Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
379/18.8T8PVL.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ÁGUAS
USUCAPIÃO
NÃO EXTINÇÃO PELO NÃO USO
SERVIDÃO DE ÁGUA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não observa a exigência do artº 640º do CPC, com vista à reapreciação da matéria de facto, a mera enunciação de prova aparentemente dissonante, sem qualquer juízo crítico sobre a sua valoração em confronto com a que presidiu à do tribunal recorrido.
II - Na aquisição da água de fonte ou nascente em prédio alheio, por usucapião, exige-se, a par dos requisitos gerais da posse, que nesse prédio tenham sido feitas obras de captação e posse da mesma água e que essas obras sejam visíveis e permanentes – artº 1390º, nº2, do Código Civil.
III - Com esta exigência legal de construção de obras no prédio onde exista a fonte ou nascente teve-se em vista excluir da usucapião as situações de simples fruição das águas pelo proprietário do prédio inferior - artigo 1391 do Código Civil.
IV - A expressão "construção de obras", utilizada no nº2 do artº 1390º significa que elas têm de derivar de facto humano, não sendo consideradas, para efeitos de usucapião de águas, as obras que resultam do próprio escoamento.
V - O direito de propriedade é, por sua própria natureza, imprescritível (artº 298º do CC), não se extinguindo pelo não uso, dado que o proprietário goza também do poder de inactividade sobre a coisa.
VI - Não viola o direto constitucional de propriedade, previsto no artº 62º da CRP, a existência de uma servidão ou de um direito de propriedade de águas em prédio a favor de um terceiro.
Decisão Texto Integral:
Acórdão no Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

M. J. e mulher D. S. intentaram a presente acção comum contra A. P. e mulher M. P., todos com os sinais dos autos, pedindo a condenação destes a:

a) Reconhecer o direito de propriedade dos Autores, sobre o prédio identificado na petição inicial;
b) A reconhecer o direito de propriedade dos Autores às águas referidas nos artigos supra, desta PI, que se captam, através duma mina com cerca de 7/8 metros de comprimento, existente na propriedade dos Réus;
c) A reconhecer que sobre o antigo prédio rústico, denominado “Campos ... ou Campos do ...”, actualmente prédio urbano – descrição ..., artigo matricial ..., da mesma freguesia, de que são proprietários, e em benefício dos prédios dos Autores, impendem servidões de captação de águas, represamento e condução, com as características, natureza e conteúdo melhor discriminados nos artigos da petição;
d) A recolocar o tubo de água em PVC, que destruíram, com as características que o mesmo tinha anteriormente, e a religa-lo para o prédio dos Autores;
e) A absterem-se da prática de quaisquer actos, que violem os direitos dos Autores;
f) A pagar aos Autores a indemnização pelos danos patrimoniais, resultantes do custo suportado pelas obras da realização de um furo, e do pedido de ligação à rede pública, de abastecimento de água, que cifram em €: 1.500,00 (mil quinhentos euros), bem como os danos patrimoniais que estes já sofreram e continuarão da sofrer, enquanto perdurar o comportamento dos Réus que, impedindo aqueles de usufruir das águas de que são proprietários, só poderá ser determinado em execução de sentença;
g) A pagar uma indeminização aos Autores, pelos danos não patrimoniais que estes sofrem, com o ilícito comportamento dos Réus, em montante nunca inferior a 2.000,00 (dois mil euros);
h) A pagar aos Autores, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €: 50,00, por cada dia em que persistam, em impedir aquele, de exercitar algum dos seus direitos de servidão acima referidos, após o transito em julgado da sentença a proferir nos presentes autos, nomeadamente por cada dia em que não executem as obras referidas na alínea d) supra.

Citados, os RR apresentaram contestação, impugnando a pretensão dos AA e concluindo pela improcedência da acção.

Os autos seguiram os seus termos, com realização da audiência de discussão e julgamento e, a final, foi ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu nos seguintes termos:

Declarou os AA. proprietários do prédio identificado nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial (e descrito supra na matéria de facto provada).
Declarou os AA. proprietários da água identificada na petição inicial (e descrita supra).
Declarou os AA., sobre o antigo prédio rústico, denominado “Campos ... ou Campos do ...”, atualmente prédio urbano – descrição ..., artigo matricial ..., da mesma freguesia (prédio esse propriedade dos RR.), titulares dos direitos captação de água, represamento e condução, com as características, natureza e conteúdo discriminados supra.
Condenou os RR. a reporem, imediatamente, a passagem pelo seu prédio (dos RR.) da referida água de modo a que essa água chegue ao referido prédio dos AA. e seja aproveitada nos termos definidos supra e, bem assim, no acesso aos AA. à mina e demais artefactos/obras existentes no prédio dos RR.
Condenou os RR. a pagarem aos AA., a título de compensação dos danos não patrimoniais, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros).
Condenou os RR. a pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 20,00 (vinte euros) por cada dia de atraso na realização das obras de reposição da passagem da referida água nos precisos termos definidos supra.

Com ela não se conformando, vieram os réus interpor o presente recurso, em cujas alegações concluem nos seguintes termos:

1. Por sentença proferida nestes autos foram os Réus condenados a reporem, imediatamente, a passagem pelo seu prédio da água de modo a que essa água chegue ao referido prédio dos Autores, no acesso por estes à mina e demais artefactos/obras existentes no prédio dos Réus, e a pagarem aos Autores a título de compensação dos danos não patrimoniais, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), e a quantia de €20,00 (vinte euros) título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na realização das obras de reposição da passagem da referida água nos precisos termos definidos supra.
2. E, declarou, também, o Tribunal a quo serem os Autores proprietários da água identificada na petição inicial e que sobre o antigo prédio rústico, denominado “Campos ... ou Campos do ...”, atualmente prédio urbano – descrição ..., artigo matricial ..., da mesma freguesia (prédio essa propriedade dos Réus), titulares dos direitos captação de água, represamento e condução, com as características, natureza e conteúdo discriminados na sentença, ora recorrida.
3. Sucede, porém, que pela presente ação vêm os Autores peticionar, em suma, um putativo direito de propriedade às águas referidas na petição inicial, bem como, uma servidão de captação de águas, represamento e condução das mesmas, como decorre da confissão/pedido dos próprios Autores, a qual se tem por aceite e não pode, jamais, ser retirada dos autos.
4. Há que salientar que foi alegado pelos Réus na sua contestação e está manifestamente provado, através da prova produzida em sede de audiência de julgamento, que há muito mais de 25 (vinte e cinco anos) que os Autores desde, pelo menos, 1991 até à presente data, não praticam qualquer de utilização dessa alegada servidão.
5. Pois, na verdade, nunca solicitaram o que quer que fosse aos Réus, no que diz respeito à água de que se arrogam, sem qualquer razão, proprietários, nem solicitaram a entrada no prédio,
6. Pois, nunca pediram as chaves de portões, nem utilizaram água nenhuma.
7. E a ilustrar isso, provado está, no ponto 13 da sentença, que o abastecimento de água que foi feito para um lagar de azeite e alambique cessou, há pelo menos, 20 anos.
8. Para tal atente-se no depoimento da testemunha A. C., prestado ao intervalo de tempo 00:19 até 05:54 e 06:48 até 07:35, assim como, nas declarações de parte da Ré M. P., prestado ao intervalo de tempo 00:24 até 08:37 e ainda no depoimento da testemunha S. F., prestado ao intervalo de tempo 00:48 até 07:38 e M. L., prestado ao intervalo de tempo 01:22 até 08:52 que supra se transcreveu.
9. O que constitui prova inelutável de que tal servidão, de que os próprios Autores alegam ter sido constituída por usucapião, se extinguiu, pelo não uso, durante 20 anos e se revelou desnecessária ao prédio dominante, nos termos do Art. 1596º do Cód. Civil.
10. Tudo isto a significar, também, que os Réus não confundem servidão de águas com propriedade de água, já que o direito de propriedade das águas implica o poder de o seu titular dispor livremente da água existente no prédio alheio,
11. Ao passo que a servidão de águas confere ao seu titular, apenas a possibilidade de aproveitamento da água na estrita medida das necessidades do prédio dominante,
12. E, no caso presente está provado que os Autores deixaram de ter necessidade da água em causa, porque, como suprarreferido, há pelo menos 20 anos, que o lagar de azeite e o alambique deixaram de laborar,
13. E, nessa conformidade, a água que supostamente usavam para fins industriais deixou de ser por eles aproveitada por virtude de terem cessado os suprareferidos bens industriais,
14. E no que concerne aos gastos domésticos, designadamente, o quintal de casa, também deixou de haver necessidade da água, não mais a aproveitando, os Autores, porque passaram a recolher as águas provenientes do ribeiro que atravessa a sua propriedade, assim como as sobras da água da poça pública e, até ainda, são titulares de um furo de água na propriedade deles (Autores).
15. O que significa a todas as luzes que os Autores têm água de sobra para os esses seus limitados fins domésticos.
16. A corroborar tal factualidade atente-se no depoimento do Perito, J. F., prestado, em sede de audiência de julgamento, ao intervalo de tempo entre 00:29 até 02:39:
Mandatário dos Réus (00:16) (…) “Saber aonde é que nasce a água (imperceptível)?”
Juiz (00:22) “Onde nasce as águas dos Autores? Onde é a nascente digamos assim?”
Perito (00:29) “Ora bem nós ali temos várias águas Sr. Dr. temos águas de Mina e temos águas de Ribeiro, e depois de uma forma indireta temos águas de uma poça de, portanto, para o acesso localizada na via pública, temos águas de um fontanário localizado também numa via pública e, essas duas últimas desaguam num Ribeiro, Ribeiro, esse, que de baixo ali de uma pequena ponte assim se pode dizer debaixo da estrada municipal há uma pequena derivação que permite passar parte dessa água para o terreno dos autores e outra seguir o curso normal do Ribeiro, isso, no tocante a águas de provenientes de um Ribeiro depois (…) aqui depois temos águas provenientes de uma mina, essa mina está localizada no terreno dos réus, terreno, esse, localizada uma cota superior à estrada municipal, que, por sua vez, está localizado a uma cota superior ao terreno dos autores, portanto nessa mina localizada no terreno dos réus verifica-se a presença de água, bem como o seu escorrimento, se assim se pode dizer, essa mina é uma é uma mina portanto como paredes de pedra de teto de pedra em que na parte mais profunda quando eu lá entrei tem uma taça ou tem um depósito de recolha de águas, portanto, são as duas águas que eu consegui identificar neste relatório pericial.”
Juiz (02:37) “Mas é água nascerá e não é só represada aí?”
Perito (02:39) “Água, ela é represada de facto nesse términus da mina, mas a ELA VIRÁ ALGURES MAIS A MONTANTE DESSE MESMO LOCAL QUE NÃO QUE NÃO CONSIGO, PORTANTO, DIGAMOS, QUE NÃO ERA ÂMBITO DESTA PERÍCIA IDENTIFICAR O SÍTIO DE ONDE ELA VINHA.”
17. Tudo isto a revelar à saciedade e a todas as luzes que a pretensão formulada pelos Autores na sua petição inicial constitui um manifesto abuso de direito, nos termos do Art. 334º do Cód. Civil, que estabelece o seguinte: “E ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.”
18. O qual, como destaca o Prof. Baptista Machado, CJ, 1984, 2º, 1, citando o Prof. Castanheira Neves, Questão de Facto e Questão de Direito, 256, in nota 46: “É um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídico do direito particular invocado que são ultrapassados”.
19. E porque tal sucede a apreciação do abuso de direito é uma exceção perentória inominada de conhecimento oficioso do Tribunal, mesmo do de recurso, pois está em causa um princípio/ interesse de ordem pública (Ac. da Relação de Coimbra de 15.10.1991, BJM, 410-882, de 14.10.1992 BJM, 420-655 e Ac. Do S.T.J. de 10.10.2002.)
20. Sendo de salientar, também, nessa conformidade e a afastar a infundada decisão da sentença recorrida de que os Autores são proprietários da água identificada na petição inicial, em relação à qual estes, apenas alegam que “adquiriram as águas provenientes de uma nascente”, sem especificar qual – vide art. 17 da P.I.,
21. E, por outro lado, está provado, no ponto 10 dos Factos Provados, que: “nessa mina também se verifica …”
22. O que significa que nem os Autores, nem o Tribunal a quo, nem o Perito (veja-se transcrição do depoimento deste no artigo 16º supra), como se torna evidente, conseguiram identificar qual a água de que os Autores, serão, hipoteticamente, proprietários, devendo, por isso, ser alterada, nessa conformidade, a material de facto provada que está em desacordo com tal real situação.
23. Afastada, portanto, que tem de ser a decisão no sentido da propriedade de águas dos Autores existentes no prédio dos Réus impõe-se discorrer sobre a existência de um eventual direito de servidão de água, a que os Autores aludem e reconhecem na sua P.I., que não de um direito de propriedade, já que não está de modo algum, no caso sub judice, em causa a possibilidade de um amplo aproveitamento de água no prédio dos Autores para qualquer fim,
24. Mas mesmo configurando que o pedido perseguido, em suma, na ação é tão só o reconhecimento de servidão de água, ela é delineada pelos Autores como tendo profundamente a usucapião e, não, por qualquer outro meio máxime contratual ou legal.
25. E, assim sendo, conclui-se de modo inelutável que tal servidão, nos termos do Art. 1569º, n.º1, al. b) e n.º2 do C. Civ., se encontra extinta pelo não uso durante 20 anos e, por se demonstrar á saciedade a desnecessidade da água dos prédios dos Autores para o alegado prédio dominante dos Réus, por tal servidão ter deixado de ter qualquer utilidade para os prédios dos Autores - , atente-se, no facto provado n.º 13 da sentença ora recorrida.
26. Sendo, assim, de decidir a presente ação não em sede do direito de propriedade da água dos Autores, como erroneamente se decidiu na sentença ora recorrida, mas em sede de direito de servidão de água, tal como peticionado pelos próprios Autores.
27. E no que concerne às águas existentes no prédio dos Réus anote-se que, naquele referido prédio, haviam várias águas, provenientes de diversas captações (minas e poços), as quais, os Autores não sabem especificar, nem concretizar, aliás, na petição inicial daqueles, no seu artigo 17º fazem a seguinte afirmação/confissão: “adquiriu as águas provenientes de uma nascente”.
28. E a este propósito se dirá que o documento – escritura pública – referenciado, no n.º 11 dos Factos Provados da sentença, elaborado em 26.10.1906, também é perfeitamente difuso, pois da leitura de tal documento concluímos que, para além dos artigos matriciais não terem correspondência, e não se diga, que o atual prédio dos Réus corresponde a tal escritura, pois os Autores não cuidaram de realizar o trato sucessivo dos artigos matriciais, também não têm a mesma denominação.
29. Já que o prédio rústico descrito naquela “escritura de águas” junto aos autos é denominado de “Campo do …”, ao passo que o prédio rústico que os Réus adquiriram era denominado de “Campos ... ou Campos do ...”, o que significa que, os artigos matriciais até podiam ter sofrido alterações, mas a denominação dos prédios não.
30. Logo, não há dúvidas de que a escritura, datada de 26.10.1907, nada tem que ver com as águas/nascentes/poços/ minas existentes no prédio rústico dos Réus.
31. Motivo pelo qual, o Facto provado n.º 11 da Sentença recorrida deve ser alterado para Facto Não Provado.
32. Sendo de acrescentar, também, a este propósito que não pode ser considerado provado que os Autores, por si e antepossuidores, agiram na convicção de exercerem direito de propriedade sobre a água referida na sua petição inicial, quando eles próprios Autores referenciam, numa verdadeira miscelânea, a um tempo direito de propriedade e direito de servidão,
33. E como bem, para que exista usucapião, a que alude o Art. 1287º do C. Civ., não basta uma posse, meramente, precária, mas sim uma posse “stricto sensu”,
34. Ou seja, a posse conducente à existência de um direito de propriedade é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa, e o animus, elemento psicológico que se traduz na intenção de atuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente.
35. Ora, no caso presente, não pode ser considerada provada a existência do elemento corpus e, muito menos, do elemento de quem exerce direito de propriedade sobre a água referida, pelos Autores, na petição inicial.
36. O que significa que se tem de revogar, como V/Exas. Venerandos Desembargadores, com toda a certeza farão, a sentença recorrida, designadamente o constante do n.º 12 dos Factos Provados.
37. Sendo de salientar, nessa conformidade, que na propriedade dos Réus existe, efetivamente, uma mina de água, a qual está registada a favor dos Réus, (vide Doc. n.º 2 junto com a contestação).
38. Anote-se também que nenhum averbamento sobre direitos de captação, represamento e condução das mencionadas águas existe junto da Conservatória do Registo Predial quanto ao artigo .../..., em causa, nestes autos (vide Doc. n.º 3)
39. O que impõe a conclusão de que os Autores, com a presente ação, pretendem violar o direito de propriedade dos Réus, constitucionalmente consagrado no Art. 62º da C.R.P.,
40. Como bem se sabe a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não seja desintegrado do domínio, por lei ou negócio jurídico - art. 1344º, nº1 do Cód. Civil.
41. O direito de propriedade é, por princípio, absoluto e o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem,
42. Gozo que, no que tange aos imóveis, se estende, tanto ao espaço aéreo correspondente à superfície, como ao subsolo.
43. O direito de propriedade compreende, pois, os poderes de usar, dispor, derivar e explorar as águas do prédio (Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, vol. II, págs. 9 e segs. e 66 e segs.).
44. Assim, "enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respetivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc. Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis " (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 196).
45. Violação essa do Art. 62º da C.R.P., que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
46. Pretendendo os Autores, também, com essa conduta dolosa devassar a vida privada dos Réus, através da sua entrada discricionária e a seu bel prazer na propriedade dos Réus, quando eles já não têm, manifestamente, necessidade nem interesse, da água que referem.
47. É verdade que as limitações resultantes dos direitos de terceiros existem, como a própria expressão indica, sempre que alguém haja adquirido, por justo título, um direito ao uso da água, e nos termos do n.º 1 do Art. 1390º do Cód. Civ. considera-se justo título de aquisição da água das fontes e nascentes – e também subterrâneas (Art. 1395º, n.º 1 CC) – conforme os casos, qualquer meio legitimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.
48. Porém, as consequências jurídicas são diversas consoante se trate de direito de propriedade ou de servidão.
49. Aquele é um direito de conteúdo pleno, como já se referiu; o outro sofre de algumas limitações, decorrente de conceitos de inseparabilidade, indivisibilidade, atipicidade do conteúdo e ligação objetiva da servidão a prédios, que são caraterísticas de tal género de direito (Mota Pinto, ob. Cit., págs.309/319).
50. De onde se conclui que entre o direito de propriedade e o de servidão existe uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão.
51. No primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento ao serviço de qualquer utilidade que a água possa prestar,
52. Ao passo que o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efetuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.
53. Ora, no caso sub judice, dúvidas não há de que estamos, em primeiro lugar, perante uma servidão de águas e, em segundo lugar as “necessidades” do prédio dominante, há mais de 20 anos que deixaram de existir.
54. Sendo disso prova cabal a afirmação feita na decisão recorrida quanto às conclusões extraídas pelo julgador de 1ª instância, face à prova produzida, no sentido de que a água deixou de correr para o seu prédio, no tubo em causa, porque alguma coisa obstaculiza essa passagem, bem podendo ser a existência de raposos ou entupimento por acumulação de matéria orgânica,
55. O que bem revela, contrariamente, pelo Julgador da 1ª Instância que tendo ficado, pelo menos há 20 anos, o lagar e o alambique, inativos e eram esses usos em exclusivo da água, que corria, os Autores já não tinham qualquer direito de servidão de águas para efeitos domésticos, porque se estivessem convencidos de que tinham esse direito não deixariam de diligenciar, ou atuar, no sentido de desimpedir o cano,
56. Não deixando que essa situação se mantivesse há mais de 20 anos, sem terem efetuado uma simples interpelação aos Réus para estes facultarem a entrada no seu prédio para desentupir o tubo e evitar a despesa que fizeram em abrir um furo de água na propriedade deles Autores.
57. Há que salientar, nesta sede, que a sentença recorrida padece, assim, da nulidade prevista no Art. 615º, n.º 1 al. c) do C.P.C. – fundamentos em oposição com a decisão recorrida.
58. Nulidade essa que, expressamente, se invoca para evitar que se mantenha a iniquidade que tal decisão contém.
59. Já que, este explana na sentença recorrida certos fundamentos que apontam para uma determinada conclusão, como seria lógico e expectável:
60. Os Autores, há pelos menos, 20 anos que têm o alambique e o lagar de azeite inativos,
61. Têm águas provenientes de outras nascentes – vide depoimento do Perito:
Perito (00:29) “Ora bem nós ali temos várias águas Sr. Dr. temos águas de Mina e temos águas de Ribeiro, e depois de uma forma indireta temos águas de uma poça de, portanto, para o acesso localizada na via pública, temos águas de um fontanário localizado também numa via pública e, essas duas últimas desaguam num Ribeiro, Ribeiro, esse, que de baixo ali de uma pequena ponte assim se pode dizer debaixo da estrada municipal há uma pequena derivação que permite passar parte dessa água para o terreno dos autores e outra seguir o curso normal do Ribeiro, isso, no tocante a águas de provenientes de um Ribeiro depois (…)aqui depois temos águas provenientes de uma mina, essa mina está localizada no terreno dos réus, terreno, esse, localizada uma cota superior à estrada municipal, que, por sua vez, está localizado a uma cota superior ao terreno dos autores, portanto nessa mina localizada no terreno dos réus verifica-se a presença de água, bem como o seu escorrimento, se assim se pode dizer, essa mina é uma é uma mina portanto como paredes de pedra de teto de pedra em que na parte mais profunda quando eu lá entrei tem uma taça ou tem um depósito de recolha de águas, portanto, são as duas águas que eu consegui identificar neste relatório pericial.”
Juiz (02:37) “Mas é água nascerá e não é só represada aí?”
Perito (02:39) “Água, ela é represada de facto nesse términos da mina, mas a ELA VIRÁ ALGURES MAIS A MONTANTE DESSE MESMO LOCAL QUE NÃO QUE NÃO CONSIGO, PORTANTO, DIGAMOS, QUE NÃO ERA ÂMBITO DESTA PERÍCIA IDENTIFICAR O SÍTIO DE ONDE ELA VINHA.”
62. Há algo no tubo que passa subterraneamente pelo prédio dos Réus que obstaculiza a passagem da água para o prédio dos Réus, (seja corte do tubo, como alegaram, mas não provaram, os AA, seja a existência de raposos, ou outra causa não especificada – entupimento por acumulação de matéria orgânica, etc).(negrito e sublinhado nosso)
63. Ao invés disso, optou, injustamente, o tribunal a quo, por fazer caridade e premiar os Autores não só com a atribuição de um direito de água, direito esse fundado em usucapião,
64. Pois, documentalmente, já demonstramos que não há qualquer correspondência entre a escritura de 1097 e o atual prédio dos Réus,
65. Mas também com um usucapião, quando na sentença recorrida, nos Factos Provados n.º 13, afirma que há mais de 20 anos que não é a dita água utilizada para os fins a que se destinava.
66. Atropelando, não só as disposições do Cód. Civil – art. 1569º, n. º2 Cód. Civil, na medida em que tal água (dos Réus) é desnecessária para os Autores, uma vez que, SIC Perito:”. Ora bem nós ali temos várias águas Sr. Dr. temos águas de Mina e temos águas de Ribeiro, e depois de uma forma indireta temos águas de uma poça de, portanto, para o acesso localizada na via pública, temos águas de um fontanário localizado também numa via pública e, essas duas últimas desaguam num Ribeiro (…)” – os Autores têm várias águas que distam para a propriedade deles,
67. E o alambique e o lagar de azeite estão inativos, há, pelo menos, 20 anos,
68. Mas também, normas constitucionais - Art. 62º da C.R.P. – uma vez que sem nenhuma prova produzida nesse sentido, e sem documentação alguma, o Tribunal a quo onerou a propriedade dos Recorrentes (direito de propriedade) com uma servidão de águas a favor dos Autores/Recorridos, quando estes não necessidade da água.
69. Dai a alegada nulidade da sentença, por os fundamentos da mesma estarem em oposição com a decisão final.
70. E, por isso, a sentença recorrida tem de ser revogada, nessa medida, até porque o Julgador decidiu, de modo, contrário, como se no mundo não existissem facto, mas apenas interpretações de factos.
71. Já que, no caso presente, a verdade mostra-se ou revela-se, no abandono pelos Autores do uso da água, a partir de 1991, data em que os Réus, por escritura pública de compra e venda, datada de 1991, adquiriram o prédio rústico, com a descrição n.º .../..., nela não contendo nenhum averbamento sobre servidão de captação, represamento e condução de águas.
72. Assim como, nunca por nunca, os Autores interpelaram ou até entraram no prédio dos Réus com relação as ditas águas.
73. E, por fim, se acrescentará que o Julgador da 1ª instância fez incorreta avaliação da prova produzida, atendo-se, apenas a uma visão atomista dela e, como é bem sabido, essa avaliação tem de ser holista (isto é, o todo tem propriedades que faltam aos seus elementos constitutivos), de modo a que as provas se reforçam mutuamente. (vide, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Prova e Convicção, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, pág.35-36)
74. Em suma, o que importa é ter na devida consideração as diversas provas com vista a obter através dela uma representação completa da realidade,
75. O que o Julgador da 1ª Instância não fez ignorando, completamente, o já alegado e provado abandono da água, há pelo menos, 20 anos, por desnecessidade da servidão de águas para os específicos usos a que se destinavam.

Concluem pela procedência do recurso, julgando não provado o facto provado n.º 11 com reapreciação da prova gravada, designadamente, do depoimento das testemunhas A. C., prestado ao intervalo de tempo 00:19 até 05:54 e 06:48 até 07:35, assim como, nas declarações de parte da Ré M. P., prestado ao intervalo de tempo 00:24 até 08:37 e ainda no depoimento da testemunha S. F., prestado ao intervalo de tempo 00:48 até 07:38 e M. L. , prestado ao intervalo de tempo 01:22 até 08:52 e, ainda, que se julgue procedente a nulidade invocada, prevista no Art. 615º, n.º1 al. c) do C.P.C. – uma vez que os fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão recorrida.

Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
**
II – FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1.
Os AA. são proprietários de um prédio urbano denominado “Casa de três andares, dependência e quintal” destinado a habitação, sito no Lugar da “…”, freguesia de ..., Póvoa de Lanhoso, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Lanhoso sob o nº … da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia de ..., concelho de Póvoa de Lanhoso.
2.
No prédio urbano anteriormente descrito, mostra-se edificada uma casa de habitação composta de 3 andares, r/ch com 3 divisões, 1º andar com 11 divisões e 6 divisões no 2º andar, com mais de 80 anos.
3.
O referido prédio adveio à titularidade dos AA., por escritura publica de doação dos pais do A. marido, F. C. e O. G., e de sua tia, M. I., datada de 24 de Agosto de 2005.
4.
Os AA., por si e antepossuidores, encontram-se na posse do referido prédio há mais de 10 (dez), 20 (vinte), 50 (cinquenta) anos, cultivando e recolhendo os produtos do quintal/dependência, habitando e fazendo melhorias no prédio, colhendo todas as utilidades que os mesmos proporcionam, e suportando todos os encargos inerentes, contribuições e impostos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de quem exercita direito de propriedade.
5.
Os RR. são proprietários de um prédio rústico, denominado “Campos ... ou Campos do ...”, sito na freguesia de ..., adquirido por escritura pública de compra e venda, datada de 22 de Maio de 1991.
6.
Neste prédio, os RR. edificaram, no ano de 1992 - Processo de Licenciamento nº ../92-A, apresentado na Câmara Municipal da … - uma casa para habitação, composta de cave com uma divisão para garagem e uma despensa e logradouro; r/ch com 5 divisões, cozinha e duas casas de banho, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho, sob o nº …, da mesma freguesia de ... (…), nela não constando qualquer averbamento relativo servidões de captação, represamento e condução de águas.
7.
Os RR. estão, há mais de 20 (vinte) anos, por si e antecessores, na posse pública, pacífica e contínua do referido prédio, roçando o mato, cultivando a terra e conservando o imóvel que nele edificaram, bem como arcando com as despesas inerentes à sua condição de proprietários, à vista de todas as pessoas, com inteira publicidade, e sem oposição de quem quer que seja, dia após dia, sem interrupção ou hiato, com ânimo, e de boa-fé, de quem exerce os direitos inerentes à propriedade plena, com a convicção de que o referido prédio lhes pertence, ou seja, de que são seus únicos e exclusivos proprietários.
8.
No interior do referido prédio dos RR. e próxima da respetiva extrema Norte, e a cerca de 200 metros da casa dos AA., existe uma mina para captação de águas (mina essa com uma porta em ferro, com fechadura) e capeada com pedra ao nível das paredes e tecto, sem torneira, numa extensão aproximada de 7/8 metros, existindo no seu limite mais a norte, a montante, um pequeno “depósito” de represamento da água captada, sendo a parede que faz represa aparentemente executada em pedra.
9.
Nessa mina existe um tubo condutor de água em ferro com diâmetro aproximado de 1,5 polegadas, visível numa extensão aproximada de 3,5 metros, com origem no referido “depósito” de represamento de águas, partindo de uma meia altura da parede de represamento, desenvolvendo-se no sentido norte/sul, mas precisamente no sentido noroeste/sudeste, orientação/sentido da mina, sendo que após os referidos 3,5 metros o mesmo tubo segue enterrado e com a orientação da porta da mina, dela saindo e evoluindo, de forma subterrânea, pelo referido prédio dos RR., passando, a dada altura, da sua extensão, a ser em PVC, com um diâmetro de 2 polegadas, atravessando subterraneamente o caminho público, e entrando, subterraneamente, no aludido prédio dos AA.; uma vez no prédio dos AA. esse tubo apresenta, pelo menos, um T de derivação de água, T esse a cerca de 5,50 metros do limite norte do prédio dos AA., limite esse que confina com a via pública, e dista cerca de 7,70 metros da extrema norte/nascente de um antigo lagar existente no prédio dos AA. e dista cerca de 10,60 metros da extrema norte/poente desse mesmo antigo lagar, sendo que desse referido T parte um tubo em direção a esse antigo lagar, e o outro continua pelo prédio dos AA. servindo-o de água para fins domésticos (alimentação, higiene e limpeza) e agrícolas (nomeadamente de rega).
10.
Nessa mina também se verifica a existência de três tubos de mangueira que partem da parte superior da parede de represamento da água captada, se prolonga ao longo dos 7/8 metros de extensão da mesma até à porta da referida mina e descarregando a água num pequeno canalete no prédio dos RR., água essa que está a ser conduzida para um pequeno ribeiro localizado na extrema norte da propriedade dos RR.
11.
A referida água represada na referida mina foi objeto de escritura publica, datada de 26 de outubro de 1907, outorgada entre J. J. (bisavô do A. marido) e A. A., M. A. e J. V..
12.
Os AA., por si e antepossuidores, utilizam a referida água assim captada, represada e conduzida para o prédio urbano identificado supra quer nos gastos domésticos quer para fins agrícolas, rega nomeadamente, há mais de 10 (dez), 20 (vinte), 50 (cinquenta) anos, acedendo à referida mina e procedendo à sua limpeza, manutenção e conservação, bem como dos demais artefactos destinados à sua condução, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de quem exerce direito de propriedade sobre referida água e direito de proceder à sua captação, represamento e condução.
13.
A referida água abasteceu, ainda, nos termos descritos, durante dezenas de anos um lagar de azeite, com cinco prensas hidráulicas, e um alambique, com quatro colunas de destilação e caldeira a vapor, o que já não acontece há, pelo menos, 20 anos.
14.
Em data que não se apurou, mas cerca do ano de 2016, os RR. impediram o acesso dos AA. à referida mina, situação que se mantém até hoje, sendo que, também por volta dessa altura, a água da referida mina deixou de afluir ao prédio urbano dos AA., estando eles privados, desde essa altura, da fruição da referida água nos termos descritos supra, nomeadamente para fins domésticos e agrícolas (nomeadamente, rega), o que lhes causou e causa desgosto e tristeza.
15.
O referido prédio dos AA. é também servido por águas sobrantes de um fontanário público, por águas sobrantes de uma poça e por água de um ribeiro (passando este por baixo da estrada municipal), sendo que os excedentes da água do fontanário público transmitem-se para a referida poça que, por sua vez, e por se encontrar numa cota superior, essas águas se transmitem para o ribeiro, misturando-se aí todas, sendo que o ribeiro ao atravessar a estrada municipal no seu nível inferior (existe uma pequena ponte) apresenta uma bifurcação/derivação que permite conduzir as águas do referido ribeiro para o prédio dos AA. ou as mesmas circularem no sentido do ribeiro propriamente dito, verificando-se que a orientação das águas é feita por um separador que corta o sentido das águas ou para o prédio dos AA. ou para a “continuação do ribeiro”; além disso, os AA. em data que não se apurou e por razões que não se conseguiu determinar, nomeadamente se relacionadas ou não com a privação da aludida água, realizaram um furo de água no seu prédio urbano.
16.
Os RR. a 25.2.2010, requereram a emissão de título de utilização de recursos hídricos para captação de água subterrânea.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
Há que ter presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).
Nos recursos apreciam-se questões e não razões.

Decidindo:

Se bem interpretamos as alegações dos RR, pretendem que se proceda à reapreciação da matéria de facto vertida na sentença recorrida sob os números 11 e 12 (no términus desse articulado acaba-se por referir tão somente o nº11, enquanto no nº36 se invoca também o nº12), cujo teor é o seguinte:
(11) A referida água represada na referida mina foi objeto de escritura publica, datada de 26 de outubro de 1907, outorgada entre J. J. (bisavô do A. marido) e A. A., M. A. e J. V..
(12) Os AA., por si e antepossuidores, utilizam a referida água assim captada, represada e conduzida para o prédio urbano identificado supra quer nos gastos domésticos quer para fins agrícolas, rega nomeadamente, há mais de 10 (dez), 20 (vinte), 50 (cinquenta) anos, acedendo à referida mina e procedendo à sua limpeza, manutenção e conservação, bem como dos demais artefactos destinados à sua condução, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de quem exerce direito de propriedade sobre referida água e direito de proceder à sua captação, represamento e condução.

Vejamos, agora, os requisitos legais a que deve obedecer a reapreciação da prova por parte do Tribunal da Relação.
No quadro da modificabilidade da matéria de facto, desenha o artigo 662º, nº1, do CPC, que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Concomitantemente, o artigo 640º do mesmo diploma, impõe àquele que impugna a matéria de facto o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida.

Assim, diz o nº1 de tal normativo que o recorrente deve, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acrescenta-se, depois, no seu nº2 que quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
É, hoje, vastíssima a jurisprudência e a doutrina sobre os requisitos formais que se devem mostrar observados para que a referida reapreciação possa ocorrer.
E, no seu denominador comum, colhe-se, desde logo, por um lado, a inadmissibilidade das impugnações em bloco e, por outro, a improcedência da mera enunciação de prova aparentemente dissonante, sem qualquer juízo crítico sobre a sua valoração em confronto com a que presidiu à do tribunal recorrido.
A propósito do primeiro aspecto, pode ler-se no acórdão do S.T.J., de 20.12.2017 que «A alínea b), do nº 1, do artº 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos».
Já relativamente ao segundo dos aspectos, reclama-se «da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada» - Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, Ana Luísa de Passos Martins da Silva Geraldes, in http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf.
Ou, dito de outro modo, como se escreveu no acórdão desta Relação, de 28.06.2018, Procº 123/11.0TBCBT.G1, relatado por desembargador que aqui intervém como 1º adjunto, «Estas exigências impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto são decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso.
Mas elas não são alheias também ao princípio do contraditório – elas destinam-se a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente.
…em ordem ao cumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640, do C.P.C., deve o recorrente indicar, circunstanciadamente, os concretos pontos de prova relevantes em relação a cada um dos factos impugnados – tal indicação tem de ser feita individualmente para cada um dos pontos da matéria de facto impugnada.» - sublinhado nosso.

Aqui chegados, impõe-se, lamentavelmente, afirmar que os recorrentes não cumpriram as exigências legais que acima ficaram enunciadas.
Lidas as doutas alegações, verifica-se que os apelantes reproduzem extensos depoimentos prestados em audiência, mas sem que dessa reprodução se recolha, na exigida análise crítica, porque forma se mostra infirmado o juízo valorativo tido como erróneo pelos recorrentes.
Mesmo relativamente à matéria do nº 11, não se recolhe das alegações prova e análise crítica sobre o erro de julgamento, não se bastando uma mera referência à disparidade de denominações dos prédios, tanto mais quando nos deparamos com documentos com mais de um século.
Reafirma-se que uma mera enunciação probatória de teor dissonante não satisfaz as exigências legais que nos conduzam à demonstração de que a resposta deveria ser diferente.
Ora, das doutas alegações não se colhe a exigida actividade crítica de rebate do pensamento e valoração da prova feita na decisão em crise, não se bastando, como se disse, a colação de depoimentos díspares do sentido decidido, que sempre ocorrem nos processos judiciais.
Em consequência, ao abrigo do disposto no artigo 640º, nº1, do CPC, não se apreciará a pretendida alteração da matéria de facto que, assim, se mantem inalterada.

Quanto ao direito:

Os AA vieram a juízo pretendendo que lhes seja reconhecido um direito de propriedade sobre águas que dizem ter sido adquiridas por seus antepassados, águas essas que são captadas através de uma mina situada no prédio dos RR, sobre o qual impende, por isso, uma servidão de captação, represamento e condução a favor do prédio dos primeiros.
Com relevo para o pedido formulado encontra-se provado que no interior do prédio dos RR. e próxima da respetiva extrema Norte, e a cerca de 200 metros da casa dos AA., existe uma mina para captação de águas (mina essa com uma porta em ferro, com fechadura) e capeada com pedra ao nível das paredes e tecto, sem torneira, numa extensão aproximada de 7/8 metros, existindo no seu limite mais a norte, a montante, um pequeno “depósito” de represamento da água captada, sendo a parede que faz represa aparentemente executada em pedra.
Mais se provou que nessa mina existe um tubo condutor de água em ferro com diâmetro aproximado de 1,5 polegadas, visível numa extensão aproximada de 3,5 metros, com origem no referido “depósito” de represamento de águas, partindo de uma meia altura da parede de represamento, desenvolvendo-se no sentido norte/sul, mas precisamente no sentido noroeste/sudeste, orientação/sentido da mina, sendo que após os referidos 3,5 metros o mesmo tubo segue enterrado e com a orientação da porta da mina, dela saindo e evoluindo, de forma subterrânea, pelo referido prédio dos RR., passando, a dada altura, da sua extensão, a ser em PVC, com um diâmetro de 2 polegadas, atravessando subterraneamente o caminho público, e entrando, subterraneamente, no aludido prédio dos AA.; uma vez no prédio dos AA. esse tubo apresenta, pelo menos, um T de derivação de água, T esse a cerca de 5,50 metros do limite norte do prédio dos AA., limite esse que confina com a via pública, e dista cerca de 7,70 metros da extrema norte/nascente de um antigo lagar existente no prédio dos AA. e dista cerca de 10,60 metros da extrema norte/poente desse mesmo antigo lagar, sendo que desse referido T parte um tubo em direção a esse antigo lagar, e o outro continua pelo prédio dos AA. servindo-o de água para fins domésticos (alimentação, higiene e limpeza) e agrícolas (nomeadamente de rega).
Além disso, essa água represada em tal mina foi objeto de escritura publica, datada de 26 de outubro de 1907, outorgada entre J. J. (bisavô do A. marido) e A. A., M. A. e J. V..
Como sabemos, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei - artº 1316º do Código Civil.
A favor dos AA inexiste presunção da titularidade do direito, pelo que, invocando uma aquisição contratual, através de compra, por parte dos seus antepassados, teriam de demonstrar a sua existência na esfera do vendedor, que não ocorreu.
Todavia, não estão os apelados impedidos de fazer prova de uma prescrição aquisitiva, ou usucapião, ao abrigo do artº 1287º do CC, que estatui que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
E, indubitavelmente, tal prova foi feita, porquanto os AA., por si e antepossuidores, utilizam a referida água assim captada, represada e conduzida para o prédio urbano identificado supra quer nos gastos domésticos quer para fins agrícolas, rega nomeadamente, há mais de 10 (dez), 20 (vinte), 50 (cinquenta) anos, acedendo à referida mina e procedendo à sua limpeza, manutenção e conservação, bem como dos demais artefactos destinados à sua condução, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de quem exerce direito de propriedade sobre referida água e direito de proceder à sua captação, represamento e condução.
Num breve parêntesis, não esqueçamos que a resposta à matéria de facto circunscreveu o fim de abastecimento aos lagares de azeite e alambique, consignando que há pelo menos 20 anos que tal água deixou de abastecer os lagares de azeite e um alambique, mantendo o uso doméstico e agrícola.
Porém, para essa aquisição da água de fonte ou nascente em prédio alheio, por usucapião, exige-se, a par dos requisitos gerais da posse, que nesse prédio tenham sido feitas obras de captação e posse da mesma água e que essas obras sejam visíveis e permanentes – artº 1390º, nº2, do Código Civil.
Com esta exigência legal de construção de obras no prédio onde exista a fonte ou nascente teve-se em vista excluir da usucapião as situações de simples fruição das águas pelo proprietário do prédio inferior (artigo 1391 do Código Civil).
Ora, como é sabido, a expressão "construção de obras", utilizada no nº2 do artº 1390º significa que elas têm de derivar de facto humano, não sendo consideradas, para efeitos de usucapião de águas, as obras que resultam do próprio escoamento.
Como escreve Guilherme Moreira, in “As Águas no Direito Civil Português”, II/§37 (apêndice), “o direito de fruição da água que brota num prédio é, compreendido como está no direito de propriedade, facultativo, podendo consequentemente ser exercido ou não pelo proprietário, sem que do seu não exercício resulte a perda desse direito. O facto, pois, de o proprietário abandonar essa água deixando-a seguir o seu curso natural e o aproveitamento, pelos proprietários vizinhos, da água assim abandonada, representam, em princípio, um acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente, não constituindo o aproveitamento por terceiros, por mais largo que seja o prazo durante o qual ele se der, posse de que resulte ou possa resultar o direito à água”.
No nosso caso – reproduziu-se já - na mina que se encontra no prédio dos RR existe um tubo condutor de água, visível numa extensão aproximada de 3,5 metros, com origem no referido “depósito” de represamento de águas, tubo esse que segue depois enterrado, saindo da mina e evoluindo pelo referido prédio dos RR, atravessando subterraneamente o caminho público e entrando, subterraneamente, no aludido prédio dos AA.
Do cotejo das normas com os factos apurados, pode afirmar-se, então, que os AA adquiriram as águas por usucapião.
O direito de propriedade é, por sua própria natureza, imprescritível (artº 298º do CC), não se extinguindo pelo não uso, dado que o proprietário goza também do poder de inactividade sobre a coisa.
Ainda assim, no nosso caso, não vem provado que os AA deixaram de fazer uso dessa água, salvo no que concerne à destinada ao alambique e lagares de azeite.
Para além deste direito de propriedade sobre as águas, os AA também peticionam o reconhecimento de servidões de captação de águas, represamento e condução, com as características, natureza e conteúdo que ficaram identificados nos autos, que impendem sobre o prédio dos RR.
E, tal como consignou o Sr. Juiz a quo, em afirmações que subscrevemos, «não é menos certo que com a mina, depósito, tubo em ferro exterior e, depois, subterrâneo (e, a dada altura, em PVC), se consolidou também na esfera jurídica dos AA. os direitos de captação (pois há obra de captação), represamento (há obra de represamento) e condução (há tubagem visível e tubagem subterrânea) dessa água, sendo seguro que os AA. adquiriram (tal como a água) tais direitos também por usucapião, como é evidente (outra solução não faria sentido, uma vez que a posse de água com obras visíveis e permanentes em prédio de terceiro tem sempre associada a sua captação, represamento e condução nesse - e por esse - prédio de terceiro que, nessa medida, passa a ser equiparado a um “prédio serviente” no sentido estrito de onerado e, nessa medida, comprimido o respetivo direito de propriedade sobre ele, no caso, o direito de propriedade dos RR)».
O direito de servidão é um direito real limitado de gozo cujo conteúdo se traduz na possibilidade de gozar de certas utilidades de um prédio em benefício de outro, sendo os respectivos direitos de propriedade titulados por pessoas diferentes – artº 1543º.
As fontes do direito de servidão são o contrato, o testamento, a usucapião, a destinação de pai de família e a própria lei – artº 1547º.
O artº 1548º dispõe que as servidões não aparentes – considerando-se como tal as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes – não podem ser constituídas por usucapião, o que bem se compreende porque a aquisição originária exige posse com determinadas características, desde logo a publicidade, o mesmo é dizer que apenas com sinais visíveis e permanentes pode o proprietário do prédio serviente deixar de estar na ignorância da prática de actos sobre o seu prédio e só assim lhe podem ser legitimamente oponíveis as consequências da sua inércia.
Estando provado, como está, que a referida água é captada, represada e conduzida para o prédio dos AA há mais de 50 anos, nas condições e características descritas nos autos, e que os apelados acedem à mina procedendo à sua limpeza, manutenção e conservação, bem como dos demais artefactos destinados à sua condução, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de quem exerce direito de propriedade sobre referida água e direito de proceder à sua captação, represamento e condução, mais não resta do que concluir que se mostra constituída, por usucapião a servidão nos termos peticionados.
Não há, como pretendem os recorrentes, uma servidão de águas, mas um direito de propriedade sobre águas e uma servidão de captação, represa e condução de tais águas.
E a tanto não obstaculiza a interrupção do curso de água para o prédio dos AA, por causa desconhecida, como se consignou na 1ª instância, mas que não afasta o direito daqueles de praticar os actos materiais necessários à remoção da respectiva causa.
Quanto à invocada violação do direto constitucional de propriedade, previsto no artº 62º da CRP, que, na versão dos RR, os AA pretendem com a presente acção, cumpre, desde logo, realçar que a inconstitucionalidade se reporta a normas jurídicas e não a demandas ou decisões judiciais.
Como se pode ler no acórdão do TC 00003786, Acordão: 93-116-1, Processo: 92-0503ª, de 14.01.1993, in www.dgsi.pt «a fiscalização da constitucionalidade acha-se limitada aos os actos judiciais em si mesmos considerados, do que decorre que os recursos de constitucionalidade só podem ter objecto "normas" e não decisões dos tribunais».
Por outro lado, a existência de uma servidão ou de um direito de propriedade de águas em prédio a favor de um terceiro não belisca, por si, tal direito, pois que, como escreve Guilherme Moreira, in “As Águas no Direito Civil Português”, II/§37 (apêndice), “o direito de fruição da água que brota num prédio é, compreendido como está no direito de propriedade, facultativo, podendo consequentemente ser exercido ou não pelo proprietário”.
Improcede, assim, tal arguição.
Imputa-se à sentença recorrida o vício de nulidade previsto no artº 615º, nº1, c), do CPC, sustentado, se bem alcançamos, na circunstância de ter sido desconsiderada de não ser usada a agua há mais de 20 anos, uma vez que o lagar e o alambique viram o seu uso terminado a esse tempo.
Diga-se, a este propósito, que apenas o términus deste uso ficou provado, mas já não para os demais fins, não estando apurado desde quando há obstrução do tubo que conduz a água para o prédio dos AA.
De todo o modo, ocorre nulidade de sentença?

As causas de nulidade das sentenças e dos despachos, (ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC. Assim:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Como pode ler-se no Acórdão do Tribunal desta Relação de Guimarães, de 17/12/2018, Procº 1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em www.dgsi.pt:
“Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).
Mas isso não deve, nem pode, ser confundido com o chamado erro de julgamento ou error in iudicando que ocorre quando o juiz decide mal, aplicando ou interpretando erradamente o direito, ou apreciando erradamente os factos, nas palavras do STJ, «um desvio da realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma» – cf. acórdão de 30.09.2010, procº 341/08.9TCGMR.G1.S2.
Ora, nas suas alegações, o que verdadeiramente invocam os apelantes é um erro de julgamento, que não preenche a previsão do preceito que trazem à liça.
Improcede a arguida nulidade.

Finalmente, o também invocado abuso do direito:
Esta figura surge, nos autos, pela primeira vez já na apelação.
Sabemos que os recursos não se destinam a apreciar questões novas.
Todavia, é hoje jurisprudência pacífica de que, face ao estatuído, no artigo 608, nº 2, do Código de Processo Civil - o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – o tribunal de recurso não está impedido de conhecer desta figura jurídica.
No sentido de que o abuso do direito poder ser conhecido em sede de recurso sem que antes a questão tenha sido colocada perante o tribunal recorrido, veja-se o acórdão do STJ de 04.04.2002 in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0e9d27687befc4ab80256c6100441cc8?OpenDocument.
Tendo os recorrentes invocado a figura nas suas alegações, a recorrida poderia ter respondido nas suas contra-alegações se assim o entendesse, pelo que não há que observar o disposto no artigo 3º do citado diploma.
Analisemos, então.
As normas jurídicas são gerais e abstractas, destinando-se a disciplinar relações-tipo. Assim, pode acontecer que determinado preceito, embora justo para as situações normais, venha, quando aplicado a determinada situação concreta, a mostrar-se injusto em virtude das circunstâncias especiais que concorram. E, para evitar tais consequências, houve que criar um modo de evitar essa aplicação injusta, assim surgindo a figura do abuso de direito.
Tal abuso ocorrerá quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em termos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade (Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., 58 e 59).
Dispõe, por isso, o artº 334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tipifica-se tal abuso de direito na utilização do poder contido e concedido na estrutura do direito, substantivo ou processual, com vista e para a prossecução de um interesse, mas que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido – Castanheira Neves – Questão de facto – Questão de direito, - I, pág. 513 e segts..
Para Galvão Telles, Obrigações, 3ª ed., pág. 58, para que exista abuso de direito será necessário que ele seja manifesto, ou seja, «Que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos neste artigo. O abuso de direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito de realizar».
«A concepção adoptada de abuso de direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artº 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração desses factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito» Cf. Código Civil Anotado, P.Lima e A.Varela.
Aqui chegados, cremos poder afirmar que a invocação do abuso de direito, feita nas alegações, é formulada de modo obscuro e se nos depara como sustentada numa hipotética desnecessidade da água.
Ora, não podendo esquecer-nos que a acção se radica num direito de propriedade de águas, a necessidade quanto ao seu uso, ou a falta dessa mesma necessidade, nunca nos conduziria a um juízo de exorbitação do seu fim, atento o que acima se disse (o direito de propriedade é imprescritível, não se extinguindo pelo não uso, dado que o proprietário goza também do poder de inactividade sobre a coisa) quanto ao conteúdo desse mesmo direito real.
Não se apura, nem sequer se indicia, que, no exercício do seu direito, os AA excedam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Não há, por isso, abuso.

Em conclusão final, cumpre dizer que, não se retirando do reexame dos autos nenhuma censura à sentença proferida, resta confirmar o decidido.

III – DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
*
Guimarães, 03 de Novembro de 2022
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora – Raquel Rego;
1.º Adjunto – Jorge Teixeira;
2.º Adjunto – José Manuel Flores.