Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
273/19.5T8VVD.G2
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: DANO EM VEÍCULO AUTOMÓVEL
OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Aceitando o réu que o veículo do autor fosse rebocado para a sua oficina, a fim de efetuar a sua reparação, sobre ele (empreiteiro) incidem o dever principal de realizar a obra (reparação) e o dever acessório de zelar pela guarda e conservação da coisa, exatamente nos mesmos termos do contrato de depósito.
II- O réu estava assim vinculado a efetuar a reparação e a restituir o veículo ao autor. Efetuasse ou não a reparação, a obrigação de restituir o veículo existiria sempre.
III- Essa obrigação de restituição só pode ser protelada quando o empreiteiro (acessoriamente depositário) detenha e exerça o direito de retenção sobre a coisa (veículo), que poderia invocar enquanto o preço da reparação não lhe fosse pago (art.º 754º do CC). Contudo o direito de retenção apenas confere os direitos (e os deveres) correspondentes aos do credor penhoratício (art.º 758º do CC), estando vedada a venda direta do veículo para, alegadamente, se pagar do preço da reparação.
IV- No caso em apreço, o réu não provou sequer ter completado a reparação do veículo que o autor lhe confiou e “desfez-se” do veículo, desmantelando-o e vendendo a sucata, ou seja, o réu não tem condições objetivas para cumprir as obrigações decorrentes do contrato de empreitada que celebrou, pois a prestação principal (reparação) tornou-se impossível, assim como a prestação acessória (restituição do veículo ao autor), por facto que lhe é exclusivamente imputável.
V- Nos termos do art.º 790º do CC, se a impossibilidade for imputável ao devedor da prestação, neste caso ao réu, o contrato não se extingue. Como tal estamos perante um incumprimento culposo (art.º 801º e 798º do CC), que confere ao aqui autor o direito de exigir do réu não só a restituição do veículo como a indemnização dos danos que este lhe causou com o seu incumprimento.
VI- Não sendo possível ao réu restituir o veículo, em razão de o ter desmantelado e alienado como sucata, deverá restituir valor equivalente, como previsto para a obrigação de restituir com fundamento na nulidade do contrato.
VII- Provado o dano patrimonial na ação, a sua quantificação pode ser relegada para posterior liquidação.
VII- A doutrina e a jurisprudência vêm considerando serem ressarcíveis os danos não patrimoniais em sede de responsabilidade civil contratual, constituindo o art.º 496 do CC (inserido no instituto da responsabilidade civil extracontratual) mero afloramento do princípio geral indemnizatório de tais danos.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

J. M. instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra J. B., pedindo a condenação do réu a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Citroen, modelo Berlingo, com a matrícula SP (à data dos factos mencionados nos artigos 17.º a 30.º da P.I.) e, bem assim, no pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais, e de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescidas de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento. Subsidiariamente, pede a condenação do réu a restituir-lhe a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), com fundamento no enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação e até integral pagamento.

Para o efeito alegou, em síntese:
Adquiriu o veículo automóvel supra identificado, pelo preço de 10.500,00 (dez mil, quinhentos euros), satisfeito mediante o recurso a crédito bancário.
Por volta do ano de 2005, na sequência de um acidente de viação que o danificou na parte frontal, o veículo foi transportado para a oficina automóvel “Auto R. - Reparações”, tendo aí permanecido durante o tempo em que decorreu o apuramento do responsável pela reparação.
Posteriormente, como ainda não tivera condições económicas para suportar o preço da reparação, tendo tido conhecimento que o réu era proprietário da oficina “Reparadora S.” que praticava preços inferiores e deixaria aparcar lá o veículo até ter condições de pagar a reparação, deu-lhe conta de toda a situação, tendo-se este disponibilizado para efectuar a reparação, pelo montante orçamentado de €1.100,00 (mil e cem euros), e concordado em deixar o veículo aparcado na oficina até reunir condições de efectuar o pagamento.
Sucede que, no dia 29 de Setembro de 2013, quando se deslocou à oficina para dar ordem de reparação, foi informado pelo réu que já havia vendido o veículo a uma sucata, que não identificou, tão pouco quantificando o valor da venda.
Conclui, que, com o sobredito comportamento, o réu se apoderou e desfez de um bem que não lhe pertencia, sem autorização ou sequer conhecimento do dono, causando-lhe danos patrimoniais que correspondem ao valor do veículo, calculado em € 5.000,00, além de danos não patrimoniais, traduzidos no transtorno, revolta e depressão sentidos, para cuja compensação pede a quantia mínima de € 1.500,00.
Caso assim se não entenda, conclui que, de todo o modo, se operou um enriquecimento sem causa por parte do réu, referente ao valor do veículo automóvel de que se apropriou ilicitamente, no montante de €5.000,00, que deve ser condenado a restituir.
*
O réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação, e deduziu reconvenção.
Por via de excepção, invocou o caso julgado formado pela sentença proferida no processo-crime n.º 854/13.0GBVVD, que absolveu o aqui réu do mesmo pedido de indemnização civil.
Relativamente ao pedido de restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, invocou a prescrição.
Impugna ainda o direito de propriedade do autor sobre o veículo automóvel em questão, concluindo pela sua ilegitimidade para a demanda.
No tocante ao mérito da causa, além de impugnar a versão dos factos trazida aos autos pelo autor, dá a sua própria versão, alegando que foi contactado pelo autor, se não antes, em 2007, para proceder à reparação do dito veículo, o que aceitou, fazendo-o rebocar para a sua oficina e procedendo à reparação da porta do lado direito, guarda-lamas, pára-brisas, pára-choques, capôt, ópticas, grelha, radiador, bomba de direcção assistida, reservatório da água, tudo no montante de €1.200. O autor não mais apareceu na oficina, nem o contactou. Por isso procurou contactá-lo antes de proceder a mais serviços, o que aconteceu no ano de 2012, altura em que o autor referiu que iria resolver a situação, e no ano de 2013, altura em que, interpelado para pagar, o autor lhe disse que fizesse o que quisesse do veículo, que não queria saber mais dele, que com as peças se pagasse do seu prejuízo, o que fez, convencido que o veículo lhe tinha sido entregue para compensação do seu crédito, relativo à reparação e ao parqueamento da viatura durante cerca de seis anos, e que é superior ao valor peticionado.
Conclui, face ao exposto, que não praticou qualquer acto de apropriação ilícita, nem beneficiou de qualquer enriquecimento, já que granjeou com a venda das peças na sucata valor próximo dos € 40,00 (quarenta euros), que nem chega para suportar o custo do reboque que não foi pago.
Reconvindo, pede que o autor seja condenado a pagar-lhe o valor de €12.110, correspondente ao preço das peças e do trabalho de reparação do veículo, no montante de €1.200.00, acrescido das despesas de parqueamento no montante de €10.950,00, calculado à razão diária de €5,00 ao longo de 2190 dias, totalizando €12.150.00, que, descontado o valor que logrou com a venda (€40.00), perfaz o montante que peticiona.
Pede, ainda, a condenação do autor como litigante de má fé, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento conhece.
*
O réu replicou à matéria de reconvenção, impugnando-a, e sustentando que não chegou a dar ordem de reparação do veículo, inexistindo qualquer acordo para proceder à reparação que serve de fundamento ao pedido de pagamento dos serviços de mecânica, que, de todo o modo, não aceita terem sido prestados, pelo dito orçamento. Assim como inexiste fundamento para peticionar custos de parqueamento, que nunca lhe foram comunicados, nem acordados e, de todo o modo, apresentam um valor excessivo e desproporcionado. Tão pouco sobrevieram prejuízos decorrentes da ocupação de espaço pelo veículo.
De todo o modo, sustenta que qualquer direito de indemnização teria já prescrito, nos termos do disposto pelo artigo 498.º do Código Civil, pelo decurso do prazo de três anos, conduzindo à sua absolvição do pedido.
Cautelarmente, defende ainda, que, mesmo que se entendesse ter sido celebrado um contrato de parqueamento entre as partes, as prestações daí decorrentes, periodicamente renováveis, prescrevem no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea g) do Código Civil, pelo que, considerando a data da venda do veículo pelo réu (29 Setembro de 2013), há muito que se, extinguiu, por prescrição, que invoca, o alegado direito do reconvinte, devendo o reconvindo ser absolvido do pedido.
*
Na sequência de convite que lhe foi dirigido, o autor respondeu à matéria de excepção dilatória suscitada pelo réu, refutando a verificação de ilegitimidade e de caso julgado, uma vez que é o presumido proprietário do veículo, que lhe confere legitimidade para demandar, e que os pedidos formulados nestes autos e naqueloutros de processo-crime não são coincidentes, pelo que não se verifica a repetição da causa.
Em face de idêntico convite, também o réu respondeu à matéria de excepção peremptória suscitada em sede de réplica, sustentando que ao caso dos autos se aplica o prazo de prescrição ordinário previsto no artigo 309.º do Código Civil.
*
Dispensou-se a realização da audiência prévia.
Proferiu-se despacho saneador, julgando-se improcedente a suscitada excepção de ilegitimidade, por se entender que o alegado corresponde a uma ilegitimidade substantiva e não à ilegitimidade adjectiva, de que nesta sede se cura.
Seguidamente, apreciou-se a invocada excepção de caso julgado, que se julgou verificada, absolvendo-se o réu da instância.
*
Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso para este Tribunal da Relação, que, por acórdão de 7-5-2020, revogou a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção do caso julgado, considerando que a presente acção assenta em distintas causas de pedir (responsabilidade contratual e enriquecimento sem causa por oposição à responsabilidade civil extracontratual em que assentava o anterior pedido).
*
Devolvidos os autos à 1ª instância, o processo seguiu os seus termos, fixando-se à causa o valor de €18.600,00.
Identificou-se o objecto do processo e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

«Nestes termos, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por provada e, bem assim, pela violação do direito de propriedade do autor, condena-se o réu, J. B., ao pagamento de indemnização a J. M., por danos patrimoniais, correspondentes ao montante, que vier a liquidar-se, do valor do veículo SP, no estado em que se encontrava quando o recebeu, acrescida dos juros contados desde a citação, à taxa legal de 4%, até integral pagamento, e por danos não patrimoniais, fixados em €1.500,00 (mil, quinhentos euros), acrescidos dos juros, calculados à taxa legal, contados desde o presente até integral pagamento, ficando prejudicada a apreciação da questão do enriquecimento sem causa.
Absolve-se o autor dos pedidos contra si formulados nos autos, ficando prejudicada a apreciação da questão da prescrição do direito.
Custas por autores e réus, na proporção do decaimento (cfr. artigo 527.º do CPC), que se fixa em 1/3 e 2/3.»
*
Inconformado, o réu interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1ª. O recorrente não se conforma com a decisão proferida.
2ª. Não deveria ter ficado provado o Facto Provado 2 como o ficou
3ª. Deveria ter ficado provado o Fato provado 2 com a seguinte redação: Pelo ano de 2004, o sobredito veículo foi interveniente num acidente de viação, tendo sofrido estragos na parte frontal e lateral, na porta do lado direito, guarda-lamas, pára-brisas, pára- choques, capô, óticas, grelha, radiador, bomba de direção assistida, reservatória da água, pisca direito
4ª. Merecia prova o Fato não provado I
5ª. O fato provado 5 merecia a seguinte redação: Ficou combinado, entre autor e réu, que este iria proceder ao transporte do veículo da oficina “Auto R. – Reparações” para a oficina “Reparadora S.”, o que sucedeu, tendo o réu apresentado um orçamento de reparação, no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos).
6ª. Merecia prova o fato não provado J
7ª. Deveriam ter ficado provado no fato 6 que “Em Setembro de 2013 o réu vendeu o veículo pelo valor entre 40.00 € a 50.00 €, o que foi do conhecimento do autor”.
8ª. Merecia prova o fato não provado O
9ª. Não poderia ter ficado provado os Fatos Provados 7, 8 e 9
10ª. Mereciam a Prova os Fatos Não Provados K, L, M, N 11ª. O fato provado 13 deveria ter a seguinte redação: “O Réu comprou materiais e procedeu a reparações no veículo que importaram o dispêndio de horas e materiais concretamente apurados no montante de 1200.00 €”
12ª. Devia ter ficado provado que sobre o autor impunha-se a obrigação de pagamento de parqueamento ou depósito.
13ª. Bem ficaram não provados os Fatos não provados B), C) D), E), F), e G)
14ª. Ao caso dos autos não é aplicável o artigo 483º do CC, por não estarem preenchidos os pressupostos quanto à atitude comportamental do réu
15ª. Não é de aplicar ao caso dos autos o artigo 496º do CPC, pois não há danos não patrimoniais sofridos na esfera jurídica do autor
16ª. Ao caso dos autos é de aplicar o artigo 1207º do CC pois foi celebrado contrato de empreitada entre autor e réu.
17ª. Ao caso dos autos é de aplicar o artigo 1185º do CC pois foi celebrado contrato de depósito entre autor e réu.
18ª. O autor não logrou provar os eventuais danos patrimoniais, nomeadamente o valor do veículo.
19ª. Não pode ser relegado para execução de sentença o computo do valor do veículo do autor, pois que o mesmo não logrou em sede própria fazer prova como lhe competia.
20ª. Há que operar a compensação, prevista no artigo 847º do CC, já que o réu tem um direito de crédito sobre o autor.
21ª. Deve a reconvenção ser dada como provada e como tal procedente, condenando-se o autor nos referidos pedidos.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, para o que se pede e espera o douto suprimento de Vossas Excelências, pois só assim se fará JUSTIÇA .»
*
O autor apresentou contra-alegações.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:

a) Reapreciação da prova no tocante aos factos cuja decisão vem impugnada.
b) Em face da proposta alteração, decidir se a acção deve ser julgada improcedente e procedente a reconvenção.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

«1. Em 30 de Novembro de 2009, através do registo …, da Conservatória do Registo Automóvel, a aquisição do veículo automóvel, com a matrícula de SP (doravante SP), foi inscrita, a favor do autor, J. M..
2. Pelo ano de 2005, o sobredito veículo foi interveniente num acidente de viação, tendo sofrido estragos na parte frontal.
3. Na sequência do sinistro, o veículo foi transportado para a oficina automóvel denominada “Auto R. - Reparações”, sita em …, freguesia de …, em Vila Verde, onde permaneceu durante o processo de resolução do sinistro, peritagem, avaliação e quantificação dos danos.
4. No ano de 2007, o autor deslocou-se à oficina de reparação automóvel denominada “Reparadora S.” e contactou o réu, que a explorou, e que se mostrou disponível para proceder à reparação do veículo.
5. Ficou combinado, entre autor e réu, que este iria proceder ao transporte do veículo da oficina “Auto R. – Reparações” para a oficina “Reparadora S.”, o que sucedeu, tendo o réu apresentado um orçamento de reparação, no montante de, pelo menos, € 1.100,00 (mil e cem euros).
6. Em Setembro de 2013, o réu vendeu o veículo, por montante não apurado, o que foi do conhecimento do autor.
7. O veículo SP foi entregue ao réu para reparação, o que este sabia, bem como, sabia que tinha de o entregar ao autor.
8. Ao vendê-lo, desfez-se de um bem que sabia não lhe pertencer, sem conhecimento ou consentimento do autor.
9. Com a sua actuação, o réu causou no autor desgosto, revolta e transtorno.
10. O autor apresentou queixa contra o réu, o que deu origem aos autos de proc. n.º 854/13.0GBVVD, do Juízo Local Criminal de Vila Verde do Tribunal da Comarca de Braga.
11. Nesse âmbito, foi proferida, em 11 de Fevereiro de 2016, sentença que absolveu o arguido, aqui réu, da prática do crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal, bem como, do pedido de indemnização formulado nos autos.
12. Em 2017, o autor requereu o cancelamento da matrícula do veículo supra identificado.
13. O réu comprou materiais e procedeu a reparações no veículo, que importaram um dispêndio de horas e materiais concretamente não apurados.
14. O autor recebeu dinheiro da seguradora para reparar o carro e gastou-o noutras coisas.».

B Factos julgados não provados

«A) O réu aceitou aparcar o veículo na oficina, a título gratuito, até o autor ter dinheiro suficiente para efectuar o pagamento da reparação.
B) A reparação mecânica estaria sempre dependente de dois factores: o autor obter dinheiro suficiente e emitir a ordem de reparação do veículo.
C) No dia 29 de Setembro de 2013, o autor deslocou-se à oficina de reparação automóvel “Reparadora S.”, para dar ordem de reparação, tendo constatado que o veículo de matrícula SP já não se encontrava no local.
D) O veículo SP, com primeira matrícula de 2001, a gasóleo, estava em bom estado de conservação, com excepção da parte estragada no acidente.
E) Não tinha percorrido sequer 80.000 Kms.
F) Em 2017, o veículo valia a quantia mínima de € 5.000,00 (cinco mil euros).
G) A actuação do réu causou depressão no autor e o desgosto, revolta e transtorno sentidos agravaram-se e aprofundaram-se com o decorrer do tempo.
H) O serviço de reboque do SP importou um dispêndio de € 35,00 (trinta e cinco euros).
I) O réu colocou o SP “pronto de chapa”, adquirindo materiais relativos à porta do lado direito, guarda-lamas, pára-brisas, pára- choques, capô, óticas, grelha, radiador, bomba de direção assistida, reservatória da água, e efectuou serviços de reparação que importaram um dispêndio de € 1.200,00.
J) O orçamento apresentado pelo réu situou-se nos 1.500.00 €.
K) Por volta do ano de 2012, foi agendado um encontro em …, junto ao Café “…”, tendo o autor, quando interpelado para o pagamento das despesas, referido que em breve resolvia a situação.
L) Em 2013, ao pé da Farmácia …, próximo onde se apurou que o autor morava, na …, o denunciante é interpelado uma vez mais para o pagamento da reparação e o levantamento do veículo.
M) Neste data, o autor disse ao réu que fizesse o que quisesse do veículo, que não queria saber mais dele, e que com as peças se pagasse do seu prejuízo, que até o podia pôr no lixo e quisesse.
N) Perante tais afirmações proferidas na presença de várias testemunhas, dado o tempo decorrido e o desinteresse do autor no veículo, o réu acreditou e agiu de acordo com as indicações dadas, crendo que o veículo lhe tinha sido para satisfação das quantias que o autor sabia estarem em dívida.
O) Com a venda das peças para sucata o réu arrecadou cerca de €40 (quarenta euros).»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Questão prévia:
O apelante, para prova/suporte da pretendida alteração da matéria de facto provada e não provada e fazendo apelo ao “princípio da eficácia extraprocessual da prova” convoca a prova produzida no processo-crime n.º 854/13.0GBVVD, do Juízo Criminal de Vila Verde e no processo de execução por coima 02/03.5GAVVD-A.

Relativamente à relevância da prova produzida noutro processo, no caso criminal, rege o disposto no art.º 421º do CPC que estabelece:
1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
Pelo exposto as provas produzidas durante o inquérito, relativas às declarações do arguido, do ofendido ou das testemunhas, por ausência de contraditório nessa fase processual, não podem aqui ser aproveitadas. Aliás, também o não podem ser no próprio julgamento crime, como resulta do disposto no art.º 355º e segs. do CPP, ressalvadas as excepções aí previstas. Aproveitando-se tão somente a prova documental, v.g. a junta a fls. 56 verso e 57, obtida na pesquisa efectuada à base de dados da Conservatória do Registo Automóvel no âmbito desse inquérito.
Também as provas produzidas na audiência de julgamento do processo-crime (depoimentos e declarações), uma vez que só em sede do presente recurso o apelante as convoca, procedendo à sua transcrição, aliás parcial, não certificada e sem junção aos autos da respectiva gravação, não poderão ser atendidas em sede do presente recurso, pois que não puderam ser valoradas na 1ª instância e o recurso visa a reapreciação da decisão da matéria de facto prolatada na sentença e não um novo julgamento, com novas provas, salvo as circunstâncias excepcionais previstas no art.º 662º nº 2 al. b) do CPC, que aqui não se verificam. Aliás também não estamos perante “novos meios de prova” (prova constituenda), mas de prova produzida no âmbito de outro processo, que foi renovada na audiência de julgamento da presente acção e era neste julgamento que os depoentes poderiam ser confrontados com declarações prestadas no âmbito do julgamento do processo-crime (e não do inquérito pelas razões já apontadas).
Como refere o Prof. Dr. Rui Pinto (Valor Extraprocessual da Prova Penal, págs. 1194 a 1195 in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas”, FDUL: “No segundo processo (processo cível) a prova emprestada - gravação ou registo escrito – será apresentada no momento normal em que se faria ou requereria a respectiva produção”.
Competindo assim ao réu, aqui apelante, se de tal prova se pretendia aproveitar e no momento processualmente destinado a esse fim, «o ónus de indicação da produção da prova extraprocessual, na parte que se pretende invocar no processo, e, de forma especificada, relativamente, aos Temas de Prova enunciados, ou na falta destes, aos factos fundamentos da acção, com indicação precisa dos depoimentos ou parte dos depoimentos e testemunhas que os produziram, á parte, ainda, incumbindo “formalizar” a apresentação da prova extraprocessual, nomeadamente, por via da junção de cópia certificada ou gravação das declarações em causa”» – Acórdão desta Relação de Guimarães de 04-02-2016 (relatora Maria Luísa Ramos), processo n.º 3459/12.OTJVNF-D.G1, publicado em www.dgsi.pt.
Por outro lado e no tocante aos efeitos da sentença proferida em processo-crime no processo civil, diz-nos o art.º Artigo 624.º (art.º 674.º-B CPC 1961)
Eficácia da decisão penal absolutória
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
Assim, a eficácia da sentença penal absolutória, além de se traduzir tão só numa presunção legal ilidível, de o réu não ter praticado os factos que a acusação lhe imputava, não abrange a motivação da matéria de facto, nem esta é meio de prova dos factos em questão na presente acção.
Do exposto resulta que se têm por não escritas as alegações do recorrente, na parte em que procede à transcrição de depoimentos ou declarações prestados no processo-crime.
Posto isto, e mostrando-se cumpridos pelo apelante os ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, cumpre apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, à luz dos meios de prova a que podemos atender.
Ouvimos os depoimentos prestados em audiência e apreciamos os documentos juntos a fls. 8, 30 verso, 32, 37 a 40, 56 verso a 57, 69 a 71 verso.
Quanto ao facto provado sob o nº2 (Pelo ano de 2005, o sobredito veículo foi interveniente num acidente de viação, tendo sofrido estragos na parte frontal), pretende o apelante que se julgue provado que o foi no ano de 2004 e que se acrescente “… e lateral, na porta do lado direito, guarda-lamas, pára-brisas, pára- choques, capô, óticas, grelha, radiador, bomba de direção assistida, reservatória da água, pisca direito”. Pugnando concomitantemente para que se julgue provada a matéria da al. I) dos factos não provados (“O réu colocou o SP “pronto de chapa”, adquirindo materiais relativos à porta do lado direito, guarda-lamas, pára-brisas, pára- choques, capô, óticas, grelha, radiador, bomba de direção assistida, reservatória da água, e efectuou serviços de reparação que importaram um dispêndio de € 1.200,00”).
No tocante à data do acidente, trata-se de uma alteração sem qualquer interesse para a decisão da causa, para a qual não releva que o tenha sido em 2004 ou 2005. Pelo exposto e atento o princípio contido no art.º 130º do CPC, não se conhece nesta parte da impugnação.
No tocante à pormenorização dos danos sofridos, para além das fotografias juntas aos autos, não foi apresentado qualquer relatório pericial, nomeadamente o elaborado pela seguradora, nem qualquer orçamento para a sua reparação onde se discriminem os danos sofridos.
Por outro lado e no tocante à matéria da alínea I), o que resulta da prova produzida é o que já consta do elenco dos factos provados (nºs 5 e 13), não tendo o ora apelante logrado produzir prova que nos convencesse de que efectuou a reparação de chapa e adquiriu as peças necessárias para esse efeito e para a reparação da parte mecânica, muito menos que as utilizou naquele veículo ou que, não as tendo utilizado naquela reparação, também não lhes deu qualquer outro uso, sofrendo o inerente prejuízo. Com efeito, não apresentou um orçamento, nem qualquer documento comprovativo da aquisição do referido material, no caso factura, que entre quem exerce a actividade comercial ou industrial é indispensável.
Acrescendo que o apelante pretende que se desvalorize o depoimento da testemunha A. G. e valorizemos o da sua esposa e filha (do apelante).
Ora, estas testemunhas (M. F. e E.) têm interesse no desfecho da causa. A esposa, ao fim destes anos e considerando que não há qualquer registo escrito, soube elencar todos os danos e o que foi feito, preços, etc. Excepto quando a pergunta já não segue o texto memorizado, aí já não sabia quanto custaria a pintura, ou em quanto importaria a reparação no estado em que deixaram o veículo. Isto, porque, por um lado afirma que a reparação estava pronta, só faltando a pintura e por outro diz que só estava pronta de chapa. Ora “o radiador, a bomba da direcção e “aquela parte toda mecânica que tem à frente”, (palavras da testemunha) não são trabalho de chapeiro. Quando é inquirida pergunta: Se estivesse pronto? Acabando por concluir que a pintura ficaria em €300 e, por isso: “Ficava €1.200,00 pronta. Consoante estava, a carrinha consoante estava ficava 1.200, pondo lá o resto para pintar era mais 300,00€, não é?”). Em suma, uma reparação que não envolvia só trabalho de chapeiro, mas também de mecânico e peças, afinal de chapeiro estava pronta, para a seguir afirmar que a reparação estava toda pronta e só faltar a pintura e acabar vendida para a sucata pelo preço alegado, não nos merece credibilidade. Aliás, junta-se fotografias do estado em que a viatura se encontrava quando sinistrada, mas da alegada reparação não há nada! O depoimento da filha do apelante segue na mesma linha, não nos convencendo minimamente, até pelo tempo passado, tendo-se limitado a vir dizer ao Tribunal o que lhe haviam transmitido para o efeito.
Assim, o máximo que se concede, por ser admitido pelo autor, é que o réu orçamentou a reparação no valor de, pelo menos, €1.100, que é o que consta provado sob o nº 5.
Quanto ao facto nº5 (Ficou combinado, entre autor e réu, que este iria proceder ao transporte do veículo da oficina “Auto R. – Reparações” para a oficina “Reparadora S.”, o que sucedeu, tendo o réu apresentado um orçamento de reparação, no montante de, pelo menos, € 1.100,00 (mil e cem euros), pretende o apelante que o mesmo seja alterado no tocante ao valor (para €1.500).
Pela insuficiência da prova produzida, já explanada supra, não acolhemos a pugnada alteração.
Quanto ao facto constante do nº 6 (“Em Setembro de 2013, o réu vendeu o veículo, por montante não apurado, o que foi do conhecimento do autor.”) entende o apelante que devia ter ficado provado que “Em Setembro de 2013 o réu vendeu o veículo pelo valor entre 40.00 € a 50.00 €, o que foi do conhecimento do autor”, ou seja a matéria da al. O).
Ora, o apelante não apresenta qualquer prova credível de que efectivamente foi este o valor da transacção. Aliás nunca identificou a quem vendeu, nem juntou factura ou qualquer outro meio de prova do preço, pretendendo que este valor se julgue provado com base nas suas declarações, da sua esposa (“Olhe, eu acho que foram entre 40 ou 50,00€”), o que, para a matéria em questão, face à supra exposta apreciação deste depoimento e até considerando a actividade que exerce, é manifestamente insuficiente.
Quanto aos factos provados sob os nºs 7, 8 e 9 pretende o apelante que os julguemos não provados, antes se provando a matéria das alíneas K, L, M, N.
Em 7, 8 e 9 consta: “O veículo SP foi entregue ao réu para reparação, o que este sabia, bem como, sabia que tinha de o entregar ao autor. Ao vendê-lo, desfez-se de um bem que sabia não lhe pertencer, sem conhecimento ou consentimento do autor. Com a sua actuação, o réu causou no autor desgosto, revolta e transtorno
Para tanto o apelante invoca em primeira linha as incongruências várias do autor nas declarações prestadas à GNR (execução por coima), no processo-crime e nos presentes autos, que entende serem demonstrativas da personalidade do autor, que pretende descredibilizar, em ordem a sustentar a posição que defende, traduzida na factualidade vertida nas alíneas K, L, M e N dos factos não provados.
É completamente irrelevante o que o autor declarou ou o que sucedeu antes da relação negocial estabelecida com o réu. O autor apresentou-se como o dono do veículo e foi nessa qualidade que negociou com o réu e, face a essa qualidade, o réu aceitou os termos negociais, isto é, reparar o veículo (art.º 22º da respectiva contestação).
Está por isso assente que o veículo não pertencia ao réu, assim como, confessadamente, que, apesar disso, o réu o vendeu.
Competia ao réu provar que o fez por para tal se encontrar mandatado pelo autor – ou seja, que este lhe conferira poderes para o fazer em sua representação – ou que o veículo entretanto passara para o seu domínio (dele se tornara proprietário) por via de algum negócio translativo do direito, que, atento o teor da factualidade vertida nas alíneas M) e N), seria uma dação em cumprimento pelas despesas que tinha suportado.
Ora a prova dessa “dação em cumprimento”, que ao réu incumbe fazer, não resultará das apontadas incongruências do autor.
Poderia resultar de confissão, mas em parte alguma das declarações prestadas pelo autor (seja em que processo for) resulta a admissão da correspondente factualidade.
Não existe igualmente qualquer documento que a comprove.
Relativamente a essa matéria o réu traz-nos o seu depoimento, que não se destina à prova de factos que lhe são favoráveis, e do qual apenas resulta um desabafo do réu, quando intimado para pagar (nas palavras do réu: “Olhe, faça da carrinha o que quiser.” Mais ou menos assim as palavras. “Porque eu não tenho dinheiro para pagar”.
O depoimento da sua mulher (testemunha M. F.), que diz ter interpelado diversas vezes o autor e que, da última vez: «Ele estava muito agressivo e disse: “Eu não me interesso da carrinha para nada.” “Então o que é que eu faço à carrinha, Sr. J. M.? Há tantos anos que eu tenho a carrinha lá.” E ele disse-me assim “olhe, eu para mim” … ele até disse um palavrão, mas eu não me interessa. Ele disse: “Olhe, bote-a para o lixo.(…) “Então vou botá-la para o lixo.” “Olhe, bote-a para o lixo.” Que ele estava mesmo exaltado. (…) Eu ainda fui procurar saber (que depois ele foi preso)…estive com a esposa, a esposa…Diz que não é nada com ela (…)». Referiu ainda: «Antes de 2013, eu muitas veze pedi-lhe a ele dinheiro. Pedi ao Tai: “Tai, quando é que ele me traz o dinheiro?” “Ah, decerto ainda não pode. Anda com problemas em casa, problemas de vida lá com a esposa, não-sei-quê, não sei que mais.” E foi sempre assim. Andámos, andámos a saltear”. Por isso, a mesma testemunha diz que falou com o marido, aqui réu e decidiu desfazer-se do veículo: “Olha, ó J. B., eu vou botar… ele disse-me para botar…” “O quê?” “Foi sim senhor.” Vou tirar o material todos que metemos, desmontei a carrinha toda outra vez, e depois desfiz a carrinha.
E o depoimento da filha do réu (testemunha E.) que assistiu à conversa da mãe com o réu, referindo: «Eu lembro-me de a minha mãe interpelá-lo para ele fazer novamente o pagamento, que estava em causa também o parqueamento da viatura lá na oficina já há bastantes anos e de ele ter dito que ela fizesse o que quisesse porque não tinha dinheiro para pagar o que estava acordado e o que ela já tinha arranjado até então (…)Disse para fazer o que quisesse, deitasse para o lixo…»
Refere ainda o depoimento da testemunha J. S. no processo-crime (indirectamente, ou seja, o que dele vem referido na motivação da decisão da matéria de facto, o que, como já referimos, não será objecto de ponderação). De qualquer forma, e considerando o depoimento que esta testemunha prestou nesse inquérito (fls. 55 e 56) o mesmo nunca sustentaria a pretendida alteração, pelo contrário.
Assim, do depoimento das citadas testemunhas apenas se infere que, naquela ocasião, relatada pela mulher e pela filha do réu, o autor se encontrava exaltado e que, a ter proferido as palavras que lhe são imputadas, o fez num momento em que estava “fora de si” – a própria testemunha refere que se mostrava “agressivo” e “exaltado”. O réu terá referido que não tinha dinheiro para pagar. O restante, a ter ocorrido, no contexto e local em que o foi, não pode ser interpretado como mais do que um desabafo. De tal forma que também não foi levado a sério pela testemunha, mulher do réu, pois que, no seu depoimento, referiu que, posteriormente, sabendo que o réu estava preso, foi contactar a respectiva esposa sobre o mesmo assunto e diz que ela lhe respondeu que “não era nada com ela”.
Assim, temos apenas as declarações da parte interessada, neste caso o réu, incluindo nessa categoria a esposa e a filha, como bem decorre dos respectivos depoimentos. Sendo que mesmo tais declarações, narrando o que o autor terá dito num determinado contexto (interpelado na rua) e circunstâncias (exaltado), a serem verídicas, não poderiam ser interpretadas no sentido constante da alínea N) dos factos não provados, de que as restantes (K, L e M) são meramente instrumentais.
Acrescendo terem sido infirmadas pelo próprio comportamento do autor, quando se desloca à oficina em 2013 para levantar o veículo e toma conhecimento de que o réu (ou a esposa) “já se tinham desfeito dele”.
No tocante à matéria do nº 9 dos factos provados não indica o apelante as razões por que entende que a mesma não se provou, inferindo nós que tal decorreria precisamente da prova dos factos vertidos nas alíneas K, L e N dos não provados, uma vez que nesse caso a situação seria imputável ao autor. Não resultando provada essa matéria também se mantém como provada tal factualidade.
*
Pelo exposto, na improcedência das conclusões do apelante, mantém-se inalterada a matéria de facto julgada provada na sentença, que agora se considera assente.

B) APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

Na sentença recorrida, em sede de aplicação do direito aos factos, consta:
“(…) o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição do que lhe pertence (cfr. artigo 1311.º do Código Civil). Trata-se da denominada acção de reivindicação.
Além da reivindicação, o autor pode ainda, com base na violação do seu direito, demandar o esbulhador, com base em responsabilidade civil por factos ilícitos, de acordo com o artigo 483.º do Código Civil.” (sublinhado nosso)
E é com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual que se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e condenar o réu, nos termos em que o foi.

Ora, no douto acórdão desta Relação, que apreciou e julgou não verificada a excepção do caso julgado, diz-se:

«Sucede que o primeiro processo é de natureza criminal, onde o pedido civil é deduzido em obediência ao princípio da adesão previsto no artigo 71º do Código de Processo Penal, baseado nos mesmos factos que constituem a responsabilidade criminal do arguido, isto é, a obrigação de indemnização postula a convocação do instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, estando excluída a responsabilidade contratual, como aliás ressalta do Assento do STJ nº7/99, DR, I S.-A de 3-08-99, actualmente com força de acórdão uniformizador de jurisprudência: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual».
Ora, esta acção não pode considerar-se a repetição da primeira causa quando o mesmo núcleo de factos permitem imputar ao réu a obrigação de indemnizar o autor com base na responsabilidade civil contratual (arts 798º, 799º e 801º, nº1, do Cód. Civil), qualificação jurídica que estava excluída na decisão do pedido cível formulado no âmbito do processo penal.» (sublinhado e realce nossos)
Significa isto que não pode nesta acção o réu ser condenado com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, sob pena de violação do caso julgado formado pela absolvição do réu do pedido cível contra ele deduzido pelo autor no processo-crime.
Questão que já se mostra decidida neste processo por acórdão transitado em julgado.
Consequentemente, não se adere à fundamentação jurídica da sentença, por violação expressa de caso julgado, impondo-se verificar, como já adiantava o citado acórdão, que revogou o despacho saneador e determinou o prosseguimento da acção, se é possível imputar ao réu a obrigação de indemnizar o autor com base na responsabilidade civil contratual ou, subsidiariamente, com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Vejamos.

Dos factos provados resulta que entre o autor e o réu foi celebrado um contrato de empreitada, aceitando o réu que o veículo do autor fosse rebocado para as suas instalações a fim de aí ser reparado, nos termos que acordaram e cujos pormenores exactos se desconhecem.
O art.1207º do CC define o contrato de empreitada como sendo o contrato em que alguém, mediante um preço, se compromete a realizar uma determinada obra (1).
O contrato de empreitada, neste caso de coisa móvel transportada para as instalações do empreiteiro, implica para este a obrigação de efectuar a reparação, ou seja a obra acordada (art.º 1208º do CC), em coisa pertencente ao dono da obra, embora com materiais fornecidos pelo próprio empreiteiro (art.º 1210º nº 1 do CC), procedendo depois à entrega da coisa ao dono da obra, sobre o qual recai a obrigação de pagar o respectivo preço no acto de aceitação da obra.
O disposto no nº 1 do art.º 1212º do CC é aplicável apenas aos casos em que a obra se realiza mediante a construção de uma coisa móvel (ex novo) e não àquela que apenas consiste numa modificação de coisa móvel já existente ou, como no caso, a sua reparação. Neste último caso a propriedade da coisa, embora se trate de coisa móvel, continua a pertencer ao dono da obra.
Efectivamente, embora o Código Civil pareça ter acolhido a concepção restrita de empreitada proposta por Vaz Serra, assente num resultado derivado da criação ou modificação de algo que não se confundia com aquilo que já existia anteriormente, tem-se entendido que é nesta figura contratual que se enquadram situações como a dos autos.
De outra forma a reparação de veículos configuraria um contrato de prestação de serviços de natureza mista – depósito e empreitada –, ficando o empreiteiro depositário da coisa enquanto realiza a obra (reparação) e até à sua entrega ao dono.
Só que o depósito não assume neste caso autonomia, sendo uma mera obrigação acessória, como se decidiu, nomeadamente, nos acórdãos do STJ de 28-11-1994 (processo 087094) e do TRP de 2-2-2015 (processo 953/11.3T2AVR.P1), ambos publicados in www.dgsi.pt.
Nesses casos, tal como no presente, o empreiteiro tem o dever contratual de zelar pelos interesses da contraparte (art.762º, n.º2 do CC) de forma a proteger o objecto do contrato contra eventuais danos futuros ou, nas palavras de Menezes Leitão (2): «o empreiteiro fica vinculado à guarda e conservação da coisa perante o dono da obra, exactamente nos mesmos termos do contrato de depósito».
Este dever é uma obrigação acessória que torna o empreiteiro responsável pelos prejuízos causados – art.º 798º CC.
Também Pedro Romano Martinez (3) refere, que, muitas vezes o empreiteiro fica adstrito a guardar a coisa que mais tarde tem de entregar, dever que tem razão de ser quando a coisa tiver sido confiada ao empreiteiro, aplicando-se a esta obrigação de custódia, naquilo que for pertinente, as regras do contrato de depósito. (sublinhado nosso)
Ora, do contrato de depósito decorre a obrigação de restituir a coisa que lhe foi entregue (veículo), com vista a executar a sua reparação – cfr. art.º 1187º al. c) do CC.
O réu estava assim vinculado a efectuar a reparação e a entregar o veículo ao autor. Efectuasse ou não a reparação, a obrigação de restituir o veículo existiria sempre.
Essa obrigação de restituição só pode ser protelada quando o empreiteiro (acessoriamente depositário) detenha e exerça o direito de retenção sobre a coisa (veículo), que poderia invocar enquanto o preço da reparação não lhe fosse pago (art.º 754º do CC).
Contudo o direito de retenção apenas lhe confere os direitos (e os deveres) que correspondentes aos do credor penhoratício (art.º 758º do CC).
No penhor, o credor pode proceder à venda antecipada da coisa nas circunstâncias previstas no art.º 674º do CC e mediante autorização judicial. Não sendo esse o caso, pode apenas, vencida a obrigação, pagar-se pelo produto da venda executiva da coisa empenhada, podendo a venda ser feita extra processualmente, se as partes assim o tiverem convencionado e ainda, também na hipótese de assim ser acordado, a coisa ser adjudicada ao credor pelo valor que o Tribunal fixar (art.º 675º do CC).

No caso em apreço, o réu não provou sequer ter completado a reparação do veículo que o autor lhe confiou e “desfez-se” do veículo vendendo-o para sucata, ou seja, o veículo foi desmantelado, não estando o réu em condições de o restituir ao autor.
Não se provou a existência de qualquer acordo que permitisse ao réu ter actuado como actuou e, como vimos, o único direito que assistia ao réu, era o de, cumprida a sua obrigação de reparar o veículo e interpelado o réu, caso este não cumprisse a sua obrigação (pagar o preço da reparação) instaurar execução, invocando o seu direito de retenção, a fim de o veículo ser vendido (venda judicial), pagando-se pelo produto dessa venda.
O réu não cumpriu as obrigações a que estava adstrito e, ainda que o autor não tivesse cumprido aquelas que lhe competia (no caso não se provou que o réu chegou a concluir a reparação e a obrigação do autor só se venceria com a reparação pronta e sua aceitação efectiva ou presumida - art.º 1218º do CC), tal não conferia ao réu o direito de alienar ou se desfazer o veículo do autor.
Do exposto resulta que o réu, actualmente, não tem condições objectivas para cumprir as obrigações decorrentes do contrato que celebrou, por facto que lhe é exclusivamente imputável, pois foi em razão da sua actuação, que a prestação (reparação) se tornou impossível, assim como a restituição do veículo ao autor.
Ora, nos termos do art.º 790º do CC se a impossibilidade for imputável ao devedor da prestação, neste caso ao réu, o contrato não se extingue.
Como tal estamos perante um incumprimento culposo (art.º 801º e 798º do CC), que confere ao aqui autor o direito de exigir do réu não só a restituição do veículo como a indemnização dos danos que lhe causou com o seu incumprimento.
Não sendo possível ao réu restituir o veículo, em razão de o ter alienado, deverá restituir valor equivalente, como previsto para a obrigação de restituir com fundamento na nulidade do contrato (artºs 289º nº 1 e 433º do CC).
Para além do valor equivalente ao do veículo que o réu estava obrigado a restituir-lhe, o autor pede uma indemnização por danos não patrimoniais.
Provou-se que a actuação do réu causou “depressão no autor e o desgosto, revolta e transtorno sentidos agravaram-se e aprofundaram-se com o decorrer do tempo”.
Os nossos Tribunais e especificamente o STJ, vêm considerando serem ressarcíveis os danos não patrimoniais em sede de responsabilidade civil contratual, constituindo o art.º 496 do CC (inserido no instituto da responsabilidade civil extracontratual) mero afloramento do princípio geral indemnizatório de tais danos. Neste sentido ver entre muitos outros os Acórdãos de 10-02-2005 - Revista n.º 4512/04 - 7.ª Secção - Ferreira de Sousa (Relator), Armindo Luís e Pires da Rosa; 08-03-2005 - Revista n.º 203/05 - 6.ª Secção - Azevedo Ramos (Relator), Silva Salazar e Ponce de Leão; 16-06-2005 - Revista n.º 1178/05 - 7.ª Secção - Araújo Barros (Relator) *, Oliveira Barros e Salvador da Costa; 05-07-2005 - Revista n.º 2015/05 - 6.ª Secção - Silva Salazar (Relator), Ponce de Leão e Afonso Correia; 27-11-2012 - Revista n.º 479/10.2TBCHV.P1.S1 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator), Paulo Sá e Garcia Calejo (4).
O mesmo sucede na doutrina, ainda antes do actual Código Civil – Vaz Serra (Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 1962, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 95.º, n.º 3236, págs. 361 e segs), Inocêncio Galvão Telles, in Manual de Direito das Obrigações, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1965, pág. 203; ou Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil (Comentário ao Código Civil Português), vol. XII, o qual elenca vários exemplos a págs. 432 e 433.
Mais recentemente, também no sentido de a responsabilidade contratual contemplar a indemnização por danos não patrimoniais, exemplificativamente, temos Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2013., págs.. 603-604; Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pp. 31-34 (nota); e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1989, págs. 383-385)
Ponto é que entre o facto gerador dos danos e estes ocorra o necessário nexo de causalidade adequada e que os mesmos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artºs. 563.º e 496.º, n.º 1, do CC).

Ora, no caso em apreço verifica-se tal nexo de causalidade e o dano em si (depressão, desgosto e revolta) é suficientemente relevante para merecer a tutela do direito, afigurando-se justo e equitativo o montante atribuído a este título na sentença, que aliás, qua tale, não é questionado pelo apelante,
Consequentemente, face aos factos provados e às normas legais aplicáveis ao caso, não com base na responsabilidade extracontratual e aquiliana, por estar vedada a sua apreciação nesta acção, mas com base na responsabilidade contratual, os pedidos formulados pelo autor no que toca à indemnização do dano patrimonial (restituição por equivalente) e à indemnização dos danos não patrimoniais, terão de proceder nos termos constantes do dispositivo da sentença recorrida.
Sucede que, no dispositivo da sentença, relegou-se a quantificação da indemnização pelo dano patrimonial para futura liquidação.
Sustenta o apelante que não pode ser relegado para execução de sentença o cômputo do valor do veículo do autor, pois que o mesmo não logrou em sede própria fazer prova como lhe competia.
Contudo não tem razão.
O autor provou o dano sofrido no seu património, no caso a perda do seu veículo automóvel em razão da actuação do réu.
Provado o dano na acção, a sua quantificação pode ser relegada para posterior liquidação.

Assim se decidiu no douto acórdão do STJ de 16-6-2005, processo 05B1178, relatado pelo saudoso Conselheiro Araújo Barros, onde se lê:

– «(…) "sendo certa a existência de danos e não se tendo apurado, com precisão e certeza, a quantidade de tais danos e correlativa reparação, há que condenar no que se liquidar em execução de sentença".(21)
Pode, em suma, dizer-se que o recurso à equidade constitui um critério residual que só será aplicável desde que dos factos provados se tenha como demonstrada a existência de danos e quando estiverem esgotadas as possibilidades de determinação do valor desses danos.
Tanto mais quanto é certo que "a aplicabilidade do nº 2 do art. 661º do C.Proc.Civil, enquanto permite ao tribunal condenar no que se liquidar em execução de sentença, apenas depende da falta de elementos para fixar o objecto ou a quantidade do pedido"; por isso, "sabendo-se que há danos, mas que não puderam ser quantificados com rigor, por insuficiência da prova produzida na acção declarativa, é possível relegar a sua liquidação para execução de sentença". (22)
Que o mesmo é dizer que "estando judicialmente verificados danos decorrentes da desistência da obra por parte do dono, mas não sendo possível quantificá-los, na acção declarativa onde se opera a verificação, a condenação poderá fazer-se pela quantia que se liquidar em execução de sentença, com dispõe o artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil".(23)
Ou que "deverá deixar-se para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos patrimoniais presentes e futuros, relativamente aos quais, embora se prove - em acção declarativa - a sua existência (como pressuposto da obrigação de indemnizar), não existam elementos bastantes para fixar o seu quantitativo".(24)»
Por isso, no presente caso é correcta a decisão de relegar para posterior liquidação o dano patrimonial ou seja a restituição por equivalente.
No tocante ao pedido reconvencional e resultando inalterada a matéria de facto provada na sentença, o mesmo terá de improceder.
Note-se que, por um lado, o reconvinte não provou sequer que concluiu a reparação do veículo, não podendo por isso exigir o preço da empreitada. E, por outro lado, dos factos provados não resulta terem as partes celebrado contrato de depósito do veículo. O depósito é uma mera obrigação acessória do contrato de empreitada, não conferindo ao reconvinte o direito a qualquer compensação, pelo menos até à conclusão da reparação e interpelação do dono da obra.
Pelo exposto, embora com diferente fundamentação jurídica, impõe-se confirmar a sentença recorrida.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida, embora com diferente fundamentação.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 13-05-2021

Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte



1. Sobre o contrato de empreitada: VAZ SERRA, “Empreitada, (BMJ 145 (1965), pp. 19-190 e no BMJ 146 (1965), pp. 33-247; ROMANO MARTINEZ, P., “Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2ª ed.,2001”, pp. 317 e ss; entre outros.
2. Direito das Obrigações – volume III, Contratos em Especial», Almedina, 3ª edição, pag. 533.
3. (Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos», Almedina, 2ª edição, pág. 392.
4.https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/cadernodanosnaopatrimoniais-2004-2012.pdf