Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3478/16.7T8VNF-D.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
INIBIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO COMÉRCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Tendo os três gerentes da sociedade insolvente mantido a contabilidade desorganizada, disposto de bens a favor de terceiros, permitido que uma terceira sociedade entrasse na posse de bens que se encontravam nas suas instalações e proporcionado o desaparecimento da generalidade dos seus bens, com a consequente impossibilidade de laboração, mostra-se estabelecida uma presunção inilidível de insolvência culposa.

2 – Por isso, a qualificação da insolvência como culposa afecta as pessoas dos gerentes que actuaram da identificada forma, em conformidade com o disposto no artigo 189º, nºs 1 e 2, als. d) e h), do CIRE.

3 – Não fornecendo a lei qualquer critério norteador da decisão, para fixar a duração do período de inibição para o exercício do comércio deve ponderar-se a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação como culposa da insolvência, as repercussões do comportamento, o grau de culpa e o contributo para a situação de insolvência.

4 – Mostra-se em conformidade com os aludidos elementos a fixação em cinco anos do período de inibição para o exercício do comércio por parte das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência.

5 – Atentos os actos praticados pelos gerentes, as consequências que os mesmos produziram e o seu grau de culpa, é adequada a sua condenação a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respectivos patrimónios.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. Por apenso ao processo de insolvência de X, Lda., foi aberto incidente de qualificação da insolvência, na sequência da apresentação de alegações por parte das credoras Good Food Y, Lda., e Cook ... Ingredientes, Lda., e da emissão de pareceres por parte do Administrador da Insolvência e do Ministério Público, pugnando pela qualificação como culposa da insolvência, com efeitos a repercutirem-se sobre as pessoas dos gerentes da Insolvente, A. M., F. L. e J. P..

Citados, os Requeridos A. M., F. L. e J. P. deduziram oposição ao incidente de qualificação da insolvência como culposa, onde concluíram pela sua qualificação como fortuita.
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1.2. Foi proferido despacho-saneador, identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar procedente, por provado, o incidente da qualificação e, em consequência, decidiu-se:

- Qualificar como culposa a insolvência de X, Lda., declarando afectados pela mesma os seus gerentes A. M., F. L. e J. P.;
- Fixar em 5 (cinco) anos o período da inibição de A. M., F. L. e J. P. para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, bem como para administrar patrimónios de terceiros;
- Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por A. M., F. L. e J. P. e condená-los na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
- Condenar, ainda, os requeridos A. M., F. L. e J. P. a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência nos termos do artigo 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não forem liquidados pelo produto da liquidação do activo, ou seja, o montante dos créditos que fiquem por liquidar, valor a fixar em liquidação de sentença.
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1.3. Inconformados, os Requeridos A. M., F. L. e J. P. interpuseram recurso de apelação da sentença e formularam, a terminar as suas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1 – Face ao processado nos autos principais, a sentença ora em recurso funda-se em premissas falsas, dado que
2 – Os recorrentes nunca dispuseram dos bens da insolvente em proveito próprio ou de terceiro, pois as vendas dos veículos serviram para a insolvente ganhar liquidez com algo que já não necessitava,
3 – Sendo a contraprestação obtida com estes negócios para a insolvente na totalidade, até porque estes movimentos se encontram refletidos na contabilidade.
4 – O “contrato de dação em pagamento” também serviu para saldar uma dívida para com um credor, mostrando, uma vez mais, o empenho da insolvente em cumprir atempadamente as suas obrigações.
5 – Dois funcionários da empresa, após a cobrança do dinheiro a clientes, nunca chegaram a entregar o dinheiro,
6 – O que originou um saldo de caixa volumoso.
7 – Para qualificar uma insolvência como culposa, é necessário que haja um nexo de causalidade entre a atuação dos gerentes e a própria situação de insolvência.
8 – Mediante os factos expostos, os recorrentes entendem que não é possível concluir que a atuação dos gerentes foi danosa e com vista à criação/agravamento da situação de insolvência,
9 – Pois estes tudo fizeram para evitar esse panorama.
10 – Para além disto, no caso do Tribunal considerar a qualificação da insolvência como culposa,
11 – Não é justo nem proporcional que o quanto indemnizatório seja tão elevado, pois é preciso ter em conta que os factos que levaram à insolvência não foram criados pelos recorrentes e, ainda,
12 – O período de inibição para o comércio é igualmente exagerado, uma vez que a própria sentença de que se recorre considera a culpa dos recorrentes como mediana e, uma vez mais, o critério do nexo de causalidade não está preenchido.

Nestes termos, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por uma outra que conclua pela qualificação fortuita da insolvência, como supra melhor expendido, farão Vossas Excelências, como é de Direito e Justiça!».
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O Recorrido Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial(1). Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, são questões a decidir:

i) Falta de fundamento para considerar como culposa a insolvência da sociedade X, Lda.;
ii) Inexistência de nexo de causalidade entre a actuação dos gerentes e a situação de insolvência;
iii) Desproporcionalidade do quantum indemnizatório e do período de inibição para o comércio.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1 - Nos autos principais foi proferida sentença, datada de 15 de Junho de 2016 e devidamente transitada em julgado, a decretar a insolvência de “X, Lda.”.
2 - A insolvente, pessoa colectiva NIPC …, com sede no Largo … Vila Nova de Famalicão, tinha por objecto o comércio, importação e exportação de carne, designadamente de aves e produtos à base de carne, bem como de produtos alimentares congelados.
3 - Desde a constituição da sociedade insolvente até à data da sentença da insolvência sempre foram seus sócios e gerentes: a) A. M., residente na Rua da …, Vila Nova de Famalicão, F. L., residente na Praceta …Vila Nova de Famalicão; c) J. P., residente na Rua … Vila Nova de Famalicão.
4 - Eram A. M., F. L. e J. P. quem acordava os negócios a encetar e os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinham com terceiros, com quem tratavam, emitindo cheques e contactando com Bancos, sempre que necessário.
5 - Mais sendo os responsáveis pela gestão, administração e representação de toda a actividade exercida, cabendo-lhes também a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores da sociedade insolvente, a contratação de funcionários, a assinatura de documentos, a emissão de cheques e a entrega dos documentos que serviam de base à elaboração da contabilidade.
6 - Apesar de estarem obrigados a tanto, A. M., F. L. e J. P. não cuidaram de manter a contabilidade da sociedade insolvente devidamente organizada.
7 - Ainda assim, logrou detectar-se na análise do “balancete geral financeiro”, a existência na conta nº 11 (caixa), em 31 de Maio de 2016, de um saldo no valor de € 435.816,71, que não foi apreendido para a massa insolvente porque aqueles o utilizaram de forma não apurada.
8 - Por outro lado, de acordo com o “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015”, a sociedade insolvente procedeu à alienação do património nos seguintes termos:

a) No dia 26 de Setembro de 2015, através da factura nº 115/795, vendeu a “P. R., Sociedade Unipessoal, Lda.”, o veículo automóvel de marca Volkswagen, matrícula ..., pelo valor global de € 8.610,00 [€ 7.000,00, acrescidos de IVA (€ 1.610,00)];
b) No dia 26 de Setembro de 2015, através da factura nº 115/794, vendeu a “P. R., Sociedade Unipessoal, Lda.”, o veículo automóvel de marca Toyota, matrícula ..., pelo valor global de € 3.075,00 [€ 2.500,00, acrescidos de IVA (€ 575,00)];
c) No dia 30 de Outubro de 2015, através da factura nº EX/121, vendeu a “Carnes Z, Unipessoal, Lda.”, o veículo automóvel de marca Opel, matrícula ..., pelo valor global de € 1.537,50 [€ 1.250,00, acrescidos de IVA (€ 287,50)] - este veículo foi registado a favor da adquirente no dia 01 de Outubro de 2015, antes da data da emissão da factura;
d) No dia 19 de Outubro de 2015, através da factura nº 115/832, vendeu a “G. S., Unipessoal, Lda.”, o veículo automóvel de marca Renault, matrícula ..., pelo valor global de € 3.296,40 [€ 2.680,00 acrescidos de IVA (€ 616,40)] - este veículo foi registado a favor da adquirente no dia 15 de Outubro de 2015, antes da data da emissão da factura.
9 - Mediante escrito particular denominado de “contrato de dação em pagamento” alegadamente celebrado em 29 de Setembro de 2015, A. M., F. L. e J. P., outorgando em nome da sociedade insolvente, acabaram por transmitir a P. R., que outorgou na qualidade de sócia e gerente da sociedade “P. R., Sociedade Unipessoal, Lda.”, os veículos automóveis de matrícula ... e ... para pagamento de uma suposta dívida de € 12.400,11, que assim teria ficado saldada.
10 - Do valor das referidas faturas apenas aquele respeitante às vendas dos veículos identificados em 8 a) e b) deu entrada na contabilidade da devedora que, ainda assim, não foi apreendido por se desconhecer o seu paradeiro.
11 - A sociedade “Carnes Z, Unipessoal, Lda.”, cujo objecto social é o comércio a retalho de carne, peixe, frutas, produtos hortícolas, produtos alimentares, bebidas ou tabaco, foi constituída em 23 de Junho de 2015 sendo sua única sócia P. P., filha de J. P. (também gerente); em 07 de Outubro de 2015, após a data da efectiva alienação e registo do veículo automóvel de marca Opel, matrícula ..., aquela passou a figurar como gerente.
12 - Acresce que dos restantes activos que figuram no “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015” apenas foram apreendidos um computador e uma secretária, desconhecendo-se o paradeiro dos restantes.
13 - Desde 22 de Maio de 2015 tem sede nas antigas instalações da insolvente a sociedade “M. P. - Talhos, Lda.”, com objecto social o comércio de carnes e peixes, e cujos sócios e gerentes são A. M. e J. P., que assim entrou na posse dos bens pertencentes à sociedade “X, Lda.”, e que não foram apreendidos para a massa insolvente.
14 - Após a concretização dos referidos negócios, a 09.11.2015, numa altura em que não dispunha de condições para laborar, a devedora apresentou-se a processo especial de revitalização onde não foi aprovado qualquer plano de recuperação, vindo a insolvência a ser requerida pelo Exmo. Senhor Administrador Judicial Provisório no dia 02 de Maio de 2016 ao abrigo do disposto no artigo 17º-G, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
15 - Com a actuação referida em 8, A. M., F. L. e J. P. quiseram e conseguiram impedir a apreensão de tais bens para a massa insolvente, a sua liquidação e pagamento aos credores, sendo que os créditos reconhecidos ascendem a € 565.169,01.
16 - Face à exiguidade do valor dos restantes bens apreendidos, apresta-se o processo a ser encerrado por insuficiência da massa insolvente.
17 - A situação descrita ocorreu no período temporal compreendido entre 02 de Maio de 2013 e 02 de Maio de 2016 (apresentação do parecer do Exmo. Senhor Administrador da Insolvência nos termos do artigo 17º-G, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), data do início do processo de insolvência.
18 - J. P. e A. M. são sócios da sociedade M. P., Talhos.
19 - Até 08.10.2015 o gerente da Carnes Z, Unipessoal, Lda., era J. P..
20 - Os movimentos das alienações dos veículos encontram-se reflectidos na contabilidade.
21 - As contas da sociedade insolvente foram sempre apresentadas.
22 - A 22.05.2015 a sociedade M. P. - Talhos alterou a sua sede para as instalações da Insolvente, sitas no Largo ….
23 - Até este período esta sociedade ocupava instalações sitas na Av. de ….
24 - A 23.06.2015 é constituída a sociedade Carnes Z, Unipessoal, Lda., sendo designado gerente J. P., também sócio gerente da Insolvente e da M. P., Talhos, Lda.
25 - A sede desta sociedade é nas antigas instalações da M. P., Lda.
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou como não provados os factos seguintes:

«A - A sociedade insolvente não depositou as contas do ano de 2015.
B - Não se afigura crível que os requeridos afirmem que a sociedade tem perspectivas de melhoria e recuperação e ao mesmo tempo alienem todo o património da insolvente.
C - Nem que por força da venda dos veículos tenha entrado dinheiro na conta da insolvente.
D - Pouco tempo depois da sociedade ter-se apresentado à insolvência, ficou sem trabalhadores.
E - Consta do relatório elaborado pelo senhor administrador de insolvência como activo a quantia de € 421.804,00 na conta de caixa e depósitos bancários.
F - Os requeridos transferiram trabalhadores de uma sociedade para outra referindo que pretendem recuperar a sociedade insolvente, mas não apresentando ao mesmo tempo qualquer plano de revitalização.
G - Poucos meses antes do processo de insolvência.
H - Mantendo-se outra sociedade a funcionar no mesmo local limpa de passivo.
I - Que o valor obtido com as alienações dos veículos deu entrada na conta da sociedade.
J - E que foi utilizado para pagar dívidas da sociedade.
K - Não verificou o Sr. administrador se o valor comercial dos veículos e os valores realizados com tais alienações não foram prejudiciais para a massa insolvente, se os valores de venda se acham enquadrados com os valores de mercado.
L - Por tais motivos, entendeu o senhor administrador da insolvência não proceder à resolução dos contratos realizados uma vez que não houve real prejuízo para a massa insolvente com tais negócios.
M - Os valores gerados por tais alienações deram lugar a movimentos de entrada e saída dos montantes.
N - Tendo o respectivo preço sido pago pelos adquirentes das viaturas.
O - Achando-se tais valores reflectidos na contabilidade.
P - Os oponentes não usaram o saldo de caixa a seu favor ou de terceiro, fazendo-o desparecer.
Q - Tal saldo representa quer os incobráveis dos clientes da insolvente, quer situações de ex-funcionários que cobraram em dinheiro de clientes da insolvente e que não entregaram tal valor à insolvente.
R - Só com as certidões judiciais a comprovar tais incobráveis ou desvios se poderia corrigir a contabilidade e o saldo de caixa.
S - O valor dos veículos alienados entrou na caixa e foi usado para pagar créditos da sociedade devedora».
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2.2. Do objecto do recurso

Nas conclusões das suas alegações, que delimitam as questões a apreciar por esta Relação, os Recorrentes não impugnam a matéria de facto dada como provada, apenas questionam a forma como foi valorada e as consequências jurídicas extraídas na sentença.
A título principal, no essencial, os Recorrentes invocam que a insolvência foi fortuita.
Subsidiariamente, argumentam que inexiste nexo de causalidade entre a actuação dos gerentes e o estado de insolvência.
Num terceiro momento, na eventualidade de improceder a sua anterior argumentação, sustentam que é desproporcionado o quantum indemnizatório que fica a cargo dos Recorrentes e que é exagerado o período de inibição para o comércio fixado na sentença.
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2.2.1. Da alegada insolvência fortuita - falta de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa

Importa começar por traçar, resumidamente, o quadro legal substantivo aplicável ao incidente de qualificação da insolvência.

Quanto à sua qualificação, a insolvência só pode ser culposa ou fortuita – artigo 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). São estas as duas únicas modalidades alternativas de qualificação da insolvência.

A insolvência será culposa, nos termos do nº 2 do artigo 186º do CIRE, «quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência». Será fortuita nos restantes casos, atenta a sua delimitação por exclusão de partes.

Note-se que a qualificação como culposa pressupõe uma actuação com dolo ou negligência grosseira (pressuposto subjectivo) por parte do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, criadora da situação de insolvência ou do seu agravamento (pressuposto objectivo causal), ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (pressuposto temporal). É necessário que o devedor ou administrador, de facto ou de direito, aja com intenção de criar ou agravar a insolvência, ou não observe, de forma manifesta, os deveres objectivos de cuidado que se lhe impõem, causando ou agravando, assim, a situação de insolvência.

O regime da qualificação da insolvência desenvolve-se num quadro em que existe um conjunto de presunções que ajudam a qualificar a insolvência como culposa, com a finalidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências» (2) e favorecer a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos seus comportamentos. Estabelecem-se presunções inilidíveis e ilidíveis com o objectivo de densificar a apontada cláusula geral contida no artigo 186º, nº 1, de CIRE.

As constantes do artigo 186º, nº 2, do CIRE são presunções absolutas de insolvência culposa, uma vez que a adopção de um dos comportamentos aí descritos leva a presumir iuris et de iure o preenchimento dos pressupostos objectivo e subjectivo, sem que seja admitida a produção de prova em contrário. Se bem repararmos em cada um dos factos descritos nessas nove alíneas, os mesmos contêm já um juízo normativo de culpa, de imputação subjectiva de um comportamento desvalioso ao administrador, pelo que se presume a demonstração do nexo causal entre a actuação e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Porém, o administrador dispõe da possibilidade de demonstrar que não praticou o facto imputado ou carrear para os autos elementos que permitam pôr em dúvida a realidade do mesmo.

Já as constantes do nº 3 do artigo 186º são meras presunções relativas - iuris tantum - de «existência de culpa grave» do administrador, ou seja, ilidíveis. Neste último caso, não se presume o pressuposto objectivo causal, mas tão-somente o pressuposto subjectivo.

Assim, de acordo com o nº 2 do preceito em análise, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º.

Por seu turno, nos termos do nº 3, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

Em consonância com a interpretação que já expusemos, também a doutrina e a jurisprudência têm considerado, de forma amplamente maioritária, que o artigo 186°, nº 2, do CIRE contém uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, o que significa que a lei estabelece uma presunção da existência de culpa grave e uma presunção do nexo de causalidade dos comportamentos previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em contrário. A previsão do nº 2 deve ser articulada com a previsão do nº 1 quanto ao limite temporal, pelo que a relevância dos factos nela previstos depende do limite temporal estabelecido no nº 1. O nº 3 contém uma presunção ilidível de culpa grave dos administradores de direito ou de facto, mas é necessário que fique demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento dessas obrigações e a situação de insolvência ou o seu agravamento (3).

Atento o objecto delimitado do presente recurso, apenas nos interessam os fundamentos constantes das alíneas d) e h) do nº 2 do artigo 186º, uma vez que foram os invocados pelo Tribunal recorrido para determinar a qualificação da insolvência como culposa e a afectação dos Recorrentes pela mesma.

Assim, nos termos do nº 2 do artigo 186º, está em causa o alegado facto de os ora Recorrentes terem:

- «d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros»;
- «h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor».

2.2.1.1. Da disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros

Tendo por base os factos nºs 8 (alienação de quatro veículos automóveis) e 9 (dação em pagamento de dois desses automóveis), os Recorrentes invocam, na defesa da sua tese sobre a insolvência fortuita, o facto nº 20, onde se deu como demonstrado que «Os movimentos das alienações dos veículos encontram-se reflectidos na contabilidade».

Argumentam que «Os negócios realizados deram entrada nas contas da sociedade, pelo que a contraprestação dos negócios foi única e exclusivamente para a insolvente».

Porém, para além dos factos nºs 8, 9 e 20, também ficou demonstrado, no ponto 10, que «Do valor das referidas faturas apenas aquele respeitante às vendas dos veículos identificados em 8 a) e b) deu entrada na contabilidade da devedora que, ainda assim, não foi apreendido por se desconhecer o seu paradeiro».

Portanto, é inequívoco que a contraprestação devida pela venda dos veículos descritos nas alíneas c) e d) do ponto de facto nº 8 não deu entrada na contabilidade da devedora, nem, consequentemente, no seu património. Nessa parte, ocorreu uma disposição gratuita de dois veículos automóveis a favor de duas sociedades terceiras, o que claramente se subsume ao disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.

Recorde-se ainda que os Recorrentes não lograram demonstrar a versão que plasmaram na sua oposição, pois o Tribunal recorrido deu como não provados, além do mais (v. M, N e S), os pontos de facto I («Que o valor obtido com as alienações dos veículos deu entrada na conta da sociedade») e J («E que foi utilizado para pagar dívidas da sociedade»).

Acresce que o aludido quadro não fica completo sem que se considerem os demais factos provados. E a realidade constatada não deixa margem para dúvidas: após a concretização dos referidos negócios, que datam de finais de Setembro de 2015 e Outubro de 2015, quando a 09.11.2015 a sociedade X, Lda., se apresentou a processo especial de revitalização, «não dispunha de condições para laborar» (facto 14), ou seja, a disposição do aludido património implicou a impossibilidade de laboração. Além disso, «dos restantes activos que figuram no “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015” apenas foram apreendidos um computador e uma secretária, desconhecendo-se o paradeiro dos restantes» (facto 12), o que é elucidativo da delapidação do património da sociedade, pois, os Recorrentes reduziram o aludido património da Insolvente a um computador e uma secretária, quando os créditos reconhecidos ascendem a «€ 565.169,01» (facto 15). Finalmente, como se não bastasse, «Desde 22 de Maio de 2015 tem sede nas antigas instalações da insolvente a sociedade “M. P. - Talhos, Lda.”, com objecto social o comércio de carnes e peixes, e cujos sócios e gerentes são A. M. e J. P., que assim entrou na posse dos bens pertencentes à sociedade “X, Lda.”, e que não foram apreendidos para a massa insolvente» (facto 13). Este último facto evidencia outro acto de disposição de «bens pertencentes à sociedade “X, Lda.», a favor de uma sociedade de que são sócios e gerentes dois dos Recorrentes, com a consequente impossibilidade de serem «apreendidos para a massa insolvente». Todos estes factos reforçam o acerto do enquadramento jurídico traçado pelo Tribunal recorrido quando subsume o comportamento dos ora Recorrentes ao disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.

2.2.1.2. Da desorganização substancial da contabilidade

Os Recorrentes impugnam este fundamento invocado na sentença, invocando que dois funcionários da Insolvente «receberam dinheiro de clientes, mas não o entregaram», ou seja, que se apropriaram de tal dinheiro. Sustentam que «apesar da “entrada em caixa”, o dinheiro nunca entrou efectivamente na empresa, o que ajudou a originar um saldo de caixa tão volumoso».

Compulsados os autos, verifica-se que a tese factual que os Recorrentes agora retomam não resultou demonstrada no julgamento da matéria de facto, pois na alínea Q dos factos não provados consta que «Tal saldo representa quer os incobráveis dos clientes da insolvente, quer situações de ex-funcionários que cobraram em dinheiro de clientes da insolvente e que não entregaram tal valor à insolvente».

Portanto, o alegado é manifestamente inapto para infirmar o juízo subsuntivo da sentença.

Pelo contrário, está demonstrado que «Apesar de estarem obrigados a tanto, A. M., F. L. e J. P. não cuidaram de manter a contabilidade da sociedade insolvente devidamente organizada» (facto 6). Além disso, detectou-se «na análise do “balancete geral financeiro”, a existência na conta nº 11 (caixa), em 31 de Maio de 2016, de um saldo no valor de € 435.816,71, que não foi apreendido para a massa insolvente porque aqueles o utilizaram de forma não apurada» (facto 7). São os próprios Recorrentes a confessar que «apesar da “entrada em caixa”, o dinheiro nunca entrou efectivamente na empresa», ou seja, uma indevida utilização da “conta caixa” (contabilisticamente classificada como nº 11). Como é sabido, a conta caixa inclui meios líquidos de pagamento (está integrada na classe dos meios financeiros líquidos), tais como notas de banco, moedas metálicas de curso legal, cheques e vales postais recebidos de terceiros. Como é óbvio, e qualquer comerciante mediano o consegue afirmar, não pode ser levado à conta caixa algo que não é um recurso imediatamente disponível para efectuar pagamentos, como é o caso de uma alegada, mas não provada, apropriação por parte de dois funcionários.

Acresce que é preciso um grande grau de abstracção para considerar que a contabilidade da Insolvente revelava a sua situação patrimonial e financeira. A desconformidade está bem atestada no facto de no dia 31.05.2015 a contabilidade revelar um saldo de caixa no valor de € 435.816,71 (o que, a ser verdade, que não é, corresponderia a uma óptima situação financeira de uma pequena empresa) e no dia 15.06.2016 ter sido declarada a sua insolvência, sendo certo que de útil, no património da Insolvente, tal como emergia do “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015”, só existia um computador e uma secretária, quando, em contrapartida, o passivo ascende a € 565.169,01. Dificilmente se encontra um melhor exemplo de uma contabilidade mais desconforme com a realidade.

A contabilidade assume particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados.

In casu, não é um mero incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manter a contabilidade organizada, mas sim um total incumprimento de tal obrigação.

Com a menção na contabilidade de um saldo de caixa no valor de € 435.816,71, que efectivamente inexistia, era impossível a alguém compreender a situação patrimonial e financeira da devedora, ora insolvente.

Assim sendo, mostra-se correcta a subsunção do caso concreto à norma jurídica constante da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
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2.2.2. Do nexo de causalidade

Nas suas conclusões 7 e 8, os Recorrentes sustentam que inexiste nexo de causalidade entre a sua actuação, enquanto gerentes, e a própria situação de insolvência.

Tal como já se explicitou em 2.2.1., no caso das alíneas d) e h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, uma vez que se tratam de fundamentos para a qualificação da insolvência inilidíveis, forçoso é considerar a insolvência dos autos como culposa. Demonstrado que os administradores da devedora adoptaram os comportamentos aí descritos, presume-se o nexo de causalidade adequada entre tais condutas e a insolvência. Por tais comportamentos estarem onerados com uma presunção inilidível, fica assim absolutamente estabelecido tal nexo de causalidade, o que, sem mais, permite concluir que a insolvência deve ser qualificada como culposa.

Mais:

Mas mesmo que o legislador não tivesse estabelecido a aludida presunção inilidível, a qual vincula o intérprete e não pode aqui ser afastada (existindo factos que permitam presumir de forma inilidível que a insolvência é culposa, o juiz não pode deixar de proferir sentença nesse sentido), o nexo de causalidade entre a conduta dos Recorrentes e a situação de insolvência, pelo menos no que respeita ao seu agravamento, também se conseguiria estabelecer com base nos factos provados.

Basta atentar que a disposição do património por parte dos gerentes implicou a impossibilidade de laboração da devedora (v. facto nº 14), o que bem evidencia o nexo de causalidade entre o acto e a insolvência.

Também ficou demonstrado, sob o facto nº 13, que desde 22.05.2015, a sociedade M. P. - Talhos, Lda., tendo como objecto social o comércio de carnes e peixes, e cujos sócios e gerentes são A. M. e J. P., passou a ter sede nas antigas instalações da Insolvente e, deste modo, entrou na posse dos bens pertencentes à X, os quais não foram apreendidos para a massa insolvente. Em consequência de passar a ocupar as mesmas instalações, essa terceira sociedade entrou na posse de bens que eram da Insolvente e que por isso não foram apreendidos, pelo que o nexo de causalidade entre tal actuação e a insolvência também nos parece evidente, sendo que o aludido resultado constitui a expressão caracterizadora da situação insolvência.

Por outro lado, sob o facto nº 15, ficou também concretamente demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta dos Recorrentes e, pelo menos, o agravamento da insolvência: «com a actuação referida em 8, A. M., F. L. e J. P. quiseram e conseguiram impedir a apreensão de tais bens para a massa insolvente, a sua liquidação e pagamento aos credores, sendo que os créditos reconhecidos ascendem a € 565.169,01». Igualmente caracterizador do nexo de causalidade é o facto de terem desaparecido os restantes activos que figuravam no “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015”, dos quais apenas foram apreendidos um computador e uma secretária.

Finalmente, a situação global da empresa, resultante de actos de disposição de bens e de dissipação de outros, tem de ser articulada com o facto de a contabilidade não se encontrar organizada e de revelar dados incorrectos, nos termos já apontados.

Consequentemente, sendo no caso realidades intrincadas (os actos prejudiciais e a contabilidade desfasada da realidade) esse conjunto de factos foi determinante na insolvência da X, Lda., enquanto causa adequada desta.
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2.2.3. Da desproporcionalidade do período de inibição para o comércio

Na conclusão 12 das suas alegações, os Recorrentes sustentam que «o período de inibição para o comércio é igualmente exagerado».

Qualificada a insolvência como culposa, a lei impõe ao juiz que identifique «as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa» - artigo 189º, nº 2, al. a), do CIRE.

No que concerne ao caso dos autos, a sentença identificou as pessoas dos Recorrentes, enquanto gerentes da Insolvente, e declarou-as afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamentação pertinente e que é cristalina face aos factos que praticaram e à inerente responsabilidade.

Nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 189º do CIRE, na sentença que qualificar a insolvência como culposa, o juiz “deve” declarar as pessoas afectadas pela qualificação inibidas para administrarem patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Na base de tal norma está o entendimento de que a inaptidão para gerir uma sociedade indicia e faz presumir a inabilidade para administrar património de terceiro, exercer o comércio e ocupar cargo de titular de órgão de ente colectivo. Para evitar esse perigo estabelece-se a apontada inibição. Também não é estranha a tal consagração uma ideia de dissuasão de comportamentos perturbadores do normal funcionamento da economia e do mercado, afastando, ainda que temporariamente, os agentes que incorreram em comportamentos censuráveis e procurando repor assim a confiança abalada. Nesta faceta é um instrumento de credibilização do comércio.

O período de inibição deve ser fixado entre 2 e 10 anos, mas a lei não fornece qualquer critério norteador da decisão. Na falta do mesmo, procurando densificar os elementos relevantes, entendemos que na ponderação da duração do período de inibição deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência, as repercussões do comportamento, o grau de culpa (actuação dolosa ou com culpa grave, sendo que no primeiro caso é relevante a natureza do dolo) e o contributo para a situação de insolvência (balizado entre um comportamento que determinou directamente a situação de insolvência e outro que apenas agravou a mesma).

Na sentença, para fundamentar o período de inibição, considerou-se que «temos de atender à gravidade do comportamento da Insolvente através daquele, e as respetivas consequências para os seus credores, face ao expectável valor do produto obtido com a liquidação, deverá ser ponderado que o afetado pela qualificação confessou os factos que resultaram provados. Assim, consideramos a culpa dos requeridos como mediana, na medida em que com o incumprimento das obrigações de elaborar contabilidade e apresentar contas, ocultaram o património e os lucros e prejuízos da sociedade, fazendo desaparecer a capacidade produtiva e laboral da insolvente, dado que esta ficou sem bens essenciais para o desenvolvimento da sua atividade e objeto social, precipitando a sua situação de insolvência. Atendendo à gravidade dos factos anteriores à insolvência que resultaram provados, designadamente a culpabilidade mediana/elevada dos requeridos, entendo ser de fixar em 5 anos o período da inibição destes para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa».
Os Recorrentes versam apenas a questão da inibição do exercício do comércio e argumentam que sendo a culpabilidade mediana não se justificava fixar o período de inibição em 5 anos, mas uma duração inferior.

A moldura da inibição varia entre um mínimo de 2 anos e um máximo de 10 anos. Portanto, o seu ponto médio é seis anos. Será esse que corresponde a uma “culpabilidade mediana”.

Ora, tendo sido fixado o período de inibição em cinco anos, verifica-se que o mesmo encontra-se na parte inferior da moldura, pelo que não se pode considerar existir um desfasamento entre o grau de culpabilidade e a duração da inibição.

Por outro lado, sopesa-se que a conduta dos gerentes da devedora é gravosa, já que, por um lado, determinou que a mesma ficasse sem condições de laboração e, por outro, apenas foram localizados escassos bens (verdadeiramente irrisórios face à dimensão global dos créditos reconhecidos), o que determinará que a generalidade dos credores não veja satisfeitos, ainda que em parte, os seus créditos, que são de montante avultado. Portanto, não só as consequências dos comportamentos assumidos são substanciais em termos de impossibilitar o ressarcimento dos credores como foram determinantes da insolvência.

Por isso, afigura-se inteiramente adequado (“justo”, na expressão dos Recorrentes) e proporcional o período de inibição fixado na sentença – cinco anos.
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2.2.4. Da desproporcionalidade da obrigação de indemnização

Na conclusão 11 das suas alegações, os Recorrentes sustentam que «não é justo nem proporcional que o quanto indemnizatório seja tão elevado».

Um outro efeito imposto legalmente da qualificação da insolvência como culposa é a condenação das «pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados» - artigo 189º, nº 2, alínea e), do CIRE. Repare-se que o legislador não deixa ao critério do julgador a possibilidade de condenar ou não, antes impõe, inapelavelmente, a condenação, ao referir expressamente “o juiz deve condenar”. O legislador determina imperativamente tal consequência (a condenação), sem possibilidade de outra ponderação.

Conforme afirma José Manuel Branco, «Esta novel forma de responsabilização tem alguma adesão ao esquema clássico da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (do artigo 483.º do Código Civil) já que espelha os pressupostos desta: a existência de um facto, voluntário, culposo (qualificado por via de dolo ou de culpa grave, por vezes presumida, vide 186.º, n.º 3), dano, ilicitude (desrespeito de imposições legais dos números 2 e 3 do artigo 186.º, traduzindo a génese do próprio resultado insolvência, comportamentos reprováveis e autênticos delitos de perigo abstrato) e nexo causal (a fixar – n.º 1 – ou presumido, nos casos do n.º 2 e eventualmente n.º 3). O conteúdo da condenação, a indemnizar os credores pelos créditos não satisfeitos, pressupõe que não são reparados todos os danos que a insolvência possa ter provocado, mas apenas haverá lugar ao ressarcimento dos créditos reclamados e reconhecidos, aproveitando-se a graduação da acção e compreendendo-se a satisfação dos próprios créditos subordinados. Todavia, esta responsabilização é subsidiária, mas apenas concretizável quando esgotada a massa no termo da liquidação» (4).

Embora o apontado efeito condenatório decorra directamente da lei, a fixação do valor das indemnizações devidas está sujeita à apreciação das circunstâncias e vicissitudes do caso concreto.

Este último aspecto necessita de algum desenvolvimento, na medida em que o teor literal do preceito poderá sugerir, ao leitor mais incauto, que o valor da indemnização é fixo, ou seja, que corresponde sempre ao “montante dos créditos não satisfeitos”. Tal interpretação é manifestamente de afastar, pois poderia levar ao absurdo de um administrador que prejudica o património do insolvente em cinco mil euros, por exemplo através da apropriação de um bem nesse valor, acabar por responder por danos aos credores em montantes muito superiores, até em milhões de euros, sem que exista uma relação adequada entre as duas realidades – o dano causado ao devedor insolvente com a prática dos factos fundamentadores da qualificação e os montantes dos créditos reconhecidos e insatisfeitos.

Portanto, o valor da indemnização não se encontra legalmente vinculado, devendo ser objecto de ponderação na sentença do incidente de qualificação da insolvência. À partida apenas está delimitado o seu valor máximo, que corresponde ao montante dos créditos não satisfeitos, atenta a natureza subsidiária da responsabilização prevista no artigo 189º, nº 2, al. e), do CIRE.

No caso dos autos, a sentença entendeu fixar o valor das indemnizações, a pagar pelos Recorrentes aos credores, no «montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência nos termos do artigo 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não forem liquidados pelo produto da liquidação do activo, ou seja, o montante dos créditos que fiquem por liquidar, valor a fixar em liquidação de sentença».

O relegar dessa fixação para liquidação de sentença mostra-se justificado, uma vez que não era ainda possível determinar o seu valor concreto. Mas logo indicou o critério que permitirá liquidar o valor das indemnizações, tal como impunha o nº 4 do artigo 189º do CIRE.

Por outro lado, ao determinar que corresponderá ao “montante dos créditos que fiquem por liquidar”, isso está em consonância com o grau de culpa dos Recorrentes, a gravidade da sua conduta e, sobretudo, o contributo das suas condutas para insolvência e a frustração dos créditos dos credores, atentos os sucessivos actos praticados em prejuízo do património da devedora, o qual era a garantia comum dos respectivos créditos. Recorde-se que os ora Recorrentes, num quadro em que não cuidaram de manter organizada a contabilidade (a qual evidenciava, por exemplo, um inexistente saldo de caixa de € 435.816,71), permitiram que uma terceira sociedade entrasse na posse dos bens da devedora (e por isso não se logrou a sua apreensão), dispuseram do seu património como quiseram («quiseram e conseguiram impedir a apreensão de tais bens para a massa insolvente, a sua liquidação e pagamento aos credores», o que consubstancia um dolo directo e não apenas culpa grave) e foram, objectivamente, os responsáveis pelo desaparecimento dos restantes activos que figuravam no “mapa de depreciações a amortizações do ano de 2015”, dos quais apenas foram apreendidos um computador e uma secretária.

Termos em que improcede totalmente a apelação.
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2.3. Sumário

1 – Tendo os três gerentes da sociedade insolvente mantido a contabilidade desorganizada, disposto de bens a favor de terceiros, permitido que uma terceira sociedade entrasse na posse de bens que se encontravam nas suas instalações e proporcionado o desaparecimento da generalidade dos seus bens, com a consequente impossibilidade de laboração, mostra-se estabelecida uma presunção inilidível de insolvência culposa.
2 – Por isso, a qualificação da insolvência como culposa afecta as pessoas dos gerentes que actuaram da identificada forma, em conformidade com o disposto no artigo 189º, nºs 1 e 2, als. d) e h), do CIRE.
3 – Não fornecendo a lei qualquer critério norteador da decisão, para fixar a duração do período de inibição para o exercício do comércio deve ponderar-se a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação como culposa da insolvência, as repercussões do comportamento, o grau de culpa e o contributo para a situação de insolvência.
4 – Mostra-se em conformidade com os aludidos elementos a fixação em cinco anos do período de inibição para o exercício do comércio por parte das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência.
5 – Atentos os actos praticados pelos gerentes, as consequências que os mesmos produziram e o seu grau de culpa, é adequada a sua condenação a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respectivos patrimónios.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Guimarães, 31.01.2019
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)

1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
2. Carneio da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, vol. II (Setembro), pág. 701.
3. Acórdãos da Relação de Guimarães de 25.02.2016, 20.10.2016, 12.01.2017, 01.06.2017, 11.07.2017 e 14.09.2017; da Relação do Porto de 29.06.2017, 07.07.2016 e 07.12.2016; da Relação de Coimbra de 07.03.2017 e de 12.07.2017; da Relação de Évora de 23.11.2017; do STJ de 06.10.2011. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 16.
4. José Manuel Branco, A qualificação da insolvência (análise do instituto em paralelo com outros de tutela de credores e enquadramento no regime dos deveres dos administradores, Processo de Insolvência e Ações Conexas, Dezembro de 2014, e-book do CEJ.