Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
285/04.3TBMNC-B.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: PETIÇÃO DE HERANÇA
ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
FILIAÇÃO
PATRIMÓNIO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/27/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A jurisprudência e a doutrina têm admitido o reconhecimento da paternidade, com fundamento no direito à identidade pessoal, constitucionalmente garantido, para além dos prazos fixados no artº 1817º do C.C.
II - Nesses casos, tem-se discutido a restrição dos efeitos da filiação, mormente no tocante à capacidade sucessória e teorizado sobre um sistema dual (filiação de efeito pleno ou restrito), com base no abuso de direito ou numa interpretação do artº 1817º do CC no sentido de aqueles prazos se aplicarem apenas a quem pretenda obter benefícios sucessórios – ver comentário ao Acórdão do TC 23/2006, de 10.1, nos “Cadernos de Direito Privado”, nº 15 Julho/Setembro, (Proposta de uma interpretação do art. 1817º do Código Civil que seja conforme á Constituição) e, por todos, o Ac. do STJ de 9.4.2013 (proc. 187/09.7TBPFR.P1.S1).
III- Tal hipótese nunca se colocou nos casos, como o presente, em que a acção foi intentada dentro dos prazos previstos no artº 1817º do CC.
IV - Ainda que a situação dos autos fosse a configurada nessa jurisprudência e doutrina, era na acção de investigação, ao estabelecer a filiação, que tal “limitação” ou “restrição de efeitos” teria que ser imposta e averbada ao assento de nascimento do filho.
V - Não o tendo sido, a filiação estabelecida é plenamente operante. Não há qualquer limitação aos efeitos dessa filiação, nomeadamente à capacidade sucessória do recorrido, que, como filho, é herdeiro legitimário do pai. A capacidade sucessória só lhe pode ser retirada por motivo de indignidade, nos casos previstos no artº 2034º do CC.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
F… intentou contra M…, E…, M…, F…, M…, M…, M… e marido, M… e marido e M… e marido, acção com processo comum sob a forma ordinária, pedindo, entre o mais, que se declare o autor único e universal herdeiro da herança aberta por óbito de R…, se declare nula e de nenhum efeito a escritura de habilitação de herdeiros de 23.3.2003, ordenando-se o cancelamento de todos os registos que os réus efectuaram com base nela, nomeadamente os que respeitam aos prédios referidos no artº 15º da P.I., condenando-se os réus a reconhecerem ao autor a qualidade sucessória e a restituírem todos os bens da herança, bem como os frutos e rendimentos que a mesma produziu.
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Os réus M…, M…, M… e marido e M… e marido, apresentaram contestação nos presentes autos, sustentando que, em face da jurisprudência e doutrina citadas que, como, no presente caso, não foi observado o prazo do nº 4 do artº 1817º do Cód. Civil, não assiste ao autor o direito de peticionar a herança do R…, pai dele, ex vi da sentença proferida na redita acção de investigação de paternidade.
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Também os réus M… e marido, na sua contestação alegaram, entre o mais, que, para efeitos sucessórios caducou o direito invocado pelo autor pelo que não pode ele, agora, formular petição de herança, porque inexiste declaração de inconstitucionalidade, no tocante a relações sucessórias ou patrimoniais, apesar do estabelecimento da relação filial, por decisão judicial, decorridos os prazos estabelecidos nos arts. 1817º e 1873º do Cod. Civil.
Sustentam ainda, que a petição de herança não pode prejudicar direitos adquiridos, pois estão na posse dos bens móveis desde o ano de 2003, com base num título legítimo – escritura de habilitação de herdeiros e de boa-fé, tendo adquirido por usucapião o direito de propriedade dos bens em causa.
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O autor replicou, citando o seguinte excerto do Ac. do STJ proferido na acção da respectiva investigação da paternidade (autos principais):
«Ainda que em determinada situação concreta se possa ter como aceitável a solução da caducidade do direito à investigação de paternidade por se entender, em concreto, que a situação se configura de tal modo que é possível valorizar contra o direito à identidade pessoal a segurança jurídica que o decurso do tempo sedimentou, é preciso então aceitar que a propositura da acção de impugnação de paternidade de uma perfilhação (como foi aqui o caso) que constituía o obstáculo inibitório da propositura daqueloutra acção é em si mesma impeditiva dessa caducidade, nos termos do artº331, nº1 do C. Civil.
Transitada a decisão que declare o lugar vazio da paternidade, começaria então a correr o prazo para a propositura da acção de investigação que preenchesse esse mesmo lugar…
Não se verifica a caducidade da acção intentada pelo Autor/investigante porquanto, no prazo previsto no nº4 do artº1817 ele instaurou a acção de impugnação de perfilhação necessária à remoção do obstáculo inibitório da propositura da acção de investigação e, transitada aquela, instaurou esta no ano posterior ao trânsito daquela.»
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No despacho saneador apreciou-se a questão colocada pelos réus decidindo-se:
«Assiste assim ao A. o direito de peticionar a herança de seu pai, por ter observado o prazo do nº 4 do art. 1817º do CC; não tendo os RR., M… e marido, adquirido, por usucapião, os bens móveis em causa, por não terem qualquer fundamento que lhes legitime tal pretensão.»
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Inconformados, os réus M… e M…, M… e marido, e M… e marido, interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações em que formulam as seguintes conclusões:
I - atento o alinhado em 1.1:, 1.2. e 1.3., supra, contrariamente ao decidido na parte do despacho saneador, objecto do presente recurso, não assiste ao autor F…, direito de peticionar a herança de quem, na sentença de 10 de Novembro de 2006, proferida na redita acção investigação de paternidade, se declara ser filho, vale dizer, de R…;
II - é que, no caso em apreço, e tal como decidido e transcrito se deixou no douto acórdão de 9 de Abril de 2013 do Supremo Tribunal de Justiça, trazido a colação em 2., supra. "As consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos, a questão do estado -a filiação-, e não valer para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, persistindo em casos concretos, afastar o investigante da herança do progenitor, sem violação do princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, pela afirmação de que, na situação de manifesto abuso do direito, o investigante, apesar de reconhecer da paternidade, não poderá beneficiar da vertente patrimonial inerente as status de herdeiro", sendo que, "é no contexto do abuso do direito que tal distinção de efeitos eleve ser invocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica possa ser paralisada se o respectivo exercício for maculado pelo seu abuso - a questão da caça à fortuna - nos casos em que o investigante, a acoberto de averiguar a filiação, pretenderia, primordialmente, acautelar aspectos patrimoniais, visando o estado de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor";
III - na verdade, atentos os factos alinhados nos itens 8. e 9., da sentença proferida na predita acção de investigação de paternidade, pese embora, como decorre do item 6., dessa mesma sentença, perfilhado em 6 de Janeiro de 1964, quando, portanto, já tinha 11 anos, pelo J…, a que aí se alude, sempre esteve ao par não ser esse o seu pai, mas sim o sobredito R…;
IV - não obstante isso, tendo o J… falecido em 8 de Outubro de 1990 (vd. Item 10 .. da sentença proferida na susodita acção de investigação de paternidade}, O autor F…, não só "ficou a. ser herdeiro dele, como aceitou a herança respectiva (vd. itens 34. e 35., dessa mesma sentença);
V - o autor F…, nem sequer compareceu no Hospital de Viana do Castelo, onde o R…, esteve internado durante 15 dias, algum tempo antes de falecer (vd, Item 32., da sentença proferida na dita acção de investigação de paternidade);
VI- o autor F…, só em 20 de Novembro de 2002, quando já ia nos 49 anos de idade, e quando já ocorrera o decesso do R…, se decidiu por instaurar a redita acção de impugnação de paternidade ( vd, Item 7., da.sentença proferida na predita acção de investigação de paternidade}!
VII - o autor F…, só em 4 de Junho de 2004, com já mais de 50 anos de idade, viria a instaurar a susodita acção de investigação de paternidade, considerada tempestiva por haver improcedido a, pelas rés, deduzida. excepção de caducidade, pelas razões apontadas, por um lado, no despacho saneador dado na 1ª Instância, por outro, pelas apontadas no acórdão da 2ª Instância, e, por outro, pelas aduzidas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que transitou em julgado em Setembro de 2008, pouco antes, por conseguinte, da Lei nº 14/2009., de 1 de Abril, entrada em vigor a 02.04.2009, apenas, portanto, uns 8 meses após o trânsito em julgado deste último acórdão, que deu a redacção que, desde aí passaram a ter os artºs 1817° e 1842°, do Cód. Civil, e que ainda vigora.
VIII - considerando-se o quadro fáctico em que assentaram, quer a procedência da redita acção de investigação de paternidade, conjugado com n alteração legislativa operada pela mencionada Lei n° 14/2009, com o sobredito acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Abril de 2013, e com o avultado património constitutivo da herança do R…, o que até já decorre da presente acção de petição de herança, nomeadamente dos artºs 16º e 17°, da petição inicial, bem como do valor (duzentos e cinquenta mil euros), que lhe esta ficado no despacho saneador, salvo o respeito devido por opiniões em contrário, crê-se, também, in casu, estar-se perante por demais evidente "caça à fortuna", por parte de quem, em vida do que, ex vi da sentença proferida na redita acção de investigação de paternidade, foi declarado ser o seu pai, nem sequer quando este, já com 75 anos de idade, "algum tempo antes de falecer, adoeceu gravemente, tendo, em razão disso, sido internado no Hospital de Viana do Castelo, durante 15 dias, ai compareceu."!!!
IX - como tal, também, no caso em apreço, "as consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos, à questão de estado-a filiação -, e não valem para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo afastar" o autor F…, nesta acção recorrido, "da herança do progenitor. sem violação do princípio da indivisibilidade ou da unidade do estado, pela afirmação de que, na situação ele manifesto abuso do direito", o F… "apesar de reconhecida a paternidade, não poderia beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro", do R…, sendo "no contexto do abuso do direito que tal distinção de direitos deve ser enfocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica possa ser paralisada se o respectivo exercicio", como, no caso que nos ocupa, sucede, "for maculado pelo seu abuso a questão da - caça à fortuna- nos casos", em que, como o ora em causa, o F…, "a coberto da averiguar a filiação ", quis "primordialmente, acautelar interesses patrimoniais, visando o estatuto de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor".
X - aliás, sendo a dita Lei nº 14/2009, de aplicação aos processos pendentes, à data da sua entrada em vigor (02.04.2009), e visto a pendência da susodita acção de investigação de paternidade, só ter ocorrido com a. prolação do acórdão do Tribunal Constitucional de 1 0.12.2008, as por demais serôdias acções de impugnação de paternidade e investigação de paternidade, instauradas pelo F…, os prazos para o efeito .. há muitos anos teriam caducado;
XI - destarte, a quanto alegado se deixa atendendo, pese embora já não ser de se por em causa o reconheci mento da paternidade do autor F…" já o mesmo não vale para as consequências patrimoniais desse reconhecimento uma vez que ele, ao instaurar as sobreditas acções de impugnação de paternidade e investigação de paternidade, com o pretexto de averiguar a sua filiação, quiz, isso sim, e a coberto delas, obter aspectos patrimoniais, tendo em vista o estatuto de herdeiro para aceder ao acervo hereditário do progenitor, assim actuando com o abuso do direito, que, malgrado do conhecimento oficioso, expressamente e para todos os devidos e legais efeitos se invoca, para que, ao invés do decidido no despacho saneador, VOSSAS EXCELÊNCIAS, decidem não assistir ao autor F…, o direito de peticionar a herança, do que veio a ser declarado seu pai.
XII - finalmente, mostra-se violado o disposto no artº 334°, do Cód, Civil. TERMOS EM QUE, e mais que VOSSAS EXCELÊNCIAS mui doutamente suprirão, deve, nos termos das conclusões supra, conceder-se provimento ao recurso, e por isso, revogar-se a parte do despacho saneador, objecto do presente recurso,
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Também os réus M… e marido interpuseram recurso, instruído com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:
1ª Se bem que na parte final do Douto Despacho ora Recorrido se expresse que "o tribunal não conhece, por ora, do mérito da causa, por entender que é necessária a produção de prova" a verdade é que o Tribunal "a quo" decide que "assiste assim ao A. o direito a peticionar a herança de seu pai (. . .)".
2ª Corno muito bem nesse Despacho é expendido "essencial na petição de herança é o duplo fim que ela visa: por um lado, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória (. . .) por outro, a restituição e integração dos bens (. . .) no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro (. . .)" sendo que "a causa de pedir na acção de petição de herança consiste na sucessão mortis causa e na subsequente apropriação por outrém de bens da massa hereditária".
3ª Salvo o devido respeito por melhor opinião, os autos não permitem, ainda, concluir pelo reconhecimento da capacidade sucessória do Recorrido.
4ª Assente que está, por decisão transitada em julgado, no processo apenso, que o Apelado é filho do Investigado, continua em aberto e por decidir se, entre eles, existe relação sucessória.
5ª "As consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas, nos seus efeitos, à questão de estado – a filiação - e não valer para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo, em casos concretos afastar o investigante da herança do progenitor (. . .) pela afirmação de que, na situação de manifesto abuso de direito (…) o investigante (. . .) não poderá beneficiar do "status de herdeiro"
6ª O exercício abusivo de um direito pode e deve ser conhecido oficiosamente.
7ª Ora, admitindo-se que assim é, nesta fase processual, não e possível decidir, conforme foi decidido em 1ª Instância, que assiste ao Recorrido “o direito a peticionar a herança de seu pai" pressupondo “o reconhecimento judicial da qualidade sucessória" 8ª Os ora Recorrentes, nos arts. 20º e 21º da contestação que apresentaram nestes autos - e que decorre de toda a matéria de facto nos processos a que este foi apensado - aludem à conduta abusiva do Recorrido que só após o falecimento da pessoa que o perfilhou e dele ter herdado, se lembrou que, afinal teria um pai biológico de quem poderia obter outra herança, décadas após ter atingido a maioridade.
9ª É certo que no Douto Despacho recorrido se afirma que "o Tribunal não conhece, por ora, do mérito da causa, por entender que é necessária a produção de prova". Porém, anteriormente, reconhece ao Recorrido o direito a peticionar a herança e a sua capacidade sucessória. Depara-se-nos pois algumas obscuridade e ambiguidade, cujo esclarecimento, hoje em dia, não pode ser alegado senão em sede de recurso (cfr. art. 616 Cod. Proc. Civil) na medida em que se fica por saber, em concreto, qual a matéria sobre a qual "é necessária a produção de prova".
10ª Parece, aos Recorrentes, que, a merecer algum acolhimento ao que fixa expendido, toda a matéria vertida nos articulados oferecidos por Autor/Recorrido e Réus/Recorrentes carece de produção de prova e, em especial, para que seja aferida a existência de abuso de direito.
11ª O Douto Despacho recorrido não teve em consideração, salvo o devido respeito por melhor opinião o disposto no art. 334º do Cód, Civil. .
12ª Pelo que deverá ser revogado por Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos em ordem à apreciação de toda a matéria-de facto e de direito neles alegada pelas partes (bem como nos apensos).
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Admitidos os recursos, os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde foram recebidos sob a forma, modo de subida e efeito atribuídos pela 1ª instância.
Pelo relator, foi, então, exarada a seguinte decisão singular:
- « São termos em que se julga:
- a apelação, dos primeiros recorrentes, improcedente;
- procedente a apelação dos segundos, revogando-se, por isso, a decisão recorrida, e ordenando-se a notificação destes recorrentes para que procedam à concretização da matéria de facto alegada nos artigos 20 e 21 da sua contestação.
Custas, do recurso dos primeiros recorrentes, por estes, e, do dos segundos, pelo recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.»
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Notificado, o recorrido veio requerer que o recurso seja decidido em conferência.
O processo foi aos vistos.
Por a maioria dos juízes que integram este colectivo não concordar com a decisão do relator, nos termos do artº 663º nº 3 do NCPC, o acórdão é lavrado pela 1ª adjunta.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artº 608º nº2 do NCPC).
As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.
III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Para além do que consta do relatório supra, tem interesse para a decisão dos presentes recursos a seguinte factualidade:
A) O aqui autor intentou, em 4 de Junho de 2004, no Tribunal Judicial de Monção, contra os ora réus, acção ordinária de investigação de paternidade, que recebeu o nº285/04, pedindo que se declarasse, e os réus fossem condenados a reconhecer, que o autor é filho de R… e a reconhecê-lo a ele, autor, como filho deste.
B) Nessa acção foi elaborado despacho saneador que, além do mais, concluiu pela inexistência da invocada excepção de caducidade que «não se verifica se … mesmo tendo cessado o tratamento como filho há mais de um ano, existindo registo inibitório, foi a sua anulação requerida até ao termo do prazo para propor aquela acção». E de seguida foram alinhados os factos assentes e fixada a base instrutória. A decisão foi objecto de recurso
C) Concluído o julgamento foi proferida a sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou que o A. é filho de R….
D) Os RR interpuseram recurso da sentença.
E) Em acórdão proferido nos autos principais, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedentes os recursos de apelação e negou provimento ao recurso de agravo interposto pelos réus, confirmando as decisões por via deles postas em causa.
F) Interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os réus contestantes, Tribunal que negou revista e confirmou o acórdão recorrido.
G) Na fundamentação desse acórdão do STJ, junto aos presentes autos e que pode ser consultado em dgsi.pt, consta: «(…) Ainda que em determinada situação concreta se possa ter como aceitável a solução da caducidade do direito à investigação de paternidade por se entender, em concreto, que a situação se configura de tal modo que é possível valorizar contra o direito à identidade pessoal a segurança jurídica que o decurso do tempo sedimentou, é preciso então aceitar que a propositura da acção de impugnação de uma perfilhação que constituía o obstáculo inibitório da propositura daqueloutra acção é em si mesma impeditiva dessa caducidade, nos termos do art.331º, nº1 do CCivil. Transitada a decisão que declare o lugar vazio da paternidade, começaria então a correr o prazo para a propositura da acção de investigação que preenchesse esse mesmo lugar. No caso concreto, o caso previsto no nº4 do art.1817º do CCivil, o ano posterior ao mencionado trânsito.(…)»
H) E ainda: «Ora, para alguém que já tem quase 49 anos quando vê morrer o seu pretenso pai com 75 anos de idade, não nos parece desproporcionado exigir que em definitivo procure o reconhecimento judicial da identidade pessoal a que tem direito e quer fazer valer, sem alongar no tempo o que o tempo já alongou em demasia. Nem nos parece que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, ou seja, não nos aprece constituir um abuso de direito, nos termos em que o define o artigo 334º do CCivil, que um autor que sempre foi tratado por todas as pessoas como filho do R… e como tal tem sido reputado pelo público venha, neste tempo, o ano posterior à morte do pretenso pai, pedir o reconhecimento judicial da paternidade de quem d(ess)a gravidez da mãe se confessou autor, publicamente, a algumas pessoas das suas relações, sempre se confessou pai do autor, depois de o autor ter casado, o visitava e foi ao |seu| apartamento. Aquilo que em vida do pretenso pai pode tê-lo moralmente inibido de “mexer no assunto”– para não colocar um pai contra a acção judicial de um filho – não pode, à morte do pai, impedir o filho de se identificar na íntegra consigo próprio. Nem mesmo a circunstância daquilo a que costuma chamar-se a «caça à fortuna» pode alterar esta visão das coisas. Porque essa é uma questão reversível e a mesma «fortuna» - se é que existe – está a ser disputada em pé de igualdade pelo autor e pelos réus, irmãos e sobrinhos do autor; porque o que se pode dizer é que, se « fortuna » houve ( ou há ), o que sucede é que foi o autor quem perdeu eventuais rendimentos dela durante uma vida inteira; porque não é nenhuma surpresa para os réus que apareça a querer herdar quem, durante toda a vida, o seu irmão e tio (e o público em geral ) reconheceu como seu filho; porque era ao pai, e não ao filho que nascia, que competia ter assumido a responsabilidade ( moral, social ...e legal ) dos seus actos ( biológicos ); porque a questão da herança do J.., o perfilhante que foi, é com os herdeiros dele, e não aqui, que deve ser tratada.»
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
Sustentam os 1ºs apelantes que as consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos à questão de estado - a filiação - e não valem para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo afastar o autor F…, nesta acção recorrido, da herança do progenitor, sem violação do princípio da indivisibilidade ou da unidade do estado, pela afirmação de que, na situação, ele manifesta abuso do direito e, por isso, "apesar de reconhecida a paternidade, este não poderia beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro”.
Na mesma senda os 2ºs apelantes defendem que o exercício abusivo de um direito pode e deve ser conhecido oficiosamente, e que nos arts. 20º e 21º da contestação aludem à conduta abusiva do recorrido, que só após o falecimento da pessoa que o perfilhou e dele ter herdado, se lembrou que, afinal teria um pai biológico de quem poderia obter outra herança, décadas após ter atingido a maioridade. Por isso não deveria ter sido proferida a decisão em crise, mas sim prosseguirem os autos para apreciação do “alegado” abuso de direito.
Apreciando.
Cumpre esclarecer antes de mais, pois os recorrentes demonstram não o ter entendido, que a acção de investigação da paternidade foi considerada tempestiva, não por força da inconstitucionalidade dos prazos de propositura da acção previstos no artº 1817º do CC, redacção vigente aquando da propositura da acção de investigação, mas porque se entendeu que o prazo só se iniciava com o trânsito da decisão da acção de impugnação da perfilhação e que, por isso, tendo a acção de investigação sido intentada dentro do ano seguinte a tal decisão, era tempestiva, mesmo em face do citado artº 1817º do CC.
Aliás, é também esta a interpretação que faz o Tribunal Constitucional do acórdão do STJ proferido nos autos principais. Lê-se nesse acórdão do Tribunal Constitucional nº 603/2008: «De facto, os fundamentos decisórios aportados pelo Supremo Tribunal de Justiça, no aresto agora impugnado consubstanciam uma ponderação do regime aplicável in casu “no pressuposto da constitucionalidade do nº4 do artigo 1817 do C.C(…) E, na verdade, tal pressuposto vai claramente assumido no resultado interpretativo que o esforço de reflexão metodológica permitiu ao Tribunal alcançar (…) de que “não se verifica a caducidade da acção intentada pelo autor/investigante porquanto no prazo previsto no nº4 do artº1817 ele instaurou a acção de impugnação de perfilhação necessária à remoção do obstáculo inibitório da propositura da acção de investigação e, transitada aquela, instaurou esta no ano posterior ao trânsito daquela” aceitando assim que “ a propositura de acção de impugnação de uma perfilhação que constituía o obstáculo inibitório da propositura daqueloutra acção é em si mesma impeditiva dessa caducidade, nos termos do artº 331, nº1 do Cód. Civil”, razão pela qual se entendeu que o prazo fixado no art. 1817 nº4, do Cód. Civil, apenas começa a correr a partir do trânsito da acção de impugnação de perfilhação.».
Ora, a restrição dos efeitos jurídicos do reconhecimento da paternidade tem sido debatida (em abono da verdade nunca a vimos decidida) pela jurisprudência e pela doutrina, apenas nos casos de reconhecimento da paternidade para além dos prazos fixados no artº 1817º do C.C., com fundamento no direito à identidade pessoal, constitucionalmente garantido.
Há, nesses casos, quem admita a restrição dos efeitos da filiação, mormente no tocante à capacidade sucessória e teorize sobre um sistema dual (filiação de efeito pleno ou restrito), com base no abuso de direito ou numa interpretação do artº 1817º do CC no sentido de aqueles prazos se aplicarem apenas a quem pretenda obter benefícios sucessórios – ver comentário ao Acórdão do TC 23/2006, de 10.1, nos “Cadernos de Direito Privado”, nº 15 Julho/Setembro, (Proposta de uma interpretação do art. 1817º do Código Civil que seja conforme á Constituição) e, por todos, o Ac. do STJ de 9.4.2013 (proc. 187/09.7TBPFR.P1.S1).
Mas não nos casos, como o presente, em que a acção foi intentada dentro dos prazos previstos no artº 1817º do CC.
De qualquer forma, ainda que a situação dos autos fosse a configurada na jurisprudência e doutrina que debatem a limitação dos efeitos da filiação estabelecida em acção de investigação da paternidade intentada para além dos prazos previstos no artº 1817º do CC, era na acção de investigação, ao estabelecer a filiação, que tal “limitação” ou “restrição de efeitos” teria que ser imposta e averbada ao assento de nascimento do filho. È neste sentido que interpretamos a conclusão 6ª do Ac. do STJ acima citado.
Não o tendo sido, a filiação estabelecida é plenamente operante. Não há qualquer limitação aos efeitos dessa filiação, nomeadamente à capacidade sucessória do recorrido, que, como filho, é herdeiro legitimário do pai. A capacidade sucessória só lhe pode ser retirada por motivo de indignidade, nos casos previstos no artº 2034º do CC.
Era assim na acção de investigação (se não se tivessem respeitado os prazos do artº 1817º do CC) que o abuso de direito teria de ser apreciado e que, eventualmente, a verificar-se o uso disfuncional do exercício do direito à identidade pessoal, para quem perfilhe o entendimento de que o direito vigente permite uma filiação de efeitos limitados, se teria impedido o autor de obter benefícios sucessórios da filiação estabelecida.
Ora, da análise dos arestos prolatados nos autos principais, verificamos que a questão do abuso do direito de investigar a paternidade (para obter benefícios sucessórios), foi efectivamente colocada na acção de investigação e definitivamente afastado pelo STJ, ao decidir o recurso de revista para ele interposto pelos aqui recorrentes [vide supra III -al. H)], pelo que, de qualquer forma, nunca aqui poderia ser reapreciada.
Pelo exposto carecem de fundamento as apelações dos réus, não tendo a decisão recorrida violado as indicadas normas jurídicas.
V - DELIBERAÇÃO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações confirmando a decisão recorrida
Custas pelos recorrentes.
Guimarães. 27-10-2014
Eva Almeida
António Beça Pereira
Henrique Andrade - vencido, conforme declaração anexa



DECLARAÇÃO DE VOTO
Como primitivo relator, propus a avocação, pura e simples, da decisão singular, pelas razões que, sumariamente, se alinham:
- O abuso de direito funciona como uma válvula de segurança do sistema, não devendo a sua aplicação ser afastada apenas porque a lei prevê, para certo tipo de situações, determinada consequência. Se não estivermos no âmbito dessa previsão, mas o resultado que se visa obter exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em questão, então, poderá haver abuso de direito, ut artº 334.º do CC;
- A lei não exige que a questão do abuso de direito, consistente em o investigante da paternidade vir, em determinado circunstancialismo, reclamar a herança do investigado, seja suscitada na acção de investigação, pelo que é razoável, e por isso legal, que tal questão seja esgrimida apenas na a~cção em que se faça essa reclamação da herança, mesmo porque, na acção de investigação, normalmente (é o caso dos autos), o investigante não dirá que, se a acção proceder, irá, de seguida reclamar a herança do investigado, sendo, assim, provável (e irrepreensível do ponto de vista técnico) que tal questão (por isso que, em rigor, não constituirá excepção peremptória) não seja admitida à discussão, na acção de investigação, acrescendo não ser, também, fundamento para reconvenção;
- O abuso de direito sobre o qual se pronunciou o STJ, no recurso que até ele subiu, na acção de investigação, foi o que tinha a ver com a própria investigação de paternidade, e não, como agora, com, tendo aquela procedeido, o vir reclamar-se a herança do de cujus.