Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
38/21.4YRGMR
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
FACTOS DE NATUREZA CRIMINAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AÇÃO DE ANULAÇÃO DA DECISÃO ARBITRAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Estando pendente processo-crime pelos factos que são imputados ao agente, o tribunal arbitral não pode considerar-se materialmente competente para conhecer da pretensão por aquele deduzida sob a forma de uma ação de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. X – distribuição de Electricidade, SA, actual denominação da anterior Y Distribuição – Energia, SA, intentou a presente acção de anulação de decisão arbitral contra A. M., pedindo que seja anulada a sentença arbitral proferida no âmbito do processo .../2020/AR, pelo T - Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do ..., sedeado na Rua … Guimarães, alegando para o efeito, na parte relevante, o seguinte:

«14. Por ofício datado de 29 de junho de 2020, foi a ora Autora citada pelo T, para contestar a reclamação apresentada por A. M., Réu, no âmbito do processo de arbitragem n.º .../2020/AR (conforme documento n.º 1 já junto)
15. No âmbito desse processo, pedia o aqui Réu, que “(…) fosse declarado não ser devedor da quantia de € 1.451,98, que a Reclamada está a exigir, ou de outros relacionados com a alegada utilização irregular de energia elétrica decorrente de atuação indevida no contador”.
16. Analisada a reclamação concluiu a aqui Autora, que a factualidade em apreço naquela tem como fundamento factos que consubstanciam a prática de um crime de furto, e que dessa forma não se subsumem no conceito de litígio de consumo.
17. Ora, estamos perante um crime de furto de energia elétrica que se consumou com a apropriação ilegítima de energia elétrica por parte do utilizador da instalação, no caso o Réu (R.), que beneficiou e enriqueceu com o ilícito praticado na medida dos consumos não facturados.
18. Estando em tempo e tendo legitimidade para o efeito, a A., procedeu à apresentação de queixa crime, junto dos serviços do Ministério Público de Braga, com vista a ser instaurado um processo de inquérito pelos factos vertidos na Reclamação, cf. cópia da queixa crime que se junta como documento n.º 3.
19. De tal sorte encontra-se a correr termos o processo de inquérito n.º 1698/20.9T9GMR junto dos serviços do Ministério Público de Braga – 2.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Guimarães.
20. Desta forma, e uma vez que está em causa um litígio de natureza criminal entendeu a ora A. que o Tribunal Arbitral não é materialmente competente para julgar a Reclamação apresentada.
21. Assim, e em resposta à reclamação apresentada, a reclamada, ora A., informou o douto Centro de Arbitragem, ter apresentado queixa crime pelos factos vertidos naquela reclamação e que como tal, não se revelaria útil o recurso à arbitragem até trânsito em julgado da correspondente decisão judicial, conforme documento n.º 4 que ora se junta.
22. Não obstante o Tribunal Arbitral, notificou, a A., através de ofício datado de 09 de Outubro de 2020, da marcação da audiência de julgamento arbitral, tal como documento n.º 5 que aqui se junta.
23. Ora, não se conformando, a A., através de requerimento datado de 20 de Outubro de 2020, suscitou, junto daquele tribunal, a sua incompetência material, porquanto em causa estava um crime de furto, tendo sido apresentada a respectiva queixa-crime, conforme documento n.º 6.
24. E que nesse sentido, não se revelaria profícua a realização da audiência de julgamento.
25. Certo é que o tribunal arbitral não se pronunciou sobre essa questão, tendo prosseguido para o julgamento.

V. Do pedido de anulação

26. O tribunal arbitral proferiu a sentença, cuja cópia certificada vai junta.
27. Pronunciando-se sobre a sua competência, afirma que “(…) apenas considera estar indiciado delito de natureza criminal quando essa indicação decorre de factos traduzidos em comprovada apresentação e ou pendência de apreciação de apreciação nas autoridades judiciárias competentes (…).
28. No entanto, declara-se competente por entender estar em causa a “(…) exig[ência] [de] uma indemnização ao consumidor fundada em alegados factos ilícitos praticados no âmbito duma relação de consumo de serviço essencial, mas que não foram participados ou denunciados ao Ministério Público”.
29. Assim, e como se pode verificar, determinou como procedente a reclamação apresentada, nomeadamente declarou não ser devido à reclamada, ora Autora o montante de € 1.415,98 (mil, quatrocentos e quinze euros e noventa e oito cêntimos).
30. Isto posto, o pedido de anulação aqui em causa assenta na violação das disposições dos artigos 46.º n.º 3, alínea a), subalínea v) e n.º 3 alínea b), subalínea i).
31. Tal com explanado supra, entende a A., que os factos vertidos na Reclamação apresentada no Tribunal Arbitral, por parte do ora R., consubstanciam a prática de um crime de furto, e que dessa forma não se subsumem no conceito de litígio de consumo.
32. Em causa está um crime de furto, sob a forma continuada, previsto e punido nos termos do artigo 203.º e 30.º, ambos do Código Penal.
33. Por outro lado, constituem ainda, aqueles factos, uma prática fraudulenta nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do DL n.º 328/90, de 22 de outubro, diploma que consagra, além do mais, as regras aplicáveis à medição e controlo da energia elétrica e potência tomada em caso de práticas fraudulentas.
34. O crime de furto aqui em apreço consumou-se com a apropriação ilegítima por parte do utilizador da instalação, que beneficiou e enriqueceu com o ilícito praticado na medida dos consumos não faturados.
35. Ora, é o próprio regulamento do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflito de Consumo, no seu artigo 4.º que determina que “o centro não pode (…) decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal (…)”.
36. Um conflito de consumo é o que resulta de uma relação jurídica de consumo, subsumível às regras do direito privado e entendida como aquela que emerge da celebração de um contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços de consumo.
37. No caso em apreço, a indemnização pedida não emerge do contrato de fornecimento de energia Elétrica.
38. Antes, é estranha a este contrato.
39. Na verdade, conforme já referido, tal indemnização tem como fundamento a prática de um ato suscetível de consubstanciar prática de um crime de furto,
40. Ou ainda a prática de um ato ilícito subsumível ao regime jurídico previsto no DL 328/90 de 22 de outubro e ao regime jurídico da responsabilidade civil subjetiva consagrado no artigo 483.º do Código Civil.
41. Atente-se que as partes em litígio no processo arbitral nem sequer são as partes que celebraram o contrato de fornecimento de energia elétrica.
42. Com efeito, o processo arbitral opõe o utilizador da instalação ao operador da rede elétrica – a aqui A. X – enquanto o contrato de fornecimento de energia elétrica é celebrado entre o consumidor de energia e o comercializador respetivo.
43. O valor da indemnização peticionado é calculado sobre energia elétrica que não chegou a ser comercializada, ou seja, sobre energia elétrica que foi desviada da rede pública e que não foi contada pelo contador.
44. Considerando que apenas a energia medida pelo contador é entendida como consumida para efeitos do contrato de fornecimento, então forçoso é concluir que a energia elétrica, considerada na indemnização, foi alvo de uma apropriação ilícita.
45. Os factos que servem de fundamento à pretensão submetida pelo reclamante, ora R. não configuram um litígio de consumo, mas sim a prática de um ilícito criminal.
46. Ou – se assim não se entender – de um ilícito delitual, subsumível ao regime previsto no DL 328/90 de 22 de outubro que consagra, além do mais, o regime de ressarcimento do distribuidor pelo valor da energia utilizada por força de procedimentos fraudulentos.
47. Certo é que, em qualquer dos casos, o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer desses factos.
48. Na verdade, para conhecer de tais factos serão competentes os tribunais judiciais, quer tais factos sejam apreciados em sede de responsabilidade criminal, quer sejam apreciados no âmbito da legislação específica consagrada pelo DL 328/90.
49. E assim é, porquanto não estamos perante um conflito de consumo, mas sim perante a prática de um facto ilícito, que transcende o objeto do contrato de fornecimento de energia.
50. Estando em causa uma indemnização emergente de um ilícito penal aliado ao facto de estar a correr o processo crime n.º 1698/20.9T9GMR, referente aos factos em apreciação na Reclamação, não é o Tribunal Arbitral materialmente competente para julgar aquele litigio entendendo-o como um conflito de consumo.
51. Vejamos, neste seguimento o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo n.º 52/17 4YRGMR, que declara nula decisão do Tribunal Arbitral, de onde claramente resulta que “o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido de um consumidor de energia elétrica - que a distribuidora de tal bem e dona do contador apontou como suspeito de ter viciado tal instrumento e ao qual exigiu o pagamento dos alegados prejuízos correspondentes às despesas administrativas e ao valor estimado da energia presumidamente consumida mas não contada - no sentido de que a esse título nada deve”.
52. Contemplando, além do mais, o seguinte: “A possibilidade de um TA, por via do expediente de declaração negativa, decidir que um suspeito de fraude no consumo de energia elétrica por via da viciação do contador não deve a indemnização com base nela ao abrigo de lei especial pedida, assim o desresponsabilizando de um efeito derivado do ilícito penal cujo julgamento compete aos órgãos estaduais, põe em causa a ordem pública”.
53. No mesmo sentido foi a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º 232/17 2YRPRT, onde claramente resulta não ser admissível “o julgamento por tribunal arbitral de uma pretensão deduzida sob a forma de uma ação de apreciação negativa, quando o crédito que se pretende ver negado, por inexistente, resulta, não de um litígio de consumo, mas de factos previamente invocados pelo respetivo credor como prejuízos resultantes de um ato ilícito criminal praticado pelo devedor”.

Concluímos assim que,
54. Atento os factos supra expostos, entende a A. que a sentença arbitral em crise conhece de questões de que não poderia conhecer, não sendo o objecto e litígio subjacente à reclamação susceptível de ser decidido por um tribunal arbitral.
55. Como tal, deve a presente ação de anulação ser declarada procedente, anulando-se a sentença arbitral proferida no âmbito do processo .../2020/AR.»
*
1.2. O Requerido não apresentou contestação.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
1.3. O Tribunal é competente para conhecer da causa em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, encontrando-se a Requerente devidamente representada em juízo.
O processo é o próprio e não existem outras excepções, nulidades ou questões prévias que ora cumpra conhecer.
*
Não existe prova a produzir.
Nos termos do artigo 46º, nº 2, al. e), da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, os presentes autos seguem nesta fase a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações.
**
1.4. Delimitação do objecto da acção

O objecto da acção circunscreve-se à questão de saber se a sentença arbitral enferma de vício que conduza à sua anulação.
Nessa medida, atento o alegado pela Requerente, cabe apurar se a decisão arbitral conheceu de questões de que não poderia conhecer «por o objecto e litígio subjacente à reclamação não ser susceptível de ser decidido por um tribunal arbitral».
***
II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Atentos os documentos juntos aos autos estão provados os seguintes factos:

a) Em 26.06.2020, A. M. apresentou reclamação, que deu origem ao processo .../2020/AR, no T – Centro Arbitragem de Conflitos de Consumo do ..., contra a Y Distribuição – Energia, SA, pedindo «que seja declarado que não sou devedor da quantia de € 1.415,98 que a Reclamada está a exigir, ou de outros relacionados com a alegada utilização irregular de energia eléctrica decorrente atuação indevida no contador.
Pretendo ainda obter esclarecimentos para o que possa ter originado tal situação, porquanto estou a ser acusado de um ato, que considero grave e, que volto a salientar, nunca, em momento algum, mexi no contador, pois este apenas foi intervencionado por técnicos da Reclamada».

b) Na reclamação, o Reclamante alegou:
«Resido na casa, sita na morada acima identificada, há cerca de 28 anos e o contador da Reclamada encontra-se fora da habitação pelo que qualquer pessoa tem acesso ao mesmo.
Recentemente fui confrontado, para meu espanto, com uma carta, enviada pela Reclamada, datada de 16/06/2020, onde alegam que detectaram uma utilização irregular de energia elétrica decorrente de atuação indevida no contador, conforme, conforme Auto de Vistoria cuja cópia anexam.
Exigem o pagamento de € 1.415,98, valor correspondente aos prejuízos apurados.
No auto de vistoria que me enviaram consta a indicação de “Tampa de terminais do contador desselada e o condutor de saída (fase) ligado ao terminal de entrada do contador, consumo medido no equipamento de medida diferente do medido na ebox. No final a tampa de terminais foi selado mas a ligação direta não foi desfeita porque não foi possível colocar a instalação em segurança. Cx de coluna é bastante antigo”. Mais informo que em momento algum fui informado desta vistoria no dia 04/07/2017 e só agora, com o envio da comunicação, é que tive conhecimento desta vistoria.
Estou indignado com tal acusação, porquanto, em momento algum, ninguém, que eu tenha conhecimento, que não os técnicos da Reclamada, intervencionaram o contador.
Ao longo dos anos, em momento algum fui informado de qualquer tipo de anomalia quanto ao contador.
Sou uma pessoa idónea, honesta, cumpridora dos meus deveres e obrigações, tendo agido sempre de boa-fé, não faltando pessoas para atestar isso mesmo.
Como tal, não posso conceber a ideia, nem admito que me acusem de um ato ilícito.
Logo após ter recebido a referida comunicação, reclamei a situação numa Loja Y, mas sem qualquer sucesso.
Acresce que da análise do documento que me foi enviado verifico que o período calculado é de 16 de Junho de 2017 a 15 de Junho de 2020, pelo que parte do direito a exigir tal pagamento desse consumo se encontra prescrito, prescrição que desde já se alega».

c) Em 24.07.2020, a Y Distribuição – Energia, SA, apresentou nos serviços do Ministério Público queixa-crime contra A. M., alegando, além do mais, os seguintes factos:
«8.
O local de consumo com o n.º …96, correspondente à instalação sita na Rua …, Guimarães, está ligado à rede pública de energia elétrica, desde 20.02.2020, com contrato de fornecimento de energia elétrica titulado por A. M., celebrado com o comercializador K Energia, Sucursal Portugal, conforme histórico contratual que aqui se junta como Documento n.º 1.
9.
Sendo certo que é o mesmo responsável pelo fornecimento de energia elétrica a esta instalação desde 15.10.1996, conforme Documento n.º 1, já junto.
10.
Por virtude daquele contrato, e na qualidade de concessionária da rede pública de distribuição de energia elétrica, a Ofendida efetuou a ligação à rede elétrica de serviço público das instalações de consumo, como a tal estava obrigada, nos termos do disposto no artigo 180.º do Regulamento de Relações Comerciais do Sector Elétrico.
11.
O equipamento de medição (contador) existente no local, destinado a registar os consumos efetuados, havia sido instalado pela Ofendida e devidamente selado, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do 239.º bem como do n.º 8 do mesmo artigo, ambos do RRC, e do ponto 10. da Secção II do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados, aprovado pela Diretiva n.º 14/2015 da ERSE.
12.
No âmbito da sua atividade a Ofendida gerou a ordem de serviço n.º …….88 conforme print que se junta como Documento n.º 2.
13.
No seguimento dessa ordem de serviço, um técnico ao serviço da Ofendida deslocou-se ao local de consumo em questão, no dia 15.06.2020, verificando que o equipamento de contagem se encontrava manipulado “tampa de terminais do contador desselada e o condutor de saída (fase) ligado no terminal de entrada do contador, consumo medido no equipamento de medida diferente do valor medido pela ebox” como melhor se alcança através do Auto de Vistoria do Ponto de Medição e do registo fotográfico captado, ora juntos como Documentos n.º 3 e n.º 4, respetivamente, e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
14.
Da prática ilícita detestada, decorre a adulteração dos registos e, consequentemente, a subfacturação de energia consumida.
15.
A manipulação exposta consubstancia um procedimento ilícito de obtenção de energia pois permitiu que parte da energia elétrica consumida pela instalação não fosse registada pelo equipamento de contagem, verificando-se, assim, uma apropriação indevida de eletricidade para o utilizador daquela, que a consumia, sem pagar o respetivo preço.
16.
Desta forma, o utilizador da instalação consumiu energia que era disponibilizada pela rede, mas que não estava a ser contabilizada pelo equipamento de contagem nem, por essa razão, era alvo de faturação.
17.
Do exposto resulta que, o(s) agente(s) dos factos agiu e pretendeu com a conduta a obtenção do resultado ilícito, que se traduz na apropriação de energia elétrica da rede de distribuição, beneficiando desse abastecimento ilegítimo e enriquecendo na medida dos consumos não pagos.
18.
Apenas o utilizador da instalação beneficiou com apropriação indevida de energia elétrica.
19.
Com intuito de resolver anomalia detectada, foi gerada a ordem de serviço n.º100037281113, por forma a retificar a anomalia detetada, no entanto a mesma não foi realizada uma vez que o consumidor não permitiu o acesso ao equipamento, conforme print da ordem de serviço que se junta como documento n.º 5.

D. Do valor da energia furtada

20.
A Ofendida procedeu ao cálculo do prejuízo emergente da conduta criminosa denunciada, nele incluindo a quantidade e valor de energia furtada, bem como os encargos administrativos emergentes da deteção e tratamento da irregularidade detetada.
21.
Assim, para elaboração do cálculo foi considerado o lapso temporal compreendido entre 16.06.2017 e 15.06.2020.
22.
Atenta a manipulação detectada, o cálculo, referente à energia consumida ilicitamente, foi efectuado por estimativa, ao abrigo do disposto no artigo 6.º n.º 1 do Decreto-Lei 328/90 de 22 de Outubro, bem como ao abrigo do que vem disposto na Directiva 11/2016 da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), sendo que a potência tomada em consideração para a realização do cálculo foi de 6,9 kVa. Assim,
23.
A prática ilícita detetada permitiu que fosse subtraída, à Ofendida, energia elétrica que se contabiliza na quantia de € 1.172,90 correspondente a 7.893 Wh; a esse montante acresce o montante referente à potência indevidamente tomada, de € 162,98 quantia referente aos encargos administrativos emergentes da deteção e tratamento da anomalia, no valor de € 80,10.
24.
O valor respeitante aos prejuízos apurados perfaz o total de € 1.415,98 (mil quatrocentos e quinze euros e noventa e oito cêntimos), conforme folha de cálculo que aqui se junta como Documento n.º 6.

E. Do ilícito penal

25.
Os factos supra descritos integram um crime de furto, sob a forma continuada, previsto e punido nos termos do artigo 203.º e 30.º, ambos do Código Penal.
26.
Por outro lado, constitui ainda uma prática fraudulenta nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do DL n.º 328/90, de 22 de outubro, diploma que consagra, além do mais, as regras aplicáveis à medição e controlo da energia elétrica e potência tomada em caso de práticas fraudulentas (…).
46.
A Ofendida, manifesta, desde já, a intenção de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º do Código de Processo Penal, pelo que solicita a notificação da acusação ou do despacho de pronúncia se ao mesmo houver lugar.
Ad cautelam, sem prescindir,
47.
Nos termos do disposto no artigo 393.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, caso a pena venha a ser aplicada em processo especial sumaríssimo, a Ofendida manifesta, igualmente, a intenção de ser reparada dos danos sofridos, nos termos que atras de descrevem. (…)»

d) Em 24.07.2020, a Reclamante apresentou junto do T requerimento com o seguinte teor:
«No seguimento da reclamação apresentada pelo Reclamante, melhor identificado supra, vem a Reclamada informar junto de V.ª Exas. que, estando em tempo e tendo legitimidade para o efeito, no âmbito do disposto nos artigos 113.º n.º 1 e 115.º n.º 1 do Código Penal, procedeu à apresentação de queixa crime junto dos Serviços do Ministério Público da Comarca de Braga, com vista a ser instaurado um processo de inquérito pelos factos apreciados na presente reclamação.
Como tal não se revelará útil o recurso à arbitragem até trânsito em julgado da correspondente decisão judicial».

e) Em 20.10.2020, a Reclamante apresentou junto do T requerimento com o seguinte teor:
«A Y Distribuição - Energia, S.A., sociedade anónima registada sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva ………, com sede na Rua … Lisboa, Reclamada no processo à margem identificado, notificada da data de audiência de julgamento arbitral, vem expor e requerer o seguinte:
1. No âmbito da presente reclamação foi requerido pelo Reclamante a anulação do valor de € 1.415,98, peticionado pela Reclamada a título de indemnização por utilização irregular de energia.
2. Ora, em virtude da vistoria efectuada na instalação do Reclamante no dia 15.06.2020, foi detectada uma acção ilícita que compromete a viabilidade do registo de consumos efectivamente realizados naquela instalação.
3. Desta forma, o utilizador da instalação consumiu energia que era disponibilizada pela rede, mas que não estava a ser contabilizada pelo equipamento de contagem nem, por essa razão, era alvo de facturação.
4. O supra exposto, consubstancia um crime de furto, sob a forma continuada, previsto e punido nos termos do artigo 203.º e 30.º, ambos do Código Penal.
5. Com efeito, e tal como comunicado ao presente centro no dia 28/07/2020, foi apresentada queixa crime junto dos Serviços do Ministério Público da Comarca de Braga, com vista a ser instaurado um processo de inquérito pelos factos apreciados na presente reclamação.
6. Assim e de acordo com o disposto no n.º 4 do art. 4.º do Regulamento do presente Centro de Arbitragem, o mesmo é materialmente incompetente para “aceitar, [ou] decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal”.
7. Porquanto, sendo o presente Tribunal incompetente para julgar a acção em apreço, estamos perante uma excepção dilatória (cfr. arts. 576.º, nºs 1 e 2 e 577.º, al. a) do Código Processo Civil), que importa a absolvição da instância da ora reclamada, o que se requer.

f) Por sentença de 29.12.2020, o Tribunal Arbitral decidiu julgar «totalmente procedente o pedido e declara-se não ser o demandante A. M., devedor da importância de €1 415,98 à demandada Y Distribuição de Energia, SA, conforme vem pedido nesta acção».
**

2.2. Fundamentos de Direito

A Requerente invoca dois preceitos legais para alicerçar a peticionada anulação da decisão arbitral.
Nos termos do artigo 46º, nº 3, alínea a), subalínea v), da LAV, a sentença arbitral só pode ser anulada se «a parte que faz o pedido demonstrar que o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar» (2).
Também a decisão arbitral pode ser anulada, nos termos da alínea b), subalínea i), do mencionado nº 3 do artigo 46º, se o tribunal verificar que «o objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português».
Quanto ao âmbito dos poderes conferidos ao tribunal no âmbito da acção de anulação, dispõe o nº 9 do artigo 46º da LAV que «o tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas».
Portanto, a apreciação cinge-se aos fundamentos formais de validade da sentença arbitral e o juízo que se faça tem apenas efeitos puramente cassatórios ou rescisórios.

Independentemente de o objecto do processo .../2020/AR assumir ou não natureza de “litígio de consumo”, existe uma questão que a precede, consistente em saber se factos de natureza criminal, alegados ou indiciados como tal, podiam ser objecto de conhecimento pelo Tribunal Arbitral.
Se mais não houvesse, a resposta a esta questão pode ser encontrada no artigo 4º, nº 4, do Regulamento do Centro de Arbitragem T, onde se dispõe que «[o] Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL».
Como é óbvio, pretende-se, desde logo, evitar o risco de o tribunal arbitral proferir uma decisão cujos factos por si apurados possam vir a estar em contradição com os que venham, eventualmente, a ser definidos no processo-crime. Também por razões de ordem pública não pode ser tolerado o recurso indevido aos tribunais arbitrais quando a questão está pendente noutra ordem jurisdicional, enquanto expediente para influenciar a desresponsabilização criminal.
Estando pendente processo-crime pelos factos que são imputados ao agente, o tribunal arbitral não se pode considerar materialmente competente para conhecer da pretensão por aquele deduzida sob a forma de uma acção de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.
Essa é uma matéria que está reservada aos órgãos competentes estaduais – Ministério Público(3) e tribunais criminais – e não aos tribunais arbitrais.
Neste sentido se decidiu na acção de anulação de decisão arbitral nº 52/17.4YRGMR, desta Relação de Guimarães (4): «o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido de um consumidor de energia elétrica – que a distribuidora de tal bem e dona do contador apontou como suspeito de ter viciado tal instrumento e ao qual exigiu o pagamento dos alegados prejuízos correspondentes às despesas administrativas e ao valor estimado da energia presumidamente consumida mas não contada – no sentido de que a esse título nada deve (…). A possibilidade de um TA, por via do expediente de declaração negativa, decidir que um suspeito de fraude no consumo de energia elétrica por via da viciação do contador não deve a indemnização com base nela ao abrigo de lei especial pedida, assim o desresponsabilizando de um efeito derivado do ilícito penal cujo julgamento compete aos órgãos estaduais, põe em causa a ordem pública».
É precisamente este o caso dos autos, uma vez que está demonstrada a apresentação, em 24.07.2020, de queixa-crime nos competentes serviços do Ministério Público, pelos factos que o Tribunal Arbitral veio, posteriormente àquela apresentação, a considerar não provados, assim julgando a reclamação integralmente procedente.
Por conseguinte, o T - Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do ..., dada a sua incompetência material, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.
Consequentemente, a acção de anulação de decisão arbitral deve ser julgada procedente.
**
2.3. Sumário

Estando pendente processo-crime pelos factos que são imputados ao agente, o tribunal arbitral não pode considerar-se materialmente competente para conhecer da pretensão por aquele deduzida sob a forma de uma acção de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.
***

III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a acção e, em consequência, anula-se a sentença arbitral proferida em 29.12.2020, pelo T - Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do ..., no âmbito do processo .../2020/AR.
Custas a suportar pela Requerente, dado que o Requerido não contestou a acção e a Autora propôs-se exercer (e exerceu) um direito potestativo (anulação da decisão arbitral) (art. 535º, nºs 1 e 2, al. a) do CPC).
Fixa-se o valor da acção em € 1.451,98 (mil quatrocentos e cinquenta e um euros e noventa e oito cêntimos).
*
*
Guimarães, 13.07.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Sublinhados da nossa autoria, tais como todos os demais que se seguirem.
3. Caso a questão seja decidida no culminar do inquérito.
4. Relator: José Amaral.