Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1978/21.6T8VCT.G2
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
INEFICÁCIA DO DESPACHO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A partir do momento em que o Juízo Central Cível se declarou incompetente para a tramitação dos autos não podia aquele tribunal despachar o processo até que o conflito de competência fosse decidido.
2. Assim, tendo indevidamente despachado o processo, o referido despacho é ineficaz.
3. Não se enquadra no âmbito do artº 17º-E, nº1, do CIRE, por não estar em causa uma cobrança executiva de alegada dívida, mas tão somente uma ação que se limita a declarar direito do requerente correspondente à pretensão, uma providência cautelar para entrega de veículo prevista no artº 21º do DL nº 149/95, de 24 de junho, em que alegadamente a resolução contratual ocorreu antes da instauração do PER, não devendo, por isso, ser suspensa a instância.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

No Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo, Juízo de Comércio de Viana do Castelo, foi publicado anúncio de nomeação de administrador judicial provisório, no âmbito do processo especial de revitalização nº 738/22.1T8VCT, com data de 28 de fevereiro de 2022, dando conta que nesse mesmo dia foi proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório da empresa X – Construção Naval, S.A..
Com data de 7 de março de 2022, notificada às partes em 8 de março, foi proferida decisão sumária neste Tribunal da Relação em que, decidindo o conflito de competência entre os juízos local cível e central cível do Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo para tramitar a presente providência cautelar, foi decidido que a competência para o presente processo de procedimento cautelar é do Juízo Local Cível de Viana do Castelo.

No presente processo de providência cautelar nº 1978/21.6T8VCT foi prolatado em 14 de março de 2022, o seguinte despacho:
Atento o teor do anúncio que antecede, declara-se suspensa a instância – artºs 222º-E, nº1, e 222º-C, nº4, do CIRE.
Notifique (…).

Na sequência da supra referida decisão sumária, transitada em julgado, os autos baixaram definitivamente à 1ª instância em 28 de março de 2022.

Inconformado com o despacho proferido em 14 de março de 2022 no Juízo Central Cível de Viana do Castelo, o requerente Banco …, S.A., recorreu do mesmo, formulando as seguintes conclusões:

16.01. O presente recurso tem por objeto da douta decisão proferida, em 14 de março de 2022, pela M.ª Juiz do Juízo Central Cível de Viana do Castelo (Juiz 2), que, atento o teor do anúncio de nomeação de administrador judicial provisório publicado no âmbito do processo especial de revitalização da sociedade requerida, declarou suspensa a instância.
16.02. A decisão recorrida foi proferida quando se encontrava a ser apreciado e dirimido o conflito de competência suscitado oficiosamente, na sequência de dois despachos judiciais, transitados em julgado, proferidos pelos Senhores Juízes do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo Juízo Local Cível de Viana do Castelo - Juiz 1 – e do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo Juízo Central Cível de Viana do Castelo - Juiz 2, ambos negando a sua própria competência para a tramitação dos presentes autos.
16.03. A decisão recorrida foi proferida depois de ter sido proferida, em 7 de março de 2022, por este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, a decisão singular no âmbito do incidente de Conflito Competência, que decidiu “que a competência para o presente processo de procedimento cautelar é do Juízo Local Cível de Viana do Castelo, onde os autos deverão seguir os respetivos trâmites legais.”
16.04. A decisão recorrida (que determinou a suspensão da instância) é, desde logo, nula porquanto quando a M.ª Juiz do Juízo Central Cível de Viana do Castelo (Juiz 2), apreciou o eventual fundamento para a suspensão da instância e decidiu pela mesma (suspensão), não tinha, sequer, competência para tramitar o presente processo de procedimento cautelar, atenta a decisão singular proferida em 7 de março de 2022 por este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
16.05 (inexiste).
16.06. Ao apreciar o eventual fundamento para a suspensão da instância e ao decidir pela mesma (suspensão), a M.ª Juiz do Juízo Central Cível de Viana do Castelo, apreciou e conheceu de uma questão que não podia conhecer, nem tinha competência para conhecer, daí que a decisão recorrida seja nula – cfr. artigo 615.º n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
16.07. Ainda que não tivesse sido já decidido o Conflito de Competência, a M.ª Juiz do Juízo Central Cível de Viana do Castelo (Juiz 2), jamais poderia apreciar e conhecer do eventual fundamento para a suspensão da instância, sob pena de condicionar a decisão que viesse a ser proferida no âmbito do incidente de conflito de competência, pelo que a decisão recorrida é nula, também por violação do disposto nos artigos 109.º, 110.º e 111.º do Código de Processo Civil.
16.08. À luz do regime previsto nos artigos 222.º-A e seguintes (PEAP), e bem ainda nos artigos 17.º-A e seguintes (PER), ambos do CIRE, em vigor à data da prolação da decisão recorrida, a nomeação de um administrador judicial provisório não constitui fundamento para a suspensão do presente procedimento cautelar.
16.09. O n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE faz, apenas, alusão às ações para cobrança de dívidas e às ações com idêntica finalidade e naquele conceito (de “ações para cobrança de dívidas”) não estão incluídas providências cautelares para apreensão de bens que não pertencem, nem são propriedade da sociedade recorrida.
16.10. As “ações para cobrança de dívida” a que alude o n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, apenas se referem às ações executivas, ou seja, a todas as ações que sejam suscetíveis de alterar o património do devedor (v.g. por via da apreensão ou penhora de bens) e, nessa medida, afetar claramente o processo negocial entre credores e devedor que constitui o principal desiderato de um PER.
16.11. No caso dos presentes autos estamos perante um procedimento cautelar deduzido no sentido de obter a entrega de bens de que a requerida, aqui recorrente, tinha, apenas, o mero gozo que lhe fora concedido através de um contrato de locação financeira mobiliária, válida e eficazmente resolvido pelo ora recorrente, em data anterior à entrada do PER.
16.12. O resultado do presente procedimento cautelar não se traduz num direito à cobrança de uma divida, nem conduz diretamente à diminuição do património da Requerida, já que os bens em causa nesta providência cautelar não são propriedade da Requerida.
16.13. No caso concreto dos autos, a sociedade requerida, aqui recorrida, não liquidou a 13.ª (décima terceira) renda a que estava obrigada no valor de € 1.688,96 (mil seiscentos e oitenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), que se venceu em 25 de junho de 2019, nem procedeu ao pagamento das restantes rendas convencionadas naquele contrato que a seguir se venceram, até à presente data, pelo que, em face do incumprimento definitivo do contrato pela sociedade locatária, aqui recorrida, o Banco recorrente exerceu a faculdade de resolver o mesmo.
16.14. A resolução do contrato de locação financeira efetivou-se por carta registada enviada em 13 de agosto de 2020, ou seja, há mais de 19 meses!!!
16.15 (Inexiste).
16.16. A sociedade locatária, aqui recorrida, recorreu a um PER mais de 18 meses após a resolução do contrato de locação financeira mobiliária e na pendência do presente procedimento cautelar.
16.17. As ações que o PER prevê e que devem ser suspensas são só as ações que tenham como finalidade o pagamento de dívidas aos credores e possam obstar à homologação do acordo pelo que será de suspender as ações cujos direitos serão contemplados no plano de recuperação de empresa devedora ou seja as ações cujo o objeto sejam créditos sobre a empresa.
16.18. É às ações executivas que se reporta o conceito de ações de cobrança de dívida a que alude o n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE e às quais se refere o legislador.
16.19. “Vai muito para além da interpretação que o texto da lei permite fazer, tendo em conta o quadro legal definido para o PER, a tese que preconiza que da expressão ações para cobrança de dívidas contra o devedor, se pode retirar que o legislador quis abranger, nessa definição, todas as ações que direta ou indiretamente possam vir a afetar o património ou a atividade da empresa devedora.”- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22/10/2015 (P.º 2068/15.6T8LLE.E1), em que foi Relator Silva Rato (disponível em www.dgsi.pt).
16.20. No caso concreto dos presentes autos, está em causa um procedimento cautelar instaurado ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, destinado a obter a entrega judicial do bem locado, em consequência da resolução do contrato de locação financeira mobiliária, com fundamento no incumprimento da recorrida,
16.21. Sendo que “o procedimento cautelar previsto no artº 21º, do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, destinado à entrega judicial de bens pelo locatário, proposto na sequência da resolução declarada do respetivo contrato de locação financeira com fundamento no incumprimento das respetivas obrigações (maxime de pagar as rendas), não é nem se equipara à ação (declarativa ou executiva) “para cobrança de dívidas” prevista no artº 17º-E, nº 1, do CIRE.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/09/2017 (P.º 443/17.0T8FLG.G1 – 1.ª), em que foi Relator José Amaral (disponível em www.dgsi.pt):
16.22. As alterações introduzidas pelo legislador, através da publicação da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, aos artigos 17.ºE e 222.º-E do CIRE, veio tornar claro o entendimento que era já dominante, de que o conceito de “ações de cobrança de dívida” se reportava, apenas, às ações executivas, e não também às ações declarativas ou mesmo aos procedimentos cautelares para apreensão judicial de bens.
16.23. E essa alteração legislativa, decorrente da aprovação e publicação da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que irá, brevemente, entrar em vigor, constitui também a melhor demonstração daquele que sempre foi o entendimento do legislador, mesmo na redação do artigo 17.º-E do CIRE que se encontrava em vigor à data da prolação da decisão recorrida.
16.24. Ao decidir como decidiu, a douta decisão recorrida “esvaziou”, ao arrepio da intenção do próprio legislador, o efeito e a natureza do procedimento cautelar, ao incluí-lo nas “ações para cobrança de dívida”.
16.25. Não é sequer possível retirar do texto da lei (vigente à data da prolação da decisão recorrida) que nessas “ações para cobrança de dívida” estejam também incluídos os procedimentos cautelares.
16.26. Ao decidir como decidiu, a douta decisão recorrida violou também o disposto nos artigos 17.º-E e 222.º-E, ambos do CIRE.

Termos em que, pelas razões aduzidas, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que determine e ordene o prosseguimento do presente procedimento cautelar, conforme é de inteira justiça.

Não houve contra-alegações.

Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim:
- apurar da competência do Juízo Central Cível recorrido para a prolação do despacho objeto de recurso;
- extração dos efeitos jurídicos caso se entenda pela incompetência;
- apurar da subsunção da presente providência cautelar ao disposto no artº 17º-E, nº1, do CIRE.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório antecedente.
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B. Fundamentos de direito.

A primeira consideração a fazer é a de que o despacho recorrido enferma de manifesto lapso, ao fazer referência aos artigos 222º-E nº 1 e 222º-C, nº4, do CIRE, disposições legais privativas do PEAP, que como decorre do artº 222º-A, se destinam a devedores que não sejam uma empresa.
Aliás, do anúncio de nomeação judicial provisório consta expressamente que se trata, antes, de um processo especial de revitalização.
Assim, o preceito legal a considerar é o artº 17º-E, nº1, do CIRE.
O recorrente começou por se insurgir contra a alegada nulidade da decisão recorrida com fundamento na circunstância de ter sido prolatada por tribunal que à data da mesma havia já sido declarado incompetente para a respetiva tramitação.

As causas de nulidade das sentenças, (ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC:
Causas de nulidade da sentença:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença (no caso do despacho), o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.

Ainda que referido a uma sentença, mas com igual cabimento quanto aos despachos, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt:
Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).
Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277).
Manifestamente, o caso em apreço não se subsume a qualquer das alíneas da invocada alínea d), do nº1, do artº 615º, do CPC. Não está aqui em causa um qualquer excesso de pronúncia perante questões que não foram alegadas ou que não fossem de conhecimento oficioso. Qualquer ação judicial tem uma causa de pedir, alicerçada em factos. É só sobre essa, e sem prejuízo do conhecimento oficioso quando permitido, que o tribunal tem de se pronunciar. Se ultrapassar tais limites incorre em excesso de pronúncia. Não é o caso dos autos.
Inexiste, assim, qualquer nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no artº 615º do CPC.
A questão coloca-se em outro plano.
Como decorre da consulta eletrónica do processo, por despacho prolatado em 4 de novembro de 2021, o Juízo Central Cível de Viana declarou-se incompetente para a tramitação dos autos, o que o Juízo Local Cível já havia feito em 4 de outubro p.p..
Na referida sequência, e ainda que extemporaneamente (artº 109º, nº3, do CPC), o Juízo Central Cível suscitou imediatamente o conflito de competência, tendo os autos subido a esta Relação, e baixado logo a seguir, para suprimento de várias omissões da 1ª Instância.
Dispõe o artº 613º, nº1, do CPC, que “1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. 2 – É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes. 3 – O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.”
A extinção do poder jurisdicional supra referida implica que o tribunal fica vinculado à decisão prolatada, não a podendo revogar ou alterar.
Rui Pinto, no seu Código de Processo Civil anotado, 2018, vol. II, pág. 174, refere que “Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. Efetivamente, os princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz determinam a regra do esgotamento do poder jurisdicional, herdeira do brocardo lata sentencia, judex desinit esse judex”, e expressamente enunciada no nº 1.
A regra é tão importante que não pode ser afastada pelo exercício de adequação formal. Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão.
A partir do momento em que o Juízo Central Cível se declarou incompetente para a tramitação dos autos não podia aquele tribunal despachar o processo até que o conflito de competência fosse decidido (incidentalmente refira-se que a decisão não foi imediatamente comunicada aos tribunais em conflito nos termos do artº 113º, nº 3, do CPC, pelo que o tribunal recorrido nem sequer tinha conhecimento da mesma aquando da prolação do despacho recorrido).
Assim, tendo indevidamente despachado o processo, o referido despacho é ineficaz (neste sentido vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2, 4ª edição, anotação ao artº 613, pág. 730).
Um ato é ineficaz sempre que não produza todos ou parte dos efeitos que a categoria a que pertence está, em abstrato, apta para produzir. (…) Ineficácia não equivale necessariamente à falta total de efeitos. No seu sentido mais amplo, a ineficácia de um ato jurídico verifica-se sempre que os efeitos próprios do ato não se verifiquem logo ou que já não se verifiquem. A ineficácia é compatível com a produção de outros efeitos derivados do próprio ato ou até com efeitos derivados da ineficácia do ato. (…)
Em sentido amplo – não produção de efeitos – a ineficácia inclui a invalidade (ato nulo ou anulado), a inexistência e a ineficácia em sentido estrito.
A dicotomia invalidade/ineficácia strictu sensu é aceite de modo quase unânime pela doutrina portuguesa. Em textos legais, a alternativa é expressa, por exemplo, nos artigos 19º, nº1, 36º, nº1, 65º, nº2, e 1717º do Código Civil.
Outros preceitos legais são sugestivos da referência à ineficácia em sentido restrito (por exemplo, ineficácia da declaração negocial, artigo 224º, nº3, e 226º, nº2, ineficácia da proposta, artº 231º, nº2, ineficácia da convenção antenupcial por caducidade, artº 1705º, 1).
O critério distintivo subjacente consiste em que, na invalidade, a ineficácia deriva do desvalor jurídico (ou vício) reportado a um elemento ou requisito intrínseco à estrutura ou à formação do ato, enquanto a ineficácia em sentido estrito resulta de um facto extrínseco ao ato e, por isso, não valorativo deste.
A ineficácia em sentido estrito verifica-se se um ato existente e válido não produzir imediatamente (ineficácia originária) ou deixar de produzir (ineficácia subsequente) a totalidade ou parte dos seus efeitos.
A ineficácia strictu sensu não é uma sanção nem um efeito sancionatório, é apenas a consequência de conformidade com a autonomia privada ou de desconformidade não valorativa com certas regras legais. Não há regras gerais que se apliquem à mera ineficácia, porque as situações de ineficácia strictu sensu são diversas e heterogéneas. (…) – Carlos Ferreira de Almeida in Católica Law Review, volume I, nº2, 2017, páginas 11-12, e 26-28.
No caso vertente, teremos de considerar que o despacho recorrido, por ineficaz, é inapto à produção dos efeitos da ordem nele contida, tendo por isso de ser revogado, o que se declara.
Por outro lado, mesmo que assim não fosse, sempre o despacho a suspender a instância seria de revogar.
Com efeito, o requerente alegou que a resolução do contrato de locação se efetivou por carta registada enviada em 13 de agosto de 2020, ou seja, havia mais de 19 meses à data da instauração da presente providência cautelar.
O PER que serviu de fundamento à suspensão da instância é posterior à resolução do contrato.

O artº 17º-E, nº1, do CIRE, na redação em vigor à data da prolação do despacho recorrido, estatuía:

Artigo 17.º-E
Efeitos
1 - A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.


A questão que então se coloca é a de saber se este procedimento cautelar de entrega judicial consubstancia uma das ações previstas no presente preceito legal.

Recordemos quais os pedidos formulados na presente providência cautelar:
Nestes termos (…) pede e requer a V. Exa, se digne ordenar a restituição imediata da viatura automóvel locada (…);

Mais requer (…) que seja conhecida, desde já, a causa principal e, nessa conformidade:

1) Que seja declarado que o Banco requerente é o único e legítimo titular e proprietário da viatura acima identificada, objeto do contrato de locação financeira (…);
2) Que a sociedade requerida seja condenada na entrega definitiva da viatura identificadas em 1) supra ao Banco requerente;
3) Que a sociedade requerida seja condenada no pagamento ao Banco requerente da quantia de €16.889,60 (…) a título de indemnização contratual pela não entrega da viatura objeto do contrato de locação financeira;
4) Que a sociedade requerida seja condenada no pagamento da penalidade aludida na alínea B) do antecedente artigo 51º do presente articulado, correspondente ao valor equivalente ao da última renda vencida (€1.688,96) por cada mês ou fração em que perdurar a mora na entrega da viatura;
5) Que a sociedade requerida seja condenada a pagar ao Banco requerente uma indemnização pelos danos que se verificarem na viatura locada e que não resultem da sua normal utilização, a liquidar em execução de sentença, nos termos (…);
6) Que a sociedade requerida seja condenada no pagamento das custas e demais encargos legais.”

Desde logo importa enfatizar que entender que a tramitação de uma providência cautelar de entrega de bens não deve ser suspensa por força de um PER não equivale a considerar que a mesma deva necessariamente ser procedente. Importará, obviamente, apurar da veracidade dos factos alegados como causa de pedir, desde logo os relativos à alegada resolução do contrato e respetiva data.
Os pedidos formulados na providência cautelar sob os números 1 e 2 (restituição da coisa e declaração da propriedade) não se enquadram manifestamente no conceito de cobrança de dívidas. Já quanto aos pedidos formulados sob os números 3, 4 e 5 a resposta não é líquida.
Jurisprudencialmente, a questão não tem recebido solução uniforme.
No AcRP de 9/07/2014, processo nº 834/14.9TBMTS-B.P1, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais citados, “Em homenagem ao princípio de economia processual servido pela solução descrita no artº 555º do CPC, nada obsta a que, num mesmo procedimento cautelar do tipo previsto no artº 21º do DL nº 149/95, de 24 de junho, com fundamento na resolução de diversos contratos de locação financeira celebrados entre o mesmo locador e o mesmo locatário, se pretenda a entrega imediata dos diferentes bens que de cada um deles eram objeto. 2. Um procedimento cautelar deste tipo (entrega imediata de bens locados, após resolução do contrato de locação financeira pelo locador), mesmo complementado com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa ação declarativa, não pode subsumir-se ao conceito de “ação de cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade” previsto no nº1 do artº 17º-E do CIRE. Por isso, a instauração de um PER não tem por efeito a suspensão da instância nesse procedimento cautelar.
No AcRP de 21/01/2016, processo nº 288/15.2T8PVZ.P1, decidiu-se que “Uma providência cautelar de entrega judicial dos respetivos bens imóveis locados, após resolução do contrato de locação financeira pelo locador, mesmo quando complementada com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa ação de natureza declarativa, não pode ser subsumida no conceito de “ação de cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade” da previsão legal do nº1 do artº 17º-E do CIRE. 2. Assim sendo, a instauração de um processo especial de revitalização não deve determinar a suspensão da instância no antes referido procedimento cautelar de entrega judicial.”
Conforme já se decidiu nesta Relação, processo nº 443/17.0T(FLG.G1, de 21 de setembro de 2017, “O procedimento cautelar previsto no artº 21º, do DL nº 149/95, de 24 de junho, destinado à entrega judicial de bens pelo locatário, proposto na sequência da resolução declarada do respetivo contrato de locação financeira com fundamento no incumprimento das respetivas obrigações (maxime de pagar as rendas), não é nem se equipara à ação (declarativa ou executiva) para cobrança de dívidas prevista no artº 17º-E, nº1, do CIRE. 2. Trata-se sim, mas tão só, de entregar cautelarmente à apelante bens de que é proprietária e sobre os quais, uma vez extinta a locação, recupera o respetivo gozo do modo pleno e exclusivo facultado pela titularidade do domínio. 3. Por isso, apesar de na pendência daquele ter sido declarada a insolvência do locatário, não há lugar à suspensão de tal procedimento com fundamento na referida reforma.”
Em sentido contrário, mas com a especialidade de o bem a restituir ser um imóvel, no AcRG de 27 de maio de 2021, processo nº 330/21.8T8VCT.G1, decidiu-se que “Na previsão do nº 1 do artº 17º-E do CIRE integram-se as ações executivas, ou as diligências executivas e também as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra o devedor, e respeitantes a quaisquer “dívidas”, mesmo as que tenham por objeto a entrega de coisa certa. 2. Em razão do referido em 1, também o procedimento cautelar de entrega judicial de bens locados, na sequência de incumprimento dos contratos de locação financeira imobiliária, deverá ser suspenso, se estiver em curso um processo especial de revitalização da locatária.”
Também no plano doutrinal, a questão não é pacífica.
Maria do Rosário Epifânio in Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, 2019, páginas 427-429, e in O Processo Especial de Revitalização, 2016, páginas 32 a 34, refere que “A expressão “ações para cobrança de dívidas” é dúbia: será que abrange apenas as ações executivas, ou também as ações declarativas? A questão tem dividido a jurisprudência e a doutrina.
A resposta poderá ser encontrada nos efeitos processuais da declaração de insolvência. No processo de insolvência, as ações declarativas em que o devedor seja parte (como autor ou como réu) não se suspendem, podendo apenas ser apensadas ao processo, a pedido do administrador da insolvência (artº 85º, nº1). No processo de insolvência, a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência (artº 88º).
Em nosso entender, no artº 17º-E, nº1, estão abrangidas apenas as ações executivas, ou as diligências executivas, e ainda as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra a empresa, e respeitantes a quaisquer dívidas. Desde logo, com base num argumento literal, pois uma ação de cobrança de dívida visa o cumprimento de uma obrigação que já foi previamente verificada. Pelo contrário, na ação declarativa, de condenação, ou de simples apreciação, o autor visa, sempre, a verificação de um crédito (e a obtenção de um título executivo) que possa, posteriormente, ser cobrado em sede de ação executiva. Em segundo lugar, se o PER é um processo especial de cariz concursal, à semelhança do processo de insolvência (embora com uma forte componente extrajudicial), não faz sentido suspender as ações declarativas ou impedir a sua propositura. Em terceiro lugar, porque a verificação dos créditos (de natureza perfunctória) tem eficácia de caso julgado formal (só tem efeitos no âmbito do PER), pode o respetivo credor ter interesse na prossecução dessa ação declarativa. Ora, se as ações declarativas forem paralisadas no âmbito do PER, extinguir-se-ão, nos termos do artº 17º-E, nº1, se vier a ser homologado um plano de recuperação (solução excessivamente gravosa do ponto de vista da economia processual). Em quarto lugar, se, segundo o artº 17º-E, nº1, parte final, as ações suspensas se extinguem por efeito da homologação do plano de recuperação, “não se poderão olvidar as consequências profundamente penosas para os titulares de créditos litigiosos que tenham sido, por hipótese, impugnados no âmbito do processo especial de revitalização e excluídos da lista definitiva apresentada pelo administrador provisório, os quais – por via do defendido efeito de extinção da respetiva instância declarativa – se vêm remetidos para um exaustivo processo de repetição de esforços com vista ao reconhecimento do seu crédito, gerador de multiplicação de gastos, uma espécie de via sacra desesperante e totalmente incompreensível para o comum destinatário do sistema de justiça. Em quinto e último lugar, porque as ações declarativas (que não afetam a existência ou consistência do acervo patrimonial) em nada prejudicam o ambiente negocial ou o posterior cumprimento do plano recuperatório, sendo, por isso, inócuas face à finalidade recuperatória do PER.
Para além disso, em nosso entender, estão aqui abrangidas quaisquer ações executivas para cobrança de dívidas, prestação de coisa ou de facto, prestação de quantia em dinheiro ou de outra coisa”.
Por seu turno, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis in O Processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, 2014, páginas 97 e 103-104, referem que “A expressão ações para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17º-E, nº1, abrange apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos nos artigos 867º e 869º do CPC) e os procedimentos cautelares antecipatórios de ações que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal. Encontram-se excluídas, pois, do âmbito de aplicação do nº1 do artigo 17º-E, as ações declarativas, as ações executivas para entrega de coisa certa, as ações executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares.
(…)
Refira-se quem em via de regra, os procedimentos cautelares não serão afetados pela aplicação do disposto no artigo 17º-E, nº1. Ou seja, em via de regra, os procedimentos cautelares não deverão ser considerados como ações de cobrança de dívida. Só assim não será quando os procedimentos cautelares em questão tiverem efeitos antecipatórios de uma ação de cobrança de dívida. Sempre que os efeitos do procedimento cautelar sejam antecipatórios de uma ação que ficaria suspensa ao abrigo do artigo 17º-E, nº1, então, nesse cenário, também se deverá entender que o procedimento cautelar em causa será afetado pela previsão do artigo 17º-E, nº1. Não será, por exemplo, o caso de um arresto, cujos efeitos são essencialmente conservatórios.
Também Luís Miguel Pestana de Vasconcelos in Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização, 2017, páginas 63-64, defende que só as ações executivas estão abrangidas pelo preceito: “Não é claro se se incluem aqui (artº 17º-E, nº1, do CIRE) somente as ações executivas ou, também, as declarativas. A primeira solução, a nosso ver, é a correta. Não sendo embora a letra da lei clara, o aspeto decisivo é, sempre, a sua ratio, que aqui consiste em evitar que neste período de tempo o sujeito fique privado dos seus bens no seio de uma execução, o que poderia inviabilizar a sua atividade e, portanto, qualquer recuperação. Basta pensar nos efeitos para a continuação daquela da penhora das contas bancárias do devedor.
As ações declarativas de condenação, pelo contrário, não comportam qualquer prejuízo para a recuperação do devedor. Ao invés, a sua suspensão prejudicaria, de forma desnecessária, o demandante. Portanto, como a ratio da norma (o elemento decisivo, reforce-se) não se estende às ações declarativas, ela não as abarca, pelo que não se suspendem.
Já entendimento diferente têm outros autores.
Luís Menezes Leitão in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, 10ª edição, 2018, pág. 86, refere que “Tem sido objeto de discussão na doutrina se a expressão “quaisquer ações contra o devedor” abrange apenas as ações executivas ou também as ações declarativas condenatórias. A melhor posição é a de que são abrangidas todas as ações destinadas à cobrança de dívidas, sejam elas declarativas ou executivas, e independentemente da natureza da dívida. Neste sentido cfr. Carvalho Fernandes/João Labareda, código, sub artº 17º-E, nº3, pp. 164-165, Ana Prata/Jorge Morais de Carvalho/Rui Simões, Código, sub artº 17º-E, nº2, pp. 64-65, Fátima Reis Silva, Processo, p. 53, Alexandre Soveral Martins, Um curso, pp. 470-471 e nota 34, e Artur Dionísio Oliveira em Catarina Serra (org), III Congresso de Direito da Insolvência, pp. 208 e ss.
Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2018, pág. 388-389, refere que “Um dos maiores problemas suscitados pela norma do artº 17º-E, nº1, é o do seu alcance, ou seja, o das ações abrangidas. Para as designar, o legislador utilizou, neste preceito, a expressão “ações para cobrança de dívidas”, o que torna inviável a sua recondução às categorias habituais. É mais ou menos seguro que são abrangidas as ações executivas, mas existe controvérsia quanto às ações declarativas.
Uma sensível maioria da doutrina e da jurisprudência portuguesas propende para o entendimento mais amplo. Nesta perspetiva, são abrangidas pelos efeitos não só as ações executivas mas também as ações declarativas (mais precisamente as ações de condenação) e ainda certas providências cautelares (designadamente de entrega judicial de bens), posto que, de alguma forma, contendam com o património da empresa.
Outra parte da doutrina e da jurisprudência propende para uma interpretação mais restritiva da norma, sustentando, com variações, que ela abrange apenas as ações executivas (ou mesmo só as ações executivas com finalidade de pagamento de quantia certa) e deixa de fora todas as ações declarativas e a maioria dos procedimentos cautelares). (…)
A verdade é que o argumento literal torna quase indefensável um entendimento que exclua liminarmente as ações declarativas. Não há, de facto, sinais da vontade do legislador em delimitar o efeito às ações executivas. Pelo contrário, foi deliberadamente escolhida uma expressão alternativa “ações de cobrança de dívida) que mostra que não é desejável uma redução – pelo menos não uma redução sistemática ou por princípio – às ações de tipo executivo. Tendo em mente a necessidade de propiciar à empresa a estabilidade necessária ao bom curso do processo, o legislador terá formulado a norma justamente com a intenção de estender o efeito a todas as ações direta ou indiretamente dirigidas a fazer valer direitos ou a exigir o seu cumprimento, independentemente da sua classificação como declarativas ou executivas no Código de Processo Civil.
Balizada jurisprudencial e doutrinalmente a interpretação que tem sido dada ao preceito, impõe-se agora dar a conhecer a nossa.
Como supra referimos, os pedidos formulados sob os números 1 e 2, de restituição da coisa e de declaração da respetiva propriedade não se enquadram manifestamente quer na letra quer no espírito do citado artº 17º-E do CIRE.
Fossem somente estes os pedidos e não se levantariam quaisquer problemas.
Não obstante, a nossa posição é a de que também os pedidos formulados sob os números 3 a 5 não se integram no conceito de “cobrança de dívidas” ou ação “com idêntica finalidade”.
Com efeito, com a presente providência, e admitindo que o tribunal venha a conhecer logo da causa principal, não está em causa o pagamento coercivo de qualquer quantia. Não estamos perante uma ação executiva. Ao invés, hipotizando uma procedência da providência, para o estrito efeito de clareza expositiva do presente raciocínio, estaremos somente perante uma declaração de um direito de crédito da requerente perante a requerida. Quanto à obtenção coerciva do pagamento, aí sim, justificar-se-ia a suspensão da instância, mas já não a montante, quando a causa de pedir é a declaração do crédito.
Como se refere no supracitado acórdão desta Relação de 21/09/2017, processo nº 443/17.0T8FLG.G1, “Em face do acabado de aduzir, considerando que o termo “cobrança de dívidas” utilizado no artº 17º-E, nº1, do CIRE, pressupõe, prima facie, estar-se na presença de um crédito já reconhecido, isto por um lado e, por outro, que no âmbito da interpretação da lei, não deve o intérprete cingir-se à respetiva letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (cfr. artº 9º, nº1, do Código Civil), a primeira conclusão/ilação que para nós merece ser subscrita é a de que na previsão da disposição legal do CIRE ora em apreço (artº 17º-E, nº1) não cabem as ações declarativas, que o mesmo é dizer, as ações judiciais cujo desiderato essencial se dirige para a declaração da solução concreta resultante da lei para a situação real exposta pelo requerente (ação que se limita a pronunciar o ius – ius dicere – correspondente à pretensão, ou seja, a declarar a vontade concreta da lei, que não a diligenciar pela execução dessa vontade. De resto, não se descortina sequer qual a real e efetiva inconveniência ou estorvo para a criação e conclusão de um plano de viabilidade para o devedor – e que se encontre em plena fase de negociações de um PER – a pendência ou o prosseguimento de uma simples ação declarativa que tenha só por desiderato o reconhecimento de um crédito, que não a cobrança coerciva do mesmo, caso em que, então sim, é afetado de imediato o ativo e a liquidez da entidade a ser revitalizada.
Cremos até que a atual redação do artº 17º-E, nº 1, do CIRE, reforça este nosso entendimento.
Ou seja, também por isto entendemos que inexistiria fundamento para a prolação de despacho a suspender a instância.
Tem assim de se considerar procedente o recurso interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Guimarães, 13 de julho de 2022.

Relator - Fernando Barroso Cabanelas;
1.ª Adjunta – Maria Eugénia Pedro;
2.º Adjunto – Pedro Maurício.