Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
950/09.9TABCL-C.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PROMITENTE-COMPRADOR
POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – O promitente comprador, tendo havido tradição da coisa, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, gozando de tutela possessória, nos casos em que o “corpus” da posse exercido pelo mesmo for acompanhado do “animus possidendi”, agindo este com a convicção de quem exerce um direito próprio.
2 - A qualificação da natureza da posse do beneficiário da “traditio”, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística o que implica a alegação e prova dos factos, em concreto, que materializam essa posse, definindo-a.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
J… deduziu embargos de terceiro contra S… (exequente) e C… (executado) pedindo que, por força da posse do embargante adquirida por contrato promessa de compra e venda, seja reconhecido o direito de retenção do embargante sobre o bem identificado na petição inicial, declarando-se sem efeito a penhora que sobre ele incidiu.
Alegou ter celebrado com a executada contrato promessa que incidiu sobre o imóvel penhorado e ter pago já 2/3 do preço fixado. Mais alegou que as chaves do imóvel lhe foram entregues de imediato e que, desde essa altura, se tornou legítimo possuidor do prédio em questão, vindo a exercer actos de posse (que descreve) e comportando-se como seu legítimo possuidor.
Produzida a prova (documental e testemunhal), foram recebidos os embargos.
Contestou o exequente, S…, excecionando a caducidade do direito do embargante e, por impugnação, considerando que o embargante não tem o direito que se arroga.
Respondeu o embargante para dizer que só teve conhecimento da penhora no momento em que deduziu os embargos de terceiro.
Foi proferido saneador-sentença que julgou improcedentes os embargos de terceiro, absolvendo os embargados do pedido e ordenando o prosseguimento da execução.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso o embargante, finalizando a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1 – A douta sentença recorrida deve ser revogada na sua totalidade, por manifesta desconformidade legal.
2 – Com o devido respeito, a sentença do tribunal a quo que decretou (e mal) a improcedência dos embargos apresentados pelo apelante, recorreu a argumentação jurídica não aplicável no caso concreto, pelo que a mesma terá de ser reformada, devendo ser ordenado o prosseguimento dos autos.
3 – Sentenciou o tribunal a quo no sentido de indeferir a pretensão do apelante por entender que o direito de retenção pressupõe a existência de um crédito, o qual, no seu entendimento não foi alegado pelo apelante.
4 – Contudo, estamos perante a apresentação de embargos nos termos do artigo 755.º n.º 1, alínea f), logo um direito de retenção especial, onde o incumprimento é aliás quase que presumido, aliás de outro modo não teria sentido.
5 – Tendo sido o incumprimento claramente exposto na petição inicial, e ainda que não o fosse, o próprio uso dos embargos de terceiro pressupõe per si o incumprimento do contrato.
6 – E ainda que assim não o entendesse, o tribunal deveria sempre de dar à parte a possibilidade de se pronunciar quanto à questão, a fim de não ser confrontada com sentença-surpresa, e se assim o entendesse aperfeiçoar inclusive o seu articulado.
7 – Como aliás é exigido pelas regras processuais expostas nos artigos 3.º n.º 3, 265.º n.º 2 e 508.º do CPC, e como ordenam os bons princípios do contraditório e o da legalidade.
8 – Pelo que a sentença a quo não podia ter proferido a sentença no sentido da improcedência, com base na motivação emitida, pois que carece a mesma de qualquer fundamentação legal.
9 – Para além desta questão, o tribunal a quo julgou também não ser o meio dos embargos de terceiro o próprio para o embargante defender o seu direito.
10 – Ora, quer-nos parecer que a reação comum a qualquer acto de penhora que contenda com a posse, se faz através dos embargos de terceiro, artigo 1285.º do CC.
11 – E caso assim não o seja, e por observação do artigo 265.º-A do CPC, deve o tribunal oficiosamente por respeito ao princípio da adequação formal, ouvir as partes e determinar a prática de actos que melhor se coadunem com o fim do processo.
12 – Assim, apodíctico é que a sentença recorrida violou, entre outros, os preceitos legais supra referenciados, pelo que deverá ser revogada.
Termos em que revogando-se a douta sentença recorrida se fará inteira justiça.

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se o embargante como promitente comprador do imóvel penhorado, podia socorrer-se de embargos de terceiro para defender a sua posse.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
1 – Nos autos de execução comum n.º 950/09.9TABCL, à qual os presentes se encontram apensos, foi penhorado o seguinte bem imóvel: prédio urbano sito no lugar de…, concelho de Barcelos, distrito de Braga, descrito na Conservatória de Registo Predial de Barcelos sob o n.º…, prédio destinado à indústria, inscrito na repartição de Finanças de Barcelos sob o artigo …, da freguesia de….
2 – O embargante não é parte na referida execução.
3 – O imóvel penhorado não foi objeto de venda no âmbito dessa execução.

Entendeu-se na sentença sob recurso que não tendo sido alegado o incumprimento definitivo do contrato promessa por parte do promitente vendedor e a existência do crédito resultante desse incumprimento, não se verificam os pressupostos da existência do direito de retenção por parte do embargante. Ainda que se entendesse que o embargante era titular do direito de retenção sobre o imóvel, não poderia reagir à penhora através de embargos de terceiro, uma vez que, como direito real de garantia (e não de gozo) apenas permite ao seu titular realizar o seu direito através da correspondente reclamação de créditos. Finalmente, entende que a tradição da coisa efetuada com base num contrato promessa, não confere ao promitente comprador o animus necessário para ser considerado possuidor em termos de um direito real de propriedade, mas apenas possuidor em termos de um direito real de garantia (direito de retenção), uma vez que sabe bem que a coisa pertence ainda ao promitente vendedor.

Nos termos da lei processual o que caracteriza os «embargos de terceiro», conforme expresso pelo próprio legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, com uma argumentação que se mantém actual, é “a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante.” Permite-se, deste modo, que os direitos atingidos ilegalmente pela penhora possam ser invocados com as mesmas garantias de que beneficiariam em acção autónoma – e conduzindo logicamente, por esta razão, o processo de embargos à formação de caso julgado material, relativamente à existência e titularidade dos direitos que dele foram objecto (neste sentido, e por todos, Ac. da Relação do Porto, relator Guerra Banha, Processo JTRP00043358, de 16.12.2009, in www.dgsi.pt).
No caso de embargos de terceiro sustentados na posse pelo promitente comprador do imóvel penhorado, terá o requerente de alegar e provar que está na posse do imóvel penhorado. Como se refere no Ac. do STJ de 19.11.1996, in CJASTJ, Tomo III, pág. 109 e ss., o problema que se coloca “…. É o de saber se esta posse, com corpus e animus, e não mera detenção, existe no promitente-comprador a quem foi antecipadamente entregue a coisa que é objecto do contrato prometido”.
Esta é a questão que foi apenas aflorada na sentença sob recurso, mas que, salvo o devido respeito, deve ser a questão principal a conhecer nos presentes autos de embargos de terceiro, uma vez que é respondendo à questão da existência da posse no promitente comprador, que se chegará à procedência ou improcedência dos embargos de terceiro. A sentença sob recurso cingiu-se muito ao facto de ter sido peticionado o reconhecimento do direito de retenção e conheceu no saneador dessa impossibilidade (por ausência de incumprimento da outra parte), mas, salvo o devido respeito, errou ao considerar que, sem necessidade de prova, poderia concluir que o promitente comprador, com tradição da coisa, não está investido do “animus” necessário para a existência da posse suscetível de tutela jurídica.

Existe, como é consabido (e é a tese da sentença sob recurso), quem defenda que o contrato promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse, pelo que, havendo tradição da coisa, o promitente comprador adquire o “corpus” possessório mas não o “animus possidendi”, sendo apenas um mero detentor ou possuidor precário, e sendo o direito de retenção de que goza um mero direito real de garantia insusceptível de posse, apenas podendo ver esse direito reconhecido no caso de incumprimento contratual.
Pensamos que, ao contrário do defendido na sentença, não é esse o entendimento dominante e que aqui perfilhamos, em linha com abundante doutrina e jurisprudência nomeadamente a que resulta do citado acórdão do STJ (de 19.11.1996, in CJASTJ, Tomo III, pág. 109 e ss) que o promitente comprador, tendo havido tradição da coisa, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, gozando de tutela possessória, se o “corpus” da posse exercido pelo promitente comprador for acompanhado do “animus possidendi”, ou seja, se ele actuar com “animus rem sibi habendi” (neste sentido, cf. o Ac. da RP de 13.11.2007, P. 0724885, Relator: Anabela Dias da Silva, in www.dgsi.pt) – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 01/04/2014, proferido no processo n.º 2688/13.3TJVNF-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Aliás, apesar de sustentarem uma posição relativamente próxima da referida na sentença (com citação de A. Varela na RLJ, 128, 146), Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. III, 2ª ed. rev. e actualiz., págs. 6 e 7 entendem que “O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (…). São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, nesse estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são praticados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
Como se refere no Acórdão do STJ de 12/03/2009, disponível em www.dgsi.pt: «Em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário– art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpuspossessório (relação material) – art. 1251º do Código Civil.
Contudo, Vaz Serra, in R.L.J., Ano 109, págs. 347 e 348 ensina:
“O promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, […] passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, […] julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade”.
Também Calvão e Silva, in “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª edição, pág. 231, nota 55, é de semelhante opinião:
“Não nos parece possível a priori qualificar-se de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre o objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe o corpus”.»
Também no Ac. do STJ de 23.05.2006, P. 06A1128, Relator: Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt, se entendeu que “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio”, … sendo “concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse”.
Igual posição vem assumida pelo Conselheiro Fonseca Ramos no Acórdão do STJ de 12/03/2009, processo n.º 265/09, disponível em www.dgsi.pt ou na CJ-STJ, ano XVII, tomo I, pág. 136: “Importa, casuisticamente, saber se a posse do promitente-comprador, que obteve a traditio, deve ser qualificada como posse precária – o que acontece em regra – ou, se deve ser qualificada como posse em nome próprio, o que acontece nos casos citados no ensino de Varela. Ora, se a posse for de considerar em nome alheio, o promitente-comprador – não havendo eficácia real da promessa – art. 413º do Código Civil – dispõe do direito de retenção como direito de garantia para pagamento do dobro do sinal prestado, em caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente vendedor – arts. 442º, nº1, e 755º, nº1, f) do Código Civil – bem como do direito previsto na parte final do nº2 do art. 442º do Código Civil (…) (no caso concreto) concluímos, assim, que a posse exercida pela Autora além do elemento material – corpus – contacto e ligação à coisa detida – se revestiu de intenção de exercer um direito próprio – não em nome do promitente-comprador – portanto, com animus rei sibi habendi, correspondente à actuação de um proprietário”.

É precisamente essa apreciação casuística que acabou por não ser feita nos autos de que nos ocupamos e que seria essencial para esclarecer a questão da eventual posse do promitente comprador e da sua possibilidade de a defender através de embargos de terceiro.
Está invocado o contrato promessa, a “traditio” e os factos que permitam concluir que essa posse foi exercida não apenas com o “corpus”, mas também com o “animus” de quem entende a coisa transmitida como sua – pagamento de parte substancial do preço, pagamento de contribuições e impostos referentes ao imóvel, celebração de contratos de arrendamento do mesmo, pedidos de licenças e autorizações à Câmara Municipal.
A questão posta nos autos, tratando-se de embargos de terceiro, deve ser dirimida à luz da natureza da posse do promitente-comprador, apreciada, casuisticamente, como defende Varela com o aplauso de grande parte da doutrina e da jurisprudência.
O direito de retenção, salvo o devido respeito, não é para aqui chamado, pois o que o apelante pretende é ver reconhecida a sua posse de modo a opô-la a terceiros, salvaguardando o seu bem.
A questão do eventual crédito do embargante sobre a executada, com o direito de retenção inerente, terá que ser dirimida noutra sede, designadamente, na reclamação de créditos que o apelante dá conta, nas suas alegações, já ter intentado.
E como o juiz não está vinculado ao direito alegado pelas partes – artigo 5.º, n.º 3 do CPC – não se torna relevante o facto de, também o embargante, ter dado muita importância ao reconhecimento do seu direito de retenção (que viria a ser negado na sentença sob recurso), uma vez que os factos necessários à eventual procedência dos embargos de terceiro foram alegados e devem ser sujeitos a prova, prosseguindo os autos para julgamento, sem esquecer a questão, também controvertida, da caducidade do direito de embargar.

Haverá, assim, que julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir para julgamento, face às questões controvertidas que importa conhecer, nos termos supra explicitados.

Sumário:
1 – O promitente comprador, tendo havido tradição da coisa, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, gozando de tutela possessória, nos casos em que o “corpus” da posse exercido pelo mesmo for acompanhado do “animus possidendi”, agindo este com a convicção de quem exerce um direito próprio.
2 - A qualificação da natureza da posse do beneficiário da “traditio”, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística o que implica a alegação e prova dos factos, em concreto, que materializam essa posse, definindo-a.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir os seus legais trâmites, a fim de conhecer dos factos controvertidos, que darão resposta às questões que supra se deixaram explicitadas.
Sem custas.
Guimarães, 19 de março de 2015
Ana Cristina Duarte
Fernando F. Freitas
Purificação Carvalho