Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4778/18.7T8BRG.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.
.Tendo a autora formulado um pedido de condenação solidária de todos os RR, com fundamento em responsabilidade extracontratual, a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais, enformando os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública), os tribunais administrativos e fiscais são competentes para conhecer da ação, ainda que nem todos os RR. sejam pessoas coletivas de direito público.
. Nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa jurídica pública pode ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem haja sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro, não impedindo a intervenção da seguradora, a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório

M. M. veio instaurar ação declarativa sob a forma comum contra X-Engenharia e Construções, S.A., Câmara Municipal de Y e Junta de Freguesia de ….

Alega (1),em síntese, que em junho de 2016 foi à sede da 3ª R. para a avisar que o muro, situado no prédio da 1ª R., que confronta com o caminho público em frente da sua residência estava em risco de derrocada.
Em julho de 2016 voltou a insistir junto da 3ª R., dando conta do risco de ruína que o muro apresentava, mas o muro não teve qualquer intervenção reparadora.
Em 15 de novembro de 2016, quando se encontrava a cerca de 2 metros da fita balizadora que tinha sido colocada pela Polícia Municipal na proximidade do muro, foi atingida por um pedregulho que de repente resvalou do referido muro que a atingiu na perna direita, tendo, em consequência, sofrido fratura supracondiliana do fémur direito e esfacelo grave da face posterior da coxa ipsilateral, tendo sido submetida a cirurgia, estado internada e realizado diversos tratamentos, não tendo ainda, à data da instauração da ação, alta da ortopedia.
Imputa responsabilidade à 1ª R. por ser a proprietária do muro e à 2ª e 3ª RR. por não terem providenciado que o muro fosse reparado com urgência, não tendo cumprido o dever de cuidado e zelo pela protecção da segurança pública.

Pede, consequentemente que as RR. sejam condenadas solidariamente, a pagar-lhe:

.1. Uma indemnização, com valor a fixar em liquidação de sentença, logo que lhe seja dada alta e fixada a incapacidade;
.2. a indemnização reclamada a título de danos patrimoniais tidos até esta data e sujeita a actualização, no montante de 410,00;
.3. indemnização a título de danos não patrimoniais, designadamente pelo dano biológico, dano estético e quantum doloris, no valor de 11.000,00,
.4. quantias acrescidas dos respectivos juros, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.

Todos os RR. contestaram.

O Município de Y veio afirmar ser ele a pessoa colectiva pública que deveria ter sido demandada e não a Câmara Municipal que é o órgão executivo, devendo considerar-se que a ação foi instaurada contra si. Impugnou os factos alegados pela A. e requereu a intervenção principal provocada da companhia de seguros W Seguros, S.A., entidade para quem transferiu a responsabilidade civil decorrente de acidentes como o sofrido pela A..
Foi admitida a intervenção principal requerida pelo R. Município de Y.
A interveniente veio suscitar a incompetência em razão da matéria do tribunal comum, sendo competente, em seu entender, o tribunal administrativo e fiscal, por força do disposto no artº 4º, nº 1, alíneas g) e i) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
A A. respondeu à exceção pugnando pela competência do tribunal comum.
Foi proferido despacho saneador que conheceu da exceção de incompetência e declarou o tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu os RR. da instância.

A A. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 - A 1.ª Ré foi demandada por ser proprietária do muro que ruiu e que feriu a Autora;
2 - Os 2.º e 3.ª Rés foram demandadas por não terem tomado as providências urgentes necessárias para evitar o acidente que ocorreu à Autora.
3 - A responsabilidade das três Rés terá de ser julgada em conjunto porque teve origem no mesmo facto jurídico.
4 - “(…) Por isso sendo o tribunal da comarca competente, em razão da matéria, para conhecimento da questão principal, será também ele competente para conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas fosse competente o foro administrativo.” (in Ac. STJ. Proc. 04A117, de 09-03-2004
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/8bda91ddb8dae43780256e6000497364?OpenDocument).
5 – E seguindo este raciocínio o mesmo Tribunal entendeu: ” Por não ter origem na prática de qualquer acto de gestão pública da ré, é da competência da jurisdição comum o julgamento da acção intentada por um particular contra a K - Empresa Pública Municipal de Estacionamento …, destinada a exigir a responsabilidade civil desta por danos sofridos em consequência de um acidente de viação causado pelo deficiente funcionamento de um pilarete metálico colocado pela ré à entrada duma rua integrada na zona histórica da capital.” (in Ac. STJ, Proc. 06A2917 http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0b743e3bf2958f75802572270 056d4da?OpenDocument)
6 – Pois, “Referimo-nos ao entendimento há muito firmado no STJ, no STA e no Tribunal de Conflitos (4) segundo o qual a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discutir na acção, mas à luz do "retrato", da estruturação concreta apresentada pelo autor - e, logicamente, dando especial atenção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida (…).”
7 - O Tribunal da Relação de Guimarães decidiu, por unanimidade, no proc- 7562/15.6T8VNF.G1, em 26-01-2017 (in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/- /FB8CBB5ECCBD9162802580D80059F564), que:
“À luz da legislação vigente, a jurisdição administrativa é competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público ou de direito privado, desde que atuem no exercício de prerrogativas do poder público ou sujeitas às disposições ou princípios do Direito Administrativo.”
8 – A matéria visada para os Tribunais Administrativos são: “as acções de responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas” (cfr. O prof. Gomes Canotilho, in “Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 1, Junho de 1994, fls. 115”, conforme citação feita no Ac. S.T.J. de 8/5/2007, Proc. n.º 07A1004).
9 - A 1.ª Ré foi demandada na qualidade de proprietária do muro que desabou, e não como interveniente em acto de gestão pública.
10 - A responsabilidade da 1.ª Ré não poderá ser apreciada noutro tribunal que não o comum.
11 – E, como não poderão correr duas acções com fundamento no mesmo facto jurídico, sob pena de poder haver decisões contraditórias, o Tribunal de Guimarães – Juízo Local Cível, é o competente, em razão da matéria, para conhecer e julgar os presentes autos.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e revogar-se a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por Douto Acórdão que considere que o Tribunal de Guimarães – Juízo Local Cível – Juízo 1, é o tribunal competente para julgar os presentes autos.
Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a decidir é tão só a seguinte:
. se o tribunal comum é o competente para a presente ação.

III – Fundamentação

A situação factual é a supra descrita.
Em conformidade com os ensinamentos de Manuel de Andrade, a competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação, baseando-se a definição desta competência na matéria da causa, ou seja no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial em questão e que o tribunal regra é o tribunal judicial. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização. Este princípio constitui o fundamento da competência em razão da matéria, atribuindo a orgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela grande pluralidade e especificidade das normas que os integram.
O artigo 37º, nº. 1, da atual Lei de Organização do Sistema Judiciário (doravante designado por LOSJ), aprovada pelo 62/2013, de 26/08, dispõe que na ordem jurídica interna a competência se reparte pelos tribunais judiciais, segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, estatuindo, logo a seguir, no artº. 38º do mesmo diploma (sobre a epigrafe “fixação da competência”) que a “competência fixa-se no momento em que ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, não a ser nos casos especialmente previstos a lei” (nº. 1), sendo “igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o orgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para conhecer da causa” (nº. 2).
No mesmo sentido se dispõe no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante designado por ETAF), aprovado pelo a Lei nº. 13/2002, de 19/02 e que entrou em vigor em 01/01/2004, ao estatuir no seu artº. 5º nº. 1, que “a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.”
E o artº. 1º, nº. 1, do ETAF preceitua que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”
O nº 1 do artº. 211º da Constituição da República Portuguesa estabelece que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (competência que também lhes é atribuída pelos artigos 64º do CPC e 40º, nº. 1, da LOSJ). Por sua vez, o artº 212º, nº 3, da CRP estabelece que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

É hoje pacífico o entendimento de que a competência dos tribunais em razão da matéria se afere ou determina em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais. (cfr. se defende no Ac. da RC de 28/06/2017, proc. 259/16.1T8PBL.C2 e Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 25/9/2014, proc. nº. 027/14, acessíveis em ww.dgsi.pt, sítio onde podem ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).
Dispõe o artigo 4º, nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas, quais as questões que são da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Nomeadamente, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que têm por objeto questões relativas a:
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
E estatui o nº 2 do mesmo artigo, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que “pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.

O despacho recorrido entendeu ser da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento das questões suscitadas na presente ação com base na alínea f) do nº 1 do artº 4º, não constituindo impedimento à atribuição da competência o facto de terem sido demandados conjuntamente pessoas colectiva de direito público e particulares, face ao que dispõe no artº 4º, nº 2 do ETAF. Escreveu-se a propósito no despacho recorrido:” In casu, a Autora imputa omissões aos 2.º e 3.ª RR próprias (também) à produção da violação do seu direito à integridade física e psíquica e à saúde, dado alegar que caso tivessem sido diligentes e adoptado providências de urgência, o muro não teria caído e a pedra não teria resvalado. Saliente-se, contrariamente ao sustentado pela Autora, que, ao alegar que tais RR deveriam ter adoptado providências e ao alegar que o muro e pedras pertencem ao 1.º Réu, pessoa coletiva de direito privado, para evitar o acidente, está a pedir que os 2.º e 3.ª RR atuassem no exercício de prerrogativas do poder publico ou de normas ou princípios do Direito Público. Consequentemente, é indubitável que, face ao disposto na citada alínea f) do n.º1 art.º 4º do ETAF, é a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer da pretensão da Autora, fundada (também) na responsabilidade civil extracontratual de duas Pessoas Colectivas de direito público. Impõe-se, pois, concluir pela incompetência absoluta do presente Tribunal por ser incompetente em razão da matéria para conhecer do presente litígio, por para tal serem competentes os Tribunais Administrativos – artigo 96.º do CPC. Incompetência essa que nos termos do artigo 97º do CPC é de conhecimento oficioso e, consequentemente, impõe a absolvição dos RR da instância – artigos 99º e 278º n.º 1 alínea a) e 576.º e 577º, todos do CPC.
Entende a apelante que sendo a 1ª R. uma pessoa colectiva de direito privado demandada na qualidade de proprietária do muro que desabou parcialmente, tendo em atenção o pedido formulado, são competentes para a ação os tribunais comuns. A circunstâncias dos 2º e 3º RR. serem pessoas colectivas de direito público que omitiram o exercício de prerrogativas do poder público não obsta que a ação corra nos tribunais judiciais, pois que sendo o tribunal competente para conhecer da questão principal também o é para o conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais.

A apelante alicerça a ação na seguinte factualidade:

1. A 15.11.2016 a Autora encontrava-se no caminho público, a cerca de dois metros da fita balizadora colocada pela Polícia Municipal, quando foi atingida por um pedregulho que resvalou do muro e foi atingir a Autora na perna direita.
2. O muro de suporte de terras é propriedade da 1.ª Ré.
3. A Autora avisou os 2.º e 3ª RR para que tomassem «as devidas precauções de intervenção urgente» em junho de 2016 e «depois após a primeira derrocada parcial em outubro de 2016», sendo destas o «dever de cuidado e de zelo pela proteção da segurança pública.»
4. Os seus avisos não produziram qualquer efeito, porque não houve intervenção no muro em risco.
5. Considerando que o local onde o muro ruiu é um caminho público e de passagem de inúmeras pessoas, os 2.º e 3.ª RR tinham a obrigação de promover uma intervenção urgente para acautelar situações como a que veio a ocorrer à Autora.

Nos presentes autos não se suscita dúvidas que a 1ª R. e a interveniente principal são pessoas colectivas de direito privado e que a 2ª e a 3ª RR. são pessoas colectivas de direito público.
A A. funda a responsabilidade da 1ª A. no artº 492º do CC, o qual estabelece uma presunção de culpa do proprietário ou edifício ou outra obra que possa ruir.
Relativamente às demais RR. a A. não indica em que preceito legal se baseia para lhes imputar responsabilidade. Limita-se a referir que estas não providenciaram que o muro fosse reparado com urgência, não tendo cumprido o dever de cuidado e zelo pela protecção da segurança pública.
Relativamente ao Município de Y a sua responsabilidade poderá ser equacionada tendo em conta o disposto no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99, de 16 de Dezembro).
De acordo com o artigo 89º do RJUE, as edificações devem ser objecto de obras de conservação. No entanto, quando estejam em causa obras que sejam necessárias à correcção de más condições de segurança ou salubridade, a Câmara Municipal pode ordenar a realização dessas mesmas que são, em primeira mão, da responsabilidade do proprietário.

Refere o artigo 89º do RJUE, sob a epígrafe “Dever de Conservação” que:

1 – As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou das obras de conservação necessárias à melhoria do arranjo estético.
3- A câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas.
4- Os actos referidos nos números anteriores são eficazes a partir da sua notificação ao proprietário.

Por seu lado refere o artigo 91º, nº 1 do mesmo diploma legal que
quando o proprietário não iniciar as obras que lhe sejam determinadas nos termos do artigo 89.º, não apresentar os elementos instrutórios no prazo fixado para o efeito, ou estes forem objeto de rejeição, ou não concluir aquelas obras dentro dos prazos que para o efeito lhe forem fixados, pode a câmara municipal tomar posse administrativa do imóvel para lhes dar execução imediata.

Conforme se afirma no Ac. do TCAS, proc. n.º 08063/11, de 24-04-2014, «Há um interesse público na boa conservação dos edifícios erigidos no Município, que justifica a competência da CMB para a intimação das obras necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou à melhoria do arranjo estético».
Pretende-se, além de outros fins, a protecção dos valores a segurança e da saúde pública.
O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.

Nesse sentido, Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida que defendem a competência da jurisdição administrativa para apreciar todas as questões de responsabilidade extracontratual da administração pública, ”independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de atuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.” (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição, Almedina, pág. 36 e ss., apud Ac. do TRC de 07.11.2017, processo 4055/16.8T8 VIS.C1).
Ora, sendo o 2º e a 3ª R. pessoas coletivas de direito público e pretendendo a autora acionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação. (v. Ac do STA de 26/09/2007 e Ac. do Tribunal de Conflitos de 17/06/2010; Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 99; Santos Serra, A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa, comunicação efetuada em 28 de Agosto de 2006, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Ibero Americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, realizada na Cidade do México; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Almeida in Código do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, 59; Pedro Cruz e Silva in Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos, disponível in www.verbojuridico.net, apud Ac. do TRE de 11.07.2019, processo 442/18.5T8STB.E1).
A competência para conhecer das questões relativas à responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público por omissão dos deveres impostos pelo artº 89º do RGEU recai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com o disposto no artº 4º, nº1, alínea f) do ETAF.
O facto da A. ter demando solidariamente pessoas de colectivas de direito público e de direito privado, não exclui ações como a presente da competência material dos referidos tribunais, atento o expressamente salvaguardado no artº 4º, nº 2 do ETAF.
Dispõe o artº 91º do CPC que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nelas se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa e poderá ser também competente para conhecer das questões prejudiciais, ainda que do foro da competência do tribunal criminal ou administrativo, mas a decisão do juiz competente para a ação não produzirá efeitos fora do processo em que for proferida (artº 92º, nºs 1 e 2).
Mas para que possa se verificar esta extensão de competência é necessário que o tribunal seja competente para a ação, o que no caso não é, sendo que esta atribuição resulta desde logo da factualidade alegada pela A. e não das questões suscitadas pelos RR..

A ação instaurada pela A. assenta em duas causas de pedir complexas. Relativamente à 1ª R., os factos relativos ao acidente, à sua qualidade de proprietária e o seu comportamento omissivo de não reparação do muro que ameaçava ruir, acabando por dar azo a um acidente, e, relativamente à 2º e 3ª RR. os mesmos factos relativos ao acidente e a omissão de providências urgentes para impedir o acidente. O pedido é o mesmo, por força da responsabilidade solidária que lhes é imputada (artº 497º do CC).
A autora formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. E enformou os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública).
Relativamente ao interveniente principal a razão de ser da sua intervenção não se funda na responsabilidade extra-contratual, mas sim na responsabilidade contratual – a celebração de um contrato de seguro entre o R. Município e a interveniente Companhia de Seguros.
Já no vigência do artº 4º do ETAF, na redacção anterior ao DL 214-G/2015, se entendia que nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa pública a correr termos nos tribunais administrativos e fiscais, (na altura apenas por acto ou omissão de gestão pública) podia ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem tivesse sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro, (cfr se defende no Acórdão do TCAN de 20.05.2016, proc.00239/12.6BECBR, onde é feita referência a outros acórdãos). A intervenção suscitada, não impede assim também, a atribuição da competência aos tribunais da jurisdição administrativa.

Não merece, consequentemente censura a decisão recorrida ao declarar a incompetência, em razão da matéria, do tribunal comum para conhecer da presente ação.

IV – Decisão
Pelo exposto, se decide julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Not.
Guimarães, 4 de junho de 2020

Helena Melo
Eduardo Azevedo
Maria João Matos


1 - Na petição inicial corrigida na sequência de despacho de aperfeiçoamento.