Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
561/14.7GCBRG-A.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: REVOGAÇÃO SUSPENSÃO PENA
REGIME DE PROVA
NÃO AUDIÇÃO CONDENADO
IRREGULARIDADE
ARTº 123º
Nº 2
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PREJUDICADO O CONHECIMENTO DO RECURSO INTERPOSTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A audição de um condenado para efeito de tomada de decisão sobre a revogação, ou não, da suspensão de pena anteriormente imposta com sujeição a regime de prova, tem de ocorrer na presença do técnico da DGRSP que fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão ( art. 495 nº 2 do CPP).
2. Não obstante uma irregularidade ser habitualmente considerada um vício de pouca gravidade, situações há em que, quando estão em causa direitos fundamentais, ela assume relevância ao ponto de o legislador dar ao juiz a possibilidade de, oficiosamente, - portanto, mesmo que não tenha sido invocada pela parte a quem aproveita - determinar a sua reparação no momento em que dela tomar conhecimento, quando puder afetar o valor do ato praticado (art. 123 nº 2 do CPP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo de cúmulo jurídico que, com o nº 561/14.7GCBRG-A, corre termos no juízo central criminal de Braga foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

a) Revogo a suspensão da execução da pena aplicada ao condenado E. L. e determino o seu cumprimento, nos termos do art.º 56.º nº 1 al. a) e nº 2 do CP;
b) Revogo a suspensão da execução da prisão subsidiária e determino o cumprimento do remanescente (do qual serão descontadas as horas que prestou).
Notifique, esclarecendo o condenado que poderá obstar ao cumprimento de prisão subsidiária pagando o remanescente da multa. Comunique à DGRSP solicitando que informe o número total de horas de trabalho prestado.
Após o trânsito, passe os mandados de detenção (...).
*
Inconformado com a decisão recorreu o arguido concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição).

1) Com o devido respeito, que nos merecem a opinião e a ciência jurídica do tribunal a quo, é entendimento do ora Recorrente, que ocorreu um lapso na verificação da interpretação dos artigos 55.° e 56.1 do Código Penal, pelo que a decisão Recorrida é injusta e desproporcional.
2) Na verdade, entende-se que o Tribunal o quo, deveria ter decidido pela manutenção da suspensão da execução da pena bem como da prisão subsidiária, pelo que a decisão do Tribunal a quo foi manifestamente injusta, desproporcional, exagerada e desajustada, o que não se pode aceitar.

Assim,
3) O Recorrente durante o período da suspensão, não voltou a cometer qualquer ilícito criminal, demonstrando total afastamento da prática de crimes.
4) O Recorrente mantém a sua atividade profissional, sendo assíduo e pontual, desde 13 de Junho de 2018, na empresa X - UNIPESSOAL, LIDA desempenhando as funções inerentes à categoria de "servente", na área de construção civil, auferindo cerca de €500,00/€600,00 mensais, valor do qual despende para o pagamento da renda, das despesas decorrentes do agregado familiar (água, luz, etc.) e com o pagamento da pensão de alimentos a um filho menor, com 17 anos, no valor de 130,00€.
5) O Recorrente assegura em todas as despesas do agregado familiar, que é composto pela sua companheira e por uma filha, maior.
6) A companheira do Recorrente encontra-se desempregada e com problemas graves de saúde, sendo o Recorrente, além do seu sustento, o seu cuidador.
7) A filha que consigo reside, dei 9 anos, estuda, e não trabalha, pelo que também é o Recorrente que assegura todas as suas despesas e necessidades diárias.
8) Além disso, deverá ainda ter-se atenção as condições de vida do ora Recorrente, sendo que o mesmo, apesar das dificuldades no consumo de estupefacientes, certo é que mantém as consultas no Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT).

Não obstante,
9) É certo que o Recorrente faltou a algumas reuniões na DGRS, mas não o fez com a intenção de não ser contactado ou encontrado, mas sim, ou porque não teve meios económicos para se deslocar às suas instalações, tendo em conta que não reside perto, uma vez que tem que se deslocar de Riba de Ave (local onde reside o Recorrente) para Santo Tirso,
10) Ou porque se encontrava impedido por motivos profissionais, pois, por vezes não tinha transportes públicos em horários compatíveis com a atividade profissional, ou então, por diversas vezes se encontrava a trabalhar em obras fora da sua área de residência, havendo alturas em que só regressava à sua residência aos fins de semana, e por esse motivo não lhe era possível comparecer.
11) Relativamente à prisão subsidiária, conforme consta do plano de prestação de trabalho homologado, o Recorrente comprometeu-se a cumprir aos sábados das 09.00horas às 18 horas tarefas de limpeza dos espaços e instalações afectos ao Y Futebol Clube.
12)Sucede que, por diversos sábados que o ora Recorrente se deslocou às instalações do Y Futebol Clube e lhe diziam para ir embora que não havia nada para ele fazer, que ele era um "caso perdido".
13) Outras vezes, o Recorrente apresentou-se nas instalações do Y Futebol Clube e não se encontrava ninguém presente, tendo vindo a descobrir que havia sido convocado um jogo de futebol noutro local, sem que ninguém tivesse informado o Recorrente, não podendo, desta forma, prestar o seu trabalho.
14) Aquilo que o Tribunal a quo considerou 'meras desculpas", mais não é do que a realidade do Recorrente, uma vez que, se efetivamente não tivesse o propósito de cumprir o plano, nunca teria comparecido no local para prestar o trabalho, o que não é o caso, conforme resultou provado.
15) Prova, ainda, de que o Recorrente tinha intenção de cumprir o plano de forma rigorosa, é o facto de o Recorrente, após solicitação, acedeu a levar o material para desempenhara função de cortar/limpar sebes (uma máquina), sendo que o Recorrente, reitera-se, porque tinha intenção de cumprir e prestar um bom trabalho, tendo pedido o equipamento emprestado a um familiar, pagando a seu custo, inclusive, da gasolina necessária para desempenhar a função.
16) Assim, o Recorrente apesar de ter vontade e intenção em prestar o trabalho a favor da comunidade, o certo é que não foi devidamente apoiado no local escolhido para tal prestação.
17) Portanto, resulta claro que o Recorrente sempre manteve, e mantém, o propósito de cumprir o remanescente do trabalho a favor da comunidade.

Além de que,
18) O Recorrente tem a consciência que o consumo de estupefacientes é um problema significativo nas famílias de contexto sociocultural modesto e por esse motivo, mas essencialmente por também ter efetuado uma introspeção pessoal, concluiu que este é o momento oportuno para se retratar e, por isso, acredita que determinar que o Recorrente possa efetuar tratamento, também seria uma pena pedagógica, que incentivaria a sua progressiva reintegração social.
19) Por todo o aduzido, a conduta manifestada pelo Recorrente, não revela manifesto desinteresse na execução da medida, que ponha irremediavelmente em causa o seu cumprimento, face ao supra alegado.
20) O Recorrente nunca faltou por motivo fútil mas sim por carência económica para se deslocar ou por impossibilidade motivada pela sua atividade profissional.
21) Acresce que, deve ser tido em consideração que o ora Recorrente provém de contexto sociocultural muito modesto, pelo que o Recorrente entende que o tribunal recorrido, não teve devidamente em conta as suas condições pessoais, a situação social, familiar e profissional.
22) Pelo exposto, cremos manter-se, ainda, apesar das vicissitudes, sobrevivas os argumentos que fundamentaram a douta suspensão da execução da pena, que por essa razão não deve ser revogada, bastando-se na consciencialização do arguida da cumprimento escrupuloso das injunções que lhe vierem a ser arbitradas.

Assim,
23) A douta decisão padece de lacuna grave na ponderação de alternativa mais favorável ao arguido por omissão do uso das prerrogativas, porventura ainda suficientes, constantes da alínea c) e d) do art° 550 do Código Penal.
24) Por isso, com o devido respeito, entende o Recorrente que, na decisão recorrida, não se fez a mais correta apreciação das circunstâncias que deverão ser atendidas na revogação da suspensão da pena, prevista no art. 56.0 Codigo Penal.
25) Conforme resulta deste preceito, a revogação não é automática e só deve ter lugar quando o incumprimento dos deveres ou o cometimento do facto ilícito que determinou a condenação posterior revelarem que as finalidades que estavam na base da suspensão já não podem ser atingidas através dessa suspensão.
26) Ora, na situação em apreço, atento o já supra exposto, apela-se a este Tribunal que se dê uma última oportunidade ao Recorrente, mantendo a suspensão da execução da pena bem como a suspensão da execução da prisão subsidiária, uma vez que, dessa forma, realiza e assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e revelar-se-ia adequada a cuidar das exigências de prevenção geral e especial, e é suficiente para que o Recorrente interiorizasse a gravidade e o desvalor da sua conduta.
27) Repare-se que o Recorrente está reintegrado social e familiarmente, tem uma atividade profissional, pelo que a manutenção da suspensão da pena de prisão seria vista como uma nova oportunidade, não esquecendo as repercussões nefastas que a aplicação de pena de prisão efetiva traz para o Recorrente.
28) Pois, deve considerar-se que o Recorrente está reabilitado para efeitos jurídico-penais nos termos supra expostos, e está inserido na sociedade, familiarmente e ainda profissionalmente.
29) Em nossa opinião, merece o Recorrente que V. Ex.0s lhe concedam uma última oportunidade para que se possa continuar o seu processo de reintegração na sociedade.
30) Atento o exposto, é manifestamente exagerado ordenar ao Recorrente o cumprimento da pena de prisão efetiva, uma vez que, resulta como provado que está inserido social e familiarmente, e economicamente, tem o apoio da esposa, filho e amigos e apresenta hábitos reciu!ares de trabalho, estando completamente afastado da prática de ilícitos criminais, pelo que as finalidades que estavam na base da suspensão da pena foram, por meio dela, alcançadas.
31) Pelo que, salvo sempre o devido respeito pela Mma Juiz a quo e por opinião contrária, o Recorrente entende violadas as normas dos arts. 510, 550 e 560 todos do Código Penal.

SEM PRESCINDIR, POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO,
DA NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR FALTA DE FUNDAMENTACÃO:

32) O art. 205, n° 1 da CRP, por seu turno, disciplina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei."

Ora,
33) Conforme facilmente se verifica pela leitura do teor do referido despacho, não se alcançam os fundamentos da decisão do Tribunal a quo, no que respeita à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, uma vez que se limita a aceitar como verdadeiro e irrefutável o teor dos relatórios da DGRSP, desconsiderando totalmente os argumentos do Recorrente considerando-os "meras desculpas".
34) Assim, na decisão de que ora se recorre, não resulta qualquer juízo comparativo e crítico que fundamente a decisão, limitando-se a remeter para os autos.
35) E, portanto, nesse sentido, a decisão recorrida é nula por vício de fundamentação, nos termos da alínea b) do n° 1 do art. 615.1 e art. 154.° do CPC, uma vez que não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão nulidade que desde já se invoca, para todos os legais efeitos.

TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, em consequência:

Ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro acórdão que, valorando os elementos objectivos constantes dos autos e todo o aduzido quanto às condições do Recorrente, decida pela não revogação da suspensão da pena, bem como pela não revogação da suspensão da execução da prisão subsidiária, e, em consequência, seja alterado o local onde o Recorrente continue a prestar o trabalho a favor da comunidade, por total incompatibilidade com a administração do Y Futebol Clube.
ASSIM FARÃO V.EX.AS INTEIRA JUSTIÇA.
*
Respondeu o Ministério Público em 1ª instância pugnando pela manutenção da decisão.
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Remetidos os autos a este tribunal, também aqui o Ministério Público entendeu que o recurso não merece provimento.
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Foi cumprido o art.º 417.º nº 2 do Código de Processo Penal ( CPP).
*
Após os vistos, realizou-se conferência.
*
II.
Cumpre decidir, tendo em conta que são as conclusões do recorrente que delimitam o objeto de recurso ( art. 412 do CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
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Analisando o recurso do arguido temos que se impõe aferir:

- Se o comportamento do arguido não justificava a decisão recorrida de revogação da suspensão da execução quer da pena de prisão, quer da prisão subsidiária.
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É a seguinte a matéria de facto com interesse para a decisão:

- O recorrente foi condenado por acórdão cumulatório na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por igual período, sujeita a regime de prova e na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, pela prática de 3 (três) crimes de roubo, um deles na forma tentada e de um crime de falsidade de testemunho.
- O acórdão transitou em julgado em 19/10/2016.
- Por decisão de 13/02/2017 foi homologado o plano de reinserção social do qual constavam os seguintes objectivos:
i. Consolidar a desabituação aditiva, devendo para tanto manter o apoio especializado do CRI do Porto Ocidental, consulta de Santo Tirso;
ii.Promover a empregabilidade, devendo procurar ativamente emprego e aderir a ofertas de emprego ou formações;
iii.Promover as competências pessoais e sociais, devendo investir na interação com grupos de pessoas sem comportamentos desviantes ou aditivos.
iv.Interiorizar o desvalor da sua conduta e prevenir a reincidência, devendo comparecer na equipa de DGRSP com a periodicidade que for programada ;
-Durante a execução do plano foram vários os relatórios a dar conta de anomalias, v.g., (no primeiro relatório):
i. Desmotivação em cumprir a calendarização das entrevistas programadas;
ii.Notícia da existência de conflitualidade em contexto familiar dirigida à mãe, o que foi participado ao OPC da área da residência.
-Foi designada data para audição do arguido, que teve lugar em 16/10/2017, aí tendo o arguido justificado os comportamentos omissivos e requerido que a multa e custas fossem pagas em quantias não superiores a 100€ (cem) mensais.
- Na sequência do requerimento foi decidido oficiar à DGRSP para que agendasse nova entrevista ao arguido para continuação da execução do PRS e foi autorizado o pagamento da multa em 10 (dez) prestações mensais e sucessivas e o pagamento das custas em 12 (doze) prestações.
- Após foi junto aos autos um relatório de avaliação o qual mencionava que a comparência na DGRSP ocorria com irregularidade e sempre com intervenção da entidade empregadora que se disponibilizava para conduzir o arguido às entrevistas; forte absentismo, apesar do apoio do empregador; falta às consultas do CRI de setembro e novembro de 2017; informação obtida junto da mãe de que o arguido continua a conviver com grupos de pessoas com comportamentos aditivos.
- Foi agendada para 21/05/2018 nova audição do condenado, que não compareceu informando que tinha sofrido um acidente de trabalho e estava impossibilitado de se deslocar, o que provocou o adiamento da diligência para 19/06/2018.
- Na diligência de 19/06/2018, foi julgada justificada a falta do arguido à diligência anterior e à convocatória da DGRSP, na medida em que sendo datada de 25/05/2008, convocava o arguido para o dia 06/05/2018.
- Foi elaborado um terceiro relatório de anomalias onde é referido que o arguido deixou de comparecer às marcações efetuadas e que mantém- por informação alegadamente prestada pela mãe- o padrão de gestão do quotidiano centrado nos consumos aditivos.
- Seguiu-se a promoção do Ministério Público no sentido de conversão da multa não paga em prisão subsidiária, na sequência da qual foi agendada nova audição do arguido, agendada para 07/01/2019.
- Entretanto o arguido juntou aos autos requerimento solicitando a substituição da multa por dias de trabalho, invocando dificuldades financeiras, o que veio a ser deferido, tendo sido substituída a multa não paga por 170 (cento e setenta) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar nas instalações do Y Futebol Clube, aos sábados das 9:00h às 18:00h.
-Em 18/09/2019, foi remetido novo relatório de anomalias dando conta de que o condenado deixou de comparecer nas instalações da DGRSP desde 26/09/2018 até 06/03/2019.
- Após foi feito constar que das 170 horas de trabalho a cumprir pelo arguido, apenas 32 horas tinham sido cumpridas e que depois de 06/03/2019 compareceu a entrevista a 01/04/2019, faltou a 13/05/2019 com remarcação para 21/05/2019, tendo comparecido, faltando a 25/06/2019 e de novo comparecido a 06/07/2019, não mais comparecendo desde aí.
- No mesmo relatório continua a ser dito que, do contacto com a mãe do arguido resulta que ele “mantém o mesmo padrão de gestão do quotidiano, centrado nos consumos aditivos e no convívio de pessoas com o mesmo comportamento associado à interação negativa/conflituosa que continua a incutir no agregado de origem”.
- Foi designada nova audição do condenado para 09/10/2019, na qual veio a ser promovida pelo ministério público a revogação, quer da suspensão da pena de 4 anos e 3 meses de prisão, quer da suspensão da execução da pena de prisão subsidiária.
- À promoção do ministério público respondeu o arguido contrariando o teor do relatório da DGRSP, requerendo a manutenção da suspensão quer da pena, quer da prisão subsidiária, com alteração do local onde deverá prestar trabalho comunitário por falta de apoio no local onde se encontra.
*
A decisão recorrida é do seguinte teor:

I – E. L. foi condenado, por acórdão cumulatório, na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período de tempo, sujeita a regime de prova e 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa de 6€, pela prática de 3 crimes de roubo, um deles na forma tentada e de um crime de falsidade de testemunho – cfr. fls. 371/385.
Tal acórdão foi proferido em 19 de Junho de 2016, tendo transitado em julgado no dia 19 de Outubro de 2016.
O PRS foi homologado por decisão de 13 de Fevereiro de 2017 - cfr. fls. 465.
Foram vários os relatórios a dar conta de anomalias (cfr. fls. 496/498, 550/552, 594/595 e 668/669), tendo o condenado sido ouvido inúmeras vezes pelo tribunal, que o advertiu, também por várias vezes, das consequências para o seu incumprimento (cfr. fls. 514,568, 574/575 e 679/680).
O arguido solicitou o pagamento da multa em prestações, o que lhe foi concedido (cfr. fls. 517), a qual foi convertida em prisão subsidiária, suspensa na sua execução por um período de um ano, subordinada à prestação de 170 horas de trabalho a favor da comunidade (cfr. fls. 620/621 e 639).
Notificado o Ministério Público quanto a uma eventual revogação da suspensão da execução da pena, o mesmo pronunciou-se nos termos constantes de fls. 681, e pugnou pela revogação da suspensão da pena de prisão e da revogação da suspensão da prisão subsidiária.
Notificado o arguido e a sua Il. defensora, esta última pronunciou-se nos termos constantes de fls. 682/684), pugnando pela não revogação e alteração de local de trabalho.

II - Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no art. 56.º do Código Penal, "a suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação".
Ora, os arts. 55.ºe 56.º do Código Penal reportam-se, além do mais, à falta de cumprimento das condições de suspensão da execução da pena de prisão.
Da leitura dos referidos normativos resulta claramente que os efeitos neles contidos apenas operarão quando aquela falta de cumprimento das condições resultar de uma actuação, no mínimo, culposa do condenado.
Por isso, neles se utiliza a expressão “culposamente” e se faz referência a uma actuação grosseira ou repetida (expressões que naturalmente denunciam a intenção do legislador de fazer relevar condutas merecedoras de censura).
Estamos, assim, em crer que ao tribunal só será legítimo concluir, designadamente pela revogação da suspensão de uma pena de prisão se de facto tiver elementos de facto para concluir que o condenado actuou de forma grosseira ou repetida e com culpa.
Ora, no caso vertente, é manifesto que o condenado não cumpriu os deveres impostos no acórdão cumulatório, de forma culposa e repetida; aliás, dos vários relatórios de anomalias que foram apresentados pelo técnico de reinserção, podemos mesmo dizer que a sua intenção é o seu não cumprimento em termos definitivos.
Na verdade, o regime de prova a que foi sujeito depende, em primeira mão, da sua colaboração junto da D.G.R.S.P., de modo a permitir àquela entidade um acompanhamento devido e imposto pela decisão judicial de todo o período de suspensão da execução da pena.
Ora, como se viu, apesar de todas as diligências efectuadas pela D.G.R.S.P. para que o arguido cumprisse as imposições impostas, bem como as que foram levadas a cabo pelo tribunal (que o ouviu várias vezes, advertindo-o expressamente das consequências em que incorreria caso mantivesse esta conduta), as mesmas revelaram-se infrutíferas.
E o mesmo se diga quanto à condição que lhe foi imposta quanto à suspensão da prisão subsidiária, sendo certo que as explicações que adiantou não passam de meras desculpas de quem não insiste em não querer cumprir (se tal correspondesse à realidade, que não cremos, o condenado já teria dado nota desta situação ao técnico que o acompanha que, oficiosamente, teria comunicado tal facto ao tribunal e teria encontrado outro local de trabalho).
Desta forma, podemos concluir que surge inviável efectuar uma nova solene advertência ao condenado (aliás, podemos dizer que o condenado fez “orelhas moucas” às várias advertências e oportunidades que o tribunal lhe foi, pacientemente, concedendo ao longo destes últimos dois anos) e exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos ou prorrogar-lhe, mesmo, o período de suspensão da execução da pena de prisão, tanto mais que este nunca demonstrou vontade de se sujeitar ao regime de prova e ao acompanhamento pela D.G.R.S.P., já que nem sempre comparece às entrevistas, falta com regularidade ao trabalho e não comparece no CRI como lhe é imposto, mantendo, ao invés, o mesmo padrão de gestão do seu quotidiano, centrado no consumo de aditivos, no convívio com os seus pares com o mesmo problema aditivo.
Tendo em conta o que se acaba de dizer, resulta que o condenado não cumpriu a obrigação imposta no acórdão, violando, assim, grosseira e repetidamente e de forma culposa (e não meramente negligente, já que sabia que a suspensão da execução da pena de prisão dependia da sua sujeição ao referido regime de prova e consequente vigilância do seu comportamento durante aquele período pela D.G.R.S.P., cfr. PRS oportunamente homologado) tal imposição de conduta.
Como também não cumpriu de forma integral a imposição que lhe foi imposta quanto à suspensão da execução da prisão subsidiária.
Desta forma, infere-se que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada não puderam, por meio desta, ser alcançados, com o também não o foram quanto à prisão subsidiária.

III - Pelo exposto:

a) revogo a suspensão da execução da pena aplicada ao condenado E. L. e determino o seu cumprimento, nos termos do art. 56.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal;
b) revogo a suspensão da execução da prisão subsidiária e determino o cumprimento do remanescente (do qual serão descontadas as horas que prestou).
Notifique, esclarecendo o condenado que poderá obstar ao cumprimento da prisão subsidiária pagando o remanescente da multa.
Comunique à D.G.R.S.P., solicitando que informe o número total de horas de trabalho prestadas.
*
Após trânsito, passe os mandados de detenção.
*
Apreciação do recurso.

Como resulta da lei, a partir de 2007, a audição do condenado para efeito de tomada de decisão sobre a revogação, ou não, da suspensão da pena sujeita a regime de prova, tem de ocorrer na presença do técnico que fiscaliza o cumprimento da pena ( art. 495 nº 2 do CPP).

Esta presença, exigida pela lei, acentua a necessidade de ser respeitado o contraditório não só ouvindo o condenado, mas também a pessoa que, tendo apreciado o comportamento do arguido, fez um diagnóstico e um prognóstico negativos relativamente ao cumprimento dos deveres impostos ao recorrente.

Aos autos os técnicos da DGRSP juntaram vários relatórios de anomalias, todos sensivelmente com idêntico teor.
O arguido, sempre que ouvido, foi dando explicações pouco convincentes, mas que determinaram que lhe fossem sendo concedidas novas oportunidades de arrepiar caminho.
Mas nunca ocorreu ter o arguido sido ouvido na presença do técnico da DGRSP, nem ter sido confrontado, expressamente, com os concretos factos constantes dos relatórios remetidos aos autos pela DGRSP, com exceção das faltas às entrevistas.

Ora, do PRS elaborado, homologado e a cumprir pelo arguido constam as seguintes obrigações:

a) Consolidar a desabituação aditiva. Quanto a esta obrigação, o arguido refere que se encontra no programa da metadona; dos relatórios elaborados pela DGRSP consta que a mãe afirma que o filho mantém consumos de drogas;
b) Trabalhar. O arguido diz que trabalha e aufere o salário mínimo; dos relatórios é chamada a atenção para o elevado absentismo e falta de capacidade de trabalho;
c) Mudança de vida pelo afastamento de pessoas com comportamentos aditivos e aproximação com pessoas sem hábitos desviantes. Não se retira nem das declarações do arguido, nem dos relatórios o que foi concretamente proposto e feito (ou não) para alcançar este objetivo;
d) Interiorizar o desvalor da conduta e prevenir a reincidência. Não há notícia de novos crimes, mas também nada se diz relativamente à aquisição de consciência crítica pelo arguido.

Ora, todas estas concretas questões têm de ser abordadas junto do arguido e do técnico da DGRSP para se poder concluir, com segurança, se a decisão inevitável é a revogação. Têm, portanto, de ser abordadas por quem acompanha de perto o comportamento do arguido. E acompanhar de perto é também saber junto do CRI como está a evolução do consumo de drogas; é saber junto da entidade patronal do arguido como é o desempenho profissional; é saber junto da instituição onde o mesmo presta trabalho, as razões pelas quais o trabalho não foi integralmente prestado e é ouvir a mãe do arguido sobre a alegada inalteração da conduta aditiva.

Todo o trabalho levado a cabo pelo técnico da DGRSP, encarregado de acompanhar o período de suspensão da pena do condenado, deve, pois, ser revelado ao tribunal, presencialmente, perante o arguido, para que o possa contraditar, querendo.
É isto que a lei diz que tem de se fazer e que nos autos não foi feito.
Poder-se-ia argumentar que a falta do técnico na diligência a que se refere o art.º 495. nº 2 do CPP constitui irregularidade, que não foi invocada - devendo sê-lo no próprio ato, porque a ele assistiu o arguido e a sua defensora (art.º 123.º nº 1 do CPP)- pelo que teria de considerar-se sanada.
Contudo, assim não é. Esta irregularidade é relevante porque afeta o valor do ato praticado. De facto, apesar das irregularidades serem habitualmente consideradas vícios de pouca gravidade e até de menor gravidade do que as nulidades, situações há que, quando estão em causa direitos fundamentais, elas assumem gravidade ao ponto de o legislador dar a possibilidade ao juiz de, oficiosamente, determinar a reparação da irregularidade, mesmo que, portanto, não tenha sido invocada pela parte a quem aproveita, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (art.º 123.º nº 2 do CPP).
Isto mesmo foi decidido no acórdão da Relação de Guimarães de 11/06/2008 (relatora Maria Augusta Fernandes in CJ, ano XXXIII, Tomo. III, 297 a 299) citando Maia Gonçalves in Código de Processo Penal, 12.ª edição, página 328: “apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que não se exclua “a priori” a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais aos sujeitos processuais.
Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador nos nºs 1 e 2 a qual vai desde o considerar a gravidade inócua e inoperante até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afetar…”.
Na situação em apreço, apesar do teor dos relatórios da DGRSP, sempre que sobre eles o arguido foi ouvido, foi sendo concedida ao recorrente a possibilidade de continuar a cumprir em liberdade as penas impostas.
Isto indicia que as justificações que foram sendo dadas pelo arguido eram suscetíveis de afastar as conclusões daqueles relatórios.
Ora assim sendo, é imperioso ouvir simultânea e presencialmente o técnico que foi acompanhando o arguido e este, para que se perceba, claramente, se está inviabilizado o cumprimento das penas de substituição aplicadas.
É certo que, como é dito no acórdão da Relação do Porto de 27/04/2016 in www.dgsi.pt e merece o nosso acordo “é da prática judiciária que por vezes se colocam dificuldades de comunicação entre os condenados e aqueles serviços, que podem levantar dúvidas aos julgadores, quer sobre os reais intentos dos arguidos no cumprimento do que lhes foi determinado, quer sobre a exata dimensão dos seus incumprimentos”.

Daí que o legislador, compreensivelmente, exija que uma decisão sobre a eventual revogação dessas medidas, pelas implicações que pode ter sobre a liberdade dos condenados, seja obrigatoriamente precedida da audição daqueles, prevendo, contudo, que essa audição decorra na presença do técnico de reinserção social encarregado do processo do arguido.

Com efeito, será essa presença e os esclarecimentos que dela se puderem retirar, que melhor poderão esclarecer o tribunal sobre a necessidade da decisão que leva o arguido à prisão, preceituando-se, assim, que a mesma seja levada a cabo com sensatez, equilíbrio e sentido de responsabilidade, ponderados que sejam todos os fatores em jogo, como a natureza do crime, o lapso temporal já decorrido desde o seu cometimento, a dimensão da pena, a personalidade do agente e o seu sentido de interiorização, do desvalor social da conduta e do juízo de censura que lhe é inerente.

No caso de que nos ocupamos, sempre que o arguido foi ouvido a propósito dos invocados incumprimentos, nunca o técnico da DGRSP esteve presente.

Assim sendo, quer se entenda que se está perante uma irregularidade com influência na decisão, quer se entenda que se está perante uma nulidade de conhecimento oficioso por violação do art.º 374 n.º 2 do CPP ex vi art.º 379.º nº 1 al. a) do mesmo diploma, como entende o Ac. RP acima citado, a decisão não poderá manter-se, ficando assim prejudicado o conhecimento das questões do recurso trazido à apreciação.
*
III.
DECISÃO.

Em face do exposto, decide-se:
- Determinar que o tribunal de 1ª instância designe data para audição do arguido na presença do técnico da DGSRP que acompanhou a suspensão da execução das penas, após o que deverá ser tomada a decisão que se impuser em função do que aí se apurar.
- Julgar prejudicado o conhecimento do recurso interposto.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 11 de maio de 2020

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho