Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2647/06.2TAGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: PEDIDO CÍVEL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I – O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre que ser fundado na prática de um crime.
II – O poder de cognição do tribunal criminal é limitado pelo objeto do processo, que é delineado pelos factos e sujeitos referidos na acusação e/ou pronúncia se a houver. Salvo a possibilidade de alteração prevista na lei adjetiva, na sentença penal o tribunal só se pode pronunciar sobre os factos e as pessoas referidos naquelas peças processuais.
II – O tribunal penal é incompetente em razão da matéria para se pronunciar sobre um pedido cível fundamentado na inobservância pelos demandados (não arguidos) dos requisitos de que depende a validade de um contrato de concessão de crédito, se os demandados não tiverem tido qualquer participação na autoria dos factos relatados na acusação que sustentam a imputação ao arguido dos crimes de burla e falsificação de documento.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nestes autos de processo comum n.º 2647/06.2TAGMR e após a realização da audiência de julgamento por tribunal singular, o 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães proferiu sentença que concluiu com o seguinte dispositivo (transcrição) :

“Pelo exposto, julgo a acusação procedente e, em consequência, decido:
- Condenar o arguido Francisco L..., pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, 202.º, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 340 (trezentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
- Condenar o arguido Francisco L..., pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 256.º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, 255.º, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 340 (trezentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
- Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, condenar o arguido Francisco L... na pena única de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
- Condenar o arguido nas custas criminais, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça;
B – Julgar o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 379 a 407, com a redução operada a fls. 670 a 674, parcialmente procedente por parcialmente provado e, em consequência:
- Absolver a demandada “Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal Ld.ª” do pedido de indemnização civil contra ela formulado pelos demandantes Mário S... e Maria M...;
- Absolver a demandada “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” do pedido de indemnização civil contra ela formulado pelos demandantes Mário S... e Maria M...;
- Condenar o demandado Francisco L... a pagar aos demandantes Mário S... e Maria M... a quantia de € 1.329,82 (mil trezentos e vinte e nove euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde 15/05/2012 até efetivo e integral pagamento;
- Condenar o demandado Francisco L... a pagar aos demandantes Mário S... e Maria M... a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, sendo € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) para cada um dos demandantes, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente decisão até integral pagamento, absolvendo-o do mais pedido;

Desta sentença interpuseram recurso os assistentes e demandantes Mário S... e Maria M..., inconformados com a absolvição dos demandados civis Cozinha Ú... e B... Crédito S.A. e discordando dos valores atribuídos na sentença a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Com o presente recurso, os demandantes pretendem a revogação da sentença e consequente substituição por outra decisão que condene todos os demandados, solidariamente, no pagamento aos demandantes de quantia referente a juros vencidos sobre o montante debitado indevidamente pelo B... CRÉDITO S.A., da quantia de 150 € por cada mês entre Fevereiro de 2006 e Julho de 2012, em que ficaram privados do uso dos bens que lhe foram penhorados, num total de 11700 €, da quantia de 5000 € despendida pelos demandante na aquisição de bens móveis e da quantia de 7500 € a cada um dos demandantes por danos não patrimoniais.

Não houve resposta ao recurso.

Realizada a audiência a requerimento dos demandantes, cumpre apreciar e decidir.

2. Questões a decidir

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Os argumentos expostos pelo recorrente, ao longo de sessenta e quatro conclusões, abrangem os seguintes temas ou questões, pela ordem lógica de conhecimento: a) Impugnação da decisão em matéria de facto; c) Verificação de fundamentos, de facto e de direito, da responsabilidade civil dos demandados; d) Valor da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

3. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

“Da acusação pública:

1) Em data não concretamente apurada, de inícios de Setembro de 2002, o arguido dirigiu-se aos assistentes Mário S... e Maria M..., irmão e cunhada, respetivamente, pedindo-lhes para serem fiadores num contrato de financiamento que o mesmo pretendia celebrar para a aquisição de electrodomésticos e mobiliário de cozinha.

2) Contudo, os assistentes Mário S... e Maria M... negaram-se a assumir tal posição.

3) Altura em que o arguido, aproveitando o facto de ter na sua posse cópia dos documentos de identificação dos assistentes Mário S... e Maria M..., decidiu, sem o conhecimento deles e contra a sua vontade, realizar um contrato de financiamento de crédito obrigando-os ao respetivo pagamento, de forma a adquirir o mobiliário e equipamento de cozinha sem pagar o respetivo preço.

4) Assim, em execução do planeado, em 6 de Setembro de 2002, o arguido dirigiu-se às instalações da sociedade “Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal, Ld.ª ”, sita no Edifício P..., M..., 4810-000 Guimarães, e, aí, escolheu o equipamento e o mobiliário de cozinha que pretendia adquirir, entregando os elementos de identificação dos assistentes Mário S... e Maria M... para a celebração do contrato de financiamento.

5) De seguida, o arguido manuscreveu, em impresso próprio titulado por “contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros”, no local de assinatura do 1.º mutuário, o nome do assistente / seu irmão “Mário L...”, trocando por força do hábito a ordem dos apelidos, e no local do 2.º mutuário, o nome da assistente / sua cunhada “Maria M...”, assim criando a aparência de que tais nomes tinham sido assinados pelos próprios ou com a sua autorização.

6) E de igual forma, preencheu e assinou os nomes dos assistentes Mário L... e Maria M... na livrança n.º 21179 subscrita para garantia do bom e integral pagamento do contrato de financiamento, assim como na convenção de preenchimento da livrança.

7) O crédito teve aprovação imediata, com pagamento pela assistente “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” à “Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal Ld.ª” do montante financiado de € 7.213,00, pelo que o mobiliário e equipamento de cozinha foram entregues ao arguido, que os fez seus.

8) Na sequência da celebração de tal contrato, em que o financiamento seria pago em 36 mensalidades, a primeira no valor de € 312,91 e as restantes no valor de € 276,84, no total de € 10.002,31, a primeira com vencimento em 5/10/2002 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, foram debitadas diretamente de uma conta conjunta titulada pelos assistentes Mário S... e Maria M... várias prestações no valor total de € 4.186,87 (quatro mil cento e oitenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos).

9) E a entidade financeira / a assistente “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, quando deixou de conseguir o pagamento do valor correspondente às prestações ainda em dívida, executou a livrança que servia de garantia ao empréstimo, subscrita pelo arguido em nome dos assistentes Mário S... e Maria M..., preenchendo-a com o valor ainda em dívida, de € 5.957,00 (cinco mil novecentos e cinquenta e sete euros), na sequência do que foram penhorados bens móveis da propriedade dos assistentes Mário S... e Maria M....

10) Jamais o arguido deu conta dos seus atos aos assistentes Mário S... e Maria M..., usando o seu nome, assinatura e documentos, entre o mais, sem lhes comunicar o que quer que fosse e sem deles obter autorização para tal, bem sabendo que estes não o autorizariam a agir do modo como agiu.

11) Ao assim actuar, o arguido bem sabia que mediante a aposição de uma assinatura com o nome de Mário S... e Maria M... na posição de mutuários do contrato descrito em 5), e subscritores da livrança descrita em 6), forjava um contrato e um título de crédito destinado a instruí-lo, obtendo para si uma vantagem patrimonial que sabia ser ilegítima, sendo certo que estava ciente que dessa forma abalava a fé pública associada a esses documentos.

12) O arguido sabia que a entidade financeira se sabedora das circunstâncias em que os assistentes Mário S... e Maria M... apareceram no contrato de financiamento de crédito como mutualistas e na livrança como subscritores, jamais aprovaria o dito “contrato de financiamento” descrito em 5).

13) Não obstante, agiu o arguido em execução do plano que concebeu, com o propósito concretizado de forjar o contrato de crédito que celebrava e bem assim a livrança que subscrevia, de forma a fazer crer, como fez, à entidade financiadora que eram os assistentes Mário S... e Maria M... quem o fazia e de assim obter a concessão do crédito a que se propunha e mediante este a aquisição imediata do mobiliário e equipamento de cozinha, propósito que alcançou, em prejuízo da entidade financeira.

14) Mais sabia que ao fazer constar o nome e assinatura do seu irmão e da sua cunhada no contrato de crédito e na livrança que o garantia, desta forma, os vinculava ao pagamento de tal quantia, à custa dos respetivos patrimónios até ao montante global do contrato de crédito, supra indicado.

15) O arguido agiu de modo voluntário, livre e consciente, com a intenção de se apoderar do mobiliário e equipamento de cozinha, sem pagar o respectivo preço, causando ao seu irmão e cunhada um prejuízo equivalente a essa quantia.

16) O arguido sabia serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes Mário L... e Maria M... (expurgado dos factos coincidentes com a acusação e dos factos alegados que consideramos inócuos, conclusivos ou de direito):

17) Por forma a receber o valor em falta para que o referido “contrato de financiamento” ficasse totalmente pago, a demandada “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” intentou, em 22/02/2005, ação executiva contra os demandantes Mário S... e Maria M..., a qual correu termos no tribunal judicial da Maia, com base na livrança referida em 6), preenchida com o valor ainda em dívida de € 5.957,00.

18) No âmbito dessa ação executiva, no dia 20/02/2006, foi realizada diligência de penhora de bens móveis encontrados na residência dos executados / demandantes Mário S... e Maria M..., tendo sido penhorados e removidos os bens móveis descritos no respetivo auto de penhora que se encontra junto a fls. 16 a 20 dos presentes autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

19) Desde essa data, 20/02/2006, os demandantes ficaram privados dos referidos bens móveis que lhes foram penhorados.

20) Em consequência da apurada conduta do arguido/demandado Francisco L... e da referida penhora com remoção a que conduziu, os demandantes adquiriram novas mobílias para poderem gozar do mínimo conforto.

21) Ainda em consequência da apurada conduta do arguido/demandado Francisco L... e referida penhora, os demandantes Mário S... e Maria M... sentiram-se envergonhados, humilhados, revoltados e tristes e sofreram aborrecimentos, incómodos e privações.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelo “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”:

22) Na sequência do “contrato de financiamento” referido em 5), a demandante “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” pagou à “Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal Ld.ª”, em 6/09/2002, o montante de € 7.213,00.

23) A demandante “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” procedeu, a 15/05/2012, à restituição da quantia de € 4.327,09, relativa aos montantes debitados na conta dos assistentes Mário S... e Maria M..., na sequência do “contrato de financiamento” aludido em 5), bem como já lhes restituiu os bens penhorados.

24) Em consequência da descrita conduta do arguido/demandado, a demandante “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” sofreu um prejuízo no valor de, pelo menos, € 7.213,00.

Mais se provou que:

25) O arguido não revelou arrependimento e ainda não ressarciu os prejuízos causados com a sua apurada conduta.

26) O arguido não tem antecedentes criminais.

27) O arguido tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.

Tendo estado desempregado desde 2004, sem receber qualquer subsídio, e tendo antes trabalhado como rececionista hoteleiro, recentemente começou a trabalhar à experiência como comissionista / angariador de clientes para uma empresa de toldes e coberturas de publicidade.

É divorciado. Vive em casa da ex-mulher, por dificuldades económicas, não mantendo com ela a vida em comum. Tem uma filha menor, com 10 anos de idade, estudante, com quem mantém bom relacionamento.

28) O demandante Mário S... está reformado, recebendo uma pensão no valor mensal de cerca de € 470,00; a demandante Maria M... encontra-se desempregada, não recebendo qualquer subsídio; vivem em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 250,00.”

Quanto à matéria de facto não provada, consta na sentença recorrida (transcrição):

“Não se provaram outros factos, em contradição com os provados ou para além deles, designadamente, todos os demais factos alegados no pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes Mário S... e Maria M..., nomeadamente, não se provou o seguinte:

- Os demandantes Mário S... e Maria M... despenderam o valor de € 5.000 para mobilar novamente a casa.”

Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto consta o seguinte (transcrição) :

“A convicção do tribunal, relativamente ao factos provados, formou-se a partir do conjunto da prova produzida, analisada e ponderada criticamente e à luz das regras da experiência e de critérios de normalidade e razoabilidade.

Tendo-se o arguido na audiência de discussão e julgamento remetido ao silêncio sobre os factos, a coberto do direito que lhe assistia (cfr. art.º 61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal), assumiram, desde logo, particular relevância as declarações dos assistentes/demandantes Mário S... e Maria M..., os quais, revelando conhecimento dos factos, como ofendidos nos autos, depuseram por forma a confirmar, no essencial, a factualidade considerada provada, tendo os mesmos, entre o mais: precisado o vínculo familiar existente entre eles e o arguido; afirmado a atuação do arguido à revelia total dos assistentes, sem o seu conhecimento, sem a sua autorização e contra a sua vontade; asseverado não serem suas as assinaturas constantes do “contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouro” e da convenção de preenchimento de livrança de fls. 328 (o assistente Mário S... referiu que a sua assinatura, no que tange aos últimos apelidos, é “Lopes Silva”, e não “Silva Lopes” como figura da assinatura constante de ambos os referidos documentos, precisando que dos irmãos ele é o único “Lopes Silva”, sendo todos os demais, e portanto também o arguido, “Silva Lopes”); elucidado como só posteriormente tomaram conhecimento dos factos, tendo nessa altura verificado, em função dos elementos recolhidos, que os bens adquiridos (mobiliário e equipamento de cozinha) tinham sido colocados numa residência que nunca foi a deles, mas que correspondia justamente à morada do arguido; precisado as quantias debitadas pelo “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” da sua conta conjunta na sequência de tal “contrato de financiamento”; esclarecido sobre a penhora efetuada, as consequências que lhes advieram dos factos e sobre a restituição já efetuada pelo “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” dos bens penhorados e da quantia referida em 23); e afirmado, ainda, que o arguido nunca lhes pediu desculpa, nem procedeu ao ressarcimento de qualquer dos prejuízos por eles sofridos. Estas declarações, apesar da apontada qualidade processual nos autos, afiguraram-se-nos merecedoras de credibilidade, não apenas pela forma minuciosa, harmoniosa e coerente como foram prestadas, mas ainda porque resultaram corroboradas pela demais prova produzida (nos termos que passamos a explicitar).

Foram, também, cruciais as declarações de Domingos A..., dono e representante da “Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal Ld.ª”, o qual, entre o mais: elucidando ter sido quem vendeu o mobiliário e equipamento de cozinha em causa, referiu que o negócio foi celebrado com o arguido, tendo sido sempre com ele que negociou, e não com os assistentes, pessoas que nunca viu e que não conhece; afirmou que os bens vendidos foram montados na Rua G...n.º ....º, Guimarães, o que se prolongou por cerca de uma semana, tendo lá ido várias vezes antes da montagem dado que foram feitas obras, e que foi sempre o arguido quem acompanhou e deu as necessárias instruções com vista à concretização de tais obras e montagem; esclareceu que tendo sido feito um “contrato de financiamento”, foi sempre o arguido quem trouxe os documentos necessários e já assinados, dizendo o arguido que quem figurava nos documentos era um seu irmão com quem se dava bem e que o ia ajudar, não tendo o declarante suspeitado de algo anómalo em face dessa justificação, tendo procedido como habitualmente o fazia em situações de idêntica natureza; precisou, ainda, o preço dos bens vendidos e o recebimento de imediato do respetivo valor por parte da entidade financeira “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”.

Também foi considerado o depoimento da testemunha Pedro S..., o qual elucidou sobre a materialidade relativa aos danos não patrimoniais sofridos pelos assistentes/demandantes Mário S... e Maria M..., factos de que revelou ter conhecimento como genro daqueles.

Foi, outrossim, importante o depoimento da testemunha Marco P..., o qual demonstrou ter conhecimento dos factos, por força das suas funções como advogado que presta serviços no contencioso e de assessoria jurídica para a assistente “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, tendo o mesmo elucidado de forma minuciosa sobre o procedimento que envolveu a celebração e aprovação do “contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros” referido na acusação, sobre as condições de financiamento, sobre as vicissitudes desse contrato, sobre o total desconhecimento por parte da entidade financeira das circunstâncias em que os assistentes Mário S... e Maria M... apareceram nesse contrato e sobre o prejuízo sofrido pela assistente/demandante “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” e ainda não ressarcido, o que tudo fez por forma a, além do mais, confirmar a factualidade dada como provada em 7 (1.ª parte), 8), 9), 17), 18), 22), 23) e 24).

Finalmente, foi fundamental a prova documental e pericial produzida, muito concretamente, os documentos de fls. 4 a 20, 31 a 33, 50, 51, 133 a 134, 328, 556 a 619, 676 e 769 a 780, 818 a 826 e 837 e os relatórios de exame pericial de escrita de fls. 257 a 264, 265 a 271, 272 a 278 e 315 a 325.

As condições pessoais e sociais do arguido e a sua situação económica foram apuradas com base nas declarações prestadas a esse respeito pelo próprio.

A situação económica dos demandantes Mário S... e Maria M... resultou provada a partir das declarações prestadas pelos próprios.

Ao apuramento dos antecedentes criminais do arguido foi essencial o teor do seu certificado de registo criminal atualizado junto aos autos no decurso da audiência de julgamento (cfr. fls. 794).

Quanto aos factos não provados, os mesmos foram assim considerados por falta de prova bastante, sendo que as declarações dos demandantes Mário S... e Maria M... e depoimento da testemunha Pedro S..., a que se reconduziu a prova oferecida, na ausência de outra prova, sobretudo de natureza documental, não se afiguraram suficientes para a demonstração da factualidade em causa.”

4. Tendo em conta a forma como vem estruturado o requerimento inicial na acção cível e a pretensão formulada neste recurso, impõe-se-nos apreciar previamente a questão de saber se o tribunal criminal é competente em razão da matéria para apreciar os pedidos formulados pelos demandantes e recorrentes contra os demandados civis Cozinha Ú... e B... Crédito S.A.

As normas jurídicas aplicáveis são fundamentalmente as constantes dos artigos 71.º (O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei), 73.º n.º 1 (O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal, 74.º (O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime (…)), 377.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, (A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82.º, n.º 2.), 129.º do Código Penal (“A indemnização de perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil.», 483.º do Código Civil: (Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.).

Como é sabido, o poder de cognição do tribunal criminal encontra-se limitado ao objecto do processo, delineado pelos factos (“pedaço unitário da vida”, “acontecimento histórico”) e pelos sujeitos referidos na acusação e/ou na pronúncia se a houver. O que significa que em princípio e salvo a possibilidade de alteração prevista na lei adjectiva, na sentença penal o tribunal só se pode pronunciar sobre os factos e as pessoas descritas naquelas peças processuais.

Neste sentido, estabelecer como requisito que o pedido formulado na acção civil enxertada seja fundado na prática de um crime significa também exigir como critério de admissibilidade que essa pretensão cível tenha a sua “causa de pedir” nos eventos da vida real ou conjunto da factos que fazem parte do objecto do processo, ou seja, da acusação ou da pronúncia.

Este problema tem surgido frequentemente quando se pretende saber se a absolvição penal do arguido implica necessariamente a sua absolvição no pedido de indemnização civil, mas a jurisprudência consolidada a esse propósito interessa também para a solução da questão suscitada nestes autos.

Com efeito, o acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99, de 17-6-1999 (DR. n.º 179, Série I-A de 1999-08-03), decidiu que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.

Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Julho de 2009, António Gama, processo 520/03.5PTPRT.P1,in www.dgsi.pt, “um olhar aos fundamentos do assento numa curta incursão pelo seu texto é fundamental para afastar dúvidas a este propósito”: uma primeira das teses em confronto entendia que em caso de sentença absolutória proferida em processo penal, nos termos do n.º 1 do artigo 377º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado o pedido civil aí formulado” e a segunda sustentava que “o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual)”. Que pelos fundamentos do assento se resolve afirmativamente a questão posta, resulta do trecho em que desenvolvendo um tópico que denominou como “Concordância com o acórdão fundamento» o Supremo Tribunal de Justiça diz que «Este acórdão põe em relevo uma ideia muito importante em toda esta polémica. É que, aceitando-se, muito embora, que o nosso direito positivo impõe um regime de adesão obrigatória, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal. E assim se compreende que é por força da autonomia entre as duas responsabilidades que o Tribunal absolva da responsabilidade criminal, mas possa conhecer da responsabilidade civil. Só que esta última é a responsabilidade emergente do facto ilícito criminal, ou seja, a responsabilidade a que se refere o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil. (…) Desta forma, o n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal, quando manda condenar a indemnização civil, tem como pressuposto que esta indemnização resulte de um facto ilícito criminal e, no fundo, tendo como base o já citado artigo 483.º do Código Civil”. Por isso conclui que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal.

Nesse mesmo acórdão n.º 7/99 se cita uma outra decisão do Supremo Tribunal de Justiça, com interesse para a questão aqui em apreço: No Acórdão de 15 de Outubro de 1998, no processo n.º 692/98, in www.dgsi.pt , o STJ considerou que “Os réus cíveis apenas foram demandados não com base na prática de qualquer ilícito criminal, mas antes por violação do dever de vigilância a que estavam obrigados como pais do menor Jacinto. Assim, o Tribunal fez bem em absolver os réus cíveis do pedido contra eles formulado, porque estes não têm legitimidade em virtude de não terem cometido qualquer crime, sendo certo que a sua responsabilidade civil só poderia advir desse facto. O tribunal criminal só poderia, na realidade, conhecer dos pedidos emergentes da prática de um crime, nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal.". Também o Tribunal Constitucional, pronunciando-se sobre o disposto no artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em termos de avaliar da constitucionalidade ou não do regime do processo penal comparado com o do processo civil, tinha enfatizado que é precisamente a existência de uma profunda conexão entre os dois ilícitos, resultante da unidade do facto gerador tanto da responsabilidade civil como da criminal, que justifica a apreciação no mesmo processo da questão criminal e da questão civil (Acórdão n.º 320/2001/TC, de 4 de Julho de 2001, Diário da República, 2.ª série, de 7 de Novembro de 2001).

Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12-01-2000, decidiu no mesmo sentido : aí se escreveu que “como flui, claramente, do disposto nos arts. 71°, n° 1, e 74°, n° 1, do C.P.P., 128°, do C.P./82, e 129º, do C.P./95, a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos causados por um crime e só essa. Logo, se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, então, o pedido é, legalmente, inadmissível no processo penal. Consequentemente, pelos danos causados por um facto que não é susceptível de integrar um tipo legal de crime e que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respectiva indemnização no processo penal. Portanto, agora na perspectiva da competência do tribunal criminal, este é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da pura responsabilidade civil contratual” (Leonardo Dias, proc 599/99, www.dgsi.pt).

No acórdão de 12-11-2009, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou uma vez mais que “a causa de pedir na acção cível conexa com a criminal é sempre a responsabilidade civil extracontratual [pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual] e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa” (Santos Carvalho, proc. 448/06, in www.dgsi.pt ).

Nos presentes autos, os demandantes deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido, Francisco L... e contra Cozinha Ú... – Comércio E..., Unipessoal Ld.ª” e “B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” por danos patrimoniais e não patrimoniais (cfr. requerimento junto a fls. 379 a 407).

Esta pretensão surge-nos estruturada quanto ao arguido nos acontecimentos que integram os tipos de crime de falsificação e de burla, imputados na acusação pública, sendo inequívoco que as sociedades demandadas, pelos seus representantes não tiveram qualquer participação ou intervenção na autoria desses mesmos factos.

Também não se descortina qualquer situação própria de uma relação de comitente-comissário entre o arguido e alguma das sociedades demandadas.

Sendo assim de notar que os demandantes fundamentam a legitimidade passiva do segundo e terceiro demandados na inobservância dos requisitos de que depende a validade do contrato de concessão de crédito, nestes se incluindo o incumprimento das obrigação de aposição da assinatura perante a entidade com a qual o contrato é celebrado, no incumprimento da obrigação que competia à segunda e terceira demandadas de conferirem a veracidade das assinaturas apostas quer no contrato de financiamento, quer na livrança, respectivamente e, por ultimo, na inobservância do dever de informar os consumidores do conteúdo exacto do contrato.

As normas do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro (diploma legal em vigor na data dos factos e posteriormente substituído pelo Decreto-Lei nº 133/2009 de 2 de Junho), que estabelecem o regime do contrato de financiamento para aquisição dos bens de consumo, protegem interesses colectivos dos consumidores na segurança dos negócios jurídicos, procurando garantir a formação correcta da vontade de contratar e podem beneficiar reflexamente os consumidores, mas não são susceptíveis de atribuírem directamente algum direito subjectivo, nem visam proteger interesses particulares. O mesmo se pode afirmar em relação às normas do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro que regulam a obrigação de informação aos consumidores de todas as cláusulas do contrato.

Como é sabido, este tribunal só pode agora apreciar os factos descritos pelos demandantes no requerimento inicial e, salvo melhor entendimento, a eventual violação das normas destes dois diplomas legais pelos representantes das sociedades demandadas, por si só, não integra nenhuma das formas de ilicitude previstas no artigo 483.º do CC como pressuposto da obrigação de indemnização.

Em todo o caso e para a decisão neste âmbito, impõe-se ter presente que os factos indicados pelos demandantes no requerimento inicial como causa de pedir e fundamento da responsabilidade da segunda e terceira demandada sempre seriam distintos dos factos que integram os crimes de burla e de falsificação.

Encontramo-nos assim em condições de responder à questão inicial: o segmento do pedido cível referente a eventual responsabilização das sociedades não se configura como fundamentado na prática de um crime, pelo que o tribunal criminal carece de competência para dele conhecer.

A incompetência em razão da matéria constitui uma excepção ou questão prévia, de conhecimento oficioso pelo tribunal e que deve conduzir a absolvição da instância das sociedades demandadas.

5. Impugnação da decisão em matéria de facto

A questão a resolver neste âmbito consiste fundamentalmente em saber se ocorreu erro no julgamento de facto ou seja, se houve valoração indevida de elementos de prova. Ao tribunal de recurso cabe ter em conta e examinar as provas concretas que na perspectiva do recorrente impõem uma decisão diferente.

Nestes autos, o recorrente insurge-se com a decisão quanto a parte significativa da matéria de facto provada e invoca discordância quanto à apreciação da prova feita pelo tribunal, no que diz respeito a segmentos das declarações dos assistentes e aos depoimentos das testemunhas, de que procede à necessária transcrição na motivação. Serão portanto estas as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, juntamente com outras que entenda relevantes (artigos 412.º n.º 3, n.º 4 e n.º 6 do Código do Processo Penal).

Em consequência da decisão de inadmissibilidade parcial do pedido de indemnização civil, fica prejudicada a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria fáctica referente à existência de uma relação contratual entre os demandados Cozinha Única e B... CRÉDITO S.A. Crédito, às obrigações correspondentes para cada uma das partes, bem como dos factos referentes ao incumprimento contratual pela demandada Cozinha Única, ao incumprimento da verificação das assinaturas dos demandantes, ao conhecimento da falsificação pela demandada B... CRÉDITO S.A. Crédito e da comunicação por esta instituição bancária ao Banco de Portugal do incumprimento no pagamento do crédito ao consumo.

Mantêm-se utilidade na apreciação do recurso de impugnação que incide no circunstancialismo atinente ao valor despendido pelos assistentes na aquisição de nova mobília e ao período de privação dos bens objecto da penhora, bem como na matéria de facto referente aos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos demandantes em consequência directa e necessária da conduta do arguido-demandado (conclusões 4, 5, 17 e 48 a 56).

6. Discordando do juízo probatório do tribunal recorrido, os recorrentes pretendem a inclusão no elenco da matéria de facto provada que os demandantes despenderam o valor de € 5.000 para mobilar novamente a casa. Invocam, para tanto, o teor do auto de penhora, bem como segmento das declarações prestadas pela demandante e do depoimento da testemunha Pedro Filipe Santos.

Tanto quanto resulta do registo áudio, a assistente relatou que em consequência da penhora de bens, o casal ainda esteve na casa de uma pessoa amiga, depois mudou de residência e comprou novas mobílias. Na sua narrativa, a assistente e demandante teve de pedir dinheiro emprestado a uma sua irmã, num valor que fixa em “mais” de 5000 €. As declarações da assistente surgem-nos corroboradas pelo depoimento de Pedro Santos que relatou saber que os assistentes compraram mobílias novas e que Maria da Graça fez um empréstimo aos assistentes num valor próximo dos cinco mil euros. Sabe-se ainda que até hoje os assistentes ainda não restituíram o valor desse empréstimo. Não dispomos de elementos quanto à “razão de ciência” da testemunha e se esse conhecimento da existência de um empréstimo decorre apenas do que lhe foi dito pela própria ofendida.

Perante os elementos disponíveis, podemos considerar assente para lá de uma dúvida razoável que em consequência da falsificação efectuada pelos arguido e subsequente penhora e remoção dos bens móveis do recheio da habitação na execução promovida pela instituição credora, os assistentes tiveram de adquirir nova mobília.

Apesar de se saber da generalização de recurso a compra de bens sem a correspondente emissão de factura/recibo com intuito de evasão fiscal, não podemos deixar de se considerar como estranho que não exista no processo qualquer documento que titule uma compra de móveis num valor total de milhares de euros. Assim como será no mínimo espantoso que a propósito desse “empréstimo” não tenha sido viável o depoimento da irmã que terá emprestado, nem a apresentação de qualquer outro elemento probatório, ínfimo que seja. Tanto mais quanto essa compra sempre teria surgido no quadro de um profundo e grave conflito entre irmãos, sendo previsível o recurso a meios judiciais para ressarcimento.

Tendo em conta a ausência de qualquer suporte documental da compra e venda de mobílias e a forma vaga e imprecisa das declarações e do depoimento a este propósito, concluímos que a ponderação conjunta do auto de penhora, das declarações da própria lesada e do depoimento da testemunha Pedro S... se revela insuficiente para que o tribunal possa julgar provado, para lá de uma dúvida razoável, que em consequência directa e necessária dos factos cometidos pelo arguido, os assistentes despenderam cinco mil euros na compra de mobílias.

7. Na impugnação da decisão em matéria de facto, os recorrentes pretendem ainda a alteração da redacção do ponto 21 dos factos provados por forma a aí constar que em consequência da conduta do arguido/demandado, a demandante Maria José Silva Martins entrou num estado clínico de depressão que ainda hoje se mantêm, tomando medicamentação antidepressiva;

Não lhes assiste razão.

A comprovação segura da ocorrência de uma patologia ou de um estado clínico depende de exame, exige a apreciação por médico dotado dos conhecimentos científicos adequados e os recorrentes não invocam a existência de qualquer relatório ou outro documento que refira a verificação da doença, nem sequer do receituário a que a ofendida se referiu nas suas declarações, mas apenas o sentir da própria doente.

Nestes termos, os excertos das declarações da ofendida e do depoimento da testemunha são manifestamente imprecisos e insuficientes para assegurar a verificação de um estado clínico de depressão em consequência dos factos destes autos.

Concluindo, não encontramos fundamento que nos leve a divergir do juízo probatório do tribunal recorrido, devendo manter-se a decisão impugnada.

8. Cumpre apreciar seguidamente a pretensão dos recorrentes de condenação do demandado no pagamento de indemnização pela privação do uso das mobílias removidas na execução de penhora.

Nos termos já expostos, afigura-se-nos que deve ser estabelecida uma relação de causalidade adequada entre a burla e a falsificação do contrato de crédito pelo arguido e a posterior apreensão judicial de bens no âmbito de execução por incumprimento desse contrato objecto da adulteração.

A jurisprudência e a doutrina têm reconhecido a possibilidade de atribuição de uma indemnização pelo dano patrimonial consistente na privação efectiva do gozo das vantagens ou utilidades de um bem.

Segundo o circunstancialismo de facto assente nos autos, os demandantes ficaram privados da utilização do mobiliário que constituía o recheio da sua casa de habitação e tiveram de adquirir novas mobílias para poderem gozar do mínimo conforto.

Apesar de terem obtido novas mobílias, os demandantes sofreram inequivocamente uma concreta desvantagem patrimonial, decorrente de não lhes ter sido possível usufruir e dispor dos móveis que foram removidos e retirados com a penhora.

Esta falta de utilização e possibilidade de disposição dos bens abrangidos na penhora, em consequência necessária dos factos cometidos pelo arguido, constitui um dano ressarcível, a que deve corresponder um valor de indemnização, que terá de ser fixado por equidade (artigo 566.º n.º 3 do CC).

Sopesando em conjuntos os elementos disponíveis, entende-se justo e equitativo fixar a indemnização pela privação do uso das mobílias penhoradas entre 20 de Fevereiro de 2006 e 11 de Junho de 2012 no valor de 250 €, para cada um dos demandantes.

9. Na ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza compensatória, pela atribuição de um montante pecuniário tendente a proporcionar à vítima prazeres ou satisfações que atenuem o dano sofrido, mas também reflecte uma ideia de reprovação ou de punição da conduta do agente, ainda que no plano do direito civil.

A indemnização deve ser adequada e proporcional à gravidade objectiva dos factos, tomando em conta todas as regras de bom senso e da justa medida das realidades da vida, ponderando a situação económica do lesado e do demandado, os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência e as flutuações do valor da moeda (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, 2ª ed.,Vol. I, Almedina, 1973, 488).

Uma visão global do circunstancialismo provado revela-nos que o arguido concebeu e executou um plano para forjar um contrato de crédito e uma livrança para adquirir mobiliário e equipamento de cozinha, propósito que alcançou, sabendo que ao fazer constar o nome e assinatura do seu irmão e da sua cunhada no contrato de crédito e na livrança, vinculava-os ao pagamento de tal quantia, à custa dos respectivos patrimónios. No âmbito de uma acção executiva, consequência directa e necessária da falsificação e burla cometidas pelo arguido, houve penhora e remoção de bens móveis encontrados na residência dos demandantes. Está ainda provado que, em consequência da apurada conduta do demandado Francisco L... e da referida penhora com remoção a que conduziu, os demandantes sentiram-se envergonhados, humilhados, revoltados e tristes e sofreram aborrecimentos, incómodos e privações.

Como tem sido assinalado de forma constante na jurisprudência, a indemnização por danos não patrimoniais, se nunca poderá constituir um enriquecimento sem causa, também não pode ser meramente simbólica ou miserabilista, devendo fixar-se em montante que tendencialmente viabilize o fim a que se destina.

Sopesando em conjunto a natureza e a gravidade dos danos sofridos, a capacidade económica do demandado e dos demandantes e os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações semelhantes, consideramos justo e equitativo fixar em dois mil e quinhentos euros o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes, já actualizado para a presente data.

Termos em que o recurso merece parcial provimento, devendo ser revogada a decisão nesse âmbito.

10. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso dos demandantes e, em consequência:-

1.º- Julgam procedente a excepção de incompetência em razão da matéria e absolvem as demandadas B... CRÉDITO S.A. Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S. A. e Cozinha Única – Comércio de Electrodomésticos, Unipessoal, Ldª da instância na acção civil enxertada ;-

2.º- Condenam o demandado Francisco L... no pagamento a cada um dos demandantes Mário S... e Maria M... da quantia de duzentos e cinquenta euros de indemnização pela privação do uso das mobílias e restantes bens objecto da penhora e da quantia de dois mil e quinhentos euros de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência dos factos destes autos ;-

3.º- Mantêm em tudo o mais a sentença recorrida.

Sem tributação, por parcial procedência.

Guimarães, 10 de Julho de 2014.