Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1904/11.0TBFAF-C.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: INVENTÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPOSIÇÃO DE QUINHÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1- O inventário para separação de meações destina-se à defesa dos interesses patrimoniais do cônjuge do executado, permitindo-lhe salvaguardar a sua meação nos bens comuns.
2- Em presença do disposto no Artº 1406º/1 do CPC, não cabe ao juiz o poder de decidir acerca da composição dos quinhões.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

M…, notificada da sentença homologatória da partilha, veio interpor recurso.
Pede a anulação do despacho impugnado.
Funda-se nas seguintes conclusões:
1 – O Tribunal a quo violou assim os preceitos legais 158º, 668.º do CPC e 205.º da CRP ao proferir o douto despacho ora impugnado bem como os demais actos subsequentes;
2 – Violou também o douto despacho, ora recorrido, os preceitos legais 825.º e 1406.º do CPC ao declarar que o preenchimento do quinhão do executado e da ora apelante não pode ser efectuado conforme o exarado.
3 – Violou ainda os artigos 1353.º, 1363.º, 1371.º, 1373.º, 1375.º e 1406.º, todos do CPC;
4 – Porquanto, no âmbito de uma acção executiva em que o cônjuge do executado foi citado para requerer a separação de bens nos termos do 825 do CPC,
5 – Foi apresentado a relação de bens onde consta activo e passivo, constante do ponto 3.
6 – Perante a relação de bens dada como assente, o credor reclamante reclamou da avaliação do bem imóvel, ficando atribuído ao mesmo por acordo, o valor de 100.000,00Euros.
7 – Nesta conformidade, convocados para a conferência de interessados, a aqui apelante e seu cônjuge, executado, concordaram em que esta ficaria com a nua raiz do mesmo imóvel, composto da verba nº1 do activo e;
8 – Assumiu também a ora recorrente o passivo ao Banco BCP no valor de
26.300,00Euros.
9 – Ao cônjuge executado ficou adjudicado o direito de uso e habitação do já referido imóvel e;
10 – Adjudicados os bens móveis do activo, composto das verbas nº 2 a nº18 da relação de bens.
11 – Ora, no despacho recorrido o Meritíssimo Juiz a quo decidiu que em relação a estas verbas nº 2 a nº 18 da relação de bens, não havia nada a opor, porquanto consubstanciava a vontade expressa dos interessados na ata de conferência.
12 – Em relação ao bem imóvel, o Meritíssimo Juiz a quo entendeu que não poderá ser conforme o exarado, uma vez que prejudica a garantia patrimonial dos credores.
13 – Incorrendo em contradição quando fundamenta a sua decisão, no sentido que se contradiz quando no douto despacho refere que há uma substituição como garantia patrimonial dos credores um imóvel por um direito à habitação e uso de recheio desse mesmo imóvel, ao qual consubstancia uma diminuição da garantia patrimonial do exequente.
14 – Não assiste razão ao Meritíssimo Juiz a quo, uma vez que na ata da conferência de interessados não foi atribuído ao cônjuge do executado o direito de uso do recheio, mas sim, a sua propriedade.
15 – Estipula no artigo 1406.º nº1 alínea c) que o cônjuge do executado que nada tem a ver com a referida execução, tem o direito de escolher o seu quinhão e de forma alguma, este preceito o proíbe.
16 – Não fez, o Meritíssimo Juiz, um raciocínio lógico, coerente e motivado, de forma a extrair-se do douto despacho o prejuízo efectivo do credor, ao não homologar a partilha resultante da conferência de interessados, com base na diminuição das garantias do credor.
17 – Sendo que o quinhão do executado não está esvaziado do conteúdo patrimonial, pois é composto do direito de uso e habitação, ao qual representa o valor e pela propriedade das verbas nº2 a nº18.
18 – Perante esta escolha, o credor exequente opôs-se reclamando do valor do imóvel para 100.000,00Euros.
19 – Acordou-se neste valor, ficando atribuído ao imóvel o valor de 100.000,00Euros.
20 – Mesmo com esta prorrogativa que a lei concede ao credor, através do
mecanismo legal 1406.º nº1 al. c), não homologou a partilha.
21 – Pelo que, não homologou a partilha e procedeu de imediato a licitações, considerando o imóvel ficasse em compropriedade, nos termos do 1403.º do C. Civil.
22 – O Tribunal a quo não tem base legal para intervir na escolha dos bens que hão-de compor os quinhões dos interessados.
23 – Neste sentido, vide os acórdãos dos supremos Tribunal de Justiça de 2008 com o nº07ª4033, o de 22/01/2008, revista 4033/07-1ªsecção e 03/07/2008 agravo 158/08-2ª secção.
24 – Da mesma forma que este tipo de inventário tem por objectivo a protecção do cônjuge do executado por dívidas que sobre si não impende, ao ser permitido a separação de bens comuns e a escolha dos bens que hão-de formar a sua meação.
25 – Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 26/01/2010, disponível em www.dgsi.pt.
26 – O mesmo acórdão ainda refere “O inventário para separação de meações … foi criado para proteger o cônjuge do executado, sem prejudicar excessivamente o exequente e não o inverso.”
27 – A sentença proferida, ora vai no sentido do mapa determinativo que deu forma à partilha, ora vai no sentido do acordado na conferência de interessados pelos cônjuges;
28 – Quando homologa a partilha, referindo “… conforme o acordado em sede de conferência cuja ata consta de fls.51 e 52 quanto aos bens móveis e direito de uso e habitação do imóvel e quanto à propriedade do imóvel nos termos determinativos no despacho proferido em sede de conferência de interessados de fls. 98 e 99.”;
29 – Ou seja, homologa o mapa determinativo da partilha, cuja forma foi dada pelo Meritíssimo Juiz a quo, em que o bem imóvel fica em compropriedade e adjudica aos interessados os quinhões conforme acordado na conferência de interessados, quanto aos bens móveis e direito de uso e habitação do imóvel e quanto à propriedade do imóvel.
30 – Pelo que deverá ser anulado o ato de licitação, o mapa determinativo da partilha que adjudica aos interessados os bens comuns do casal em partes iguais e consequente sentença.
31 – Devendo elaborar-se mapa de partilha, em que fica adjudicado a propriedade das verbas de 2 a 18 ao cônjuge executado, conforme ata de conferência de interessados, bem como o direito de uso e habitação do imóvel e;
32 – Ao cônjuge do executado a nua raiz do imóvel e o referido passivo.

Não foram proferidas contra-alegações.
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Para melhor compreensão exaramos, de seguida, um breve resumo dos autos.
Em presença de inventário para separação de meações, apenso a uma execução, foi apresentada a relação de bens e realizou-se, em 18/06/2012, conferência de interessados na qual, para além de ter sido rectificado (após reclamação da credora) o valor atribuído à verba nº 1, se acordou que a raiz e nua propriedade do imóvel descrito na verba nº1 da relação de bens, seria atribuída à Requerente M…, que assumia o passivo hipotecário ao B…, SA, pelo valor constante da relação de bens. No que toca aos bens móveis e ao direito ao uso e habitação do imóvel descrito na verba nº1 da relação de bens, seriam os mesmos para o interessado/requerido D…, pelos valores relacionados.
Foram, então, por despacho, adjudicadas aos interessados as verbas nos termos acordados, pelo valor também acordado (e resultante da alteração após reclamação).
Entretanto, por despacho proferido em 14/01/2013, consignou-se que “ocorreu uma nulidade processual porquanto a credora “B…, S.A.”, não foi notificada para tomar posição sobre a escolha efectuada pelo cônjuge do executado, conforme prescreve o art.º 1406.º n.º 1 al. c) in fine e 2 do CPC.
Pelo exposto, e de modo a suprir a irregularidade constatada, uma vez que a mesma pode influir na decisão da causa, determino de modo a regularizar o processado, nos termos do art.º 205.º e 265.º n.º3, ambos do CPC, que:
i) seja a credora “B…, S.A.” notificada da escolha efectuada pelo cônjuge do executado, dando-se sem efeito o despacho proferido na aludida conferência de interessados, datada de 18 de Junho de 2012.
Deverá a aludida credora ser notificada do teor da acta de conferência de interessados, tomando posição, nos termos do art.º 1406.º n.º1 al. c) in fine e n.º2 do CPC, sobre o estatuído.”
O B… veio, então, tomar posição afirmando que “Nada tem a opor quanto à atribuição do valor de € 100.000,00 ao imóvel, nem à partilha de bens efectuada, declarando no entanto expressamente que não exonera quaisquer dos interessados/inventariados, das obrigações contraídas no Banco Reclamante, decorrentes do Mútuo com garantia hipotecária...”
Agendou-se, então, nova conferência de interessados, na qual foi proferido o seguinte despacho (de que se recorre):
“Uma vez suprida a irregularidade da nulidade declarada e exarada nos despachos de 14-01-2013 e 12-03-2013, cumpre tomar posição sobre a escolha do modo como se irá formar a composição dos quinhões conforme acta de 18-06-2012.
Relativamente aos bens móveis nada há a opor à deliberação da vontade expressa na ata de 18-06-2012.
Relativamente ao imóvel descrito na verba nº1, o Tribunal considera que no âmbito dos presentes autos de separação de bens efectuada nos termos do Artº825º do CPC, o preenchimento do quinhão não poderá ser efectuado conforme o exarado.
Com efeito e parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-206 no processo 0B1651, disponível no site www.dgsi.pt, entendemos que na separação das meações, em que o conflito de interesses daqueles que partilham não é de presumir, dado que não há separação de pessoas, nada impõe uma protecção especial a qualquer dos cônjuges, uma vez que a sociedade conjugal se mantém intacta, não existindo, pois, interessados que possam por em causa o direito de habitação daqueles que partilham.
Acresce que substituir como garantia patrimonial dos credores um imóvel por um direito à habitação e uso do recheio desse mesmo imóvel constitui uma efectiva diminuição da garantia patrimonial do exequente. Ora, a alínea c) do nº 1 do citado artº 1406º proíbe que assim aconteça ao conferir aos credores o direito de reclamar do acordo de partilha. Logo, a situação em apreço é efectivamente uma das excepcionadas na aplicação do processo de inventário à partilha do artº 825º.
Assim, na separação de bens efectuada ao abrigo do Artº 825º do C.P. Civil, não é possível preencher o quinhão de um dos cônjuges com a atribuição do direito à habitação da casa de morada de família, previsto no artº 2013º do C. Civil para o cônjuge sobrevivo, na partilha mortis causa”.
Na mesma conferência os interessados mantiveram o acordo, sem alterações, tendo sido abertas licitações para a verba nº 1 sem que houvesse lances. Foi, então, proferido o seguinte despacho:
“Uma vez que não houve qualquer lance para a licitação e considerando a finalidade dos presentes autos, de proceder à partilha, determino que o bem imóvel se considere em regime de compropriedade entre os interessados nos termos e para os efeitos do Artº1403º e seguintes do Código Civil.
Concedo aos interessados o prazo de 10 dias para apresentarem a forma à partilha nos termos do disposto no art.º 1373º, nº1 do C.P.Civil.”
Seguidamente determinou-se a forma á partilha e foi elaborado o mapa.
Após, proferiu-se sentença segundo a qual “homologo a partilha constante do referido mapa, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões conforme acordado em sede de conferência cuja acta consta de fls. 51 e 55 quanto aos bens móveis e direito de uso e habitação do imóvel e quanto à propriedade do imóvel nos termos determinados no despacho proferido em sede de conferência de interessados de fls. 98 e 99.”
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Das conclusões acima exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir:
1ª – O despacho recorrido incorreu em contradição na fundamentação?
2ª - O Tribunal a quo não tem base legal para intervir na escolha dos bens que hão-de compor os quinhões dos interessados?
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Os presentes autos correm ao abrigo do disposto no Artº 825º do CPC – inventário para separação de meações.
Conforme sintetiza a Recrte., foi apresentada relação de bens onde consta activo e passivo. Perante a relação de bens dada como assente, o credor reclamante reclamou da avaliação do bem imóvel, ficando atribuído ao mesmo por acordo, o valor de 100.000,00€. Nesta conformidade, convocados para a conferência de interessados, a aqui apelante e seu cônjuge, executado, concordaram em que esta ficaria com a nua raiz do imóvel – verba nº1 do activo – e assumiu também o passivo ao Banco B… no valor de 26.300,00€. Ao cônjuge executado ficou adjudicado o direito de uso e habitação do imóvel e foram adjudicados os bens móveis do activo – verbas nº 2 a nº18 da relação de bens.
O despacho recorrido, contudo, entendeu não ser possível preencher o quinhão conforme acordado, por um lado, porque “na separação das meações, em que o conflito de interesses daqueles que partilham não é de presumir, dado que não há separação de pessoas, nada impõe uma protecção especial a qualquer dos cônjuges, uma vez que a sociedade conjugal se mantém intacta, não existindo, pois, interessados que possam por em causa o direito de habitação daqueles que partilham”; por outro, porque “substituir como garantia patrimonial dos credores um imóvel por um direito à habitação e uso do recheio desse mesmo imóvel constitui uma efectiva diminuição da garantia patrimonial do exequente”.
Parece-nos que, tal como alega a Recrte., que o Tribunal a quo não tem base legal para intervir na escolha dos bens que hão-de compor os quinhões dos interessados.
Vejamos!
O inventário para separação de meações destina-se à defesa dos interesses patrimoniais do cônjuge do executado, permitindo-lhe salvaguardar a sua meação nos bens comuns.
Requerendo-se inventário para separação de meações, consigna o Artº 1406º/1 que devem observar-se algumas especificidades, a saber:
a) o exequente tem o direito de promover o andamento do inventário;
b) não podem ser aprovadas dívidas que não estejam devidamente documentadas;
c) o cônjuge do executado tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação; se usar desse direito, são notificados da escolha os credores, que podem reclamar contra ela, fundamentando a sua queixa.
Em presença destas regras, e não havendo qualquer conflito entre os credores e os cônjuges interessados, não parece que caiba ao juiz o poder de decidir acerca da composição dos quinhões.
Ora, conforme consta da acta não se registou oposição relativamente à composição dos quinhões. Bem pelo contrário! O credor B…, tendo sido notificado, expressamente declarou não se opor, sem que exonerasse qualquer daqueles das obrigações contraídas perante si. Por outro lado, perante tal declaração e tendo a cônjuge interessada assumido o passivo, não se vislumbra em que é que a garantia patrimonial do credor diminua.
Tal como se consignou no Ac. do STJ de 22/01/2008, neste inventário, o cônjuge do executado tem o direito de escolha dos bens que hão-de formar a sua meação, podendo, nesse caso, os credores, reclamar contra essa escolha, fundamentando a sua queixa, inferindo-se do n.º 2 do art. 1406.º que o fundamento da reclamação só pode ser a má avaliação dos bens. Teve aqui o legislador evidentes preocupações com os credores, pois, como é evidente, uma avaliação incorrecta, pode resultar em manifesto prejuízo deles. Note-se que o que se trata aqui é a possibilidade de o exequente vir a penhorar bens que couberam ao executado, sendo evidente o dano se existir uma avaliação por defeito dos bens escolhidos pelo cônjuge deste (Refª 07A4033, www.dgsi.pt).
Aliás, o direito de escolha consignado no Artº 1406º/1-c) do CPC inculca mesmo na impossibilidade legal de ocorrência de licitações nestes processos. Assim mesmo o decidiu já a RC no seu Ac. de 11/03/97, onde se afirma que “a literalidade do art. 1406º do C.P.C., a sua historicidade e razão de ser permitem concluir, com segurança, que no inventário para separação de bens não há lugar a conferência de interessados para composição das meações, nem licitações (cf. Neste mesmo sentido os Acs. R.P. de 25/5/82 e R.C. de 16/11/93, na Colect. Jurisp., respectivamente, 1982-3-222 e 1993-V-32)”, ali se afirmando que “neste tipo de processo as meações ou são determinadas pela escolha do cônjuge do executado ou são adjudicadas por meio de sorteio. Não há lugar a licitações.” (Procº 1245/95, www.colectaneadejurisprudencia.com)
Donde, se nos afigura que o despacho recorrido não pode, efectivamente manter-se.
Não porque se contradiga – com o que se afasta a invocada nulidade por contradição –, mas porque incorre em errada apreciação do direito.
E, nessa medida, tal como propugnado, deve o mesmo ser revogado, anulados os actos subsequentes (licitação, mapa determinativo da partilha que adjudica aos interessados os bens comuns do casal em partes iguais e consequente sentença), devendo elaborar-se mapa de partilha, em que fica adjudicada a propriedade das verbas de 2 a 18 ao cônjuge executado, conforme ata de conferência de interessados, bem como o direito de uso e habitação do imóvel e ao cônjuge do executado a nua raiz do imóvel e o referido passivo.
Procede, assim, a apelação.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, anulando, em consequência os subsequentes actos, ordenando-se que se elabore mapa de partilha, em que fica adjudicada a propriedade das verbas 2 a 18 ao cônjuge executado, conforme ata de conferência de interessados, bem como o direito de uso e habitação do imóvel, e ao cônjuge do executado a nua raiz do imóvel e o referido passivo.
Sem custas.
Notifique.
Manuela Fialho
Edgar Valente
Paulo Barreto