Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7815/19.4T8VNF.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE SEGURO
NEXO DE CAUSALIDADE
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I O nexo de causalidade do ponto de vista naturalístico entre o estado sob o efeito do álcool e determinados acontecimentos e eventos, se não resultar de prova direta, para ser estabelecido através de presunção judicial terá então de se extrair de outros dados do caso concreto que forem apurados (artº. 349º do C.C.).
II A matéria de facto provada tem de resultar de um elevado grau de probabilidade da sua verificação, nomeadamente quando resulta de presunção.
III O nexo de causalidade adequada, previsto no artº. 563º do C.C. integra averiguação em sede de aplicação do direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

A Herança do decesso A. R., representada pelos únicos herdeiros R. M., e P. T., intentou a presente ação contra X, COMPANHIA DE SEGUROS S.A..
Alegam para o efeito que são os únicos herdeiros de A. R., tendo aceite a herança.
O decesso celebrou, com a ré, em 14/11/2016, contrato de seguro de “Seguro Proteção Y Risco Pessoal”, identificado pela apólice n.º .....4, com efeitos a iniciar em 15/11/2016, sendo uma das coberturas morte ou invalidez permanente com um capital de € 30.000,00.
Em 7/10/2018, numa situação em que conduzia o seu veículo e R. M. conduzia o seu em sentido contrário, este desferiu um soco, com força, na face do decesso, fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no solo, desamparado, tendo embatido com a parte da nuca no lancil do passeio da via. Foi assistido e veio a falecer em 15/10 em consequência das lesões traumáticas crânio meningo encefálicas que sofreu com a queda.
Comunicaram à R., pretendendo ver acionado o contrato por efeito da verificação do risco morte de A. R., risco esse que se achava coberto pelo contrato de seguro celebrado com a ré (artigos 1.º e 183.º, do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril), e esta declinou o pagamento visado invocando cláusula de exclusão (cláusulas 5.ª h) e 6.ª n.º 1, al. b) e c) -exclusão de acidentes resultantes de tumultos de alterações de ordem pública e sinistros consequentes de ação ou omissão da pessoa segura sob efeito de álcool ou ações que configure crime ou negligência grave da pessoa segura), que a seu ver não se aplica.

Pedem por isso a condenação da ré a
-i. Garantir a cobertura da morte do tomador do seguro A. R., mediante o pagamento do valor correspondente ao capital segurado, ie, €30.000,00;
-ii. Reembolsar das despesas com o funeral do tomador do seguro, no valor de €1.565,00;
-iii. Pagar os juros à taxa legal vencidos desde a data do óbito do tomador do seguro, até ao efectivo e integral pagamento e que ascendem, na presente data aos €1.418,26.
Juntaram documentos.
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Citada, a ré contestou, contextualizando o ocorrido entre os condutores, aludindo à taxa de álcool no sangue, e seus efeitos sobre o falecido e influência no ocorrido. Alude por isso às citadas exclusões.
Mais invoca a exclusão da cobertura das despesas de funeral. Impugna parte da factualidade alegada e contesta ainda a data de início de contagem de juros.
Conclui pela verificação das exceções perentórias que invoca e pede a sua absolvição do pedido.
Juntou documentos.
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Notificada para se pronunciar sobre a matéria de exceção a A. manteve a sua versão dos factos.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia.
Foi fixado o valor à ação de € 32.983,26.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, e enunciados os temas da prova.
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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

“Por tudo o exposto, o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

- Condena a X, Companhia de Seguros, SA a pagar à herança aberta por óbito de A. R., representada pelos únicos herdeiros, R. M. e P. T., a quantia de 30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros à taxa legal supletiva contados desde 25/10/2018 e até efetivo e integral pagamento;
- Absolve a do demais peticionado.
Custas por autores e ré, na proporção do decaimento.”
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Inconformado a R. apresentou recurso tendo terminado as suas alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem)

I. A Recorrente “X – Companhia de Seguros, S.A.” intentou o presente recurso visando, desde logo, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto do artigo 638.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, por entender que a resposta negativa aos pontos xii), xiii) e xiv) deveriam ter sido dados como provados, impondo-se por essa razão, a sua reanálise e alteração nos termos constantes do presente recurso.
II. A Recorrente interpõe, ainda, o presente recurso por não concordar com o teor da sentença recorrida, uma vez que a mesma, salvo o devido respeito, não consubstancia a rigorosa aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e a decisão proferida, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça uma correcta aplicação do direito.
III. Da análise da prova carreada para os autos, designadamente das declarações do médico Dr. P. L., decorre, desde logo, os efeitos decorrentes da taxa de álcool apresentada pelo falecido A. R., e que, no entendimento da Recorrente, não foram devidamente valoradas e avaliadas, atendendo ao caso concreto nos autos e às circunstâncias que ditaram a morte de A. R., pelo que andou mal o Tribunal a quo quando considerou como não provados os pontos xi), xii), xiii) e xiv) devendo estes serem considerados como provados.
IV. No que concerne às circunstâncias da morte de A. R., podemos tomar por certo, atendendo à matéria de facto dada como provada, que este, desde logo, provocou a altercação com R. M., ao dirigir-se ao veículo onde se encontrava R. M. e agredindo este último.
V. Atente-se que A. R., com uma taxa de 2,25 g/l de álcool no sangue, encontrava-se, desde logo, a conduzir um veículo automóvel, encontrando-se a praticar, desde logo, um crime.
VI. Atento o depoimento da testemunha P. L., desde logo se percebe, que a reacção, anormal e exagerada, à falta de outra motivação, apenas pode ser atribuída à influência do álcool, bem como o ímpeto de agressão perante o aludido R. M., agressão que levou a cabo, quando este ainda se encontrava dentro do seu veículo.
VII. E no que concerne à queda, o agravamento do resultado apenas pode ser atribuído ao estado de embriaguez em que se encontrava o aludido A. R., dado que nem sequer tem a capacidade e o ímpeto de tentar amparar a queda.
VIII. De uma mera queda da altura do próprio corpo da vítima, não é expectável que, sem algum outro factor, decorra as lesões que motivaram a morte de A. R., sendo certo que a queda foi motivada pelo excesso de álcool, dado que a coordenação motora se encontrava severamente afectada.
IX. Atenta a taxa de álcool que o falecido A. R. apresentava aquando da ocorrência das lesões, bem como das concretas circunstâncias em que a mesma ocorreu, da prova produzida, quer a documental (designadamente, certidão do processo crime), quer a produzida em audiência de julgamento, deveria o Tribunal a quo ter concluído que a morte de A. R. ocorreu em virtude da taxa de álcool no sangue de 2,25 g/l, recorrendo às presunções judiciais.
X. A relação causal entre o excesso de álcool no sangue e o acidente não se directa, perceptivelmente, mas por presunções a partir do conjunto de circunstâncias concretas (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2006, disponível em www.dgsi.pt).
XI. Segundo orientação pacífica da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é legítimo o recurso à utilização pelas instâncias de presunções judiciais em que através delas se obtém a prova do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, podendo e devendo ser utilizado, nos presentes autos, o mesmo raciocínio.
XII. Nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, o juiz deve extrair “dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
XIII. Atentas as circunstâncias que ditaram a morte de A. R. e a prova produzida, é seguro afirmar-se que, não fosse o excesso de álcool (2,25 g/l de sangue, relembremos), o mesmo não teria, desde logo, provocado a altercação nem agredido R. M., nem teria, certamente, caído no solo de forma desamparada, provocando, assim, as lesões de que veio a falecer.
XIV. Estando demonstrada a existência de uma taxa de álcool superior à legalmente admitida (facto-base) e sabendo-se que essa quantidade de álcool influência a coordenação motora e alterações comportamentais (máxima da experiência), não existindo qualquer outra razão justificativa para os actos do próprio sinistrado, é legítimo entender-se que a morte se deveu à influência da taxa de alcoolemia.
XV. Deveria ter considerado como provado, atenta a prova produzida e, e bem assim, através de presunções, os factos dados como não provados sob o ponto xii), xiii) e xiv) da matéria de facto dada como não provada.
XVI. O âmbito da cobertura prevista nos contratos de seguro, resulta, por um lado, da enunciação dos riscos cobertos pelo contrato e, por outro lado, daqueles que não se encontram cobertos, designadamente as cláusulas de exclusão.
XVII. Desde logo, a ora Recorrente invocou, com interesse para o presente recurso, duas exclusões, designadamente as constantes do artigo 6.º (Exclusões), n.º 1, b) e c) das Condições Gerais.
XVIII. O falecido A. R. ao conduzir um veículo automóvel animado por uma taxa de álcool no sangue de 2,25 g/l, cometeu um acto criminoso contra a sua própria vida (artigo 291.º do Código Penal).
XIX. O estado de euforia, agitação, nervosismo e falta de lucidez com que o falecido A. R. motivou a altercação e, bem assim, a agressão física de R. M..
XX. De igual forma, a falta de equilíbrio, de coordenação e de percepção da realidade motivou, igualmente, o desequilíbrio e consequente queda na sequência do soco de R. M..
XXI. O falecido A. R., ao ingerir bebida alcoólicas que determinaram que se encontrasse animado com a referida taxa de álcool praticou diversos ilícitos criminais, designadamente, de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez e ofensa à integridade física e colocou-se numa situação de descoordenação e de ausência de noção da realidade, razão pela qual, quando R. M. respondeu à agressão que foi vítima, desequilibrou-se e caiu no solo.
XXII. A taxa de álcool de 2,25 g/l (taxa constitutiva de crime para quem, desde logo, conduza veículos, como o falecido A. R. fazia no caso dos presentes autos), a agressão física que provocou a altercação com R. M., e, bem assim, a cláusula de exclusão do artigo 6.º, n.º 1, c) das Condições Gerais, é suficiente, só por si, não assistir aos beneficiários direito a receber a indemnização pretendida.
XXIII. Dúvidas não restam que, não fosse a agressão (crime) por parte de A. R. a R. M., não teria havido qualquer altercação, e, nessa sequência, o segurado não teria falecido.
XXIV. O facto de A. R. se encontrar num estado de embriaguez e, nessa sequência, ter provocado uma altercação com agressões mútuas, constitui negligência grave, pelo que, também por aqui, se excluiria o incidente que vitimou A. R. das garantias do contrato de seguro.
XXV. Por fim, as circunstâncias que originaram a morte de A. R. foram provocadas pelos efeitos do álcool, pelo que, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, b), encontra-se o incidente que vitimou A. R. excluído das garantias do contrato de seguro.
XXVI. Deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido, em virtude do evento em causa se encontrar excluído das coberturas do contrato de seguro titulado pela apólice n.º .....4, e nessa sequência, absolva a Recorrida do pedido.”
Pede por isso o provimento do recurso.
*
Foram apresentadas contra-alegações pela A. que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem)

1. Na decisão recorrida foram ponderadas, de forma clara e exaustiva, todas as questões de facto e de direito agora colocadas pela recorrente.
2. Motivo pelo qual este é um caso em que se justifica a aplicação do disposto no n.º 5, do art. 663º do CPC.
3. Por cautela serão analisados os argumentos invocados pela recorrente tendo em conta o seu objecto, tal como delimitado pelas respectivas conclusões – art. 635º, n.º 4 do CPC.
4. A recorrente discorda da decisão da matéria de facto, nos termos do disposto pelo art. 662º, nº 1 Cód. Proc. Civil, relativamente à seguinte matéria de facto dada como não provada pelo Ilustre Tribunal a quo, pugnando no sentido de a mesma ser dada como provada:
«xi) Foi por estar com o seu estado anímico completamente alterado que A. R. entendeu insultar e agredir violentamente R. M..
xii) Foi fruto da descoordenação motora produzida pela taxa de álcool com que se encontrava animado, após ter sido afastado pelo referido R. M., que A. R. se desequilibrou e caiu no chão.
xiii) Foi o estado de euforia, agitação, nervosismo e falta de lucidez com que o falecido se encontrava, mercê da taxa de álcool no sangue que apresentava, que motivou a altercação e a agressão física de R. M..
xiv) Foi a falta de equilíbrio, de coordenação e de perceção da realidade que motivou o desequilíbrio e consequente queda do A. R. na sequência do seu afastamento por R. M..»
5. Não lhe assiste qualquer razão.
6. A testemunha com base na qual a recorrente sustenta a sua posição, P. J., não obstante médico de profissão, foi ouvido na qualidade de testemunha e não de perito, porquanto o seu depoimento encontra-se no domínio da valoração da prova testemunhal, vigorando o princípio da livre convicção do julgador, cfr. nº 5 do art. 607º do Cód. Proc. Civil e 396º do Cód. Civil.
7. Acresce ainda que a citada testemunha apenas dá a sua “opinião”, cfr resulta do depoimento da mesma de 22.10.2021 (aos 10:21 da Gravação 20211022144734_5762239_2870591, entre 14:53:30 e as 15:02:51).
8. Salientando-se que estamos perante um médico ortopedista, sem qualquer conhecimento técnico sobre a matéria e que nada sabe e nada pode saber do caso concreto, desde logo porque não teve qualquer contacto com a situação, nem com os intervenientes.
9. Assim, o seu depoimento, por carecer de enquadramento concreto e de conhecimento técnico, não pode ser valorizado.
10. A verdade dos factos e que foi provada, é que o comportamento do falecido A. R., à data dos factos, não foi condicionado pelo consumo de álcool.
11. Assim o diz a testemunha A. G. ao longo do depoimento que prestou em 21.09.2021, mais concretamente aos 02:00, aos 04:00, aos 06:40 e finalmente entre os 07:00 e os 08:00.
12. Um indicador relevante de que o falecido A. R. não se encontrava afectado, nas suas capacidades, é o facto de ter logrado evitar um sinistro rodoviário, atenta a condução imprudente do R. M..
13. O falecido já tinha circulado cerca de 7 ou 8 Km, como foi dito pela testemunha A. G., ao minuto 2 (entre as 10:18 e as 10:33) do seu depoimento e conduzia normalmente.
14. Até a testemunha indicada pela recorrente, S. C., (depoimento em 21.09.2021, Gravação 20210921104304_5762239_2870591 entre 10h48 e as 11h43) quando confrontada com tal facto aos 49:40 do seu depoimento não consegue responder.
15. Para a testemunha, a simples existência de álcool afastava, por si só, a cobertura pelo seguro. 16. E não explicou como é que o segurado, que estava tão alterado, na sua tese (que se rejeita), identificou o comportamento ilícito e inaceitável do condutor do outro veículo (R. M.), que seguia em contramão!
17. O desentendimento entre o A. R. e o R. M. teve origem no comportamento deste (por circular num sentido proibido) e não pelo facto daquele ter ingerido bebidas alcoólicas.
18. Sendo ainda de sublinhar que a causa da queda do A. R. foi o murro com que R. M. o atingiu e não o álcool.
19. Nada permite concluir que, o facto de A. R. ter taxa de alcoolemia no sangue, naquele momento e local, tenha comprometido o seu estado anímico, ou tenha provocado a sua queda.
20. Conclusão essa que a própria testemunha da recorrente, S. C., prestado em 21.09.2021 (Gravação 20210921104304_5762239_2870591 entre 10h48 e as 11h43), aos minutos que melhor se identificam infra, refere:
51:30
“J: O que foi para si o acidente, neste caso em concreto? Todos os seguros são acionados quando acontece alguma coisa, ou acidente ou sinistro. Neste caso, temos os dois conceitos, portanto na cláusula …. Estamos a falar em acidente e na cláusula sexta estamos a falar em sinistro. (….) Qual é, para si, este acontecimento? Como é que a senhora interpreta isto?
52:15
T: Doutora, isto aqui para mim é um incidente, como se costuma dizer. Acidente em si, pronto… o acidente no caso foi o senhor ser agredido, o acidente dele foi a agressão.
J: foi a agressão que o levou à morte, certo? T: Exato.
53:06
J: O que é que é para si o sinistro, neste caso?
T: Neste caso, o sinistro ou acidente foi uma agressão (…)
J: Foi a agressão que levou à morte, certo?
T: Sim, exatamente.”
21. A morte do A. R. foi causada pela agressão do R. M., conforme a própria recorrente, na pessoa da sua gestora de sinistros, o afirma!
22. Até porque o impacto do consumo de álcool no comportamento do consumidor depende de vários factores: saúde, o metabolismo, compleição física de quem o ingere e até mesmo da própria personalidade do sujeito.
23. Acresce que o próprio R. M. afirmou que foi em resultado da sua actuação, dando um soco no A. R., que este caiu e bateu com a cabeça no asfalto, aos 06:00 do depoimento prestado em 22.10.2021 (Gravação 20211022144734_5762239_2870591, entre os 00:15:15 até 00:27:18).
24.E, concluiu o citado R. M., aos 06:20 da citada gravação: “Que ele estava alterado, estava, agora o porquê, na altura não me apercebi do porquê, seria por eu vir em sentido proibido?! Ele não tinha nada a ver com o assunto.”.
ASSIM,
25. Ficou provado que o A. R. morreu fruto de lesões traumáticas crânio meníngeo encefálicas, decorrentes de uma queda no solo, que ocorreu atento o facto do R. M. lhe ter desferido um soco com força na face, fazendo com que o A. R. se desequilibrasse e caísse desamparado no solo.
26. Contrariamente, não ficou provado o nexo causal entre o facto que deu origem à morte do A. R. e o seu estado de embriaguez.
27. A recorrente não provou que a morte do A. R. foi consequência directa do seu comportamento, nem estabeleceu o nexo causal entre o estado de embriaguez e a perda da sua vida.
28. A recorrente não fez prova de que as cláusulas de exclusão, neste caso em concreto, afastem a sua responsabilidade de pagamento do seguro, e era a ela quem competia fazer prova desse nexo, como se mostra assente por jurisprudência obrigatória (Ac. TJ nº 6/2002 de 28.05.2002, publicado em 18.07.2022).
29. No demais, mesmo atendendo à doutrina da causalidade adequada, sempre teria de se considerarem os demais factos atinentes à própria dinâmica do acidente/sinistro em apreço; tudo concatenado com as regras da lógica e da experiência comum – nesse sentido vide Ac. do STJ de 07.06.2011, p. 380/08.0YXLSB.C1.S1.
30. Conforme sucedeu.
31. Em jeito de conclusão: a recorrente não logrou provar qualquer circunstancialismo que a pudesse isentar de responsabilidade, não lhe restando alternativa senão a de suportar a obrigação a que contratualmente se vinculou.
32. Finalmente, dir-se-á que a tese da recorrente viola o caso julgado resultante do acórdão proferido no Proc. 2883/18.9T9VNF, do Juízo Central Criminal de Guimarães - Juiz 2 (vide ponto 32 da matéria de facto provada), tal como consagrado no art. 623º Cód. Proc. Civil.
33. Pelo exposto, não merece a decisão recorrida qualquer reparo.”
Pede que seja negado provimento ao recurso, e mantida a sentença recorrida.
***
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeitos devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
***
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:

-deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta dos pontos xi), xii), xiii) e xiv) não provados, devendo estes serem considerados como provados.
-verifica-se uma cláusula de exclusão, devendo ser alterada a decisão no que concerne à procedência da ação.
***
III IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Antes de mais teremos de reproduzir a factualidade que o tribunal “a quo” considerou para proferir a sua decisão, de modo a melhor enquadrar a pretensão da recorrente neste âmbito (destacando-se a negrito o que vem impugnado).

V. Fundamentação de facto a) Factos provados

1. No dia - de outubro de 2018 faleceu A. R., no estado de viúvo, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade.
2. Sucederam-lhe dois filhos vivos, a saber, os autores.
3. O decesso celebrou com a ré, em 14/11/2016, contrato de seguro de “Seguro Proteção Y Risco Pessoal, identificado pela apólice n.º .....4, com efeitos a iniciar em 15/11/2016.
4. O referido contrato tem a duração de 12 meses, automaticamente renovável por igual período.
5. Desde a data mencionada, o decesso procedeu ao integral pagamento de todos os prémios do seguro titulado pela apólice identificada.
6. Apólice essa com a seguinte cobertura: “Morte ou Invalidez Permanente”, com um capital de € 30.000,00, sem franquia.
7. No dia - de outubro de 2018, pelas 17h10m, na Rua …, Vila Nova de Famalicão, o decesso conduzia um veículo automóvel de marca BMW.
8. Na referida data R. M., conduzia um outro veículo, circulando em contramão na Rua …, via de sentido único.
9. Na sequência de uma discussão, o referido R. M. desferiu um soco, com força, na face do decesso, fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no solo.
10. Ao cair no solo, o decesso embateu de forma desamparada com a parte da nuca na estrada, perto do lancil do passeio da citada via.
11. Em consequência da agressão descrita – e da posterior queda - o decesso foi assistido medicamente no local pela VMER.
12. Sendo transportado, inicialmente, para a Unidade Hospitalar de Vila Nova de Famalicão, apresentando uma ferida com cerca de 08 cm na região occipital.
13. Depois de efetuar uma tomografia axial computorizada (TAC), a qual revelou uma fratura da escama occipital com hemorragia intracraninana, o decesso foi transportado para o Hospital de Braga onde, apesar da assistência que lhe foi prestada, veio a falecer.
14. A morte do decesso deveu-se às lesões traumáticas crânio meningo encefálicas atrás descritas.
15. Com o propósito de acionar a apólice contratada, o sinistro foi participado à ré.
16. Participação essa à qual a ré, em 25/10/2018, respondeu, dizendo o seguinte: “… não é possível assumir a responsabilidade pelo sinistro, uma vez que, de acordo com a alínea h) da Cláusula das Condições Gerais de Acidentes Pessoais, ficam excluídos do presente contrato os acidentes consequentes de tumultos e ou alteração de ordem pública.
17. Foi remetida nova comunicação à ré, em 04/12/2019, solicitando reapreciação da situação com o consequente acionamento da apólice em crise.
18. À qual a ré respondeu, através de missiva eletrónica de 21/09/2019, mantendo a posição inicialmente assumida.
19. As despesas com o funeral de A. R. importaram em 1.565,00 €.
*
20. No contrato referido em 3 foi indicado como pessoa segura o falecido A. R..
21. Ao presenciar a manobra referida em 8 A. R. buzinou.
22. R. M. retorquiu buzinando.
23. Seguidamente, ambos imobilizaram os veículos.
24. A. R. saiu do seu carro e dirigiu-se a R. M. dizendo-lhe “sabes que aquilo é um sentido proibido?.
25. A. R. aproximou-se do veículo conduzido por R. M., abeirou-se da janela, que se encontrava aberta, e atingiu-o com a mão quando este ainda se encontrava sentado.
26. R. M. abriu a porta do veículo, empurrando-o, e saiu do seu interior.
27. Na data da admissão no Serviço de Urgência, A. R. apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,25g/l.
28. Uma taxa de álcool no sangue do referido valor é suscetível de provocar estado de euforia, irritabilidade, impulsividade, descoordenação motora e desequilíbrio.
29. O falecido escolheu, no que ao risco coberto respeita, o módulo “Confortável.
30. Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 da cláusula 6.ª (Exclusões Absolutas) das Condições Gerais do contrato referido em 3,Ficam sempre excluídas da cobertura do presente contrato os sinistros consequentes de:
(…)
b) Acção ou omissão da pessoa segura sob efeito de álcool ou uso de estupefacientes fora da prescrição médica;
c) Acção, tentativa de acção ou omissão que configure crime ou negligência grave da pessoa segura, do tomador do seguro ou do beneficiário, ou de por quem estes sejam civilmente responsáveis (…).
31. Nos termos do disposto na alínea h) da cláusula 5.ª (Exclusões Relativas) das Condições Gerais do contrato referido em 3,Salvo se expressamente convencionado, ficam excluídos do presente contrato os acidentes consequentes de:
(…) h) (…) tumultos e/ou alteração de ordem pública (…).
*
32. No âmbito do processo 2883/18.9T9VNF, do Juízo Central Criminal de Guimarães-J2, foi proferido Acórdão, transitado em julgado, pelo qual R. M. foi condenado como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, agravado pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 143.º. n.º 1, e 147.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
33. Nos mesmos autos foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos aqui autores contra R. M. e condenado este a pagar-lhes a quantia de 18.000,00, acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a data da sentença e até efetivo e integral pagamento; e a pagar-lhes a quantia de 103,50 €, acrescida de juros desde a notificação do pedido cível e até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se o arguido do demais peticionado.
34. Na quantia referida em 33 foi incluída uma parcela de 103,50 € correspondente ao diferencial entre as despesas de funeral de 1.565,00 € e o reembolso aos demandantes das mesmas despesas pela Segurança Social.
*
b) Factos não provados

i) O contrato referido em 3 incluía as coberturas de responsabilidade civil, com o capital de 20.000,00 € e despesas de tratamento, com o capital de 1.500,00.
ii) O veículo referido em 7 tinha a matrícula BC.
iii) O veículo referido em 8 era uma carrinha alta.
iv) Aquando do referido em 24 A. R. dirigiu-se a R. M. dizendo-lhe “és um filho da puta.
v) A atuação descrita em 25 provocou lesões na face de R. M. e danos nos óculos que usava.
vi) R. M. saiu do veículo por ter verificado que A. R. tencionava prosseguir com os insultos e com as agressões.
vii) A. R. e R. M. agarraram-se mutuamente, caindo no chão.
viii) Face à gravidade do descrito os ocupantes do veículo BMW intercederam, separando-os.
ix) A. R. manteve os insultos a R. M. e, instantes passados, conseguiu avançar sobre o mesmo, visando desferir-lhe socos.
x) Nesse momento, R. M., de forma defensiva e visando evitar nova agressão física, empurrou A. R. com o seu braço esquerdo.
xi) Foi por estar com o seu estado anímico completamente alterado que A. R. entendeu insultar e agredir violentamente R. M..
xii) Foi fruto da descoordenação motora produzida pela taxa de álcool com que se encontrava animado, após ter sido afastado pelo referido R. M., que A. R. se desequilibrou e caiu no chão.
xiii) Foi o estado de euforia, agitação, nervosismo e falta de lucidez com que o falecido se encontrava, mercê da taxa de álcool no sangue que apresentava, que motivou a altercação e a agressão física de R. M..
xiv) Foi a falta de equilíbrio, de coordenação e de perceção da realidade que motivou o desequilíbrio e consequente queda do A. R. na sequência do seu afastamento por R. M..
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Quem pretende recorrer de facto e de direito tem de cumprir determinados pressupostos formais, uma vez que tem de fundamentar por que pede a alteração ou anulação da decisão – nº. 1, do artº. 639º, C.P.C..
No que concerne ao recurso sobre a aplicação do direito, o nº. 2 desse artigo impõe que verta nas conclusões do recurso as normas jurídicas que entende terem sido violadas, o sentido com que, no seu entender as que entende se aplicam devem ser interpretadas e aplicadas invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no seu entender devia ter sido aplicada.
Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artº. 640º do C.P.C..
Os requisitos ou ónus da impugnação a cumprir são: a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; a especificação na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, a indicação na motivação das passagens da gravação relevantes; a apreciação critica dos meios de prova, expressando na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156.
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019 (www.dgsi.pt), podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
Também os Acs. desta Relação de Guimarães de 28/06/2018 e de 26/04/2018 (www.dgsi.pt), analisaram de forma coincidente com a orientação do STJ esta matéria.
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Já resulta do destaque que fizemos que os recorrentes identificam com clareza a matéria que pretendem ver reapreciada –são eles os pontos xi, xii), xiii) e xiv) considerados não provados. Tal como referem a versão que pretendem ver acolhida na decisão –a inversão do sentido acolhido, ou seja, que passem a constar na matéria provada.
Como melhor desenvolveremos na respetiva apreciação, também indicaram relativamente a cada ponto o meio de prova em que se sustentam, fizeram uma análise crítica, e identificam os segmentos da prova gravada que entendem acolher e impor diferente visão.
Cumpriram por isso os ónus impostos, passando-se à reapreciação dos pontos visados.
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Vejamos antes de mais os princípios a que, na nossa perspetiva, deve obedecer a reapreciação a fazer em sede de recurso.
A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº. 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do nº. 5 do artº. 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pag. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E a pags. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Sintetizando a nossa posição, o Tribunal da Relação nesta sua função de reapreciação da decisão de facto não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (-erro de apreciação ou erro de julgamento).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal “a quo” encetado caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal “ad quem” não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O recente Ac. desta Relação de 29-10-2020 (www.dgsi.pt) sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, recorrendo à doutrina -Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469- e jurisprudência -Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator A. R. Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.- desta forma:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção -obtida com benefício da imediação e oralidade- apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Voltando ao artº. 607º, nº. 1, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
No nosso sistema processual, vigora o sistema da prova livre, ressalvadas as exceções previstas. Significa isto que o tribunal aprecia livremente os meios de prova e que o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. artºs. 346.º do C.C. e 516.º do C.P.C..
A propósito da livre apreciação da prova e formação da convicção, vários autores se têm pronunciado.
Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pag. 384) diz: “Segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (“Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, Revista e Atualizada, pags. 435 a 436) dizem: a prova “…não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”. E acrescentam (pag. 655) que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto; a livre apreciação da prova não se traduz nem se confunde com uma apreciação arbitrária da prova.
Diz-nos ainda Luís Filipe Pires de Sousa (“Prova testemunhal”, 2014, pag. 384) que “O standard de prova deve operar como uma pauta móvel que tem de ser permanentemente concretizada ao ser aplicada ao caso concreto. Cremos que no nosso ordenamento jurídico será, pois, de aplicar, o standard da probabilidade prevalecente…Assim, no vulgar caso de cobrança de um crédito decorrente de compra e venda, na ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação ou na ação em que se discuta o cumprimento de um contrato de empreitada operará o standard da probabilidade lógica prevalecente desde que seja ultrapassado o limite mínimo de probabilidade(> ou = 0,51)…”.
Assim, como já decidimos no processo nº. 2568/18.6T8VRL.G1 (ac. de 3/12/2020) e no processo nº. 967/19.5T8VRL.G1 (ac. de 8/10/2020) “O grau de probabilidade exigido para que se dê como verificada determinada realidade de facto é de elevada probabilidade.”
O que está em causa é uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
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Em prol da sua pretensão invoca a recorrente o depoimento da testemunha P. L., bem como o recurso a presunções, motivando a sua posição. Cumpriu mais uma vez o ónus de impugnação.
Ouviu-se o depoimento prestado na integra e, porque se mostra absolutamente acertado face ao que se ouviu, reproduzimos as considerações tecidas a propósito desse depoimento pelo Tribunal recorrido.
Assim temos: “P. J., médico ortopedista, prestador de serviços para a ré, descreveu os efeitos do álcool na personalidade de uma pessoa, em moldes coincidentes com os descritos em 28, nessa medida se valorando as suas declarações.
As declarações que prestou, sustentadas nos conhecimentos médicos que detém, são adequadas a conformar a influência do álcool no sangue em termos de normalidade e para a generalidade das pessoas.
Delas não pode, porém, retirar-se que o falecido, em concreto, no dia e hora da altercação evidenciava os apontados estados (sabido que é que a absorção do álcool pelo organismo tem diversos estágios e depende de fatores diversos como seja a saúde, o metabolismo e a compleição física de quem o ingere), facto que nenhuma das testemunhas ouvidas confirmou (por nada terem apontado a propósito), sendo certo que não mantendo relação de proximidade com o falecido, tão pouco poderiam avaliar a personalidade que o definia e, em particular, se o comportamento empreendido se inseria ou não num padrão de normalidade.”
Em causa está a questão do nexo de causalidade entre os eventos –a abordagem do falecido a R. M., o subsequente desequilíbrio e queda- e a taxa de álcool no sangue decorrente da sua ingestão por parte do falecido. De facto, não tendo a recorrente impugnado outra da factualidade provada que descreve o que sucedeu entre os dois envolvidos e antecedeu a queda, e face ao depoimento que invoca e razões chamadas, decorre que são apenas esses aspetos que está a pretender se dê como apurados.
Esta matéria foi alegada pela seguradora/recorrente.
Verificando a sua contestação, a R./recorrente referia que de forma defensiva o R. M. empurrou o A. R. com o seu braço esquerdo. Todavia o que se provou e não foi impugnado foi que referido o R. M. desferiu um soco, com força, na face do decesso, fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no solo, e que ao cair no solo, o decesso embateu de forma desamparada com a parte da nuca na estrada, perto do lancil do passeio da citada via –cfr. pontos 9 e 10 dos factos provados, e x não provado. Essa factualidade estabelece a causa natural do evento.
Por isso, e para além do que infra se dirá quanto à diferença entre empurrão e soco, quando muito, poderíamos ter o efeito do álcool como concausa, caso se apure aquela relação.
Ora, a livre convicção formada pelo Tribunal recorrido encontra-se coerentemente sustentada com base na prova testemunhal e documental (cfr. artºs. 607º, nº. 5, C.P.C. e 396º do C.C., e ainda o que dirá quanto ao valor da certidão da sentença criminal). E, a nosso ver, alicerçada num ponto de vista que se afigura correto.
De facto, uma coisa é o efeito do álcool em termos genéricos, e a possibilidade de potenciar a ocorrência de eventos conflituosos e traumáticos acidentais, e outra se foi o caso. Se no caso concreto tal sucedeu dependeria ou da sua prova direta –e essa indubitavelmente não há- ou da prova de uma série de circunstâncias (nomeadamente sobre o indivíduo em concreto) que fossem suscetíveis de fazer presumir, ou permitir a presunção, do efeito sobre aquele concreto indivíduo e da relação entre os eventos e a taxa de alcoolémia. Foi esta última via que a recorrente pretendeu seguir.
Em primeiro lugar e tal é incontestável, a presença de álcool no sangue na taxa em questão deriva da ingestão pelo falecido de bebidas alcoólicas; isso, para além de ser óbvio, foi confirmado pela testemunha que seguia no carro com o falecido e que o vinha acompanhando.
Que o falecido se desequilibrou e caiu na sequência do soco que lhe foi desferido pelo identificado R. M., e que por sua vez a queda originou lesões, e que a morte se deveu às lesões traumáticas crânio meningo encefálicas assim sofridas, também não há dúvidas.
O que resta saber é se em concreto aquele indivíduo foi influenciado na sua abordagem ao outro condutor pelos efeitos decorrentes da ingestão do álcool, e se para o desequilíbrio e queda contribuiu esse seu estado.
E são estas respostas que não temos, nem podemos ter, dada a ausência de prova documental/pericial e/ou testemunhal direta nesse sentido, conforme decorre inclusive das passagens do depoimento que a recorrente destacou (e que não infirma, pelo contrário, vão ao encontra da motivação do Tribunal, sendo porém apenas suscetíveis de levar ao facto inserto em 28).

A propósito da prova documental, temos:
- o relatório de urgência e o relatório de autópsia onde não é estabelecida qualquer relação entre a presença de álcool no sangue e a causa da morte;
- certidão da sentença penal condenatória, a que o Tribunal aplicou, e bem o disposto no artº. 623º do C.P.C..

Neste último ítem, o facto que poderia aqui estar em causa seria, quando ali se diz que “Todavia, o arguido podia e deveria ter percebido o estado de embriaguez em que a vítima se encontrava e, com isso, poderia e deveria ter percebido que ao agredi-lo da forma como o fez, este podia sofrer lesões ainda mais graves do que aquelas que habitualmente são causados por um soco, incluindo a sua morte, resultado este que não antecipou e com o qual não se conformou, mas que efetivamente veio a acontecer.”
Este facto diz respeito ao elemento subjetivo do tipo de crime em questão, para além da presunção ilidível que encerra, e nem sequer interfere na análise da matéria aqui em causa e que antes que ver com o facto de se saber se objetivamente o estado do falecido contribuiu para o resultado.
Para além do que o Tribunal recorrido já disse quanto à insuficiência para o efeito das declarações prestadas pela testemunha indicada pela recorrente, a testemunha A. R. (e ainda mais a testemunha S. S. e inclusive R. M.) não conhecia o falecido de forma a poder afirmar que o mesmo se encontrava “afetado” pela bebida. Irrelevante, a nosso ver, o depoimento da testemunha S. C., citado nas contra-alegações, dado o seu carater genérico e conclusões sem sustento.
Resta saber se os mesmos elementos e concretamente o depoimento da testemunha que vem indicada nas alegações de recurso permitem extrair o nexo, do ponto de vista naturalístico, entre os factos ocorridos e a ingestão do álcool, ou seja, a influência desta situação nas ocorrências. A ser assim, seria depois do ponto de vista jurídico que se aferiria do nexo de causalidade adequado.
Efetivamente, como se sumariou no Ac. do STJ de 2/11/2010 (relator Sebastião Póvoas, www.dgsi.pt): “6) O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.°, n.° 1 e 722.º , n.°2 do Código de Processo Civil.
7) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, o que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.° do Código Civil.
8) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.
9) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.
Temos, pois, que o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, importando apurar se na sequência de determinada dinâmica factual, um qualquer facto funcionou efectivamente como condição desencadeadora de determinado efeito. E, por outro integra matéria de direito -a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição foi ou não causa adequada do evento, o que consiste em saber se, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.
Ora, como já adiantamos, a recorrente sustenta a sua tese em presunções judiciais, baseadas nas regras da experiência.
O artº. 607º, nº. 4, do C.P.C. indica que o juiz tome em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo os factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Precisamente as presunções judiciais, sendo um meio de prova válido (livre) dependem dos factos conhecidos que permitam tirar a ilação para o facto desconhecido – artº. 349º do C.C. (cfr. ainda o artº. 351º).
Neste caso não temos esses factos, de certo modo indiciários, que, aliados a juízos de experiência, permitissem dar por assente o nexo de causalidade. As presunções judiciais, simples ou de experiência, assentam no simples raciocínio de quem julga; inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana –Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, I vol., pag. 310.
A recorrente retira a presunção do depoimento da testemunha, mas este depoimento, como já vimos, tem carater genérico e não incidiu sobre este concreto individuo nestas concretas circunstâncias, tão pouco apreciou/testemunhou o sucedido, pelo que não nos pode acrescentar factualidade que permitisse presumir o que a recorrente pretende.
A ingestão de álcool tem diferentes efeitos consoante vários fatores individuais, e por exemplo no que concerne ao alegado estado de exaltação, há indivíduos a quem, pelo contrário, o álcool provoca sonolência e inação. Se frequentemente desinibe, haverá casos em que assim não é. Não sabemos, porque não temos qualquer elemento para o efeito, qual a situação do falecido.
Por outro lado, sabemos sim, que quer as discussões/altercações, nomeadamente relacionadas com a condução, podem ter origem numa série de fatores (se os envolvidos já se conheciam, se já tinham anteriores experiências traumáticas relacionadas com a condução, se estavam alteradas emocionalmente por outros motivos…); tal como um desequilíbrio e queda que tem a sua origem num soco (o fator surpresa, a força do soco e a posição dos envolvidos, o estado e condições do piso…). Nenhuma dessas circunstâncias foi/pode ser aqui avaliada, por falta de elementos. Ou seja, ainda que em tese um individuo alcoolizado tenha maior desequilíbrio, e tenha tendência a cair mais desamparado por dificuldade de reação física protetora, constando dos factos que “O referido R. M. desferiu um soco, com força, na face do decesso, fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no solo.”, e que “Ao cair no solo, o decesso embateu de forma desamparada com a parte da nuca na estrada, perto do lancil do passeio da citada via.”, e nada mais, não podemos dizer que contribuiu para o desequilíbrio e queda desamparada o estado alcoolizado do falecido.
Já referimos a versão da recorrente em sede de contestação. Ora, ainda se poderia cogitar a situação de forma diferente se o ato que impeliu o falecido tivesse sido um mero empurrão do R. M., realizado com o braço esquerdo. Mas, estamos perante um soco (não sabemos com que lado foi desferido, ainda que dando-se por usual a menor força do lado esquerdo) mas ainda assim trata-se de um soco (com força) que é algo bem diferente de um empurrão em termos de impacto e projeção.
Desde logo, o desequilíbrio que o álcool é suscetível de provocar (cfr. ponto 28) tem essencialmente que ver com aquele estado (de equilíbrio) que é independente de uma outra causa -que aqui há –o soco-, estando numa relação causa efeito com a queda.
De facto, e nomeadamente face ao depoimento prestado pela testemunha mencionada, e que se debruçou declaradamente sobre a influência do álcool no comportamento/personalidade, diríamos que uma coisa é o efeito ao nível de comportamento –e este é, a nosso ver, muito variável de pessoa para pessoa, como já aludimos, sendo certo que os efeitos a que a testemunha se reporta são tidos como suscetíveis de suceder; indo mais longe diríamos até que tendencialmente ocorrem; outra coisa é o efeito a nível de capacidades físicas (mantendo-se o reporte à suscetibilidade). E neste campo, as coisas poderiam situar-se num campo mais objetivo, sendo que os dados/estudos que existem reportam-se essencialmente ao tema dos efeitos na condução, incidindo sobretudo sobre a capacidade de atenção, concentração e perceção visual surgindo a questão do equilíbrio (e afetação das capacidades motoras) como potencialmente afetada. Não há, diríamos, uma aplicação “direta” das conclusões que nesse campo se alcançam para uma situação de uma agressão com queda subsequente. E todos estes aspetos ou funções do individuo alcoolizado podem ir variando consoante a fase do efeito do álcool no corpo.
Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, não é lícito, face à ausência de qualquer elemento nesse sentido, dizer-se que a reação do falecido perante o dito R. M. (a abordagem) foi exagerada e desproporcional; nem que o estado de embriaguez contribuiu para o agravamento do resultado; tão pouco que não é expetável que um soco cause a morte (não fosse o cair desamparado, sem reação, face ao estado em que se encontrava). Todas essas afirmações dependeriam, repete-se, ou de prova direta, ou de factos donde se pudessem extrair tais conclusões, factos esses que, sendo do interesse da recorrente estabelecer a presunção, deveriam resultar de matéria por si produzida para os autos.
Um soco no rosto é sempre adequado a provocar desequilíbrio, e por isso, pretendendo a R. que se considere provado que “Foi fruto da descoordenação motora produzida pela taxa de álcool com que se encontrava animado, após ter sido afastado pelo referido R. M., que A. R. se desequilibrou e caiu no chão.” e “Foi a falta de equilíbrio, de coordenação e de perceção da realidade que motivou o desequilíbrio e consequente queda do A. R. na sequência do seu afastamento por R. M..” dependeria sempre da ponderação de circunstâncias mais concretas que não apenas o facto do A. R. estar afetado por uma taxa de álcool no sangue de 2,25 g/l.
Note-se que a R. não pretende “apenas” que se consigne que face à presença de álcool no sangue de A. R., nomeadamente atenta a taxa de alcoolémia, este tinha a sua coordenação motora e equilíbrio comprometidos.
Quer sim fazer prova (através de presunção) de que a causa do desequilíbrio e queda foi a descoordenação motora e desequilíbrio provocados pelo álcool.
Concluímos por isso pela inexistência de base para alterar a factualidade não provada, não se tendo apurado a respetiva matéria nem a podendo presumir com elevada probabilidade.
Tem-se por certo que “…as presunções ou ilações, como meios de prova, não podem eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes” (cfr. Ac. do STJ de 20/06/2006 (relator Alves Velho, www.dgsi.pt).
Os factos só devem julgar-se provados quando se demonstra um (muito) elevado grau de probabilidade da sua realidade (não basta apenas a probabilidade e, muito menos, a possibilidade), a suficiente para as necessidades práticas da vida. A extracção (por presunção) do facto desconhecido só pode ocorrer quando o facto conhecido (base da presunção) o implica, seja por ter de ser seja porque, normalmente, com elevado grau de probabilidade, a este sucede aquele -cfr. Ac. da Rel. do Porto de 17/09/2009, relator José Ferraz, www.dgsi.pt).
É distinta a situação analisada no Ac. do STJ citado pela recorrente (relator Faria Antunes) em que se apurou, além do mais, que “O álcool que o réu ingeriu antes do acidente diminuiu-lhe as capacidades de conduzir o veículo”.
É distinta a situação analisada no Ac. do STJ citado, de 7/6/2011 (relator Granja da Fonseca) em que se apurou que “O álcool que o réu ingeriu reduziu-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias”; “Causou-lhe lentidão na capacidade de reacção”; “Perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora”.
Diverge da nossa situação a abordada no também citado Ac. do STJ de 7/4/2011 (relator Lopes do Rego) em que se apurou que “O álcool no sangue influenciava quer o modo de circulação, quer o comportamento do condutor do QT, diminuindo-lhe nomeadamente as capacidades de atenção, reacção e de visão.”
Ora, no caso, não temos elementos que nos permitam tirar idênticas ilações, que certamente as instâncias tiveram naqueles casos –circunstâncias concretas que puderam conjugar em ordem a apurar do ponto de vista naturalístico uma situação de causa efeito entre a taxa de álcool e o comportamento do condutor (e já em sede de aplicação de direito o nexo de causalidade adequado entre esse comportamento e o respetivo acidente).
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IV MATÉRIA DE FACTO.

Estão assim provados os factos já elencados, tal como considerado em 1ª instância, e que nos dispensamos aqui de voltar a reproduzir.
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V O MÉRITO DO RECURSO.

Celebraram falecido e R., em 14/11/2016, um contrato de seguro de “Seguro Proteção Y Risco Pessoal, identificado pela apólice n.º .....4, com efeitos a iniciar em 15/11/2016, contrato esse com a duração de 12 meses, automaticamente renovável por igual período.
A apólice tinha a cobertura: “Morte ou Invalidez Permanente”, com um capital de € 30.000,00, sem franquia. Estamos por isso no âmbito do ramo vida, sendo um contrato de seguro que é facultativo.
Não se discute a titularidade dos herdeiros ao capital.

Não existe na lei uma definição de contrato de seguro. Moitinho de Almeida, através da caracterização dos seus elementos essenciais, define-o assim:

-o contrato de seguro é aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada –“O contrato de seguro no Direito Português e Comparado”, Livraria Sá da Costa, 1971, pags. 23 e 24.
O contrato de seguro pode pois definir-se como aquele em que uma das partes (segurador) se obriga contra o pagamento de certa importância (prémio), a indemnizar outra parte (segurado ou terceiro) pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos –Ac. STJ de 4/12/2014 (relator Granja da Fonseca, in www.dgsi.pt).
O risco, sendo um elemento essencial do contrato de seguro, pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro (José Vasques, “Contrato de Seguro”, pag. 127).
Concretamente o contrato de seguro facultativo, do ramo vida, encerra um negócio jurídico por via do qual a seguradora, como contrapartida do recebimento de um prémio ajustado, se obriga a pagar determinado capital ao beneficiário, no caso de verificação do risco coberto, nomeadamente, a morte ou a invalidez absoluta e definitiva de qualquer dos segurados (cfr. Ac. desta Relação de 29/4/2021, relatora Cristina Cerdeira, www.dgsi.pt).
O regime jurídico atual do contrato de seguro foi aprovado pelo DL nº. 72/2008 de 16/4 (LSC).
Assim, o contrato de seguro continua é um contrato consensual e formal: consensual porque se realiza por via do simples acordo das partes; formal porque o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador de seguro (vide artigo 32º, n.º 2da LCS), dependendo, portanto, a sua validade da redução a escrito da apólice –cfr. ainda o acórdão do STJ com a mesma data de 4/12/2014 e no mesmo sítio, de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Muito embora se trate de um contrato de adesão, na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual e a cujos termos o segurado (ou tomador de seguro) se terá de subordinar, nada obsta a que se aplique a regra geral do regime contratual que é o da autonomia da vontade, segundo o qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º do Código Civil), excepto se colidir com normas de natureza imperativa quer relativa quer absoluta.
No contrato de seguro facultativo vigora de forma mais ampla do que no âmbito dos seguros obrigatórios o princípio da liberdade contratual, pelo que, desde que não se violem normas imperativas, podem ser introduzidas no contrato quaisquer cláusulas (cfr. acórdão do STJ de 14/01/2021, relator Oliveira Abreu, disponível em www.dgsi.pt).
Nesta conformidade, o contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da LCS, ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (vide artigo 4º da LCS), para além de estar sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais e direito do consumidor (artº. 3º).
Assim, a apólice dos contratos de seguro contém cláusulas que constituem as condições gerais, cláusulas que constituem as condições especiais e cláusulas que constituem as condições particulares. Condições gerais são as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade. Condições especiais são as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo. Condições particulares são as que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir. Temos por isso que as condições gerais enumeram os riscos ou coberturas que potencialmente podem ser garantidas, ficando abrangidas pelo caso concreto aquelas que forem enumeradas nas condições particulares. As cláusulas particulares especificamente acordadas prevalecem sobre as cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes –neste sentido, a obra citada no dito Ac. de José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, pags. 30 e 31.
Dúvidas não há que no caso em apreço cabia aos A.A./recorridos a alegação e prova do evento que faria acionar a cobertura do seguro decorrente do contrato celebrado com a R./recorrente –artº. 342º, nº. 1, do C.C.; a parte contrária podia tentar tornar tais factos duvidosos, fazendo contraprova (artº. 346º do C.C.), ou alegar e provar cláusulas de exclusão (artº. 342º, nº. 2).
Temos por certo que está verificado o evento suscetível de acionar o pagamento do valor indemnizatório –a morte; restringimo-nos por isso às questões levantadas no recurso.
Conforme pontos 30 e 31 dos factos, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 da cláusula 6.ª (Exclusões Absolutas) das Condições Gerais do contrato referido em 3,Ficam sempre excluídas da cobertura do presente contrato os sinistros consequentes de (b) Acção ou omissão da pessoa segura sob efeito de álcool ou uso de estupefacientes fora da prescrição médica;”c) Acção, tentativa de acção ou omissão que configure crime ou negligência grave da pessoa segura, do tomador do seguro ou do beneficiário, ou de por quem estes sejam civilmente responsáveis (…)”,
Não importa ao caso o disposto na alínea h) da cláusula 5.ª (Exclusões Relativas) das Condições Gerais do contrato (“Salvo se expressamente convencionado, ficam excluídos do presente contrato os acidentes consequentes de: h) (…) tumultos e/ou alteração de ordem pública”), uma vez que em sede de recurso a recorrente limitou o seu objeto às ditas alíneas b) e c), não se insurge contra a posição que o Tribunal recorrido adotou -e bem- a propósito da mesma.
A recorrente tentou demonstrar a aplicação ao caso daquelas cláusulas de exclusão, tendo o Tribunal recorrido concluído que nenhuma delas se verifica.
Muito embora das alegações de recurso decorra que a recorrente alicerçava a pretendida improcedência da ação no êxito que viesse a obter em sede de impugnação da matéria de facto, analisaremos as questões jurídicas que se apresentam como pertinentes por não ser para nós absolutamente clara a posição da recorrente.
Atendendo a que nada foi apontado à validade da cláusula em apreço, ela resulta da livre estipulação das partes, e, antes de mais, cabe proceder à sua interpretação.
Conforme Ac. do STJ de 11/11/1992 (relator Dias Simão, www.dgsi.pt), parte-se do pressuposto de que a interpretação da vontade expressa na declaração negocial constitui questão de facto quando consista em apurar se o destinatário conhecia a vontade real do declarante e o seu conteúdo – o que no caso não foi colocado – e constitui questão de direito sempre que haja de realizar-se, na ignorância de tal vontade, nos termos do artº. 236º, nº. 1, do C.C..
Tratando-se de um contrato formal, tem de se aplicar à respectiva interpretação a regra fundamental segundo a qual não pode a declaração valer com um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no artº. 238º do C.C.) e não tendo resultado apurada a vontade das partes, para efeitos do disposto no artº. 236º, nº. 2, do C.C., o sentido a extrair deve ser aquele que um declaratário normal, colocado na posição do segurado, deduzisse – consagra-se a teoria objectivista da impressão do destinatário (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª Edição, pag. 223).
E nesta sede, afastamos a ponderação da cláusula “c) Acção, tentativa de acção ou omissão que configure crime ou negligência grave da pessoa segura, do tomador do seguro ou do beneficiário, ou de por quem estes sejam civilmente responsáveis (…)”, uma vez que a condução sob o efeito de álcool por parte do falecido é uma situação absolutamente estranha e prévia ao evento que aciona o seguro. Não se verifica por isso qualquer nexo.
Ainda que se pudesse qualificar de ofensa à integridade física o ato de “atingiu-o com a mão quando este ainda se encontrava sentado” imputado ao falecido (e não pode qualificar-se dada a ausência de elementos integradores do disposto no artº. 143º do Código Penal; pode haver ofensa ao corpo sem ofensa à saúde se o ato sobre o corpo não causa dor nem sofrimento dada a sua intensidade; todavia as lesões insignificantes não devem ser consideradas ofensas ao corpo ou à saúde tipicamente relevantes, sob pena de violação dos princípios da dignidade do bem tutelado e da intervenção mínima do direito penal -cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pag. 309, e, por todos, o Ac. da Rel. do Porto de 28/4/2021, relatora Eduarda Lobo, www.dgsi.pt), não se poderia relacionar uma prévia agressão física ao dito R. M. porque o evento não foi consequência dessa agressão, mas sim da reação/agressão do próprio R. M..
O sentido da cláusula nessa alínea terá de ser o de se reportar a uma situação em que o próprio visado provoca o evento sem intervenção do ato de terceiro.
O mesmo se diga quanto à discussão prévia, que não tem qualquer enquadramento penal.
Veja-se a propósito da leitura do artº. 14º, nº.1 al. a) do regime jurídico do seguro que proíbe que o seguro garanta a responsabilidade criminal do segurado, os Ac. da Relação de Coimbra 27/5/205 e do STJ de 10/3/2016 (www.dgsi.pt).
Passemos para a alínea b), embora prévia em ordem de apresentação, de interpretação mais complexa.
Mais uma vez analisando as alegações de recurso, afigura-se que a recorrente não se insurge relativamente à interpretação que foi feita pelo Tribunal recorrido.
E assim sendo, não se tendo alterado a matéria de facto, e face ao que ficou assente, temos por afastado qualquer nexo de causalidade adequada entre o evento e o consumo de álcool e o facto do falecido estar indubitavelmente sob o seu efeito aquando da ocorrência.
A propósito, ponderou o Tribunal recorrido: “No caso, as partes contratantes excluíram da garantia contratual os sinistros decorrentes de ação ou omissão da pessoa segura sob efeito de álcool ou uso de estupefacientes fora da prescrição médica.
Do teor de tal cláusula de exclusão no âmbito dos riscos cobertos, não se pode retirar que o simples facto do segurado estar sob influência do álcool é determinante para que funcione a cláusula de exclusão. Ao invés o estado de maior ou menor sobriedade devido ao álcool tem de ter uma relação efetiva e direta com o evento que deu origem às lesões que foram causa da morte. Em suma, é imperioso que exista nexo de causalidade entre o consumo de bebidas alcoólicas e o evento que conduziu à morte do segurado. O simples diagnóstico de álcool no organismo deste não se pode apresentar, por si só, como justificativa bastante para a seguradora se negar ao pagamento da indemnização prevista na apólice.
A existência de álcool no sangue e em que medida essa situação se mostrou determinante para o eclodir do evento que foi o causador da morte do segurado apresenta-se como uma causa derrogatória do direito que os autores pretendem fazer valer, pelo que o ónus de fazer a prova do nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia apresentada pelo segurado e o evento morte pertencia à ré, em conformidade com o disposto no art.º 342.º n.º 2 do CC, dado que é ela que carece dessa prova para que o seu direito, impeditivo do reconhecimento do direito dos autores, se possa impor, por forma a obviar que tal reconhecimento aconteça.”
Uma vez que o Tribunal recorrido analisou a questão, não deixaremos de deixar aqui também a nossa posição.
Ora, da leitura da alínea em questão resulta para nós, perante as regras de interpretação, e não resultando absolutamente expressa a verificação do nexo, que deve ter inserta a sua exigência, já que se refere a exclusão dos “sinistros consequentes de”. Uma coisa é consequência de outra se dela resulta. E essa menção nada mais pode ser do que a exigência do nexo de causalidade adequada que a nossa lei consagra entre evento/sinistro e ação ou omissão sob o efeito do álcool.
Acresce o disposto no artigo 10º do Decreto-Lei nº 446/85 que estabelece que “[A]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”, explicitando o artigo 11º deste diploma que “[A]s cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” (n.º 1), prevalecendo na dúvida o sentido mais favorável ao aderente (n.º 2) –cfr. artº. 237º do C.C..
Veja-se por exemplo a diferença de expressão e por isso de interpretação que resultou no Ac. da Relação do Porto de 12/2/2019 (relator José Carvalho, www.dgsi.pt), bem como o diferente contexto, tal como o Ac. no STJ 10/3/2016 (relator Tavares de Paiva, www.dgsi.pt).
Veja-se ainda no sentido da exigência do nexo o Ac. da Relação de Évora de 5/3/2009, em tudo semelhante a este nosso caso, citando a propósito o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, nº. 6/2002 de 28/5 (in Diário da República n.º 164/2002, Série I-A de 2002-07-18), no qual se decidiu nos seguintes termos: «A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.». Apesar de a situação do referido acórdão uniformizador se reportar ao seguro automóvel, portanto, obrigatório, acaba por fornecer uma orientação, dando argumentos, fundamentos, razões, que podem ter validade noutros casos em apreço em que esses fundamentos mantenham pertinência e atualidade. Não obstante, recentemente o STJ tem vindo a entender que com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do Ac UJ nº 6/02 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente -cfr. por todos o Ac. do STJ de 10/12/2020, relator Manuel Capelo, com voto de vencido da 1ª adjunta (“Vencida porque perfilho a interpretação de que o Decreto-Lei n.º 291/2007 não dispensa a prova do nexo de causalidade entre a existência da taxa de alcoolemia superior à legal e o acidente.”).
Ou seja: no que concerne a esta questão atinente à relação causal entre a alcoolemia e a eclosão do sinistro são duas as posições jurisprudenciais, a saber: uma que vai no sentido de que o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º291/2007, de 21.8 deve ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento, defendida no Acórdão do S.T.J., de 6/07/2011 (relator João Bernardo, www.dgsi.pt). E uma outra que vai no sentido de não ser exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos, bastando à seguradora alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, como se defende no Acórdão do S.T.J., de 9/10/2014 (relator Fernando Bento, www.dgsi.pt).
O recente Ac. da Rel. de Coimbra de 14/01/2020 (relator Barateiro Martins, www.dgsi.pt) dá conta desta correntes.
Realçamos que o exercício do direito de regresso facultado por lei às seguradoras, no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, contra os condutores que tenham agido sob a influência do álcool, é algo diverso e no caso meramente orientador, tal como é, para nós, diferente o efeito do álcool nessa atividade e noutras situações, como a dos autos em que se dá uma queda subsequente a um soco.
No Ac. do STJ de 11/12/2012 (relator Granja da Fonseca, disponível em www.dgsi.pt), entendeu-se: “Tem-se, consensualmente, entendido que, perante a diversidade finalística dos contratos de seguro de responsabilidade pessoal e de responsabilidade civil automóvel, aqueles facultativos e estes obrigatórios, não são comparáveis, nem se pode, sem mais, estender as normas que regem o seguro obrigatório aos contratos de seguro facultativos, que as pessoas entendam celebrar entre si.
Efectivamente, na base do seguro automóvel obrigatório, estão duas ordens de interesses: o interesse do segurado, que pretende proteger o seu património, de molde a não suportar pesadas indemnizações e o interesse da vítima, cujos direitos ficam fortemente garantidos, pelo que os princípios e razão de ser subjacentes ao seguro obrigatório não se aplicam, naturalmente, e com os mesmos fundamentos, ao seguro facultativo. Neste último, está, essencialmente, em causa a liberdade contratual das partes e, por esse motivo, poderão no mesmo fazer incluir as cláusulas que lhes aprouver.”
E assim remete-se a questão para a tarefa interpretativa da cláusula.
Ressalvadas as devidas diferenças, apontamos aquelas notas nesta questão do seguro automóvel obrigatório, desde logo porque a jurisprudência é abundante e muitas vezes é com recurso a esse tema que se extrapola para outras situações, como a dos autos, e como fez a recorrente com jurisprudência por si citada.
Todavia, resulta também para nós claro a exigência do nexo neste caso. Não se tendo apurado o efeito do álcool sobre o falecido, bem como a concorrência para o ocorrido do seu estado, não chega sequer a colocar-se a averiguação do nexo de causalidade adequada, consagrado no art. 563º do C. C. e de acordo com o qual não basta que o evento tenha produzido certo efeito para que, de um ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele, antes sendo necessário que o primeiro seja uma causa provável ou adequada do segundo.
Daí resulta que, para que houvesse exclusão da cobertura do seguro, seria necessário que o estado alcoolizado pudesse ser considerado uma das condições concretas do evento e que, segundo as regras da experiência comum, fosse adequado ou apropriado a potenciar o mesmo. Já vimos que tal não se apurou.
Por outro lado, e como se decidiu no Ac. do STJ de 15/11/2007 (relator Bettencourt de Faria, www.dgsi.pt), embora noutro contexto mas que aqui poderia ter cabimento, “Facto notório, ou do conhecimento generalizado das pessoas, é aquele, que, por o ser, não precisa que sobre ele se faça prova directa ou presuntiva. Ou seja, que o julgador conhece na sua qualidade de cidadão comum, uma vez que esse facto é um conhecimento disseminado em toda a sociedade. Ora, o que é facto notório é que a embriaguez é a causa de muitos acidentes de viação. Mas já não é notório que todos os condutores embriagados sejam os causadores dos acidentes em que intervieram. O facto notório nesta matéria será um princípio de prova, não a prova cabal.” – cfr. artº. 412º, nº. 1, do C.P.C..
Este argumento pode também ser aqui adaptado e aduzido em prol da decisão encontrada.
Nada mais se nos afigura acrescentar, concluindo-se pela improcedência do recurso e manutenção da decisão proferida.
As custas no caso são a cargo da parte vencida de acordo com o critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo; entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for – nº. 2.
***
VI DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação e confirmam a douta sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 2 de junho de 2022.

Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)