo incumprimento definitivo se verificou a 30 de Setembro de 2005, data limite da outorga da escritura definitiva. Mas condicionou esta ampliação à não verificação do dolo e à exigência de má-fé.

Coloca-se a questão de saber quando é que se constituiu o crédito do autor, de saber se estamos perante um crédito anterior ou posterior ao acto impugnado.
A anterioridade do crédito afere-se pela data de constituição do crédito e não pelo seu vencimento. É determinante o momento da constituição da relação obrigacional e não a data da decisão jurisdicional, em processo intentado com vista a obter a condenação do devedor, que venha a reconhecer o crédito (conferir Ac. STJ. 13.12.2007, AC. RP. 22.04.2004 e Ac. RG. 2.05.2013, in www.dgsi.pt).

No caso em apreço estamos perante um crédito emergente da celebração dum contrato promessa de compra e venda entre a sociedade de que o 1.º réu e apelante era sócio gerente, outorgado a 25 de Fevereiro de 2002, em que aquela se obrigou a celebrar o contrato definitivo até 30 de Setembro de 2005, assumindo o réu a posição de fiador. Na data limite do cumprimento do contrato as fracções a que a sociedade se comprometeu vender ao autor ainda não estavam concluídas, como se pode constatar da leitura da sentença junta a fls. 39 a 44, em que está provado que “ Em 14/06/2006, data da apresentação da petição inicial neste Tribunal, a ré ainda não havia concluído a construção do edifício onde os apartamentos acima mencionados era suposto situarem-se”. O que quer dizer que o contrato não foi cumprido e não era possível cumprir, como acabou por não ser cumprido e reconhecido o incumprimento definitivo por sentença de 6 de Outubro de 2006. Assim, o direito de crédito do autor constituiu-se com a celebração do contrato promessa, cujo cumprimento deveria ocorrer até 30 de Setembro de 2005, o que não aconteceu. Este direito, reconhecido pela sentença de 6 de Outubro de 2006, passou a ser exigível a partir do seu trânsito em julgado. Assim o direito de crédito do autor apelado é anterior à celebração do contrato de doação entre os apelantes e sua filha, que ocorreu a 16 de Janeiro de 2006. E só foi outorgada porque os apelantes sabiam da existência do contrato promessa, da impossibilidade do seu cumprimento no prazo limite e das consequências do seu incumprimento, pelo que se adiantaram com a outorga do contrato de doação, para evitar que o bem alienado respondesse pelo cumprimento do direito de crédito do autor, impossibilitando ou agravando a possibilidade de satisfação do crédito do autor apelado.

Como estamos perante um crédito anterior ao acto impugnado não se exige o dolo e a intenção de impedir a satisfação do direito futuro do credor, nos termos da segunda parte da alínea a) do artigo 610 do C. Civil, mas antes a primeira parte deste normativo. E sendo um acto gratuito, não se coloca a questão da boa ou má-fé, como resulta da leitura da segunda parte do artigo 612 n.º 1 do C.Civil. Mesmo assim, julgamos que os apelantes agiram de má-fé, porque outorgaram a doação com o fim de evitar que o bem alienado não respondesse pelo crédito emergente do contrato promessa celebrado a 25 de Fevereiro de 2002 e bem sabiam que poderia ser penhorado e vendido se não pagassem, voluntariamente, a dívida resultante do incumprimento do respectivo contrato promessa.
Daí que possamos concluir que se verificam os pressupostos da impugnação pauliana, confirmando a decisão recorrida.

Concluindo: Nos créditos posteriores ao acto impugnado exige-se que o devedor actue com dolo, criando, com artifícios ou sugestões, a aparência de um determinado património que não existe na realidade e pratique o acto com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (artigo 610 al. a) segunda parte, do C. Civil).
2. Nos actos gratuitos não se exige a má-fé, porque são, por natureza, prejudiciais para os credores.
3. A anterioridade do crédito afere-se pela data da sua constituição e não pelo seu vencimento, em que é determinante o momento da constituição da relação obrigacional e não a data da decisão jurisdicional que reconheceu o crédito.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
Guimarães, 9 de abril de 2015
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida