Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
291/15.2T8FAF.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
SEGURO FACULTATIVO
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) No âmbito da responsabilidade contratual, os litígios podem derivar do dever de prestar (ação de cumprimento, em que se pretende o cumprimento de uma obrigação/prestação assumida) ou do dever de indemnizar (ação de indemnização, em que, perante um incumprimento definitivo da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento).
b) É cláusula limitativa do objeto do contrato de seguro aquela em que acorda que, em caso de acidente com perda total, o tomador/segurado teria direito a um veículo de substituição, por um período máximo de 20 dias, por sinistro e por ano.
c) O seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é um seguro de danos, previsto nos artigos 123º e seguintes do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04 (LCS).
d) Nesta modalidade de seguros, a lei instituiu como regime supletivo um princípio indemnizatório que diverge do regime geral (reconstituição in natura ou por equivalente) do art. 562º e 564º do CC.
e) Se no contrato nada for convencionado em contrário, ou diversamente, será esse regime supletivo a ter em conta pelo que a privação do uso do veículo não é indemnizável (art. 130º nº 2 e 3 da LCS).
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B. instaurou ação contra C. – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 15.300,00, relativos aos danos sofridos no seu veículo em virtude de acidente de viação, bem como € 35,00 diários pela privação do respetivo uso.
Invocou ter celebrado um contrato de seguro com a Ré, abrangendo danos próprios, por um valor máximo de € 15.300,00; do acidente resultou a perda total do veículo, recusando-se a Ré a pagar. Só lhe foi atribuído veículo de substituição durante 20 dias.
A Ré contestou e excecionou invocando que o acidente foi dolosamente provocado, que não beneficia da cobertura do seguro por ter incumprido o dever de evitar prejuízos adicionais e que o dano de privação do uso também não beneficia de cobertura.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que condenou a Ré a pagar à Autora € 15.300,00 (reduzidos da franquia de € 306,00), relativos à perda total do veículo, bem como € 35,00 diários pela privação do respetivo uso, desde o 30º dia após o acidente até ao pagamento do valor do veículo.

2. Inconformada, vem a Ré apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Os danos resultantes de uma eventual privação de uso do veículo seguro não estão cobertos pela cobertura de «danos próprios» contratada com a apelante, cuja responsabilidade em face da apelada é meramente contratual, cingindo-se aos estritos limites das condições do contrato de seguro celebrado entre as referidas partes.
II. Apenas foi contratada a condição especial 15, relativa a atribuição pela apelante de veículo de substituição, no caso, pelo prazo máximo de 20 dias por sinistro e ano, como, de facto, foi atribuído, e a apelada usufruiu.
III. A presente questão situa-se no âmbito das coberturas facultativas do contrato de seguro e tendo este a natureza de seguro de danos, é aqui plenamente aplicável o disposto no artigo 130º do Lei do Contrato de Seguro (LCS), sendo que não foi convencionado pelas partes nenhuma cobertura adicional relativa a um eventual dano de privação de uso do veículo HF, pelo que, a apelante só responde pelo dano de privação de uso nos precisos termos convencionados.
IV. É aqui plenamente aplicável o princípio indemnizatório, pelo que, mediante o pagamento da quantia relativa à reparação ou perda total do veículo HF em que a apelante foi condenada, esta cumpre todas as obrigações contratuais para com a apelada, decorrentes do contrato de seguro em causa, nada mais sendo devido, sendo que, qualquer pagamento adicional, seria violador do sobredito princípio indemnizatório, uma vez que a apelante estaria a ressarcir a apelada por um alegado dano que não encontra cobertura contratual, carecendo de fundamento tal indemnização, constituindo, assim, um enriquecimento ilegítimo daquela.
V. O estatuído no nº 3 do artigo 806º CC constitui impedimento à concessão de ressarcimento de um alegado dano adicional de privação que a apelada sustenta ter sofrido, porquanto não encontra fundamento legal a reclamação de indemnização suplementar no âmbito de responsabilidade contratual, como a que ora é reclamada, devendo, como tal, limitar-se aos juros de mora, contados à taxa legal, a indemnização pela mora no pagamento da quantia pecuniária de capital em causa, conforme previsto nos nºs 1 e 2 do supra preceito legal.
VI. Não podendo o intérprete – neste caso, o tribunal recorrido – recorrer à interpretação, designadamente, por recurso a doutrina e jurisprudência, onde o legislador expressou a sua vontade de forma expressa, no caso, por via do disposto no artigo 130º da LCS, afastando a aplicação deste preceito em favorecimento daquela doutrina e jurisprudência.
VII. Para o ressarcimento de um alegado dano extra rem, tem vindo a ser exigido pela jurisprudência uma demora irrazoável ou inexplicável no pagamento da indemnização, em conjugação com uma atitude infundadamente intransigente.
VIII. A apelante promoveu, logo após o sinistro, à respectiva averiguação, que obteve o dito resultado; ao longo de todo este processo ficaram claros os juízos 12 divergentes das partes quanto à causa do sinistro, cujo apuramento determinava toda a apreciação quanto à causa e simulação ou não do mesmo; tal divergência só ficou sanada, como supra dito, com a perícia oficiosamente determinada nestes autos.
IX. Assim, em momento algum existiu uma demora irrazoável ou inexplicável no pagamento da indemnização, em conjugação com uma atitude infundadamente intransigente.
X. Face a tudo o exposto, a sentença proferida, ao decidir como decidiu, no segmento de que ora se recorre, com os fundamentos invocados, fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos artºs 406º e 806º do Código Civil, e 128º e 130º da Lei do Contrato de Seguro, devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra decisão que absolva a apelante da parte do pedido referente ao pagamento de indemnização pelo alegado dano de privação do uso do veículo seguro.
TERMOS EM QUE o presente recurso deverá ser julgado procedente, alterando-se a sentença recorrida conforme atrás concluído, com o que se fará JUSTIÇA!»

3. A Autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados provados em 1ª instância, e que as partes não questionam:
«1) A A. é dona e proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Renault, modelo Mégane, de matrícula …HF…;
2) Na data de 16/12/2014 aquele veículo era objecto do contrato de locação financeira n.º …, no qual figurava como locatária a A. e como locadora a D., S.A.;
3) Por via de tal contrato, a A. podia, no fim do mesmo e mediante o pagamento do valor residual, adquirir o descrito veículo o que veio a suceder, tendo a locadora declarado em 05/03/2015 que deixou de ter interesse no mesmo veículo;
4) A R. é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora;
5) Entre C.- Companhia de Seguros, SPS, Sucursal em Portugal, à qual a R. sucedeu em todos os direito e obrigações, como seguradora, e a A., como tomadora e segurada, foi celebrado o contrato de seguro do ramo «… + Auto», titulado pela apólice nº …, tendo por objecto seguro o veículo de matrícula …-HF-.., um Renault Mégane 1.5 dCi Dynamique S Lim, de Fevereiro de 2009 e em que figurava como beneficiária a locadora D., S.A., nos termos que constam das condições particulares de fls. 47v.º-48v.º e condições gerais de fls. 49-114, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
6) O contrato de seguro identificado previa, além do mais, a cobertura adicional de danos próprios – condição especial 04 “Danos acidentais sofridos pelo veículo”, com o capital seguro, para esta cobertura, na altura dos factos, de € 15.300,00, e, entre outras, a condição especial 15 “Veículo de substituição” contratada, conferindo ao tomador, além do mais, o direito a veículo de substituição, por acidente ou perda total, por um período máximo de 20 dias, por sinistro e ano;
7) O contrato de seguro em apreço, na sua cobertura de danos próprios, previa uma franquia de € 306,00.
8) Este contrato iniciou os seus efeitos em 13.02.2014 e estava em vigor em 16/12/2014;
9) Na data de 16/12/2014, o veículo descrito em 1) foi interveniente num acidente de viação;
10) No dia 16/12/2014, cerca das 22,30 horas, o veículo descrito em 1) circulava na Av. De S. Clemente, na freguesia de Silvares, Fafe, no sentido Felgueiras-Fafe, conduzido pelo seu marido E.;
11) O local dos factos a seguir descritos é uma curva à esquerda atento o sentido Felgueiras-Fafe e entronca na Av. S. Clemente a Rua da Costa;
12) Quem segue na Av. de S. Clemente no sentido Felgueiras-Fafe, a Rua da Costa entronca pelo lado direito e no gaveto formado pelas ditas vias, após o entroncamento, existe um tanque ou presa em pedra para represamento da água, a qual margina o lado direito das ditas vias atento o sentido Felgueiras-Fafe;
13) O referido tanque está num plano inferior à Rua da Costa;
14) Ao aproximar-se do referido entroncamento, o condutor do veículo referido em 1) perdeu o controlo do mesmo, entrou na zona do aludido entroncamento, atravessou a Rua da Costa, foi embater no murete que margina o lado dessa Rua e de seguida caiu dentro do tanque ali existente, o qual se encontrava cheio de água, com uma altura de cerca de 60 cm;
15) Em resultado do embate no murete e subsequente queda no tanque, o veículo da A. sofreu os estragos descritos no orçamento de fls. 15 a 16, que o impedem de circular, ascendendo a sua reparação a, pelo menos, € 15.073,97;
16) O orçamento referido não contempla a substituição de interiores, mas apenas a sua lavagem;
17) O veículo da A. foi rebocado para a oficina de reparação de automóveis denominada …, sita no lugar de …;
18) A A. não tem meios financeiros que lhe permitam comprar, sem receber a indemnização da R., outro veículo;
19) A A. entregou o veículo de substituição, que usou durante 20 dias, em 06/01/2015;
20) A A. está privada de ter acesso e de ser deslocar em viatura própria desde a data referida em 18);
21) A A. utilizava o veículo descrito em 1) para designadamente se deslocar para o seu local de trabalho enquanto deu aulas, para procurar trabalho, para ir ao supermercado, para transportar o seu filho para o infantário, para se deslocar à farmácia, ao café e passear;
22) O aluguer diário de um veículo automóvel da classe económica do veículo da A. ronda os € 35;
23) Recebida a participação do sinistro, a R. encarregou a sociedade F., LDA. de efectuar as necessárias averiguações relativas ao mesmo, após as quais a R. declinou qualquer responsabilidade na reparação do mesmo, por, naquelas averiguações, se ter concluído que aquele não ocorreu tal como o relatado pela A.;
24) Foi participado à R., através da entrega do documento «Declaração Amigável de Acidente Automóvel» de fls. 120-120v.º cujo teor se dá aqui por reproduzido, a ocorrência de um acidente de viação;
25) Em resultado do averiguado, a R. concluiu que o sinistro em causa foi dolosamente provocado pela A., por si e por intermédio do seu marido, E., por forma a infligir danos no veículo HF, que, conjuntamente com danos anteriores que o dito veículo já apresentava, nomeadamente no motor do mesmo, decorrentes de outros eventos que não o sinistro provocado, com o intuito de criar a aparência de que todos os danos apresentados pelo veículo HF após o sinistro invocado nestes autos decorriam deste último, pelo que de um mesmo evento, por forma a que se concluísse que esses danos determinariam a perda total do veículo HF;
26) O veículo referido em 1) foi objecto da primeira peritagem promovida pelos serviços da sobredita empresa de peritagem contratada pela R. em 18.12.2014, na oficina identificada em 17);
27) Em tal peritagem foram constatados os seguintes estragos no veículo HF: a) jante frontal direita; b) zona da frente inferior; c) frente lateral direita, com danos de raspagem; d) danos de deformação por esmagamento no pára-choques traseiro, na zona superior central do mesmo; e) vestígios de inundação das águas do tanque em apreço, com depósito de sujidade das mesmas – limos e verdetes -, que permitiam aferir que a água teria atingido a altura de sensivelmente até um terço inferior das portas do veículo; f) diversos componentes eléctricos no compartimento do motor e zona interior do habitáculo afectados por água e humidade; g) anomalias no motor, que não permitiam o seu funcionamento;
28) Na referida data de 18/12/2014, os peritos contratados pela R. solicitaram à sobredita oficina a desmontagem do motor do veículo HF;
29) E a limpeza e secagem do veículo HF, nomeadamente o interior do seu habitáculo;
30) Os serviços da referida oficina não procederam à limpeza e secagem do veículo;
31) Tal como não procederam à desmontagem do motor do mesmo, com vista ao apuramento das causas do seu não funcionamento;
32) A A. autorizou a desmontagem do motor do veículo HF em 31/12/2014, mas já anteriormente havia comunicado à R. e à referida oficina que autorizava a desmontagem do motor desde que a R. assumisse o custo da mesma;
33) A primeira análise do veículo, com desmontagem, do motor do veículo HF foi realizada em 06.01.2015, apresentando o mesmo danos por dessincronização (descomando), tendo os serviços da dita oficina alegado que tais danos eram decorrentes da entrada de água do tanque no motor, após a queda do veículo HF naquele tanque;
34) A reparação dos danos apresentados pelo motor foi avaliada em € 5.571,16;
35) E a reparação dos danos na carroçaria e por infiltração de água e humidade avaliada em € 9.808,81;
36) Para melhor apuramento das causas dos danos apresentados pelo motor do veículo HF, procederam os peritos da R. à perícia especializada do mesmo, promovida pelo Engº …, primeiro, em 15.01.2015, na referida oficina, com o acompanhamento do perito avaliador … e na presença do proprietário daquela oficina, … e, depois, em 19.02.2015, com o veículo HF já depositado na oficina “…, Lda.”, concessionária da marca Renault, sita na Avenida …, por ordem da A., com o acompanhamento do perito avaliador Fernando e na presença dos serviços técnicos da indicada concessionária;
37) Na referida perícia concluiu-se o seguinte: que o veículo HF apresentava danos no motor de combustão; que os topos dos quatro pistões do dito motor apresentavam marcas e deformações evidentes, advindos do impacto destes nas válvulas de admissão e de escape; que as válvulas de admissão e de escape apresentavam-se muito empenadas e descentradas das sedes, o que sucedia devido à colisão sofrida dos pistões, o que se verificava nas oito válvulas de admissão e de escape; que a árvore de cames apresentava fissura sobre o cilindro nº 1; que as chumaceiras da árvore de cames apresentavam fissuras sobre os cilindros 2, 3 e 4, o que tudo tinha resultado do esforço/impacto das mesmas contra as válvulas de admissão e escape; que o escatel da polie da árvore de cames se encontrava partido, pelo que a polie rodava solta, não transmitindo o movimento da cambota à árvore de cames; que, os pistões dos cilindros nº 1 e 4 se encontravam nivelados no seu ponto morto superior (PMS), pelo que inexistia empeno das respectivas bielas; que também os pistões dos cilindros nº 2 e 3 se encontravam nivelados no seu PMS, pelo que também quanto a estes, inexistia qualquer empeno das respectivas bielas; que, o filtro de ar e a caixa do filtro de ar do veículo HF não apresentavam sujidades, nomeadamente, limos ou verdetes, sendo certo que tais elementos existiam em grande quantidade nas águas do tanque ou represa onde o veículo HF foi encontrado, à data do alegado sinistro, como bem existiam vestígios de deposição daqueles elementos na lateral direita do veículo HF, assim como no próprio interior do veículo, nomeadamente, nos tapetes, bancos e plásticos diversos do habitáculo; que, o nível máximo atingido pela água do tanque no veículo, conforme decorria dos vestígios na lateral direita do mesmo, situava-se a uma altura muito inferior à da entrada de ar para a conduta do filtro de ar do mesmo; que, analisados os danos apresentados pelo motor do veículo HF, verificou-se a existência de dessincronização entre o movimento da cambota e o movimento da árvore de cames no accionamento (abertura e fecho) das válvulas de admissão e de escape, levando a que os topos dos pistões, ao atingir o seu PMS nos ciclos de movimento, tenham embatido com violência nas referidas válvulas, ainda indevidamente abertas; que, tais impactos se afiguraram como violentos e ocorreram com o motor em rotações elevadas, tendo originado marcas e deformações acentuadas no topo dos quatro pistões, empeno das válvulas de escape e de admissão, fissura na árvore de cames e nas chumaceiras, bem como quebra do escatel da polie da árvore de cames; que, como tal, os danos apresentados pelo motor do veículo HF advinham de anomalia e avaria que determinaram a dessincronização do motor, dessincronização essa ocorrida em momento em que o motor do veículo HF apresentava elevadas rotações de funcionamento, e/ou mudança brusca de carga sobre o mesmo; que, a referida dessincronização levou a que os tempos de abertura e fecho das válvulas de admissão e de escape não estivessem sincronizadas com o movimento da cambota, pelo que, quando os pistões subiam e atingiam o seu PMS, como as válvulas ainda se encontravam indevidamente abertas, colidiram os pistões violentamente nestas últimas, o que ocorreu em diversos ciclos, atendendo a que tais marcas se exibiam nos quatro pistões de forma muito pronunciada; que, em virtude do dito impacto dos pistões sobre as válvulas, este provocou o empeno das mesmas, pelo que estas apresentavam-se descentradas das suas sedes; que, por sua vez, o impacto sofrido pelas válvulas transmitiu-se à árvore de cames, tendo provocado fissuras nesta e nas chumaceiras, levando à quebra do escatel da polie da árvore de cames;
38) Aquando da vistoria de peritagem promovida no veículo HF em 06.01.2015, após desmontagem da cabeça do motor do mesmo, foi observada uma grande quantidade de água no cilindro nº 1;
39) O pistão do cilindro nº 1 – que apresentava água no seu interior aquando da desmontagem – tinha par com o pistão do cilindro nº 4;
40) No entanto, rodado o motor, verificou-se que o referido par de pistões – nº 1 e nº 4 – se apresentavam correctamente nivelados, atingindo normalmente o seu PMS, pelo que as respectivas bielas não apresentavam qualquer empeno, o mesmo sucedendo, inclusivamente, com o restante par de pistões nº 2 e nº 3, que se apresentavam normalmente nivelados;
41) Os danos exibidos pelo motor do veículo HF impediam totalmente o funcionamento do mesmo;
42) E tiveram origem no sinistro descrito nos autos;
43) Os danos exibidos pelo mesmo motor não foram causados pela entrada de água no motor do veículo HF;
44) Em virtude do acidente acima descrito as alcatifas e estofos do veículo HF, bem como dos órgãos eléctricos e electrónicos, situados no interior do habitáculo do veículo em apreço, ficaram molhados e posteriormente desenvolveram bolores.»


5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 639º nº 1, 635º nº 3 e 4, art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (CPC).
QUESTÃO A DECIDIR: se assiste à Autora o direito a ser ressarcida pelo dano de privação do uso de veículo.

5.1. É incontroverso entre as partes que o litígio se insere no âmbito da responsabilidade contratual.
Neste domínio, e desde que não desrespeitem leis imperativas, é permitida às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos (designadamente, pela junção de regras de um ou mais negócios previstos na lei), os quais, uma vez firmados, devem ser pontualmente cumpridos: art. 405º e 406º nº 1 do Código Civil (CC).
Os decorrentes litígios podem derivar do dever de prestar (quando se pretende o cumprimento de uma obrigação assumida) ou do dever de indemnizar (situação em que, perante um incumprimento definitivo da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento).
Nessa medida, conforme se esteja perante uma ação de cumprimento ou perante uma ação de indemnização, serão diversas a causa de pedir e o pedido: naquela, há apenas que demonstrar a estipulação da obrigação/prestação (1)e o seu incumprimento, pedindo-se a condenação no seu cumprimento; nesta, há que demonstrar os diversos pressupostos da obrigação de indemnizar: (i) ação ou omissão ilícita; (ii) existência de um dano ou prejuízo; (iii) nexo de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano e (iv) culpa do agente: art. 798º ss e 562º ss do Código Civil (CC). (2)
Em resumo, na sua petição inicial (PI), a Autora descreveu o acidente sofrido com o veículo e que conduziu à sua perda total. Invoca o contrato de seguro celebrado com a Ré, não só de responsabilidade civil contra terceiros, mas também de danos próprios. O contrato de seguro contemplava que em caso de perda total, ser-lhe-ia pago um valor total € 15.300,00 e, bem assim, entregue viatura de substituição (máximo de 20 dias por ano), em caso de acidente. A Ré não pagou o valor do veículo, argumentando com suspeita de fraude. A Autora não tem possibilidades económicas de comprar outro veículo; volvidos os 20 dias estipulados no contrato, teve de devolver a viatura de substituição. A Autora precisa diariamente de veículo automóvel para os seus afazeres e não o pode fazer até receber a indemnização da Ré, que lhe possibilitará a compra de outro veículo. A privação do uso de veículo é imputada à Ré pela “violação culposa do previsto no contrato de seguro, ou seja, da obrigação de indemnizar a A. e na legislação aplicável que impõe à R. o prazo de 30 dias para comunicar a assunção ou não da responsabilidade pelo sinistro” (artigo 44º da PI).
Portanto, não estamos perante uma ação de cumprimento, mas sim perante uma ação de indemnização, decorrente da violação culposa da obrigação da Ré de comunicar, em 30 dias, se assumia ou não a responsabilidade pelo acidente.

5.2. Vistas as regras gerais em matéria de responsabilidade, há que abordar as especificidades em matéria de contratos de seguro.
Estamos perante um contrato que visa a transferência para uma Seguradora da responsabilidade que ao Tomador ou Segurado caberia assumir, na hipótese de ocorrência de determinados eventos.
Esses eventos constituem o risco assumido pela Seguradora e o risco é um dos elementos essenciais ao conteúdo do contrato.
Daí a natureza aleatória do contrato de seguro, ou seja, a Seguradora só terá de cumprir a sua obrigação se (e no caso de) o evento vir a acontecer.
No caso, trata-se de um seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios que, sendo facultativo, deixa à vontade das partes convencionar livremente qual o âmbito da cobertura e quais os danos a indemnizar.
Como condição especial (nº 15, “Veículo de substituição”), ficou acordado entre as partes que, em caso de acidente com perda total, a Autora teria direito a um veículo de substituição, por um período máximo de 20 dias, por sinistro e por ano.
É uma cláusula limitativa do objeto do contrato, pois «Trata-se, neste caso, de cláusulas destinadas a definir o objecto do contrato, precisando o seu conteúdo e extensão, ao abrigo da liberdade contratual, na sua vertente de liberdade de modelação (art. 405º).»(3)
Não se nos perspetivam problemas de validade quanto à cláusula em apreço, não só porque estamos no âmbito de seguro facultativo, mas também porque não contende com exigências de ordem pública ou de equilíbrio contratual.
A obrigação decorrente de tal cláusula foi cumprida pela Ré, pois como confessado pela própria Autora, ela usou o veículo de substituição 20 dias, tendo-o entregue em 06/01/2015.

5.3. Por fim, como atrás se disse, a Autora pretende ser indemnizada pelo dano de privação do uso, que imputa à Ré como decorrência de ela não ter cumprido o prazo de 30 dias para comunicar a assunção ou não da responsabilidade pelo sinistro.
Sucede que, o seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é, como o próprio nome indica, um seguro de danos, previsto nos artigos 123º e seguintes do regime jurídico do contrato de seguro (LCS), estabelecido pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04.
Nesta modalidade de seguros, a lei instituiu como regime supletivo o seguinte princípio indemnizatório (4):
A. a prestação da seguradora pelo dano decorrente do sinistro está limitada “ao montante do capital seguro”: art. 128º da LCS.
B. “o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”: art. 130º nº 2 da LCS.
C. essa regra, de o segurador só responder nos termos contratados, “aplica -se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem”: art. 130º nº 3 da LCS.
Assim, se nada for convencionado em contrário ou diversamente, é esse regime supletivo a ter em conta.
Regime supletivo que, como se vê, é bem diverso do regime geral (reconstituição in natura ou por equivalente) do art. 562º e 564º do CC.
No caso, a contratação de veículo de substituição foram apenas 20 dias e não se mostra estipulado o dever de indemnizar o dano resultante da privação do uso do veículo seguro.
Tendo sido esse o âmbito de cobertura contratado, não assiste à Autora direito a ser indemnizada pelos demais dias em que esteve privada do uso de veículo.
Esse tem sido o entendimento da doutrina (5) e da jurisprudência (6).

5.4. Por fim, a questão poderia ainda ser vista na perspetiva de que se fez radicar o direito a indemnização na violação de um dever acessório de conduta (7): o dever de “diligência e prontidão” em tomar posição sobre a participação do sinistro.
A Autora estaria a reportar-se ao prazo de 30 dias consignado no art. 36º nº 1 al. e) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08 (regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).
Sucede que, o objeto do litigio respeita a um contrato de seguro facultativo, e não a um seguro obrigatório, sendo distintos os tipos de responsabilidade.
Mas, principalmente, resulta dos factos provados que, recebida a participação do sinistro, a Ré procedeu a averiguações, em resultado das quais concluiu que o sinistro não ocorreu nos termos participados, antes fora dolosamente provocado para criar a aparência de que todos os danos provinham daquele sinistro, o que não era verdade.
Tais factos integram uma “suspeita fundamentada de fraude”, pelo que, nos termos do nº 8 do referido art. 36º, o dito prazo de 30 dias ficava suspenso.
Donde, também por aqui não lhe assistiria razão.
Concluindo, a apelação merece provimento.

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) No âmbito da responsabilidade contratual, os litígios podem derivar do dever de prestar (ação de cumprimento, em que se pretende o cumprimento de uma obrigação/prestação assumida) ou do dever de indemnizar (ação de indemnização, em que, perante um incumprimento definitivo da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento).
b) É cláusula limitativa do objeto do contrato de seguro aquela em que acorda que, em caso de acidente com perda total, o tomador/segurado teria direito a um veículo de substituição, por um período máximo de 20 dias, por sinistro e por ano.
c) O seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é um seguro de danos, previsto nos artigos 123º e seguintes do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04 (LCS).
d) Nesta modalidade de seguros, a lei instituiu como regime supletivo um princípio indemnizatório que diverge do regime geral (reconstituição in natura ou por equivalente) do art. 562º e 564º do CC.
e) Se no contrato nada for convencionado em contrário, ou diversamente, será esse regime supletivo a ter em conta pelo que a privação do uso do veículo não é indemnizável (art. 130º nº 2 e 3 da LCS).

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação.
Consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora indemnização pela privação do uso de veículo, pedido esse que agora se julga improcedente.
Custas da apelação a cargo da Autora.
Guimarães, 15.12.2016

(Relatora, Isabel Silva)

(1º Adjunto, Fernanda Ventura)

(2º Adjunto, Pedro Alexandre Damião e Cunha)

(1) A obrigação só se tem por cumprida se, e quando, a prestação a que se vinculou se mostrar integralmente realizada, no tempo e lugar próprios: art. 762º nº 1 e 763º nº 1 CC.
(2) Como refere Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª edição, Almedina, pág. 137/138, a ação de cumprimento integra uma ação declarativa de condenação (direitos subjectivos, portanto), mediante a qual «(...) o credor pretende provar a existência e a falta de cumprimento da obrigação e obter sentença condenatória do devedor que lhe ordene o exacto cumprimento da prestação por si devida.».
No mesmo sentido, Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2011, pág. 594: «A acção de cumprimento e a acção de indemnização dos danos causados pelo não cumprimento do contrato devem representar-se como acções autónomas — a acção de cumprimento não depende da ilicitude do facto, ou da culpa do autor do facto, ou do dano ou do nexo de causalidade entre o facto e o dano ou prejuízo; a acção de indemnização, sim — depende da ilicitude, da culpa e do dano ou prejuízo.».
(3) António Pinto Monteiro, “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, separata do volume XXVIII do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1985, pág. 117.
(4) Refere-se expressamente no preâmbulo do Decreto-Lei nº 72/2008 (cf. pág. 2231 do DR): «Em sede de regras gerais de seguro de danos, (…), dá-se particular ênfase ao princípio indemnizatório. Apesar de o princípio indemnizatório assentar basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo, prescrevem-se várias soluções, nomeadamente quanto ao cálculo da indemnização (…).»
(5) Cf. António Menezes Cordeiro, “Direito dos Seguros”, Almedina, 2013, pág. 750/751; Pedro Romano Martinez, “Lei do Contrato de Seguro”, Almedina, 2.ª edição, 2011, pág. 443; Margarida Lima Rego, “Contrato de Seguro e Terceiros”, Coimbra Editora, 2010, pág. 236 nota (564), 237 nota (565) e pág. 251/252.
(6) Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 14.03.2016 (processo 4876/12.0TBSTS.P1, Relator: Carlos Querido), bem como todos os demais aí citados; deste Tribunal da Relação de Guimarães, acórdãos de 13.02.2014 (processo 915/12.3TBFLG.G1, Relatora: Manuela Fialho) e, de 10.10.2013 (processo 598/12.0TBVCT.G1, Relatora: Helena Melo), todos disponíveis em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
(7) «III. Os deveres primários de prestação são definíveis como condutas desenvolvidas pelo devedor em favor do credor e que constituem o núcleo da relação obrigacional; os deveres secundários de prestação são condutas instrumentais em relação ao cumprimento daqueloutros deveres e a sua violação - tal como a violação dos deveres primários de prestação - pode dar origem a pretensões de cumprimento.
IV. Os deveres acessórios emergem do princípio da boa fé e não têm por objecto uma prestação, sendo usualmente agrupados em deveres de informação ou esclarecimento, em deveres de lealdade e em deveres de protecção ou segurança. A sua violação apenas pode originar uma pretensão indemnizatória.» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.10.2016 (processo 967/14.1TBACB.C1.S1, Relatora: Maria da Graça Trigo).