Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
107/14.7TAVNF.G2
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: REENVIO PARCIAL
CASO JULGADO PROGRESSIVO
ARTº 416º
DO CPP E AC. FJ DE 4/2016 PUBLICADO NO DR I SÉRIE DE 22.02.2016
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Se, na sequência de recurso interposto de sentença de 1ª instância, for alterada pelo tribunal da relação a matéria de facto, revogada a absolvição dos arguidos e determinada a baixa dos autos à 1ª instância para aplicação de penas, no novo recurso interposto da sentença, agora condenatória, não pode ser reapreciada a questão da culpabilidade dos arguidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães:

I.
Por sentença de 11/12/2017 foram os arguidos J. S., P. F., Maria, M. A. e A. C. absolvidos da prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento p.p. art. 256º nº 1 d) do Código Penal, por que se encontravam pronunciados.

Inconformada com a absolvição dos arguidos interpôs a assistente R. A. e Companhia, Lda, recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que veio a ser julgado procedente e em consequência do qual foi alterada a matéria de facto e julgados os arguidos coautores materiais do referido crime.

Mais foi decidido ordenar o reenvio do processo com a baixa dos autos à 1ª instância a fim de que o tribunal a quo, reaberta a audiência de julgamento, viesse a apurar factos relativos à personalidade e às condições pessoais dos arguidos e sua situação económica e a proceder à determinação da espécie e da medida da pena a aplicar pelo crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal em que como coautores materiais incorreram.
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Desta decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi admitido, decisão que veio a ser confirmada por aquele tribunal, após reclamação dos arguidos, nos termos do artigo 405º do CPP.
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Depois da baixa dos autos à primeira instância e da prolação de nova sentença vieram os arguidos a ser condenados, em 18/03/2019, cada um na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5€ (a arguida Maria), de 6€ (os arguidos J. S. e A. C.) e de 7€ (os arguidos P. F. e M. A.).
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Inconformados com a condenação, recorreram os arguidos concluindo a motivação do recurso do seguinte modo (transcrição):

1. Não se apurou nos autos qualquer indício e também não foi feita qualquer prova de que a Sociedade “Companhia ..., SA” tinha qualquer activo, pelo que inexiste qualquer relação causa - efeito, ou melhor dito, qualquer nexo causal entre a declaração e a falta de pagamento do crédito da Recorrente em que se poderá traduzir o seu prejuízo.
2. Sendo a execução um procedimento judicial que consiste em apreender e vender bens de devedores de modo a recuperar o valor das respectivas dívidas, o prejuízo da Sociedade Assistente radica no facto de a Sociedade devedora não ter quaisquer bens que respondam pelo pagamento, sendo completamente inócua a sua liquidação e dissolução, posto que naquela não foi distribuído qualquer activo a ninguém, e muito menos aos sócios.
3. Não se pode dar por provado que “O acto de encerramento da aludida sociedade visava o não pagamento da divida que esta tinha para com a sociedade assistente”, sem que nos autos haja qualquer prova que a Sociedade “Companhia ..., SA” tinha activos capazes de solver, total ou parcialmente, essa mesma dívida.
4. Não se pode dar por provado que “Em consequência da extinção da sociedade, os arguidos causaram à assistente um prejuízo de € 14.500,00, o qual é impossível de pagamento coercivo”, já que, e dado não haver nos autos qualquer prova que a Sociedade “Companhia ..., SA” tinha activos capazes de solver, total ou parcialmente, a dívida, a verdade é que esse prejuízo apenas pode ter resultado da existência dessa mesma divida.
5. Não se pode dar por provado que o comportamento dos arguidos visou evitar que a sociedade “Companhia ..., SA” tivesse que …”proceder à liquidação e ao pagamento das dívidas que possuía”, sem que nos autos haja qualquer prova que a Sociedade “Companhia ..., SA” tinha meios para, mesmo que coercivamente, pagar total ou parcialmente, esses mesmas dívidas.
6. Não se pode dar por provado que …”os arguidos sabiam que impediam a assistente de obter o pagamento coercivo da quantia em divida e que causavam a esta um prejuízo de valor correspondente à mesma divida”, se a verdade é que não se provou que à Sociedade “Companhia ..., SA”, caso tivesse sido executada, poderiam ter sido penhorados quaisquer bens.
7. As regras básicas de experiencia comum, impõem que esta factualidade constante dos nºs 22º, 23º, 24º, 25º e 26º dos Factos Provados não possa ser dada por provada, pois essa é a conclusão mais evidente para a generalidade das pessoas.

SEM PRESCINDIR,

8. Não se tendo provado que antes da actuação dos sócios, a sociedade tinha património que permitissem obter o pagamento da dívida, não se encontra preenchido o tipo subjectivo específico do tipo de ilícito ("dolo específico") em causa.
9. A douta Sentença recorrenda violou o disposto nos arts. 127º, 410º, nº 2, a),b) e c), ambos do CPP, bem como no art. 256º, nº 1, al. d) do CP.

ASSIM DECIDENIDO, SENHORES JUIZES DESEMBARGADORES, revogando a douta Sentença recorrenda, FARÃO VOSSAS EXCELENCIAS, UMA VEZ MAIS, JUSTIÇA.
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O recurso foi admitido e a ele responderam, em primeira instância, o Ministério Público e a assistente, ambos pugnando pela manutenção do decidido.
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Subidos os autos a este Tribunal da Relação foi emitido parecer pelo Ministério Público no sentido de que o recurso deveria ser rejeitado por decisão sumária, uma vez que só a medida da pena seria passível de recurso e sobre ela os recorrentes não se pronunciaram.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP, tendo os arguidos apresentado resposta defendendo que o acórdão proferido por esta Relação ainda não transitou em julgado, em tudo o mais mantendo o anteriormente alegado.
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Por decisão sumária veio a ser rejeitado o recurso interposto, com o fundamento de que, em face da anterior decisão da Relação, a matéria sobre a qual o presente recurso poderia versar encontrava-se limitada à escolha e determinação da medida da pena, uma vez que, quanto ao demais, a decisão transitara em julgado, pelo que não era já suscetível de recurso.
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Desta decisão sumária reclamaram os recorrentes para a conferência. É o seguinte o teor da sua reclamação (transcrição):

J. S., P. F., MARIA, M. A. e A. C., Recorrentes nos autos à margem referenciados, tendo sido notificados da douta Sentença Sumária proferida, VÊM, nos termos do disposto no n° 8 do art. 417º do CPP, dela RECLAMAR PARA A CONFERENCIA, nos termos e com os seguintes fundamentos:

VENERANDOS SENHORES DOUTORES JUIZES DESEMBARGADORES

Ao contrário do vertido na douta Sentença sumária reclamanda, a condenação inserta no douto Acórdão proferido por V. Excias nos presentes autos em 21 de Maio de 2018 não transitou em julgado.
Com efeito, e como consta dos autos, dado os arguidos não se conformarem com o segmento em que foram julgados autores materiais do crime por que foram acusados, desse douto Acórdão foi interposto Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Sr. Doutor Juiz Desembargador Relator proferido a fls douto Despacho pelo qual não admitiu esse mesmo Recurso.

De tal douto Despacho, os arguidos apresentaram Reclamação para o Senhor Doutor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que a indeferiu, expressando além do mais o seguinte:

"O objecto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronuncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa - ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.

No caso concreto, o Acórdão da relação não conheceu, a final, do objecto do processo ou de um elemento essencial do objecto, tendo em conta que foi determinado o reenvio parcial do processo para novo julgamento, para determinação da espécie e da medida da pena"... E acrescenta ..."mesmo que pudesse ser autonomizada a parte condenatória, não se verificariam, quanto a ela, os pressupostos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta que não foi aplicada qualquer pena concreta, que ainda depende de decisão posterior."

Em conclusão, expressa esta douta Decisão singular assinada pelo Senhor Doutor Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que "No respeitante ao recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, refere-se apenas que este pressupõe o trânsito em julgado do acórdão proferido em ultimo lugar, nos termos do art. 438º do CPP, o que ainda não ocorreu (sublinhado nosso).

Em face do exposto, temos que a condenação inserta no douto Acórdão proferido por V. Excias em 21.05.2018, que julgou os ora Recorrentes como co-autores materiais de um crime de falsificação ou de contrafacção de documento, ainda não transitou em julgado, pelo que o presente Recurso está em condições de ser recebido, não devendo por isso ser rejeitado, mantendo-se tudo o que foi vertido nas Alegações dos Recorrentes.

TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXCIAS que sobre a matéria da douta Sentencia sumária proferida recaia Acórdão que se pronuncie sobre o Recurso apresentado, submetendo-se o caso à Conferencia, assim se fazendo, JUSTIÇA

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II.
Cumpre decidir.

Conforme já dito na decisão sumária, o acórdão anteriormente proferido, na sequência do recurso interposto da primeira sentença do tribunal de primeira instância que determinou o reenvio parcial, identificou concretamente a matéria a averiguar pelo tribunal a quo, ficando o novo julgamento limitado aos factos relevantes para a decisão da concreta questão identificada.
É, pois, pacífico que - como se disse no Ac. RG de 05/03/2018 em que foi relator Fernando Monterroso - se a Relação, além do reenvio parcial, também tiver decidido sobre os demais factos impugnados no primeiro recurso, os sujeitos processuais, no novo recurso, só podem impugnar os factos relevantes para a decisão da questão que motivou o reenvio parcial.

Daqui resulta com clareza que, quer o tribunal de primeira instância, quer este tribunal de recurso, estavam e estão impedidos de se pronunciar em sentido diverso da anterior decisão que, no caso, imputou aos arguidos a prática do crime pelo qual vieram a ser condenados. Tal decisão transitou em julgado.

E ao dizermos que transitou em julgado concretamente referimo-nos às questões que, apreciadas em recurso e, portanto, com respeito pelo duplo grau de jurisdição, já não podem voltar a ser apreciadas.

É o chamado caso julgado progressivo, expressão oriunda do Código de Processo Penal italiano e referida por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, nota 10 ao artigo 426º-A. Também este autor considera que “a decisão do tribunal superior sobre a restante matéria (as questões que o tribunal superior não “colocar” para resolução pelo tribunal inferior) transita em julgado”.

A noção de trânsito em julgado há-de ser entendida de acordo com a finalidade do recurso. Como é referido no Ac. FJ de 04/2016 de 22.02 no plano de finalidade do recurso são três os sistemas possíveis: o sistema de cassação, o sistema de substituição e o sistema intermédio.

Num puro sistema de cassação o tribunal de recurso limita-se a revogar a decisão recorrida e a determinar que o Tribunal a quo profira nova decisão; no sistema de substituição o tribunal de recurso substitui a decisão do Tribunal a quo, por aquela que considere ser a correta; num sistema intermédio o tribunal de recurso manda ao tribunal a quo que profira nova decisão com o conteúdo fixado pelo Tribunal de recurso.

No nosso processo penal predomina o sistema de substituição, embora com limitações, isto é, o tribunal de recurso, por regra, substitui a decisão proferida por outra que entenda que é a correta.

Pode acontecer que o tribunal de recurso não disponha dos elementos necessários à prolação da decisão e, neste caso, sendo manifesta a impossibilidade da decisão da causa, é determinada a baixa do processo à primeira instância relativamente à totalidade ou a questões concretamente identificadas.

Seja como fôr, o Tribunal de recurso dispõe da possibilidade de apreciar e decidir sobre todo o processo, podendo substituir, como aconteceu nos autos, a matéria de facto determinante de absolvição, por outra que leve à condenação. Isto é, ao tribunal de recurso foi pedido que se pronunciasse sobre a culpabilidade e o tribunal de recurso assim o fez. Chegado ao momento de determinação da medida da pena e perante a impossibilidade de o fazer, o tribunal de recurso mandou baixar os autos para esse efeito.

Mas a questão da culpabilidade ficou definitivamente assente.

E, por isso, como se disse na decisão sumária e agora se repete, para trás ficou para os arguidos a possibilidade de contrariar a decisão, na certeza de que, como é dito no Ac. FJ de 4/2016 publicado no DR I série de 22.02.2016, oportunamente lhes foram reconhecidos e conferidos os direitos e instrumentos processuais imprescindíveis e ajustados a fazer valer as suas posições, contrariando as motivações de recurso no sentido da sua condenação, garantindo-lhe a possibilidade efetiva de, previamente ao julgamento do recurso da sentença absolutória, na perspetiva de vir a ser proferida uma decisão condenatória, a discutir, contestar e influenciar, aduzindo argumentos, de facto e de direito, em abono da defesa da sua posição processual.

Assim sendo, tendo os arguidos, como bem disse a Exma. PGA, no parecer proferido ao abrigo do artigo 416º do CPP interposto recurso quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito, mas não falando na única coisa que seria passível de ser objeto de recurso, isto é, a medida da pena, não pode a nova pretensão recursiva ser apreciada - não deveria até ter sido recebido o recurso - dado ser legalmente inadmissível nos termos em que é formulada.
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III.
Decisão.

Em face do exposto, decide-se confirmar a decisão sumária de rejeição do recurso interposto pelos arguidos.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Notifique.
Guimarães, 17 de dezembro de 2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho