Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
313/18.5T8AVV.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DURAÇÃO INDETERMINADA
DENÚNCIA
NORMAS TRANSITÓRIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - A questão jurídica que importa apreciar, única colocada no recurso, é a de saber se o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento de duração indeterminada celebrado na vigência do RAU (Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro) ao abrigo do artigo 1101º, alínea c) do Código Civil.

II - Esta questão liga-se com a evolução legislativa operada no arrendamento, posterior ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), e a interpretação das normas transitórias insertas nos dois diplomas que se lhe seguiram, a Lei 6/2006 Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e 31/2012, Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano.

III - Antes da entrada em vigor da Lei 31/2012, todos os arrendamentos para habitação, celebrados antes da vigência da Lei 6/2006, ao abrigo do regime vinculístico estavam protegidos contra a livre denúncia do senhorio, a partir desta Lei é atribuído ao senhorio a faculdade de denunciar livremente o contrato.

IV - Dispondo a nova lei diretamente sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo-se dos factos que lhe deram origem, ela aplica-se às relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.

V - Estamos perante uma retroatividade mínima admissível porque apenas tolhe os efeitos jurídicos dos contratos de arrendamento, celebrados no passado, mas que se prolongam para o futuro, a partir de certo momento beneficiando de um regime diferenciado.

VI - Quanto aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU passa a prever-se a possibilidade de livre denúncia pelo senhorio, dos contratos celebrados por duração indeterminada nos mesmos termos aplicáveis aos novos contratos.

VII - Esta regra apenas é excecionada quando o arrendatário tenha idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

A autora FLORINDA (…) residente no Lugar de …, Proselo, (…) intentou a presente ação de processo comum contra os réus JOÃO (…) e ERMELINDA DO (…), residentes no Lugar de (…), Proselo, (…), pedindo que:

- Se declare que, por via da carta de 10 de Fevereiro de 2017 e à luz do disposto no artigo 1101º, nº 1 alínea c) do CC como denunciado o contrato de arrendamento incidente sobre o primeiro andar direito, trato de terreno com 80 m2 e dependência exterior destinada a garagem, do prédio urbano sito no Lugar de (…), Prozelo, (…), melhor descrito no artigo 1º da petição inicial;
- Sejam os réus condenados a despejar o imóvel locado até ao dia 01 de Março de 2019 e a entregá-lo à autora, livre de pessoas e coisas, em bom estado de conservação, tal como o receberam ressalvando-se as deteriorações inerentes a uma prudente utilização;

Subsidiariamente,

- Se declare que, por via da carta de 18 de Janeiro de 2018 e à luz do disposto no artigo 1101º, nº 1 alínea c) do CC como denunciado o contrato de arrendamento incidente sobre o primeiro andar direito, trato de terreno com 80 m2 e dependência exterior destinada a garagem, do prédio urbano sito no Lugar de (…), Prozelo, (…), melhor descrito no artigo 1º da petição inicial;
- Sejam os réus condenados a despejar o imóvel locado até ao dia 01 de Março de 2020 e a entrega-lo à autora, livre de pessoas e coisas, em bom estado de conservação, tal como o receberam ressalvando-se as deteriorações inerentes a uma prudente utilização;

Alegou para o efeito que é dona do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial, e que em 01 de Janeiro de 2001 celebrou com os réus um contrato de arrendamento relativo ao primeiro andar direito, trato de terreno com 80 m2 e dependência exterior destinada a garagem do referido imóvel e tinha como finalidade proporcionar o uso do locado para habitação. Ficou acordado que o contrato tinha a duração de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos. A renda mensal inicialmente acordada foi de 33.000$00 sendo actualmente no valor de 181,00€. Em 10 de Fevereiro de 2017 foram enviadas cartas aos réus nas quais a autora procedeu à denúncia do contrato de arrendamento em causa, com base no disposto nos artigos 26º, nº 1 do NRAU e 1101º alínea c) do Código Civil. Sucede que por lapso de escrita se referiu que a denúncia produziria efeitos a partir de 01 de Março de 2018 quando o que se pretendia era dizer que os efeitos seriam a partir de 1 de Março de 2019, tendo rectificado o lapso por missiva de 08 de Janeiro de 2018. Não obstante, para a eventualidade de a correcção não merecer acolhimento em juízo e sem prescindir da posição que anteriormente havia assumido na carta de 10 de Fevereiro a autora comunicou que denunciava o contrato de arrendamento vigente para o dia 01 de Março de 2020. Desde então os réus têm manifestado oposição à denúncia, negando-se a entregar o imóvel.

Regularmente citados os réus contestaram, alegando em síntese que o contrato de arrendamento celebrado na forma verbal teve o seu início no dia 20 de Agosto de 2000. Invocaram ainda que não aceitam a denúncia do contrato por entenderem que, sendo um contrato celebrado por tempo indeterminado, não é passível de ser denunciado não havendo lugar à aplicação do disposto no artigo 1101º alínea c) do Código Civil.

A autora respondeu à questão de direito invocada pelos réus na contestação alegando em síntese que concordam que estamos perante um contrato de arrendamento celebrado por tempo indeterminado. Todavia, os réus baseiam a sua defesa numa versão anterior do artigo 26º do NRAU que atualmente prevê que o artigo 1101º alínea c) do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, declarou, por via da carta de 18 de Janeiro de 2018 e à luz do disposto no artigo 1101º, nº 1 alínea c) do CC como denunciado o contrato de arrendamento incidente sobre o primeiro andar direito, trato de terreno com 80 m2 e dependência exterior destinada a garagem, do prédio urbano sito no Lugar de ..., Arcos de Valdevez, melhor descrito no artigo 1º da petição inicial e condenou os réus a despejar o imóvel locado até ao dia 01 de Março de 2020 e a entrega-lo à autora, livre de pessoas e coisas, em bom estado de conservação, tal como o receberam ressalvando-se as deteriorações inerentes a uma prudente utilização.

Inconformados com a sentença, os réus interpuseram recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

A.-Tendo em conta o facto dado por provado em 5, que o contrato de arrendamento, para habitação, foi celebrado no dia 1 de Janeiro de 2001 – conclui-se que, nessa data, vigorava o RAU - Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro.
B.- Tendo em conta o facto dado por provado em 6, que o contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, sendo prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo com o seu início no dia 01 de Janeiro de 2001, conclui-se que o mesmo, celebrado por períodos/prazos de 1 ano, tinha duração indeterminada.
C.- Tendo em conta o facto dado por provado em 12, conclui-se que os RR., ora Recorrentes, não aceitaram a denúncia, comunicada pela Autora, uma vez que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado no ano de 2000, altura em que vigorava o RAU – Regime do Arrendamento Urbano – regulado pelo Decreto lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro.
D.- Tendo em conta que este RAU veio a ser alterado com a publicação da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, pelo NRAU, que no seu Título II – Normas transitórias, o Capítulo I – Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e Contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, no seu artº 26º prevê: Nº 1 – “ Os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes: 4.- Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
c)- Não se aplica a alínea c) do artº 1101º do Código Civil.
E.- Como acima se alega na Razão 7, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, o Sr. Professor e Doutor de Direito, Luiz Menezes Leitão – citado hoje em dia, de forma recorrente, em inúmeros Acórdãos do STJ – escreve na sua obra “Arrendamento Urbano – 2017 – 8ª Edição”, escreve o Ilustre Professor de Direito, o seguinte: - Págs 199 e 200 - “ Desta forma, é mantido o vinculismo que sempre caracterizou estes contratos, o que limita a faculdade de denúncia pelo senhorio aos casos agora referidos nos artºs 1101º a) e b)… do NRAU”
F.- A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 1101º, nº 1, alª c), artºs 26º e 27º, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, NRAU, Título II – Normas transitórias, o Capítulo I - Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e Contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, assim como o disposto no artº 607º do Código de Processo Civil.

Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso com a consequente revogação da sentença recorrida.
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Foram apresentadas contra-alegações defendendo a Recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº. 639º, do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.).

A questão jurídica que importa apreciar, única colocada no recurso, é a de saber se o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento de duração indeterminada celebrado na vigência do RAU (Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro) ao abrigo do artigo 1101º, alínea c) do Código Civil.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

3.1.1 Factos Provados

Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:

1. Na Conservatória do Registo Predial ... encontra-se descrito a favor da autora sob o nº (…) o prédio urbano composto de casa de r/c e 1º andar, com rossios, quatro divisões independentes, sito no Lugar de (…), Prozelo, (..) e inscrito na matriz predial sob o artigo (…).
2. Há mais de 10, 20, 30 e mais anos que a autora tem, em exclusivo, gozado de todas as utilidades que o imóvel proporciona, dando-o de arrendamento, recebendo as rendas, procedendo nela a pequenas obras e pagando as respectivas contribuições e impostos.
3. À vista de toda a gente, de forma contínua, sem oposição de ninguém.
4. E na convicção de que exerce direito próprio.
5. Por acordo escrito denominado “Contrato de arrendamento” celebrado em 01 de Janeiro de 2001 a autora, na qualidade de primeira outorgante declarou dar de arrendamento aos réus, segundos outorgantes para sua habitação permanente o primeiro andar direito, trato de terreno com 80m2 e dependência exterior destinada a garagem do imóvel supra aludido.
6. Ficou acordado que esse acordo era celebrado pelo prazo de um ano, sendo prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo com o seu início no dia 01 de Janeiro de 2001.
7. Como contrapartida, os réus obrigaram-se ao pagamento À autora da quantia de 33.000$00 (trinta e três mil escudos).
8. No corrente ano, o valor da contrapartida ascende a 181,00€ (cento e oitenta e um euros).
9. Pelo menos desde a data referida em 5 os réus ocupam o referido imóvel.
10. Por carta datada de 10 de Fevereiro de 2017 a autora comunicou aos réus que era sua intenção denunciar o acordo referido em 5, com efeitos a partir de 01 de Março de 2018.
11. Por carta datada de 18 de Janeiro de 2018, a autora comunicou aos réus que: “(….) por mero lapso de escrita, nessa missiva apontou-se que a denúncia operada teria efeitos a partir de 01 de Março de 2018 quando, na verdade, se pretendia referir a data de 01 de Março de 2019.

De facto, isso mesmo resulta do teor das normas legais apontadas na carta de 10 de Fevereiro de 2017 como constituindo suporte legal à denúncia operada, uma vez que, dita a invocada alínea c) do artigo 1101º do Cód. Civil que a comunicação destinada à cessação do contrato deverá ser feita com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.

Nesta medida, onde naquela carta de 10 de Fevereiro de 2017 se lê “1 de Março de 2018”, dever-se-á ler “1 de Março de 2019”.

Aqui chegados, cabe mencionar que, na eventualidade de a correcção que agora se opera vir a ser impugnada judicialmente e na hipótese de aí não merecer vencimento, desde já (sem prescindir da posição que nesta missiva se assume) se comunica que, nestas circunstâncias, denuncio o contrato que nos prende, com efeitos a partir de 01 de Março de 2020- tendo V/Exas. até este dia para me entregar o locado, livre de pessoas e bens e no estado de conservação que lhes foi entregue.(…)”
12. Os réus responderam ao teor da missiva referida em 11 através de carta datada de 19.02.2018 com o seguinte teor: “(...) Entendemos que este contrato, celebrado por tempo indeterminado e, tendo em conta a data em que foi celebrado, não é possível de ser denunciado, pela forma pretendida na sua referida carta. Porém, mesmo que o fosse, ainda assim o prazo de denúncia iria até ao ano 2020.”
13. O réu João (…) nasceu no dia … de .. de 1965.
14. A ré Ermelinda (…) nasceu no dia … de .. de 1963.
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3.1.2. Factos Não Provados

Com relevância, não resultaram quaisquer factos por provar.
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3.2. O Direito

3.2.1. Subsunção jurídica dos factos ao direito

A questão jurídica que importa apreciar, única colocada no recurso, é a de saber se o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento de duração indeterminada celebrado na vigência do RAU (Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro), ao abrigo do artigo 1101º, alínea c) do Código Civil.

Esta questão liga-se com a evolução legislativa operada no arrendamento, posterior ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), e a interpretação das normas transitórias insertas nos dois diplomas que se lhe seguiram denominados de Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) em 2006 e Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano em 2012.

O contrato de arrendamento em apreciação teve o seu início em 01 de Agosto de 2001. Aquando da sua celebração estava em vigor o RAU - Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro. O artigo 98º deste diploma previa a possibilidade de as partes estipularem no contrato um prazo para a duração do arrendamento desde que esse prazo não fosse inferior a cinco anos. Sucede, no entanto, que o contrato em análise estabelece o prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo. Em tal situação, tem sido pacificamente entendido (1) o de considerar estes contratos de duração indeterminada. Primeiro, porque o artigo 98º do RAU prevê uma cláusula inequívoca de duração do contrato que tem que ser escrita e não pode ser inferior a cinco anos. Depois, as partes não referiram no contrato que o mesmo tinha duração limitada. Para além disso, o prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos dá a entender que de facto as partes pretenderam celebrar um contrato de duração indeterminada, sendo aliás aquele que é habitualmente estabelecido.

Donde, haverá que qualificar o contrato de arrendamento em causa como um contrato sem duração limitada, também denominado de contrato vinculístico.

Entretanto veio a ser aprovada a Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro que introduziu um Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU).

Com a Lei 6/2006, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) passou a aplicar-se aos contratos de arrendamento celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações constituídas que subsistissem nessa data, tudo sem prejuízo do previsto nas normas transitórias daquela lei (artigo 59.º nº1).

O artigo 60º, nº1 do novo diploma revogou o RAU, mantendo-se apenas as matérias ressalvadas nos artigos 26.º e 28.º.

Ao arrendamento vinculístico corresponde, no atual regime, a modalidade dos contratos de duração indeterminada, (artigo 1094.º, n.º 3, do Código Civil) e a sua cessação por denúncia encontra-se prevista no artigo 1099.º e segs do Código Civil. (2)

Este preceito estabelece que o contrato de arrendamento urbano de duração indeterminada cessa por denúncia de uma das partes. Como salienta Januário Gomes “sem prejuízo das especificidades de regime que encontramos nos “artigos seguintes”, o artigo 1099.º mais não faz do que reconhecer e consagrar um princípio geral dos contratos: o de que os contratos celebrados por tempo indeterminado podem cessar por denúncia de qualquer das partes(3).

O NRAU veio estabelecer, no referente ao regime de denúncia consignado no artigo 1101º do Código Civil, que o senhorio podia denunciar o contrato de arrendamento de duração indeterminada em três situações: a) necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em primeiro grau; b) para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos; ou c) mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação.

As situações das alíneas a) e b) do artigo 1101º, embora suscitassem algumas dúvidas quanto à sua consideração como verdadeiras denúncias (4), vieram a ser qualificadas como de denúncia justificada, ao passo que a situação da alínea c) do artigo 1101º consubstanciava uma denúncia em sentido técnico - situação em que o senhorio podia discricionariamente operar a extinção do contrato de arrendamento celebrado por tempo indeterminado. Sempre se considerou que o pré-aviso de cinco anos, ao caso não era excessivo nem desvirtuava a figura da denúncia, dado tratar-se de arrendamento para habitação.

O novo diploma revogou o RAU, mas nos seus artigos 26º a 28º (normas transitórias) ressalvou algumas matérias, nelas se incluindo o regime de denúncia pelo senhorio (artigo 26º, nº4, alínea c)).

Todavia, o próprio NRAU veio a sofrer alterações, inclusivamente nas matérias respeitantes às normas transitórias com a Lei n.º 31/2012, de 14/08.

Era a seguinte a redação original do artigo 26º, nº4, alínea c):

4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:

c) Não se aplica a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.

A redação original do artigo 26º, nº4 da Lei 6/2006 impedia, pois, a aplicação daquela alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil com a consequência de que o arrendamento mantinha-se preso pela lógica vinculística até que se extinguisse por outra causa, como refere Januário Gomes (5). Dito de outro modo, não se aplicava aos arrendamentos celebrados no domínio do RAU a faculdade de válida desvinculação discricionária, ad nutum, pelo senhorio mediante denúncia do contrato.

A Reforma de 2012, operada pela Lei n.º 31/2012, de 14/08, veio introduzir alterações neste particular regime contido na alínea c) do artigo 26º, nº4.

Passou a ser a seguinte a redação do preceito:

4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:

c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

A partir de então, quanto aos arrendamentos celebrados na vigência do RAU, passa a ser aplicável o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil, salvo se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Fora destes casos, o senhorio poderá exercer a denúncia livre mediante o cumprimento do prazo de pré-aviso de 2 anos sobre a data em que pretenda a cessação do contrato.

Em suma, antes da entrada em vigor da Lei 31/2012, todos os arrendamentos para habitação, celebrados antes da vigência da Lei 6/2006, ao abrigo do regime vinculístico estavam protegidos contra a livre denúncia do senhorio (6), a partir desta Lei que em termos substanciais introduz um Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano, é atribuído ao senhorio a faculdade de denunciar livremente o contrato.

A Lei 31/2012, não é uma lei neutra.

Decorre da sua exposição de motivos que: “No que respeita aos contratos celebrados antes da reforma introduzida pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, introduzem-se alterações significativas.

Na linha da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, entendeu-se adequado manter a distinção entre, por um lado, as normas transitórias aplicáveis aos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e aos contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, e, por outro, as aplicáveis aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e aos contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro. Volvidos mais de cinco anos sobre a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, afigura-se justificada uma aproximação do regime de tais contratos antigos ao regime aprovado por aquela lei para os novos contratos.

Nesta medida quanto aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU e aos contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, passa a prever-se a possibilidade de livre denúncia pelo senhorio, dos contratos celebrados por duração indeterminada nos mesmos termos aplicáveis aos novos contratos. Esta regra apenas é excepcionada quando o arrendatário tenha idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com idêntica protecção já conferida e que se mantém, relativamente à denúncia para habitação do senhorio”.

A Lei 31/2012 ao alterar significativamente o regime de arrendamento urbano, e sobretudo ao alterar o regime transitório aplicável aos contratos de arrendamento antigos, coloca a questão da retroatividade das normas. As normas em causa vêem estabelecer efeitos jurídicos sobre relações de arrendamento já constituídas, protegidas por um regime vinculístico e pela limitação às possibilidades de denúncia do senhorio.

Por isso mesmo, confrontados com uma sucessão de leis no tempo, a questão da sua aplicabilidade às relações já constituídas deve ser resolvida, de forma sucessiva e sequencial, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam) (7).

Seguindo tal exegese, o artigo 59º do NRAU, normativo que, conforme resulta expressamente da sua epígrafe, se destina a regular a sua aplicação no tempo, dispõe no seu nº1 que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.

As normas transitórias a que se refere aquele dispositivo legal são as constantes dos artigos 26º a 28º. A norma para o que agora importa é a do artigo 26º, nº 4, que relativamente aos contratos sem duração limitada, determina que os mesmos “regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

Por sua vez, o art. 12º, nº 2 do Código Civil dispõe que “quando a lei dispuser sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo-se dos factos que deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

Concluindo, tendo as relações arrendatícias efeitos duradouros, que se prolongam enquanto as mesmas subsistirem, a nova lei do arrendamento é aplicável aos contratos daquela natureza - não obstante ter a sua celebração ocorrido antes da sua entrada em vigor - cujos efeitos se estendem para além do início da sua vigência (8).

Estamos perante uma retroatividade mínima admissível “porque apenas tolhe os efeitos jurídicos dos contratos de arrendamento, certamente celebrados no passado, mas que se prolongam para o futuro, a partir de certo momento beneficiando de um regime diferenciado”, como escreve Jorge Bacelar Gouveia (9).

Efetivamente, como explica o autor, “quanto mais longa for a vigência do contrato menos é de supor a permanência da lei aplicável, por força da mudança das condições sociais, às quais o poder legislativo deve responder, sob pena de total ineficácia (10)”.

É, por consequência, nas relações jurídicas duradoras como é o caso da relação jurídica do arrendamento urbano que se torna essencial que juntamente com uma nova ordenamentação jurídica legislativa seja previsto um regime transitório.

A alteração operada com a Lei 31/2012 surgiu no âmbito de um esforço propositado do legislador no sentido de alterar o regime transitório aplicável aos contratos celebrados na vigência do RAU e antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (11), pelo que sob pena de manifesta inutilidade e incoerência legislativa, se terá de aplicar a redação atualizada da norma transitória aos contratos já existentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006.

Do que se deixa exposto, resulta que não há fundamento para aplicar ao caso concreto, como pretendem os Recorrentes, a primitiva redação do artigo 26.º do NRAU, afastando a que se encontrava em vigor à data da comunicação de denúncia pelo senhorio e que, como vimos, se aplica ao contrato de arrendamento celebrado.

De acordo com o artigo 26º, nº4, alínea c) do NRAU, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento sem invocar qualquer motivo justificativo desde que o faça com a antecedência mínima de dois anos e o arrendatário tiver idade inferior a 65 anos e não seja portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.

Conforme resulta dos autos, à data do envio das comunicações de denúncia os réus tinham idade inferior a 65 anos pelo que assiste à autora o direito de lançar mão do disposto no artigo 1101º alínea c) do Código Civil.

Improcede, pois, a apelação.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

Guimarães, 21 de Fevereiro de 2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Heitor Gonçalves


1. Neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.06.2013, processo nº 7099/11.2TBBRG-A.G1 e o Acórdão da Relação do Porto de 26.06.2017, processo nº 3974/16.6YLPRT.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
2. Cf. MARIA OLINDA GARCIA, “Arrendamento para comércio. Aplicação da lei no tempo. Oposição à renovação e denúncia do contrato”.
3. In «A desvinculação ad nutum no contrato de arrendamento urbano na reforma de 2012. Breves notas», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas, R.O.A, Ano 72, n.ºs 2-3 (Abr.-Set.2012), 619-651.
4. cf. JANUÁRIO GOMES, Ob Cit, pag. 622.
5. Ob. Cit. pag. 622.
6. Neste sentido, MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (Alterações Introduzidas pela Lei nº 31/2012), 1ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p.128.
7. Acórdão da Relação de Coimbra, 15.02.2011, processo nº 121/09.4T2ILH.C1, www.dgsi.pt.
8. Acórdão da Relação de Coimbra, 27.02.2014, processo nº 6028/11.8TBVNG.P1, www.dgsi.pt.
9. JORGE BACELAR GOUVEIA, Ob Cit. pag. 53.
10. JORGE BACELAR GOUVEIA, Ob Cit. pag. 53
11. Cfr. artigo 1º, al. b) da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto.