Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
285/10.4TAVVG.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PEDIDO CÍVEL
JUROS DE MORA
CÁLCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Sendo o arguido/demandado condenado pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança fiscal e estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, extracontratual, por facto ilícito, constitui-se na obrigação de indemnizar o ISS IP demandante, por todos os danos decorrentes da prática do crime, mais concretamente, da não entrega, no prazo legal, das cotizações deduzidas dos salários dos trabalhadores e devidas à Segurança Social.
II) Para além do valor dessas cotizações, cujo pagamento veio a ser efectuado na pendência do processo, são ainda devidos juros de mora, calculados nos termos do disposto no nº 3 do DL 73/99, de 16/03, com a redacção que lhe foi intoduzida pela Lei nº 3-B/2010, de 28/4 e do artºs 211º e 212º, que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial), vencidos até à data do pagamento do valor das cotizações.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – RELATÓRIO
Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 285/10.4TAVVG.G1, da Comarca de Braga – Vila Nova de Famalicão – Instância Local – Secção Criminal – J1, foram submetidos a julgamento os arguidos K…, Ldª., Joaquim V. e Vasco A.A., melhor identificados nos autos, estando pronunciados, os arguidos pessoas singulares, pela prática em coautoria material de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. no artigo 107º do RGIT, aprovado pela Lei nº. 15/01, de 5 de Junho, com referência ao artº. 105º, nº. 5, do mesmo diploma legal e artº. 30º do Código Penal e sendo imputado à sociedade arguida o mesmo crime, por força do disposto no artigo 7º do citado RGIT.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 18/01/2016, depositada nessa mesma data, decidindo:
1. Absolver o arguido VASCO A.A. da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nº 1 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 e 30ºn.º 2 do Código Penal.
2. Condenar o arguido, JOAQUIM V., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada p. e p. pelos arts. 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nº 1 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, e 30º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 9,00 (nove euros), ou seja, na multa global de € 720,00 (setecentos e vinte euros).
3. Absolver o demandado VASCO A.A. do pedido de indemnização civil deduzido pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP.
4. Condenar o demandado, JOAQUIM V., a pagar ao demandante, INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., a quantia de 21.933,35 (vinte e um mil e novecentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos).
Inconformada com o assim decidido, recorreu o arguido Joaquim V. para este Tribunal da Relação, apresentando a motivação e formulando, a final, as conclusões que seguidamente se transcrevem:
A - O Art.° 42° do Código Contributivo veio estabelecer a existência de contra-ordenação grave para as situações em que o pagamento das contribuições devidas ocorre para além do prazo de 30 dias após o termo previsto para o cumprimento da obrigação;
B - A referida contra-ordenação tem um traço distintivo sobre o regime previsto no Art.° 107° do RGlT e que assenta na falta de pagamento efectivo da contribuição devida, sendo
que, nas situações em que ocorra o pagamento da contribuição, ainda que para além do prazo previsto no Art.º. 105° n.° 4 do RGIT, não pode deixar de se verificar apenas a contra ordenação, e não o crime, ou seja, o pagamento ocorrido para além do prazo de 90 dias previsto nos termos do Art° 105° n. 4 do RGIT, é integrado no elemento típico da contra-ordenação, e não no elemento criminal, para o qual, o elemento típico é a falta de pagamento, puro e simples que não o atraso ou mora no pagamento para além dos trinta dias previstos na infracção em causa;
C - Assim, a conduta do Arguido que procede ao pagamento da contribuição devida, para além do prazo previsto no Art.° 42 n.° 1 do Código Contributivo, e Art.° 105° n. 4 do RGIT, não integra conduta criminalmente punível, mas mera contra-ordenação;
D - Na medida em que a obrigação de indemnizar pela prática de actos ilícitos, tem como pressuposto a medida da diferença, com vista à reposição do lesado no estado em que este estaria não fosse a prática do evento danoso, nos termos dos Arts. 566 e 562° do Cód. Civil, não pode proceder sem mais o pedido de condenação do pagamento de juros moratórios contados nos termos dos Arts, 211 e 212° do Cód. Contributivo, e da Art° 3° n. 1 do Dec. -Lei n.° 73/99, porquanto, a fixação de tais juros decorre da mora no cumprimento da relação contributiva e não da diferença patrimonial registada pelo pagamento tardio;
E - Contudo, e considerando a referida medida da diferença, na apreciação da indemnização terá sempre que se apreciar a limitação decorrente do previsto no Art.° 25° n.° 3 da LGI, na medida em que, estando paga a contribuição, como sucede, nunca a Segurança Social poderia reclamar o pagamento de juros ao gerente da empresa, ou seja, ainda que o pagamento tenha sido efectuado de modo tardio, tal facto não comporta com relação ao gerente da empresa qualquer diferença, dado que, a este lhe assistia a prerrogativa de proceder ao pagamento em singelo; Assim e pela prática do crime em causa, uma vez pagas as contribuições na íntegra, a Segurança Social, enquanto lesada, não regista qualquer diferença patrimonial, pois que, havendo atraso no pagamento, não receberia do gerente mais do que o que se encontra recebido;
F - Assim, não pode o Arguido ser condenado no pedido cível, tal como este vem formulado;
G - A presente sentença não aplica de forma conforme as seguintes normas:
— Art.° 42° do Código Contributivo;
— Arts. 562° e 566° do Cód. Civil, por referencia ao Art.° 483° do Cód. Civil;
— Art.° 25° nº. 3 da LGT;
Termina o arguido/recorrente no sentido de ser concedido provimento ao recurso e, em conformidade, o arguido absolvido.
O recurso foi regularmente admitido, a fls. 779, existindo apenas lapso na menção a que o recurso subiria ao Tribunal da Relação do Porto, quando a subida era para este Tribunal, por ser o competente, conforme determinado por despacho proferido a fls. 793.
O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, nos termos constantes de fls. 786 a 792, que aqui se dão por reproduzidos, formulando, a final, as seguintes conclusões (transcrição):
1 - Resulta da parte inicial do nº 3 do art. 42.°, do Código Contributivo, que, "sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infracções Tributárias", a não entrega das cotizações/contribuições constitui contra-ordenação.
2 - As condutas previstas nos seus nºs 1 e 2 apenas serão puníveis como contra-ordenação se e quando não forem punidas como crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 107.°, do RGIT.
3 - A mesma conduta não é punida simultaneamente como crime e contra-ordenação; apenas serã punida como contra-ordenação sc não for, antes, punida como crime.
4 - "A instauração do processo-crime faz suspender o processo de contra-ordenação". E o processo contra-ordenacionai só prossegue "no caso de não ser deduzida acusação no processo-crime e extinguindo-se sempre que a acusação seja deduzida ".
5 - Nos termos do art. 20.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações, "se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente punido a título de crime (...) ".
6 - Estando as duas normas numa relação de concurso aparente, a mais grave (art. 107.°, do RGIT) consome a menos grave (art. 42.°, do Código Contributivo).
Conclui no sentido de que a sentença proferida não violou o disposto no artº. 42º, nº. 3, do CRCSPSS, nem qualquer outro preceito legal, e nessa conformidade, dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, mantida a sentença recorrida.
Neste Tribunal, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, que se mostra inserto a fls. 803 e 804, cujo teor aqui se dá por reproduzido, aderindo à resposta do Mº.Pº. junto da 1ª instância e aditando outros argumentos, concluindo no sentido de que o recurso deverá ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o decidido.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo a recorrente oferecido resposta.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do C.P.P.).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pela recorrente das motivações apresentadas, as questões a decidir são:
– Parte penal: Saber se a conduta do arguido/recorrente integra mera contraordenação, p. e p. pelo artigo 42º, nº. 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei nº. 110/2009, de 16 de Setembro, e não o ilícito criminal por que o arguido/recorrente foi condenado na sentença recorrida;
– Na parte cível: Se se verifica a isenção do arguido/demandado/recorrente, enquanto gerente da sociedade arguida do pagamento de juros moratórios nos termos dos artºs. 211º e 212º do Cód. Contributivo e do artº. 3º, nº. 1, do Dec.-Lei nº. 73/99, considerando a limitação decorrente do previsto no artº. 25º, nº. 3, da LGT e não se verificando tal isenção se é aplicável a taxa de juros civis
*
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, que são apenas de direito, importa ter presentes os factos que o tribunal a quo, na sentença recorrida, deu como provados, bem como a fundamentação de direito, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e ao pedido cível, nas partes que relevam para a apreciação das enunciadas questões e que se passam a transcrever:
2. FUNDAMENTAÇÃO:
2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
1. A sociedade “K…, Ld.ª” é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica “à confeção de artigos de vestuário; à compra, venda administração e construção de prédios e a compra de imóveis para revenda, a detenção e administração de participações sociais, a representação de empresas nacionais e estrangeiras e a venda de produtos e serviços à comissão”, estando inscrita na Segurança Social desde 21 de fevereiro de 2007.
2. O arguido Joaquim V. é sócio da referida sociedade arguida desde a sua constituição e o arguido Vasco A.A. é sócio da referida sociedade desde pelo menos 14 de novembro de 2009.
3. O arguido Vasco A.A. é gerente da sociedade desde 30 de junho de 2006, conforme deliberação levada a registo.
4. Para além de sócio, o arguido Joaquim V. era também gerente de facto da sociedade arguida, sendo também responsável da pessoa coletiva no período relativo aos factos que se descrevem.
5. O arguido Joaquim dirigiu de facto os interesses da sociedade, representando-a e orientado os seus desígnios e em especial a sua situação económica, financeira e pagamentos de salários e descontos sobre os mesmos para a Segurança Social.
6. A sociedade, por ação do arguido Joaquim que a geria, pagou salários aos seus trabalhadores entre setembro de 2007 e outubro de 2009, entregou regularmente as folhas de remuneração dos seus assalariados e reteve os valores relativos às contribuições devidas à Segurança Social, em 11%,
7. Os salários dos trabalhadores foram efetivamente pagos.
8. Porém apesar de ter retido tais percentagens do valor dos vencimentos dos funcionários, a sociedade, pela mão dos seus indicados responsáveis, reteve abusivamente de tais quantias deduzidas, integrando-as no património social.
9. Tais retenções, cuja entrega é devida à Segurança Social, ascendem a 62.551,88 (sessenta e dois mil quinhentos e cinquenta e um euros e oitenta e oito cêntimos), conforme mapa que se discrimina: (…)
Mês de referência Cotizações de trabalhadores e membros de órgãos estatutários em euros
Setembro de 2007 32,54
Outubro de 2007 1.857,52
Novembro de 2007 1.943,39
Dezembro de 2007 2.116,61
Janeiro de 2008 1.959,79
Fevereiro de 2008 2.075,95
Março de 2008 2.086,54
Abril de 2008 2.111,65
Maio de 2008 1.901,19
Junho de 2008 1.827,97
Julho de 2008 3.596,80
Agosto de 2008 1.783,07
Setembro de 2008 1.717,77
Outubro de 2008 1.826,76
Novembro de 2008 1.801,18
Dezembro de 2008 1.839,35
Janeiro de 2009 3.577,84
Fevereiro de 2009 3.640,81
Março de 2009 3.637,11
Abril de 2009 3.511,98
Maio de 2009 3.489,41
Junho de 2009 3.684,08
Julho de 2009 3.816,84
Agosto de 2009 3.368,63
Setembro de 2009 2.174,37
Outubro de 2009 1.172,73
Total 62.551,88

10. Até à data da dedução da acusação pública, ocorrida em 16/07/2012, em face do pagamento parcial, estava em dívida, nessa data, € 56.008,78 (cinquenta e seis mil e oito euros e setenta e oito cêntimos).
11. Tais montantes retidos e nunca pagos, pertença da Segurança Social, deveria ter sido entregue até ao dia 15 do mês seguinte aos períodos a que respeitam.
12. Não foi entregue na Segurança Social nos citados prazos, nem nos 90 dias seguintes, embora a sociedade arguida, pela mão dos seus responsáveis, tivesse disponibilidade financeira para o fazer.
13. Tendo os arguidos pessoas singulares e a sociedade, na pessoa dos seus representantes, sido notificados para pagamento voluntário, no prazo de 30 dias, e nos termos do art.º 105º, n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, a sociedade não pagou a totalidade das quantia em divida.
14. Ao omitir tais entregas o arguido Joaquim atuou com intenção de obter uma vantagem patrimonial indevida para a sociedade arguida, à custa de igual prejuízo da Segurança Social.
15. O arguido Joaquim, atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta contrariava as disposições legais.
16. O arguido Joaquim sabia que estava obrigado a diligenciar pela entrega das quantias retidas a título de cotizações para a Segurança Social nos termos e nos prazos legais, que conheciam, não o tendo feito com o intuito de conseguir a apropriação de tais quantias pela sociedade, o que conseguiu, com o consequente prejuízo para a Segurança Social.
17. O arguido agiu da forma aludida, durante aquele período de tempo, devido a circunstâncias exteriores decorrentes da atividade empresarial, em especial para obviar aos compromissos imediatos do giro comercial e atentas as dificuldades de tesouraria. (…)
Provou-se ainda que
18. Os arguidos Joaquim e Vasco A.não têm antecedentes criminais.
19. O arguido Joaquim aufere uma reforma no montante de € 1.500,00. Vive, em casa própria, com a sua mulher cuja reforma ascende a cerca de 700,00 euros mensais. Não tem encargos mensais fixos com empréstimos
Do pedido de indemnização civil
20. Em plano prestacional da Secção de Processo Executivo, a sociedade “K…, Ld.ª” pagou quinze prestações, tendo sido abatidos os valores de cotizações e juros, no montante de € 9.814,72,
21. Em 22/04/2014, a sociedade “K… Ld.ª” liquidou a totalidade das cotizações, no montante de € 52.737,16 (cinquenta e dois mil setecentos e trinta e sete euros e dezasseis cêntimos).
22. Àquela data os juros e por referência a cada um dos períodos ascendiam um total a € 21.933,35 (vinte e um mil novecentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos).
23. Relativamente às cotizações supra elencadas, não foi ordenada a reversão relativamente a ambos os arguidos Joaquim e Vasco.
(…)
2.4. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA:
2.4.1. ENQUADRAMENTO JURIDICO-PENAL:
Vêm os arguidos acusados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos arts. 107º e 105º, n.º 5 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho.
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Preceitua o art. 105º da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, no seu nº 1, que: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Estabelece o art. 107º da Lei em apreço, no seu nº 1, que: “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º.” E no seu nº 2, que: “É aplicável o disposto nos nºs 4, 6 e 7 do artigo 105º.”
Finalmente, para a instauração de procedimento criminal por tais factos é necessário, nos termos do n.º 4 do preceito citado em primeiro lugar, que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e ainda que esta, os respetivos juros e a coima não tenham sido pagas, no prazo de 30 dias, após a notificação para o efeito.
Pratica este crime quem não entregar a prestação tributária deduzida nos termos da lei (diferentemente do previsto no art. 24º, nº 1 do RJIFNA, o crime de abuso de confiança fiscal não exige, agora, como seu elemento constitutivo, a apropriação, bastando para a sua consumação a não entrega). Significa isto que efetuados os descontos que constam dos mapas enviados à Segurança Social, o gerente fica apenas depositário dos valores correspondentes, que passaram a pertencer à Segurança Social perante quem tinha a obrigação legal de os entregar no prazo de 90 dias. É esta não entrega (de dinheiro que não lhe pertencia e que tinha que entregar à Segurança Social) que é criminalmente punível.
No crime de abuso de confiança a coisa móvel (neste caso dinheiro) já se encontra em poder do agente, por título não translativo da propriedade, mas este dá-lhe um destino diferente daquele para que lhe foi confiado, não sendo imprescindível a apreensão material das quantias pelo agente, bastando que elas, em vez de serem entregues à Segurança Social, sejam desviadas para outros fins, designadamente para fazer face a outros encargos lícitos da empresa (foi-lhe confiado para ser entregue à Segurança Social e foi utilizado para satisfazer outras obrigações, designadamente, pagamento a fornecedores).
No que tange ao tipo subjetivo, o mesmo esgota-se no dolo, dirigido este à violação da relação de confiança e à não entrega.
Por último, referira-se que é irrelevante para a verificação do crime o destino dado pelo depositário do imposto às respetivas quantias que liquidou e reteve com a obrigação de as entregar ao Estado, verificada a intenção de não entrega e consequentemente, o elemento subjetivo do crime.
Como dito do ponto de vista dogmático-jurídico, o crime de abuso de confiança contra a segurança social, configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico previsto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º 2 do art. 5.º do RGIT.
Subsumindo os factos, estão os elementos do tipo, face à factologia apurada, preenchidos, porquanto resultou provado que o gerente de facto da sociedade Joaquim V., tendo, em representação da sociedade comercial “K…, Ld.ª” efetuado o pagamento dos salários dos trabalhadores, retido as cotizações por estes devidas à Segurança Social, pois não efetuou o pagamento dos salários ilíquidos e posteriormente por sua determinação não entregou à sociedade tais quantias à Segurança Social. Para além do mais, ficou provado que o arguido Joaquim tinha perfeito conhecimento de que as importâncias referidas nos factos provados, correspondentes aos descontos nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos de gerência, deveriam ser entregues à Segurança Social, o que não fez.
Estão preenchidos quanto ao arguido Joaquim V. os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal.
O arguido optou nesses períodos por solver determinados compromissos em detrimento de outros: não se trata (…) de uma questão de nem sequer ter dinheiro, mas sim do pouco que havia ter sido canalizado para determinados sectores em prejuízo de outros, ou seja, opção de gestão.
O próprio arguido afirmou que pretendera cumprir os compromissos com os trabalhadores, manter a empresa em atividade e salvar postos de trabalho (como é sabido que sucede com frequência em situações como esta, sendo que dessa forma, também com frequência, a insolvência não é evitada, mas apenas adiada). Isso não contraria a conclusão de que em vez de entregar as quantias em causa à Segurança Social, o arguido nos respetivos períodos utilizou tais quantias para cumprir compromissos com trabalhadores (pagar salários subsequentes) e manter a empresa em atividade (o que exigirá sempre não deixar de pagar despesas mínimas e imprescindíveis a tal atividade). Que tenha sido esse o destino dado a tais quantias não deixa de assumir significativa relevância (e assumirá também no caso vertente), como circunstância atenuante, na determinação da medida concreta da pena, pois o tribunal não pode deixar de ser sensível à nobreza de propósitos dos agentes. Mas não deixamos de estar perante a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, pois se verificou inversão do título de posse quando o arguido Joaquim V. destinou verbas que não lhe pertenciam a um fim diferente do da entrega ao proprietário respetivo.
De qualquer forma obteve para a sociedade comercial uma vantagem patrimonial indevida à custa da diminuição do património da Segurança Social, no montante que resulta dos factos provados. E tendo agido de forma livre e consciente com o conhecimento de que com cada uma das suas atuações estavam a ofender o erário da Segurança Social, a quem tais quantias pertenciam, e que era sua obrigação proceder à entrega das cotizações nos serviços competentes daquela entidade, nos períodos acima indicados, conhecendo a proibição da sua conduta, preencheu o arguido todos os elementos do tipo de ilícito imputado.
(…)
Não existem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Importa agora determinar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos legais necessários para a consideração da conduta do arguido Joaquim integra um só crime, uma pluralidade de crimes ou um crime sob a forma continuada.
Dúvidas não restam que, do ponto de vista objetivo, se verificou uma realização plúrima do mesmo tipo legal de crime. Importa, assim, considerar no elemento que permite fazer a imputação subjetiva do crime em apreciação.
(…)
No caso em apreço, importa atender:
i) ao modo como é feita as entregas das contribuições devidas – retenção ao montante devido pela entidade patronal, sujeito passivo, que, na qualidade de fiel depositário, o retém até à altura de proceder à respetiva entrega – e ao modo de execução dos factos em apreço nos autos, nos termos que se deram como provados;
ii) à sequência temporal com relação à qual se verificou o incumprimento;
iii) à afetação das quantias não entregues…
O arguido Joaquim, em representação da arguida sociedade, não entregou à Segurança Social os montantes que lhe eram devidos. Tal situação, que se protelou no tempo “facilitou” e levou à não entrega dos montantes devidos à entidade competente. Com efeito, as dificuldades financeiras da sociedade, a manutenção desta situação, a prática do primeiro ato sem punição, levaram a que o arguido "caísse novamente em tentação", agindo em momentos temporais sucessivos, ao dever de cumprimento das correspondentes obrigações fiscais, atuando, com o denominado dolo global (no sentido de que todos os atos parcelares apenas representam a realização sucessiva de um todo, unitariamente querido), pelo que se perfila uma menor censurabilidade na sua atividade.
Em face do exposto, considera-se que o arguido praticou o ilícito, na forma continuada, pelo qual deverão ser condenado nos termos do artigo 79.º do CP, que manda punir o crime continuado com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação criminosa.
Na verdade, as condutas do arguido repetiu-se sucessivamente, e foram facilitadas pelo facto de a Segurança Social não ter agido durante todo esse tempo e atentas as razões de ordem económico - financeiras, o que o levou a decidir continuar a repetir os factos delituosos, canalizando para outros fins os montantes retidos aos salários dos trabalhadores e que estavam obrigados a entregar aos Serviços da Segurança Social, encontrando-se, assim, a sua culpa consideravelmente diminuída.
Por outro lado, deverá considerar-se também que se verifica, no caso em apreço, a necessária conexão temporal entre as condutas integradoras da continuação criminosa, uma vez que não é possível descortinar a existência de hiatos entre cada uma das condutas do arguido, pelo facto de a retenção e consequente não entrega dos valores retidos, o que ocorreu ao longo de quase dois anos, para além de que foi sempre a mesma situação exterior que determinou o não cumprimento. A este propósito citamos o Ac. do STJ, de 04/02/2010, in www.dgsi,pt, que dispõe que “Estamos face a uma reiteração de condutas, perante situações que se foram repetindo, com carácter de homogeneidade, violando o arguido o mesmo tipo de ilícito criminal, ao longo de um período temporal apreciável, se bem que com periódicas manifestações de fidelização ao direito, com intermitências de cumprimento, seguidas de novas sucumbências.”
Ponderado tudo quanto acima se deixou exposto, conclui-se que deverá o arguido Joaquim ser punidos por um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, nos termos do disposto no art. 30º, n.º 2 do Código Penal.
Em face desta constatação decorre no entanto que seguimos um raciocínio diferente do invocado na acusação pública para a qual o despacho de pronúncia remete, porquanto esta imputou a prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido no art.º 107º e 105º, n.º 5 do RGIT.
Estabelece o preceito legal invocado em último lugar que quando a entrega não efetuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
Nos termos do art.º 79º do Código Penal, o um crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
E sendo certo que a conduta mais grave por referência a cada um dos meses em que a quantia retida e não entregue à Segurança Social não foi superior a € 50.000,00, independentemente do valor total de todos os períodos ultrapassar tal montante, preencheu o arguido o n.º 1 do art.º 105º do Regime Geral das infrações Tributárias e nunca o n.º 5, sendo assim a sua conduta somente punível pelo n.º 1.
Será assim o arguido condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido no art.º 107º, 105º, n.º 1 do Regime Geral das infrações Tributárias, e art.º 30º do Código Penal, para o que se convola, sendo que não se comunica esta alteração por se entender que ao arguido que se defendeu uma incriminação mais grave, já se defendeu de uma incriminação menor.
(…)
2.5. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P. veio deduzir pedido de indemnização civil, e após a redução do pedido de indemnização civil, que se admite e homologa, requerendo que os arguidos/demandados Joaquim e Vasco A.sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 21.933,35 (vinte e um mil e novecentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos), cujo montante resulta do somatório dos juros em dívida à data do pagamento total das cotizações, calculados nos termos do art. art. 3º do DL nº 73/99, de 16 de Março, com a redação que lhe foi dada pela Lei 3-B/2010, de 28/04 e dos artigos 211º e 212º da Lei 110/2009, que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial.
*
A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada, conforme prescreve o art. 129º do Código Penal, pela lei civil. O pedido civil formulado no processo penal tem como causa de pedir o facto ilícito típico do crime, sendo certo que a responsabilidade civil que emerge da prática do crime é aquela a que se refere o art. 483º do Código Civil. Paralelamente, estabelece o art. 71º do CPP, que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal terá que ser sempre fundado na prática de um crime. Trata-se de uma situação de responsabilidade civil extracontratual, com exclusão da responsabilidade civil contratual. [Cf. Assento 7/99 de 17/6/99, in DR I-A de 3/8/99.]
Conforme dispõe o art. 483º, n.º 1 do Código Civil, são pressupostos da obrigação de indemnizar o facto voluntário e ilícito do agente, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano e o nexo de imputação do facto ao lesante.
Facto ilícito é todo aquele dominável ou controlável pela vontade humana, que não esteja a coberto de nenhuma causa de justificação.
A culpa pode configurar o dolo (a intenção de praticar um facto ilícito ou a conformação com esse resultado) e a negligência (a omissão de um dever objetivo de cuidado).
Há ainda que apurar os danos, sendo certo que estes constituem uma lesão patrimonial ou não patrimonial na esfera jurídica do lesado, e que tem uma expressão económica suscetível de ser ressarcida (art. 562º do Código Civil).
Por último, quanto ao nexo causal prescreve o art. 563º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
O arguido Joaquim, em sede de alegações invocou a prescrição dos juros, por força da lei tributária.
Cumpre decidir:
Sufraga-se inteiramente o entendimento plasmado no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01/02/2012, disponível in www.dgsi.pt
O direito à indemnização arbitrado em processo penal (conexo com a prática de um crime) segue as regras do direito civil – art. 128º do C. Penal.
Deste preceito resulta que as regras aplicáveis quanto à fixação do direito à indemnização são as que constam da lei civil. Como já se decidiu (acórdão da mesma Relatora deste processo), “O prazo de prescrição do pedido civil deduzido em processo penal atinente à prática de um crime de Abuso de confiança contra a segurança social é o prazo de prescrição do direito à indemnização e não o das prestações tributárias.” – Acórdão desta Relação, de 23-02-2011, proferido no processo n.º 690/06.0TAMCN.P1, publicado em wwwdgsi.pt
Ora, como se disse no referido acórdão, impõe-se esclarecer “uma questão que está na origem da argumentação (menos exata) do recorrente. A questão da prescrição coloca-se quanto ao direito à indemnização e não quanto à obrigação tributária devida à Segurança Social.”
É nosso entendimento ainda que a questão da prescrição quanto aos juros não se rege pela lei tributária invocada pelo arguido, mas lei civil.
O pedido cível deduzido no processo penal, a título de indemnização pelos danos causados pela prática do crime, pode ser superior ao montante das prestações não entregues, desde que seja esse o prejuízo causado pelo ilícito, pois já não está em causa apenas o incumprimento de uma obrigação legal.
A fonte da obrigação, caso ocorra um crime e este cause danos, não é a lei que delimita a obrigação de entregar certas quantias à Segurança Social (norma de incidência) mas sim a responsabilidade civil.
A natureza jurídica da obrigação também sofre idêntica mudança, pois não estamos a averiguar se existe uma dívida de Contribuições à Segurança Social, mas sim a averiguar a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, definidos no art. 483º do C. Civil.
Neste contexto, o que é relevante não é a prescrição da prestação tributária, mas sim o prazo de prescrição do direito à indemnização. E este prazo, de acordo com o artigo 498º, n.º 3, do C. Civil, é o prazo de prescrição do ilícito criminal, se este for mais longo: “se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”. Como o direito à indemnização por factos ilícitos prescreve no prazo de três anos (art. 498º, 1 do C. Civil) e o prazo de prescrição do crime é de cinco anos, é este o prazo aplicável.
Assim, o prazo de prescrição do direito à indemnização cível, pelos danos decorrentes da prática do ilícito penal é, como vimos acima, de cinco anos.
Tal prazo está sujeito às regras previstas na lei civil sobre a contagem, interrupção e suspensão do prazo da prescrição – art. 129º do C. Penal.
(…)
Entende-se assim que não ocorreu a prescrição do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, por que foi condenado o arguido (o prazo só começou a correr a partir falta de entrega da última prestação), nem da respetiva indemnização civil (o prazo foi interrompido, sendo que o novo prazo ainda nem começou a correr).
Acresce ainda dizer que o arguido para efeitos de pedido de indemnização civil, deduzido em processo penal, não foi demandado a título subsidiário, como por si invocado, não sendo nesta sede chamadas à colação as normas, nomeadamente a do art.º 23º, n.º 5 da LGT, que têm de ser afastadas.
Como supra referido, a condenação depende da verificação dos requisitos civis do instituto da responsabilidade civil e não de normas tributárias, essas que deverão ser invocadas em sede própria (em processo tributário, processo executivo), mas nunca no pedido de indemnização civil deduzido em processo crime. Por essa razão não são invocáveis nesta sede as normas tributárias.
A este propósito, vide Acórdão n.º 1/2013, DR 4 SÉRIE I de 2013-01-07, Relator Juiz Conselheiro, Pires de Graça “Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.” e seus fundamentos:
“A causa de pedir subjacente ao titulo no processo executivo é o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, enquanto que a causa de pedir subjacente ao pedido de indemnização civil é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social. Não se pode dizer que o demandante ISS, IP pretende usar o processo declarativo para definir um direito que já se encontrava estabelecido em termos idênticos num título com manifesta força executiva, como o que está presente nas execuções nas SPE. Como se sustenta nos Acórdãos do STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009 a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes. Por outro lado, na responsabilidade civil por facto ilícito o arguido gerente, como co-autor, responde solidariamente com a sociedade arguida pelo pagamento da indemnização por danos causados à segurança social, nos termos do art. 497.° do Código Civil, art.º 3.º do RGIT, arts. 8.° e 129.° do CP, razão pela qual, para obter título executivo contra todos os arguidos - incluindo os não susceptíveis de figurar originariamente no titulo na SPE - sempre o ISS,IP terá que formular o pedido civil contra todos no processo crime (Neste sentido, (CC. António Santos Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, 1998, págs. 232-234, e Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16.8. ed., pág. 630, nota 15.)).
(…)
mais concretamente sobre o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários, rege o n.º 2 do art. 153.º do CPPT, aprovado pelo DL 433/99, de 26-10, republicado em anexo ao DL 15/2001. Tal chamamento depende da verificação de qualquer das seguintes circunstâncias: inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores, ou fundada insuficiência, de acordo com os elementos constantes do auto de penhora e outros de que o órgão da execução fiscal disponha, do património do devedor para a satisfação da dívida exequenda e acrescido. E de acordo com o art. 159.º do mesmo CPPT, no caso de substituição tributária e na falta ou insuficiência de bens do devedor, a execução reverterá contra os responsáveis subsidiários. Com a reversão o que ocorre é uma modificação subjectiva da instância, uma ampliação do âmbito subjectivo da instância executiva, através da intervenção de um terceiro (à luz do título executivo extrajudicial donde promana a execução fiscal – certidão extraída do título de cobrança – art. 162.º, al. a), do CPPT), mas que também é sujeito passivo da relação tributária, como “responsável” (art. 18.º, n.º 3, in fine, da LGT), vinculado ao cumprimento da prestação tributária, nos termos do n.º 2 do art. 23.º da LGT e art. 153.º, n.º 2, do CPPT, ou seja, no caso de não haver bens penhoráveis do devedor e seus sucessores ou insuficiência de bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários. A execução reverte assim contra pessoa distinta da que figura no título executivo como devedor, ocorrendo quanto a ela, não os pressupostos do facto tributário, mas da responsabilidade, operando-se a extensão da obrigação de cumprimento da prestação tributária a pessoa diversa do contribuinte directo. Estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto actos relativos ao inquérito e instrução criminais e ao exercício da acção penal. A figura de reversão, própria do processo executivo tem por objectivo chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cfr. arts. 55.º, n.º 1, do CPC, e 153.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT), situação completamente diversa daquela em que há demandado ab initio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal. Na execução fiscal o devedor substituto não figura no título de cobrança do tributo. Ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do art. 467.º do CPP. Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual – art. 6.º do RGIT – sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo – art. 483.º do CC. Mais do que uma presunção legal de culpa (art. 23.º, n.º 4, da LGT), invocável em sede de responsabilidade tributária, aqui o pedido de indemnização fundamenta-se na prática de um facto que à data constituía crime doloso, pois o crime em questão é apenas previsto na forma dolosa (não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores de crime só podem ser punidos se praticados com dolo – art. 13.º do CP), sendo o pedido substanciado numa causa de pedir de matriz diversa – não em responsabilidade tributária, mas responsabilidade criminal e responsabilidade civil decorrente da prática de um crime, uma responsabilidade extra contratual, delitual ou aquiliana. Sendo certo que o ISS, pode instaurar processo de execução fiscal possuindo para tal título executivo, podendo ainda nessa sede requerer a reversão, reunidos que sejam os necessários requisitos, nada impede que faça uso da faculdade conferida em processo penal do princípio da adesão.”
Assim, da matéria provada, aplicando as regras do Código Civil, inclusive quanto a juros, resulta o preenchimento dos referidos pressupostos, quanto ao arguido Joaquim.
Verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar, deve o demandado Joaquim ser condenado no pagamento da quantia de € 21.933,35 (vinte e um mil e novecentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos).
(…)»

Passemos, então, a apreciar e decidir do mérito do recurso:
1ª – Parte penal: Saber se a conduta do arguido/recorrente integra mera contraordenação, p. e p. pelo artigo 42º, nº. 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei nº. 110/2009, de 16 de Setembro, e não o ilícito criminal por que o arguido/recorrente foi condenado na sentença recorrida
Sustenta o recorrente que a conduta que assumiu e que resultou apurada, tendo pago as contribuições devidas, ainda que para além do prazo de 90 dias, previsto no nº. 4 do artigo 105º do RGIT, integra a contraordenação prevista no artigo 42º, nº. 1,do Código Contributivo e não o crime previsto no artigo 107º do RGIT, por que foi condenado, na sentença recorrida.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não merecer acolhimento a tese defendida pelo arguido/recorrente, defendendo que as normas dos artºs. 107º do RGIT e 42º do Código Contributivo, não têm o mesmo campo de aplicação mas um campo de aplicação complementar e supletivo e, ainda, que assim não se entendesse, teria aqui aplicação do disposto no artigo 2º, nº. 3, do RGIT e 236º do CRCSPSS, que estatuem que “se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente punido a título de crime …”.
Vejamos:
Sob a epígrafe “Responsabilidade pelo cumprimento da obrigação contributiva”, dispõe o artigo 42º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro,
1 - As entidades contribuintes são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço.
2 - As entidades contribuintes descontam nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetem-no, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente.
3 - Sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infracções Tributárias, a violação do disposto nos nºs 1 e 2 constituí contra-ordenação leve quando seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo e constitui contra-ordenação grave nas demais situações.
E estatui o artigo 107º do RGIT (que tipifica o crime de abuso de confiança contra a segurança social):
“1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidos com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º”.
2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105º.
O artigo 105º do RGIT (que tipifica o crime de abuso de confiança), no seu nº. 4, na redação vigente à data dos factos, preceitua:
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. – redação da Lei nº. 53-A/2006, de 29 de Dezembro.
Decorre do artigo 107º, nº 1, do RGIT, que o crime de abuso de confiança contra a segurança social tem por objeto necessário as contribuições à segurança social deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais – Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, nº. 5, 2ª edição, Almedina, pág. 187 – e não entregues às instituições de segurança social, pelas entidades empregadoras, nos prazos previsto no nº. 4 do artigo 105º do RGIT, para que remete o nº. 2 do artigo 107º.
Para o preenchimento do enunciado crime tem de ter havido dedução da prestação contributiva nas remunerações dos trabalhadores e/ou membros dos órgão sociais.
Já a contraordenação prevista no artigo 42º do CRCSPSS, não exige que tenha havido dedução da prestação contributiva em questão, pois que se verificará, ainda que não tenha havido dedução, havendo obrigação da prestação, havendo obrigação de proceder à mesma.
Entendemos, salvo o devido, respeito pela opinião contrária, que o ilícito contraordenacional abrange também as situações em que tendo sido deduzida a prestação contributiva, a sua entrega à instituição de segurança social competente, seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo, constituindo contraordenação leve de harmonia com o disposto no nº. 3 do artigo 42º do CRCSPSS e constituindo contraordenação grave em caso de incumprimento do disposto nos nºs. 1 e 2 do citado normativo, isto sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, designadamente, no seu artigo 107º.
A interpretação que fazemos do artigo 42º do CRCSPSS, na articulação com o artigo 107º do RGIT é, assim, mais abrangente do que a perfilhada no Ac. da R.E. de 03/03/2015, proferido no proc. 103/08.3TASTR., acessível no endereço www.dgsi.pt, que vai no sentido de considera que, no caso do artigo 42º só existe contra-ordenação se não for cumprido o dever de dedução. A este propósito escreve-se no enunciado Aresto: «Prevendo o n. 1 do preceito que as entidades contribuintes são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço (ou seja, que o Estado faz incidir sobre elas um dever de dedução sobre as remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e posterior remessa, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente), o incumprimento desse dever de se substituir ao Estado no desconto constitui um ilícito punível como contra-ordenação leve quando seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo e grave nas demais situações
Merecem a nossa concordância as considerações tecidas e o entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30/01/2013, proferido no proc. nº. 941/08.7TAVIS.C1, acessível no endereço www.dgsi.pt, que é referenciado na resposta ao recurso apresentada pelo Mº.Pº. junto da 1ª Instância e pelo Exmº. PGA no parecer emitido, aderindo-se à fundamentação aí expendida, que passamos a citar:
«Resulta do reproduzido texto que o invocado n.º 3 do artigo 42° do CRCSPSS que a não entrega das quotizações e contribuições constitui contra-ordenação “sem prejuízo do disposto no RGIT”.
Não obstante as dúvidas suscitadas pela aparente coincidência das previsões legais -anteriores ao próprio CRCSPSS, o que logo nos alerta para a evidência de que o legislador as conhecia, devendo afastá-las caso entendesse que tinham fundamento - certo é que foi o próprio legislador quem, prevenindo tal sobreposição, ressalvou na parte inicial do preceito a sua aplicação: “Sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infracções Tributárias…”.
Assim, o próprio legislador, conhecedor das dúvidas pré-existentes, previu, de forma expressa e consciente, a compatibilização dos dois regimes: apenas será punível como contra-ordenação qualquer uma das condutas plasmadas no nº 1 ou no nº 2 do artigo 42º do CRCSPSS, quando a mesma conduta não constituir, antes, crime previsto no RGIT.
Assim, as disposições em causa não se sobrepõem, antes têm campos de aplicação complementares: em determinado patamar como contra-ordenação, num outro - que, a verificar-se, por mais restritivo e exigente consome aquele (“sem prejuízo de…”) - como crime.
Ora, nos termos do art. 9º do C. Civil, deve o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Assim, por força da expressa ressalva do nº 3 do artigo 42º do CRCSPSS, as condutas previstas nos nºs 1 e 2 do mesmo preceito (art. 42º do CRCSPSS) apenas serão puníveis como contra-ordenação se e quando não forem punidas como crime de abuso de confiança pelo artigo 107º do RGIT.
Sendo certo que, verificando-se os pressupostos do crime - mais exigentes e restritivos - o crime consome a contra-ordenação.
As duas normas não têm o mesmo campo de aplicação mas um campo de aplicação complementar e supletivo. A mesma conduta não é punida simultaneamente como crime e contra-ordenação. Apenas será punida como contra-ordenação se não for punida, antes, como crime, no recorte típico mais exigente e com condições de punibilidade mais restritivas, nos termos definidos pelo RGIT.
Supletividade que se verifica também a nível adjectivo ou processual. Estabelecendo-se que "A instauração do processo-crime faz suspender o processo de contra-ordenação". E que o processo contra-ordenacional só prossegue "no caso de não ser deduzido acusação no processo-crime e extinguindo-se sempre que a acusação seja deduzida".
O entendimento referido é consonante com o regime geral sobre o concurso de infracções definido pelo artigo 236º do CRCSPSS.
Com efeito Sob a epígrafe “Concurso de infracções”, postula o citado preceito:
1- Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente é punido a título de crime, sem prejuízo das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação e do disposto no número seguinte.
2 - A aplicação da sanção acessória, nos termos do número anterior, cabe ao tribunal competente para o julgamento do crime.
3 - A instauração do processo-crime faz suspender o processo de contra-ordenação, prosseguindo este no caso de não ser deduzida acusação no processo-crime e extinguindo-se sempre que a acusação seja deduzida.
Disposição que por sua vez reproduz o regime geral de concurso entre contra-ordenações e crimes definido no Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas.
Com efeito, postula o art. 20º do RGCC: “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias prevista para a contra-ordenação”.
Tudo dentro do princípio geral relativo ao concurso de infracções, por consumpção: sendo o mesmo facto punido por várias normas existe concurso aparente de infracções, sendo a infracção menos grave consumida pela mais grave que oferece uma previsão mais perfeita e completa do caso, esgotando a possibilidade de aplicação da menos grave, a punição mais grave consome a menos grave, em respeito ao princípio constitucional nos bis in idem (art. 29º n.º 5 da CRP).
(…)
Por outro lado, ainda que possa existir parcial coincidência normativa entre o disposto no artigo l07º do RGIT e o artigo 42º, nº 1 e 2 do CRCSPSS, a verdade é que as disposições em causa têm pressupostos materiais de aplicação distintos. Sendo os pressupostos do crime mais apertados, restritivos e exigentes que os da contra-ordenação.
Daí que o crime, quando verificados os seus pressupostos, consuma e esgote o campo de aplicação da contra-ordenação. Não, obviamente, o inverso – o mais consome o menos mas o menos não esgota o conteúdo do mais.
Quer no recorte objectivo - por exemplo a contra-ordenação abrange as múltiplas situações previstas nos nºs 1 e 2 do preceito, entre elas a mera falta de “desconto” enquanto o crime apenas se verifica com a “não entrega” e a consequente inversão do título de posse do desconto efectuado.
Quer ao nível das condições objectivas de punibilidade - v.g. no crime a exigência do decurso de 90 dias sobre o termos do prazo e da comunicação, através de declaração própria, da dedução da prestação, enfim a necessidade da notificação por parte da administração – n.º 4 do art. 205º, por remissão expressa do n.º2 do art. 107º do RGIT.
O concurso aparente de infracções constitui uma questão de qualificação jurídica, suscitando-se fundamentalmente quando uma única acção é susceptível de integrar mais que um tipo de crime que proteja, nuclearmente, o mesmo bem jurídico. Em tal caso a violação de vários preceitos á apenas aparente e não real ou efectiva, na medida em que, formalmente são violados vários preceitos mas, numa interpretação criteriosa dos preceitos legais concorrentes, apenas uma delas tem cabimento, por, de uma forma mais completa, redonda, esgotar, a ilicitude da punição menor.
Haverá concurso aparente de infracções, por consumpção, quando o crime mais grave inclui nos seus elementos descritivos o preenchimento de elementos de outro tipo de crime menos grave. Existindo como que uma relação equivalente a dois círculos concêntricos em que o de menor raio se encontra totalmente dentro daquele que tem o raio maior. Como refere Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, cit. Colecção Teses, 1983, 133-134, “trata-se de uma relação entre os bens jurídicos violados entre mais e menos, uns contêm-se já nos outros. Só relações de mais e menos, entre bens jurídicos tutelados pelas normas, podem estar na base da consunção”.
A relação de especialidade e consumpção é jurídica e não fáctica – a mesma acção está prevista em duas previsões legais distintas, sendo que um deles abrange de forma completa “todos” os elementos da infracção concorrente. Daí que, punindo o mais, engloba/consome o menos que naquela está contido.»
Ora, aplicando estas considerações ao caso vertente, em face da factualidade que resultou provada, da qual decorre que o arguido/recorrente, atuando em representação da sociedade “K…, Ldª.”, cuja gerência de direito e também de facto, exercia, descontou dos salários pagos aos trabalhadores da mesma sociedade, entre setembro de 2007 e outubro de 2009, os valores relativos às contribuições devidas à Segurança Social, retendo tais valores e não os entregando à Segurança Social, como devia, no prazo legalmente previsto para o efeito (até ao dia 15 do mês seguinte aos períodos a que respeitavam as contribuições, em cumprimento ao disposto nos artigos 3.º e 10.º do Dec. Lei 199/99, de 08 de Junho), não efetuando o pagamento desses valores nos 90 dias seguintes (prazo previsto no art.º 105.º, n.º 4, al. a), do RGIT), nem nos 30 dias que se seguiram à notificação efetuada, nos termos do art.º 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
Por outro lado, provou-se que o arguido/recorrente sabia que estava obrigado a diligenciar pela entrega das aludidas quantias retidas a título de cotizações para a Segurança Social e nos termos e nos prazos legais, que conhecia, não o tendo feito com o intuito de conseguir a apropriação de tais quantias pela sociedade, o que consequente prejuízo da Segurança Social, agindo livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta contrariava disposições legais.
Conclui-se, assim, que o arguido/recorrente, através da sua descrita conduta, preencheu objetiva e subjetivamente o crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelos artºs. 107º, nºs. 1 e 2 e 105º, nº. 1, ambos do RGIT e mostram-se verificadas as condições objetivas de punibilidade, do mesmo crime.
Não há, pois descriminalização da conduta do arguido/recorrente, em termos de integrar a contraordenação p. e p. pelo artº. 42º do CRCSPSS
Improcede, portanto, nesta parte, o recurso.

- Na parte cível: Se se verifica a isenção do arguido/demandado/recorrente, enquanto gerente da sociedade arguida do pagamento de juros moratórios nos termos dos artºs. 211º e 212º do Cód. Contributivo e do artº. 3º, nº. 1, do Dec.-Lei nº. 73/99, considerando a limitação decorrente do previsto no artº. 25º, nº. 3, da LGT e não se verificando tal isenção se é aplicável a taxa de juros civis
Sustenta o recorrente que a fixação dos juros moratórios, contados nos termos dos artºs. 211º e 212º do Código Contributivo e do artº. 3º, nº. 1, do Dec.-Lei nº. 73/909, a cujo pagamento foi condenado, na sentença recorrida, decorre da mora no cumprimento da relação contributiva e não da diferença patrimonial registada pelo pagamento tardio, a que haverá que atender nos termos dos artºs. 566º e 562º, ambos do Código Civil.
Defende, ainda, o recorrente que, considerando a referida medida da diferença, na apreciação da indemnização, ter-se-á de atentar à limitação decorrente do previsto no artº. 25º, nº. 3 da LGT, na medida em que, estando paga a contribuição, como sucede, nunca a Segurança Social poderia reclamar o pagamento de juros ao gerente da empresa, como sucede com o recorrente.
Vejamos:
O demandante ISS I.P., na sequência do pagamento pela sociedade arguida, em 22/04/2014, do valor das cotizações peticionado nos autos, veio reduzir o pedido de indemnização civil, para a quantia de €21.933,35, por juros de mora (calculados nos termos do disposto no nº. 3 do DL 73/99, de 16/03, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº. 3-B/2010, de 28/4 e dos artºs. 211º e 212º, que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial), vencidos até à data do pagamento do valor das cotizações. – cfr. fls. 678 e 679.
Na sentença recorrida, o demandado/recorrente foi condenado no pagamento da quantia peticionada, referente aos juros moratórios.
Desde logo e tal como se refere na sentença recorrida, importa salientar, que, para efeitos de pedido de indemnização civil, deduzido em processo penal, o arguido, ora recorrente não foi demandado a título subsidiário, como por si invocado, não sendo nesta sede, chamadas à colação as normas da relação tributária, nomeadamente a do art.º 23º, n.º 5 da LGT, que têm de ser afastadas.
Significa isso que «a condenação depende da verificação dos requisitos civis do instituto da responsabilidade civil e não de normas tributárias, essas que deverão ser invocadas em sede própria (em processo tributário, processo executivo), mas nunca no pedido de indemnização civil deduzido em processo crime. Por essa razão não são invocáveis nesta sede as normas tributárias.»
Não estamos aqui, no âmbito da responsabilidade tributária, endo que nesta, tal como refere Américo Brás Carlos, in Impostos – Teoria Geral, 4ª edição, item 31, acessível no endereço http://books.google.pt., os responsáveis tributários subsidiários, são chamados ao pagamento do imposto, do sujeito passivo/devedor originário, quando o património deste último, for insuficiente para o seu pagamento, para o efeito (cfr. artº. 23º da LGT), com a reversão contra o responsável subsidiário, operada em execução instaurada contra o sujeito passivo/devedor originário, passando o património daquele a responder pela divida tributária, acrescida de juros e dos demais encargos previstos na lei, sem prejuízo de, nessa situação, o responsável não originário ficar isento de juros de mora e de custas, se cumprir a divida no prazo para a oposição à execução contra si revertida – 30 dias – (cfr. artº. 23º nº. 5 da LGT e artº. 203ºdo CPPT).
Encontramo-nos, tal como se evidencia na sentença recorrida, no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, emergente da prática de crime, pelo arguido/demandado/recorrente, que é geradora da obrigação de indemnizar pelos danos causados.
Temos, assim, que o regime da responsabilidade tributária, previsto, designadamente, na Lei Geral Tributária, é específico do direito tributário e refere-se às dívidas das prestações tributárias, em que o devedor originário é o ente coletivo, enquanto à responsabilidade emergente do crime, quer por força por força do disposto no artº 3º do RGIT, quer por força do disposto no artigo 8º do C.P, é aplicável o disposto nos artºs 483° a 498° do Código Civil, por remissão do art° 129° do Código Penal, os responsáveis pela indemnização são os agentes do crime. – cfr. Prof. Germano Marques da Silva – Direito Penal Tributário – Universidade Católica – 2009, pág.113 e 114.
Ora, sendo o arguido/demandado/recorrente condenado pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social e estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, extracontratual, por facto ilícito, constituiu-se na obrigação de indemnizar o ISS IP demandante, por todos os danos decorrentes da prática do crime, mais concretamente, da não entrega, no prazo legal, das cotizações deduzidas dos salários dos trabalhadores e devidas à Segurança Social.
Para além do valor dessas cotizações, cujo pagamento veio a ser efetuado na pendência do presente processo, são ainda devidos juros de mora.
A questão está em saber qual a taxa de juros aplicável e data a partir da qual os juros são devidos.
A jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 06/12/2012, proc. 224/02.6TASRT.C1.S1, Ac. da R.C. de 21/09/2016, proc. 63/14.1TATBU.C1, ambos acessíveis no endereço www.dgsi.pt e Ac. da R.P. de 18/04/2012, Ac.s da R.L. de 14/05/2014 e de 30/09/2015, publicados na CJ, respetivamente, Ano 2012, tomo 2, pág. 222 e seg.s, Ano 2014, tomo 3, pág. 154 e seg.s, Ano 2015, tomo 4, págs. 136 e seg.s), e que merece a nossa concordância, vem decidindo que:
- A taxa de juros é a prevista no artigo 3º, nº. 1, do Decreto-Lei nº 73/99, de 19 de Março (que dispõe: A taxa de juros de mora é de 1%, se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.), aplicável às dívidas do Estado e, por força do disposto no artigo 16º do DL nº. 311/91, de 17 de Outubro às dívidas da Segurança Social
- O prazo da contagem dos juros de mora (não se estando perante uma obrigação ilíquida, mas liquida), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 806º do C.C., 5º, nº. 3, do DL 103/80, de 9 de Maio, conjugado com o artº. 16º do DL 411/91, de 17 de Outubro e do nº. 2 do artº. 10º do DL 199/99, de 8 de Julho, deverá reportar-se ao 15º dia do mês seguinte àquele a que dizem respeito as contribuições que estavam em dívida, calculados nos termos referenciados no parágrafo anterior.
Em sustentação da orientação acolhida são aduzidos três argumentos preponderantes, a saber:
- Uma vez que existe um regime indemnizatório especial, para a mora no cumprimento da obrigação de entrega das contribuições devidas à Segurança Social, previsto no Dec.-Lei nº. 73/99, de 19 de Março, aplicável ex vi do disposto no artigo 16º do Dec.-Lei nº. 411/91, de 17 de Outubro, trata-se de lei especial, deverá ser a aplicada (afastando a aplicação do regime geral dos juros civis a que faz referência o nº. 2 do artigo 806º e 559º, nº. 1, do C. Civil), tendo em conta o disposto no artigo 7º, nº. 3, do C. Civil, no sentido de que «a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador».
- Em termos de interpretação lógica e sistemática, não faria sentido que o devedor de uma obrigação fiscal estivesse obrigado a determinada taxa de juros de mora e que, mantendo-se válidos os pressupostos da obrigação, a que acresce a responsabilidade criminal, o(s) arguido(s) conseguisse(m) um “prémio” pela prática do crime, pagando uma taxa de juro inferior aquela que lhe é exigível pela mera obrigação tributária. Isto é, não faria sentido que, no caso de indemnização fundada na prática de um crime, os juros de mora fossem inferiores aos que são devidos pela simples constituição em mora resultante de cumprimento tardio da obrigação.
- Tratando-se de dívida originada por não entrega de contribuições devidas à segurança social, encontrando-se estas perfeitamente determinadas, desde o momento em que a entrega era legalmente exigível, por conseguinte, muito antes da formulação do pedido de indemnização civil, rege o n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil (e não o nº. 3 do mesmo artigo, que rege para as situações do crédito ser ilíquido), segundo o qual há mora do devedor independentemente de interpelação (judicial ou extrajudicial): a) por a obrigação ter prazo certo; b) por a obrigação provir de facto ilícito e o nº. 1 do artigo 806º do Código Civil, que estatui: «na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora».
Por todo o exposto, não merece qualquer censura o decidido pelo tribunal a quo, condenando o arguido/demandado/recorrente ao pagamento ao demandante dos juros de mora nos termos peticionados, calculados de acordo com os critérios mencionados, não se verificando a violação das disposições legais enunciadas pelo recorrente.
Improcedendo pois o recurso também nesta parte.

III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidem confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.

Guimarães, 15 de dezembro de 2016