Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5850/19.1T8BRG.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
SANÇÃO ABUSIVA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Não se encontra demonstrada a gravidade exigível para reconhecimento do direito a indemnização, nos termos do art. 496.º, n.º 1 do Código Civil, e, consequentemente, também nos termos do art. 331.º, n.º 3 do Código do Trabalho, se apenas se provou que o trabalhador sentiu desgosto pelo processo disciplinar que foi instaurado pelo empregador e pela sanção disciplinar que foi aplicada.
Nos termos do aludido art. 331.º, n.º 3 do Código do Trabalho, ainda que se prove que o empregador aplicou uma sanção abusiva, o dever de indemnizar o trabalhador obedece aos termos gerais previstos nos arts. 483.º e ss. do Código Civil, não se prescindindo, pois, da demonstração de danos patrimoniais ou não patrimoniais relevantes, apenas sucedendo que, verificados todos os requisitos da responsabilidade civil, o valor da indemnização deve observar o disposto nos números seguintes.
Resulta do art. 331.º do Código do Trabalho que o legislador distingue o exercício abusivo do poder disciplinar do mero exercício ilícito do poder disciplinar, não bastando, para enquadramento no primeiro, que a alegada conduta punida não se prove, que improceda o seu enquadramento na pretensa violação de deveres contratuais ou que a sanção aplicada seja considerada desproporcionada, pois, não obstante estas situações sejam ilícitas, qualquer delas é compatível com o exercício do poder disciplinar pelo empregador de acordo com a sua finalidade legal e com os ditames da boa fé.
Daquela norma resulta que o conceito de sanção abusiva é composto por um elemento objectivo – uma das situações descritas no n.º 1 – e um elemento subjectivo, traduzido na intenção persecutória ou de retaliação, demonstrativa de que o exercício do poder disciplinar se desviou do objectivo de sancionar o trabalhador pelo incumprimento dos deveres contratuais e visou, ao invés, a intimidação e retaliação pelo exercício de direitos, com vista a coarctar a liberdade do trabalhador para futuro ou a livrar-se dele.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

M. G. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra IRMANDADE DE X, formulando os seguintes pedidos:

a. Seja declarada a ilicitude da sanção disciplinar de suspensão de trabalho com perda de retribuição e antiguidade pelo período de cinco dias que foi aplicada à autora;
b. A sanção disciplinar que foi aplicada seja retirada do cadastro disciplinar e seja reposta a quantia que foi descontada e a antiguidade da autora;
c. A ré seja condenada a pagar à autora a quantia de € 1.875,00 (mil oitocentos e setenta e cinco euros), correspondente a dez vezes a retribuição que foi descontada, pela natureza abusiva da sanção disciplinar;
d. A ré seja condenada a pagar à autora a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais;
e. A ré seja condenada a pagar os juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento.

A autora alega que a ré aplicou-lhe a sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade pelo período de cinco dias, que o processo disciplinar padece de nulidades, que não praticou qualquer infracção disciplinar e que a sanção é desproporcionada e abusiva.
A ré contestou, alegando que o processo disciplinar não padece de nulidades e a autora praticou uma infracção disciplinar, sendo que a sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade pelo período de cinco dias é adequada.

Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
1.Declaro a ilicitude da sanção disciplinar de suspensão de trabalho com perda de retribuição e antiguidade pelo período de cinco dias que foi aplicada à autora;
2.Condeno a ré a retirar a sanção disciplinar que foi aplicada do cadastro disciplinar e a repor a quantia que foi descontada, acrescida juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento, caso o desconto já tenha ocorrido, e a antiguidade da autora;
3.No mais, absolvo a ré dos pedidos contra si formulados.
Custas a cargo da autora e da ré na proporção do decaimento e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que foi concedido.»

A autora interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. Em 28 de junho de 2019, a Ré instaurou um processo disciplinar à Autora.
2. O processo disciplinar instaurado à Autora foi consolidado numa comunicação remetida pela superiora hierárquica.
3. Essa comunicação refere que a trabalhadora recusou prestar serviço na sala de 1 ano, alegando que tem problemas de saúde que a impossibilitam de trabalhar em ambiente creche.
4. Quando a nota de culpa foi remetida à Autora, verificava-se que a prova contida no processo disciplinar se resumia à referida comunicação.
5. A comunicação era vaga, imprecisa, não referindo o local onde a ordem foi dada, a hora, apenas referindo “da parte da tarde”, não identificava a valência a que estava afeta a trabalhadora nesse dia, quem poderia ter assistido à suposta ordem, etc.
6. A Autora negou a desobediência a qualquer ordem legítima.
7. Não resultou provado que a superiora hierárquica deu a ordem constante da nota de culpa.
8. A Autora pugnou pela nulidade da nota de culpa, atendendo a que a mesma violava o preceituado no art. 382º do Código de Trabalho, por não conter a descrição circunstanciada dos factos imputados à Autora.
9. Após o envio da nota de culpa e da resposta da trabalhadora, a Ré decidiu ouvir duas testemunhas, sem disso dar conhecimento à Autora e nem lhe permitindo defender-se desses novos factos, violando assim o princípio do contraditório.
10. Deve ser declarado nulo o processo disciplinar por a nota de culpa não conter uma descrição circunstanciada dos factos, por falta de prova e por violação do princípio do contraditório.
11. O Tribunal a quo não reconheceu a nulidade do processo disciplinar.
12. É manifesto que existe nos autos prova suficiente para condenar a Ré no pagamento das quantias peticionadas pela Autora, a título de danos não patrimoniais e pela aplicação de sanção abusiva.
13. No dia 7 de julho de 2018, a Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica à coluna vertebral.
14. A Autora regressou ao trabalho no dia - de setembro de 2018.
15. A Autora informou a Ré que estava impedida de realizar esforços ou levantar cargas, conforme prescrição médica.
16. A Autora foi avaliada em medicina do trabalho, e foi considerada apta condicionalmente.
17. A ficha de aptidão resultante da avaliação efetuada no dia 7 de março de 2019 avaliou os concretos riscos do posto de trabalho que a Autora ocupava à data.
18. A médica de medicina no trabalho que avaliou a Autora indicou que a Autora estava apta para aquele concreto posto de trabalho (na sala dos 3 anos), mas esqueceu-se de colocar a indicação de que a Autora continuava com limitações para o levantamento de cargas ou realização de esforços.
19. A médica de medicina no trabalho informou a Autora de que esta continuava com limitações para mobilizar cargas.
20. Os relatórios médicos e as fichas de aptidão para o trabalho continuam até à presente data, sem exceção, a considerar a Autora como apta condicionalmente.
21. Os relatórios da especialidade de Ortopedia do Hospital de … atestam a impossibilidade de a Autora mobilizar cargas.
22. A prova constante dos autos é suficiente para permitir esclarecer que a Autora foi, após a cirurgia, colocada em salas nas quais se exigia maior esforço físico (sala do 1 e dos 2 anos).
23. A prova junta aos autos permite verificar que nessa altura as avaliações da medicina do trabalho constantes das fichas de aptidão consideravam, sem exceção, que a Autora mantinha limitações e com apto condicional.
24. As avaliações da medicina do trabalho consideravam que Autora deveria retornar ao seu posto de trabalho anterior (Jardim de Infância).
25. A Ré sempre recusou colocar a Autora a trabalhar em salas do Jardim de Infância, mantendo-a nas salas do 1 e dos 2 anos durante o ano letivo completo.
26. A testemunha C. V. referiu que ia buscar o filho à sala do 1 ano e depois dos 2 anos e no pós-operatório da autora a via sempre a trabalhar naquelas salas.
27. A testemunha da Ré, A. V., confirmou que a Autora, no ano letivo de 2019/2020, trabalhou ininterruptamente na sala dos 2 anos.
28. As testemunhas da Ré demonstraram não saber a hora a que foi dada a ordem, em que parte da sala se encontravam por referência à Autora e que tarefas concretas realizavam.
29. A testemunha F. C. pretendia recusar-se responder às perguntas do mandatário da Autora.
30. Resulta inequívoco que a Autora foi por várias vezes obrigada a ficar em salas da creche e sujeita a cargas e a esforços físicos e não apenas aquando da alegada ordem que deu origem ao processo disciplinar.
31. Por esse motivo, a Autora realizou esforços que lhe causaram dores e constante sofrimento.
32. A Autora sofreu vergonha, perturbações, tristeza, insónia, ansiedade.
33. O comportamento da Ré causou danos à Autora, os quais são suscetíveis de indemnização.
34. Deve ser condenada a Ré a indemnizar a Autora pelos danos. Em suma:
No entender da Recorrente, de toda a prova produzida, seja ela testemunhal ou documental, resultam provados:
- A nulidade do processo disciplinar;
- Os danos causados à Autora e a aplicação de sanção abusiva.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito com o suprimento de Va.s Ex.as, deve o presente recurso ser admitido e o mesmo ser julgado procedente, revogando-se a decisão proferida na parte em que não reconheceu a nulidade do processo disciplinar e absolveu a Ré das indemnizações requeridas pela Autora, devendo a sentença ser substituída por douto acórdão em conformidade com as conclusões aduzidas, no qual seja declarado nulo o processo disciplinar, a Ré condenada a liquidar à Autora a remuneração não liquidada aumentada por 10 vezes e a liquidar a título de danos não patrimoniais a quantia de € 3.500,00.»
A ré apresentou resposta ao recurso da autora, pugnando pela sua improcedência.
A ré também interpôs recurso da sentença, tendo a autora apresentado resposta em que pugnou pela sua inadmissibilidade e improcedência.
Os recursos foram admitidos como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pela Relatora, após cumprimento do disposto no art. 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foi proferido despacho a julgar o recurso da ré legalmente inadmissível em razão do valor da sucumbência e a não admitir o recurso da autora «na parte em que não reconheceu a nulidade do processo disciplinar», por se entender que, «[t]endo sido declarada a ilicitude da sanção disciplinar aplicada à autora, com as inerentes consequências, por violação do princípio da proporcionalidade, é irrelevante que tenha ocorrido também nulidade do processo disciplinar.»
Seguidamente, pelo Ministério Público foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso da autora, na parte admitida.
Vistos os autos, cumpre decidir em conferência.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
- indemnização por sanção abusiva;
- indemnização por danos não patrimoniais.

3. Fundamentação de facto

A) Os factos dados como provados são os seguintes:
1. No mês de Outubro de 1984, a autora foi admitida ao serviço da ré, como sua trabalhadora, para exercer as funções de ajudante de acção educativa;
2. A autora exercia as suas funções no Infantário de …, explorado pela ré;
3. As funções da autora incluíam a participação nas actividades sócio-educativas, a ajuda nas tarefas de alimentação, cuidados de higiene e conforto directamente relacionadas com as crianças, a vigilância das crianças durante o repouso e na sala de aula e a assistência no recreio e nos transportes, passeios e visitas de estudo;
4. No ano de 2019, a autora auferia a retribuição mensal de € 737,00, acrescida de subsídio de alimentação;
5. No dia 28 de Junho de 2019, a ré instaurou um processo disciplinar contra a autora;
6. A ré elaborou a nota de culpa que consta de fls. 50 e 51 e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
7. A autora foi notificada da nota de culpa no dia 2 de Julho de 2019;
8. A autora apresentou a resposta que consta de fls. 53 a 57 e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
9. Na resposta, a autora indicou três testemunhas e juntou um relatório clínico;
10. A ré procedeu à inquirição de uma destas testemunhas, tendo outra sido prescindida pela autora e a outra não tendo comparecido na data designada para a sua inquirição;
11. Após a inquirição da testemunha indicada pela autora, a ré procedeu à inquirição de duas testemunhas;
12. A ré proferiu a decisão que consta de fls. 73 a 80 e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
13. Nesta decisão, a ré aplicou à autora a sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade pelo período de cinco dias úteis;
14. A autora foi notificada desta decisão no dia 19 de Outubro de 2019;
15. No dia 7 de Julho de 2018, a autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica à coluna vertebral;
16. A autora esteve de baixa médica até dia 15 de Setembro de 2018;
17. No dia 16 de Setembro de 2018, a autora regressou ao trabalho;
18. A autora informou a ré que estava impedida de realizar esforços ou levantar cargas, conforme prescrição médica;
19. No dia 30 de Novembro de 2018, a autora foi avaliada em medicina do trabalho, tendo sido considerada apta condicionalmente, devendo evitar mobilizar cargas e realizar trabalhos que implicassem flexão anterior do tronco;
20. No dia 7 de Março de 2019, a autora foi novamente avaliada em medicina do trabalho, tendo sido considerada apta sem qualquer condicionamento ou recomendação;
21. No dia 13 de Junho de 2019, da parte da manhã, por indicação da superiora hierárquica, foi transmitido à autora que devia prestar serviço na sala do primeiro ano;
22. A autora acatou esta ordem e prestou serviço na sala do primeiro ano, como ordenado;
23. No mesmo dia, da parte da tarde, a superiora hierárquica da autora ordenou-lhe que fosse novamente prestar serviço na sala do primeiro ano;
24. A autora recusou cumprir esta ordem, afirmando que tinha problemas de saúde que a impediam de trabalhar em ambiente de creche;
25. Em consequência desta recusa, a autora teve de ser substituída por outra trabalhadora no serviço a prestar na sala do primeiro ano;
26. A autora sentiu desgosto pelo processo disciplinar que foi instaurado pela ré e pela sanção disciplinar que foi aplicada.

B) Os factos dados como não provados são os seguintes:
1. A partir do mês de Junho de 2019, a autora começou a ser perseguida pela sua superiora hierárquica, a qual passou a exigir-lhe que desempenhasse tarefas que envolviam esforços e o levantamento de cargas;
2. A autora deixou de estar afecta a uma valência ou sala do infantário e passou a andar de sala em sala e a realizar as mais diversas tarefas físicas;
3. Sempre que se queixava a autora era ameaçada pela sua superiora hierárquica de processos disciplinares e despedimento se não realizasse as tarefas que eram determinadas;
4. A superiora hierárquica da autora determinou à autora e às demais trabalhadoras que fossem buscar e carregassem pelos corredores panelas de sopa com vários quilogramas de peso;
5. A autora não tinha conhecimento da ficha médica de medicina do trabalho do dia 7 de Março de 2019;
6. A autora suportou dores e sentiu baixa de autoestima, tristeza profunda, perturbação depressiva e insónia inicial e intermédia em consequência da conduta da sua superiora hierárquica, da ordem do dia 13 de Junho de 2019 e do processo disciplinar que foi instaurado pela ré;
7. A autora nunca teve qualquer chamada de atenção pela ré.

4. Apreciação do recurso

Resulta dos arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, devendo ser indicado o fundamento específico da recorribilidade.
Por outro lado, decorre do art. 635.º, n.º 4 do mesmo diploma que, nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.

Finalmente, com relevância para o caso, o art. 640.º do mesmo Código, que rege sobre os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe do seguinte modo:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)

Do regime constante do Código de Processo Civil acima delineado resulta que, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões, e acrescendo que há específicos ónus a cumprir no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por força do art. 640.º, o recorrente deve, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, conforme ensina António Santos Abrantes Geraldes (1):

- especificar inequivocamente no corpo das alegações os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham uma decisão diversa, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, bem como, tratando-se de depoimentos, as passagens da gravação respectivas;
- e indicar sinteticamente nas conclusões, pelo menos, os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos.
Assim, como se refere no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2018, proferido no processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1 (2), por um lado pode concluir-se que, “[c]omo decorre do art. 640.º do CPC, o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso”, e, por outro lado, há que ter em atenção que “[r]elativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respectivas alegações uma vez que o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.”
Retornando ao caso dos autos, verifica-se que a Recorrente, nas conclusões, não declara que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, nem indica sinteticamente os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos.
Com efeito, percorrendo as conclusões, infere-se que a Apelante almeja alterações na decisão sobre a matéria de facto apenas porque alude a provas, a testemunhas, a afirmações destas, a documentos e a supostos factos ou conclusões que daí se podem retirar, mas na verdade nunca identifica os pontos da matéria de facto considerados provados ou não provados pelo tribunal recorrido cuja alteração pudesse constituir fundamento de revogação da sentença recorrida. Quanto aos primeiros, a omissão é total; quanto aos segundos, inexiste também qualquer referência expressa e a omissão não pode ter-se como suprida pela enunciação dos factos de onde supostamente decorre a pretensão de condenação da Ré nos restantes pedidos, na medida em que, para além de factos não impugnados no corpo da alegação (conclusões 13 a 16), se invocam factos novos (conclusões 17 a 32), diferentes dos factos dados como não provados pelo tribunal recorrido e que foram objecto de impugnação no corpo da alegação, a saber, os acima constantes dos n.ºs B) - 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7), havendo manifesta divergência entre o corpo da alegação e as conclusões formuladas.
Ora, do acima exposto decorre que esta omissão importa restrição tácita do objecto inicial do recurso, nos termos conjugados dos citados arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 639.º, n.º 1 e 640.º, n.º 1, als. a) e c) do Código de Processo Civil.
Acresce que, não obstante a impugnação no corpo da alegação, em bloco e globalmente, da factualidade considerada não provada sob os n.ºs B) - 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7), a Apelante não especificou nenhum meio de prova que incida sobre os seguintes factos:
3. Sempre que se queixava a autora era ameaçada pela sua superiora hierárquica de processos disciplinares e despedimento se não realizasse as tarefas que eram determinadas;
6. A autora suportou dores e sentiu baixa de autoestima, tristeza profunda, perturbação depressiva e insónia inicial e intermédia em consequência da conduta da sua superiora hierárquica, da ordem do dia 13 de Junho de 2019 e do processo disciplinar que foi instaurado pela ré;
7. A autora nunca teve qualquer chamada de atenção pela ré.
Nenhum dos depoimentos ou documentos invocados pela Recorrente, a propósito da factualidade não provada, incide ou respeita a estes factos, inexistindo, pois, indicação de meios de prova que sustentem a sua alteração, em violação do disposto no citado art. 640.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil.
Em suma, a Apelante, nas conclusões, não indica sinteticamente os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos, e, na alegação, não especifica quaisquer meios de prova que imponham a alteração da factualidade não provada sob os n.ºs 3, 6 e 7, nessa medida incumprindo os ónus legais atinentes à impugnação da decisão sobre a matéria de facto que condicionam o seu conhecimento.
Ainda que assim não se entendesse, constata-se que é manifestamente improcedente a pretensão de alteração da decisão do tribunal recorrido de considerar como não provados os aludidos factos n.ºs 3, 6 e 7, por inexistência de quaisquer provas invocadas pela Recorrente a impor o contrário.
Ora, tanto basta para que soçobre a pretensão de revogação da decisão recorrida na parte que foi desfavorável à Apelante.
No que respeita à indemnização por danos não patrimoniais, não resultando provada a factualidade constante do ponto B) - 6, a decisão recorrida é inteiramente acertada, não merecendo qualquer censura.
Com efeito, o art. 496.º, n.º 1 do Código Civil prescreve que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Não relevam, pois, para este efeito, os meros incómodos, transtornos ou aborrecimentos, pelo que, tendo-se provado apenas que a autora sentiu desgosto pelo processo disciplinar que foi instaurado pela ré e pela sanção disciplinar que foi aplicada, não se encontra demonstrada a gravidade exigível para o reconhecimento do direito a indemnização. A Apelante, aliás, nada argumenta no seu recurso que não dependa da prova dos restantes danos morais alegados.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Quanto à indemnização por aplicação de sanção abusiva, é pacífico que depende da verificação dos pressupostos estabelecidos no art. 331.º do Código do Trabalho. Aí se diz, na parte que interessa ao presente caso:

Sanções abusivas
1 - Considera-se abusiva a sanção disciplinar motivada pelo facto de o trabalhador:
a) Ter reclamado legitimamente contra as condições de trabalho;
b) Se recusar a cumprir ordem a que não deva obediência, nos termos da alínea e) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 128.º;
c) Exercer ou candidatar-se ao exercício de funções em estrutura de representação colectiva dos trabalhadores;
d) Ter alegado ser vítima de assédio ou ser testemunha em processo judicial e/ou contraordenacional de assédio;
e) Em geral, exercer, ter exercido, pretender exercer ou invocar os seus direitos ou garantias.
2 - Presume-se abusivo o despedimento ou outra sanção aplicada alegadamente para punir uma infracção, quando tenha lugar:
a) Até seis meses após qualquer dos factos mencionados no número anterior;
b) Até um ano após a denúncia ou outra forma de exercício de direitos relativos a igualdade, não discriminação e assédio.
3 - O empregador que aplicar sanção abusiva deve indemnizar o trabalhador nos termos gerais, com as alterações constantes dos números seguintes.
(…)
5 - Em caso de sanção pecuniária ou suspensão do trabalho, a indemnização não deve ser inferior a 10 vezes a importância daquela ou da retribuição perdida.

Em 1.º lugar, sublinha-se que, nos termos do n.º 3, ainda que se prove que o empregador aplicou uma sanção abusiva, o dever de indemnizar o trabalhador obedece aos termos gerais previstos nos arts. 483.º e ss. do Código Civil, não se prescindindo, pois, evidentemente, da demonstração de danos patrimoniais ou não patrimoniais relevantes, apenas sucedendo que, verificados todos os requisitos da responsabilidade civil, o valor da indemnização deve observar o disposto nos números seguintes.

Ora, no caso em apreço, a autora não peticionou indemnização por danos patrimoniais, para além da correspondente à quantia descontada na retribuição, em que a ré foi condenada, e, quanto a danos não patrimoniais, apenas se provaram os já referidos, não atendíveis à luz do citado art. 496.º, n.º 1 do Código Civil, pelas razões já explicitadas.
Assim, não se verificando um dos requisitos do dever de indemnizar, nos termos gerais, mormente a demonstração da produção de danos tutelados pelo direito, sempre teria de se julgar improcedente o pedido da autora em apreço.
Acresce que resulta claramente do art. 331.º do Código do Trabalho que o legislador distingue o exercício abusivo do poder disciplinar do mero exercício ilícito do poder disciplinar.
Quando se fala em poder disciplinar, fala-se dum poder funcional, cuja justificação radica nas necessidades organizativas da empresa e na defesa dos interesses da mesma, ameaçados pela violação culposa dos deveres contratuais por parte do trabalhador. Assim, não pode ser entendido como um poder absoluto e arbitrário do empregador, e, não obstante seja de admitir alguma margem de discricionariedade ao seu titular, está sujeito a limites no seu exercício decorrentes da boa fé e da proibição de abuso de direito (art. 334.º do Código Civil). É nesta perspectiva que a lei individualiza as denominadas «sanções abusivas», tendo como fundamento o facto de o empregador utilizar o seu poder disciplinar para fins diferentes da punição de infracções laborais, visando prejudicar e perseguir o trabalhador, silenciá-lo ou ver-se livre dele, unicamente pelo facto de o considerar uma pessoa incómoda. A indemnização prevista, especialmente gravosa, prossegue finalidades punitivas e preventivas, estando, por isso, reservada para situações de extrema gravidade que ultrapassam a mera natureza ilícita da sanção aplicada.
Assim, para preenchimento da previsão da norma constante do art. 331.º do Código do Trabalho, não basta que a alegada conduta punida não se prove, que improceda o seu enquadramento na pretensa violação de deveres contratuais ou que a sanção aplicada seja considerada desproporcionada, pois, não obstante estas situações sejam ilícitas, qualquer delas é compatível com o exercício do poder disciplinar pelo empregador de acordo com a sua finalidade legal e com os ditames da boa fé.
O que da norma resulta é que o conceito de sanção abusiva é composto por dois elementos: um elemento objectivo – uma das situações descritas no n.º 1 – e um elemento subjectivo – a intenção persecutória ou de retaliação.
É imprescindível, pois, que os factos demonstrem que o exercício do poder disciplinar se desviou do objectivo de sancionar o trabalhador pelo incumprimento dos deveres contratuais e visou, ao invés, a intimidação e retaliação pelo exercício de direitos, com vista a coarctar a liberdade do trabalhador para futuro ou a livrar-se dele, consoante a sanção seja conservatória ou se traduza em despedimento.
Como se diz no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de 19 de Novembro de 2014, proferido no processo n.º 42/12.3TTMTS.P1.S1 (3), “[u]ma sanção abusiva pressupõe o animus persecutório, visando o empregador com a cominação da sanção, punir não o incumprimento do contrato de trabalho, por eventual inobservância dos deveres principais, secundários ou acessórios, mas o incumprimento pelo trabalhador de ordem a que não deve obediência, o exercício de direito que lhe cabe e/ou o exercício de funções em estrutura de representação coletiva dos trabalhadores.”
Na mesma linha, veja-se o Acórdão desta Relação de Guimarães de 1 de Julho de 2021, proferido no processo n.º 618/20.5T8VRL.G1, em cujo sumário se sintetiza que “[o] caráter abusivo da sanção, além da natureza indevida ou excessiva da sanção aplicada, reside na natureza persecutória do procedimento disciplinar e da sanção, residindo na motivação, no animus que levou a empregadora a deduzir o procedimento e a sancionar o trabalhador.”
Será, em regra, muito difícil ao trabalhador fazer a prova do elemento subjectivo. Por isso, a lei presume o carácter abusivo da sanção sempre que, em termos temporais ou cronológicos, o procedimento disciplinar seja intentado após o trabalhador ter reclamado direitos, dispensando o trabalhador da prova do elemento subjectivo, ou seja, de que a empresa visa, não sancionar uma infracção disciplinar cometida pelo trabalhador, mas antes responder ao exercício, pelo trabalhador, dos seus direitos. Em resultado da presunção, inverte-se o ónus da prova do carácter abusivo da sanção aplicada, em benefício do trabalhador. Neste sentido, o empregador, para ilidir a presunção legal, terá de provar que a sanção disciplinar aplicada teria lugar mesmo que o trabalhador não tivesse reivindicado os seus interesses.
No caso sub judice, resulta da factualidade provada sob os n.ºs A) – 21, 22, 23, 24 e 25 que, no dia 13 de Junho de 2019, da parte da manhã, por indicação da superiora hierárquica, a autora prestou serviço na sala do primeiro ano, como ordenado, mas, da parte da tarde, tendo a superiora hierárquica lhe ordenado que fosse novamente prestar serviço na sala do primeiro ano, a autora recusou cumprir esta ordem, afirmando que tinha problemas de saúde que a impediam de trabalhar em ambiente de creche, em consequência do que a autora teve de ser substituída por outra trabalhadora no serviço a prestar na sala do primeiro ano.
Mais se provou sob o n.º 20 que a autora fora avaliada em medicina do trabalho no dia 7 de Março de 2019, tendo sido considerada apta sem qualquer condicionamento ou recomendação.
Ora, independentemente de tudo quanto alega a Apelante quanto à incorrecção ou lapso em que se traduziu o resultado da avaliação, com fundamento nos elementos clínicos em que se baseou o exame e no que lhe afirmou a médica do trabalho no decurso do mesmo, o certo é que a ré é alheia a toda essa informação, pois, nos termos do art. 19.º, n.º 3 do Código do Trabalho, o médico responsável pelos testes e exames médicos só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a actividade.
Assim, não só não se pode concluir que a ordem foi ilegítima, como, independentemente disso, que a ré estivesse ciente da ilegitimidade e quisesse castigar ou perseguir a autora pela justificação apresentada para a recusa, inferindo-se da factualidade descrita que a mesma moveria o processo disciplinar à autora ainda que a justificação apresentada para a desobediência fosse outra ou nenhuma.
Acresce que a Apelante mantém no recurso a posição que assumiu desde o início do processo, de rejeitar que tenha ocorrido a situação imputada, ou seja, a comunicação da ordem pela superiora hierárquica, a recusa da autora em obedecer com a referida justificação e a necessidade da sua substituição, a que aludem os mencionados n.ºs A) - 23, 24 e 25, pugnando no corpo da alegação por que sejam dados como não provados esses factos, o que por si só prejudicaria que a ré pudesse ter tido a intenção de puni-la pela (nesse caso inexistente) recusa legítima em obedecer, sendo certo que também não se provou que «sempre que se queixava a autora era ameaçada pela sua superiora hierárquica de processos disciplinares e despedimento se não realizasse as tarefas que eram determinadas» (facto não provado sob o n.º 3).
Em suma, a ilicitude da conduta da autora, ainda que não merecedora da sanção concretamente aplicada, por ser desproporcionada, como se entendeu na sentença, e ainda a ponderação da restante factualidade provada e não provada, nos sobreditos termos, demonstram ter havido fundamento para o processo disciplinar e para a punição, e, assim, que a estes não presidiu a intenção da ré de castigar ou intimidar a autora pela desobediência a ordens ilegítimas ou pela reclamação contra condições de trabalho indevidas que lhe estivessem a ser impostas.
Sobre esta temática, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 1767/08.3TTLSB.L1S1, cuja fundamentação se acolhe na sua essência, pela similitude da situação tratada, e ainda, para além dos já acima citados, os Acórdãos do mesmo Tribunal de 14 de Setembro de 2011, proferido no processo n.º 3000/06.3TTLSB.L1.S1, de 31 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 598/09.8TTALM.L1.S1, de 4 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 553/07.2TTLSB.L1.S1, de 19 de Novembro de 2014, proferido no processo n.º 145/09.1TTLRS.L1.S1, de 15 de Abril de 2015, proferido no processo n.º 44/13.2TTEVR.E1.S1, e de 21 de Abril de 2016, proferido no processo n.º 79/13.5TTVCT.G1.S1. (4)
Por todo o exposto, improcede inteiramente o recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

3 de Fevereiro de 2022

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso



1. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 128-129.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Disponíveis em www.dgsi.pt.