Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1240/14.0T8VCT.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: TESTAMENTO
INTERPOSIÇÃO DE PESSOAS
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - É nula a disposição testamentária a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério (ressalvadas as situações prevista no nº 2 do art.º 2196º do CC), tal como é nula idêntica disposição quando realizada por interposta pessoa (art.º 2198º do CC).

II - O disposto no art.º 2196º do CC não viola o art.º 26º da Constituição, antes encontrando assento no art.º 36º (protecção da família, casamento e filiação) dessa nossa Lei Fundamental.

III - Consideram-se interpostas pessoas as designadas no n.º 2 do artigo 579.º, entre as quais se incluem os herdeiros presumidos da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério.

IV - Em face do anteprojecto do actual Código Civil, da discussão sobre esta questão constante das actas da comissão revisora, o que referem Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil, em anotação ao art.º 2198º, ambos tendo integrado tal comissão revisora, sendo um deles o respectivo Presidente e Ministro da Justiça que aprovou o actual Código Civil, temos de concluir que o nº 2 do art.º 579º do CC, que define o conceito de interposta pessoa a que alude o nº 2 do art.º 2198º, abrange o cônjuge, os ascendentes e os descendentes do inibido.

III - A presunção de herdeiro constitui, por sua vez, presunção “juris et de jure” quanto à condição de interposta pessoa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Maria intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra F. S., pedindo:

- Seja declarada a nulidade do testamento celebrado por Manuel no dia 7 de Outubro de 2011 no Cartório Notarial de A. D., em Viana do Castelo, constante do L.º 3 a fls. 58 desse Cartório.

Subsidiariamente:

- Seja declarada a anulabilidade do testamento celebrado por Manuel no dia 7 de Outubro de 2011 no Cartório Notarial de A. D., em Viana do Castelo, constante do L.º 3 a fls. 58 desse Cartório.

Alega para tanto e em síntese, que o seu falecido marido, Manuel, querendo beneficiar com deixa testamentária a senhora com quem vivia maritalmente (D. G.), outorgou testamento a favor do filho desta, aqui réu.
*
O réu contestou alegando não ter existido simulação, pois que o falecido Manuel o quis beneficiar a ele e não à mãe. Além disso, Manuel já estava separado da mulher, aqui autora, há mais de 6 anos, pelo que não havia qualquer obstáculo à outorga de testamento a favor da sua mãe. Excepcionou ainda a caducidade da acção.
*
Foi realizada uma audiência prévia, na qual a autora respondeu à matéria das excepções. Foram enunciados o objecto do litígio e os temas da prova.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com a observância do ritualismo legal.
Proferiu-se sentença em que se decidiu:

Pelos motivos acima expostos, julgo a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo o réu F. S. dos pedidos.
*
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

1.ª – A expressão “separaram-se”, usada no Facto 10 da sentença, deve ser eliminada, desde logo, porque se trata de um conceito de facto genérico, porquanto não concretiza quem foi que se separou de quem.
2.ª – Por outro lado, ainda quanto ao facto 10, da prova realizada em julgamento resultou provado que foi o Manuel quem se separou da Autora, nomeadamente das declarações escritas da testemunha D. G. constantes da carta rogatória, onde esta diz expressamente: “Depois soube que o casal não ia bem e que ele (Manuel) acabou por deixar a esposa… As coisas não corriam bem… ele queria afastar-se um pouco da família”.
3.ª – Assim, propõe-se que aquele segmento do facto 10, “A Autora e Manuel separaram-se” deve ser eliminado e substituído pela expressão “O Manuel abandonou o lar conjugal da Autora em Janeiro/Fevereiro de 2007.
4.ª – Foi considerado provado no “Facto 14” da sentença que “A referida D. G. e o Réu ajudaram o Manuel e apoiaram-no na doença”, tal facto deve ser eliminado porque se trata de um conceito de facto genérico, porquanto não concretiza objectivamente em que se traduziu essa “ajuda” e “apoio”.
5.ª – No presente recurso discorda-se do concreto ponto de facto enunciado no número 2) dos temas de prova do Despacho Saneador (Razões que levaram o testador a outorgar o testamento). Tais concretos pontos de facto vêm enunciados nos pontos 8 dos Factos Provados, do capítulo II. Fundamentação da sentença e bem assim dos Factos não provados do mesmo capítulo da sentença.
6.ª – Na sentença considerou-se provado: “8 – Em data não concretamente apurada dos anos de 2010/2011 foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões”
7.ª – Tal facto foi alegado em 12 da P.I. e está relacionado com o facto alegado em 14 da P.I., visando demonstrar que à data da realização do testamento, em Outubro de 2011, o testador já sabia da sua doença e da iminência da sua morte.
8.ª – Dos elementos de prova carreados para os autos resulta claramente que o conhecimento do diagnóstico do cancro ao testador Manuel foi inequivocamente anterior a 31 de Janeiro de 2011, tal como a Autora alegou em 12º da P.I.
9.ª – Assim e desde logo, tal data devia ser considerada provada por confissão, porquanto, não obstante o Réu haja impugnado formalmente o alegado em 12º da P.I. (veja-se o artigo 32º da contestação), o Réu admite no artigo 44º da contestação que “mais tarde (depois de Outubro de 2007 – ver artigo 39º da contestação) foi diagnosticado ao Manuel uma doença do foro oncológico”. Ou seja, o Réu na contestação admitiu o facto alegado em 12º da P.I. sem que tenha atribuído ao diagnóstico da doença uma data diferente.
10.ª – Mesmo que assim se não entenda, a data do diagnóstico do cancro ao testador resulta inequivocamente provada dos depoimentos gravados. Desde logo, resulta das declarações do Réu, como a seguir se transcreve: Gravação n.º 20170925145810 _1324228_2871836do sistema Habilus, passagem 41:30:
- Pergunta Adv.º da Autora: Lembra-se quando é que foi dada a notícia do cancro?
(…)
- Pergunta Adv.º da Autora: Mais concretamente era a data? - Resposta do Réu: …2010.
E das declarações da testemunha D. G.: Gravação n.º 20170925161910 _1324228_2871836do sistema Habilus, passagem 26:26 a 26:50:
- Pergunta do Adv.º da Autora: - Quando é que lhe foi dito que tinha cancro, em que mês e em que ano?
- Resposta: - Foi em fins de 2010 porque ele foi operado em 2011.
- Pergunta: - E quando diz fins, será Dezembro?
- Resposta: - Novembro ou Dezembro de 2010.
11.ª – Propõe-se, por isso, que ao facto 8 dos factos provados seja dada a seguinte redacção: “8 – Em data não concretamente apurada, mas anterior a Janeiro de 2011, foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões”.
12.ª – Na sentença, sob a rubrica “Factos não provados”, o Sr Juiz “a quo” considerou não provado: “O referido Manuel com aquela deixa testamentária quis beneficiar D. G.… e que com ele se deslocou de França a Portugal para a feitura de tal testamento” e “Foi por causa da iminência da morte do testador e da impossibilidade legal de beneficiar a D. G. que aquele decidiu vir de França a Portugal, com ela, fazer este testamento a favor do Réu”.
13.ª – Sendo certo que quanto à relação de causalidade e à referida intencionalidade, referidas naquele facto, nenhuma prova directa foi realizada, não concordamos com a prova negativa quanto à totalidade do facto.
14.ª – Veja-se as declarações da testemunha D. G.: Gravação n.º 20170925161910 _1324228_2871836do sistema Habilus, passagem 28:13:
- Pergunta do Adv.º: - A Sra disse que veio com ele quando foi fazer o testamento, como é que vieram? Como é que vieram de França para cá?
- Resposta: - Viemos no carro.
- Pergunta: -29.23 – E como é que foram para o Cartório?
– Resposta: – 29.27 Aqui em Viana?
- Pergunta: – Sim
- Resposta – 29.32 - É um bocadinho só. Não era longe, nós moramos na Meadela.
A mesma testemunha, nas suas declarações prestadas em carta rogatória, juntas aos autos, refere:
- “ … Pessoalmente soube que o testamento foi redigido a 7 de Outubro de 2011, junto de um Notário em Portugal e ele (testador Manuel) tinha-me informado das suas disposições nessa altura. Ele já tinha escrito uma carta dizendo que queria fazer um testamento a favor do meu filho e o advogado tinha-lhe dito que ele devia passar pelo Notário, o que ele fez”.
Vejamos ainda as declarações do Réu, na Gravação n.º 20170925145810_1324228_2871836 do sistema Habilus- Passagem 31:44:
Pergunta do Adv.º da Autora: E ele (Manuel) veio sozinho e como é que veio?
Resposta: - Não, deve ter vindo com a minha mãe, não sei.
Pergunta: Veio com a sua mãe?
Resposta: Sim.
15.ª – Propõe-se, por isso, que, dos referidos factos considerados não provados, deverá considerar-se provado, pelo menos, que: - O testador, após ter-se esclarecido com um advogado, deslocou-se de França a Portugal, acompanhado por D. G., para fazer a referida disposição testamentária a favor do Réu, filho desta.
16.ª – Deve ainda considerar-se como provado que: “O testador Manuel declarou, ao tempo em que vivia maritalmente com a D. G., que nunca perdoaria às filhas a reacção que estas tiveram em relação à separação do pai e da mãe, ora Autora, pois que por isso elas deixaram de lhe falar”.
17.ª – Com efeito, compaginando a prova gravada em 20170925145810 _1324228_2871836 do sistema Habilus: - Passagem 14:42 a 15.15, onde o Réu confessa que “De parte eu não sei o que é permitido por lei, a única coisa que eu posso dizer é que ele estava muito afectado pela reacção das filhas em relação ao divórcio, ele chegou-me a falar nisso várias vezes porque no início ainda lhe falavam mas mais tarde deixaram de lhe falar completamente e tiveram reacções que no entender dele eram reacções que elas não deviam ter com o pai e nesse aspecto ele chegou a dizer-me que nunca perdoaria às filhas o que lhe fizeram”.
18.ª – Por se tratar de um facto instrumental relevante e ter resultado da discussão da causa, tal facto deve ser oficiosamente considerado provado, nos termos do artigo 5.º do C.P.C.
19.ª – Na sentença, sob a rubrica “Factos não provados”, o Sr Juiz a quo considerou não provado: “A declaração testamentária não corresponde à real vontade do testador no que se refere à identidade da pessoa que o mesmo quis beneficiar com o testamento” e “O referido Manuel com aquela deixa testamentária quis beneficiar D. G.… que com ele se deslocou de França a Portugal para a feitura de tal testamento” e “O referido Manuel fez a disposição testamentária em questão a favor de F. S. apenas porque não o pode fazer a favor da sua mãe, com o acordo de ambos” e “Foi por causa da iminência da morte do testador e da impossibilidade legal de beneficiar a D. G. que aquele decidiu fazer este testamento a favor do Réu, com isso querendo enganar e prejudicar a herdeira Autora”.
20.ª – Porque se trata de factos negativos (não correspondência entre a vontade real e a vontade declarada do testador, a intenção não declarada de beneficiar a D. G. por interposta pessoa, a convicção do testador sobre a proibição legal de legar à sua concubina e a intenção de, por esse modo, prejudicar os seus herdeiros legitimários) e reportados ao nível da reserva mental, estamos perante o que se designa de “prova diabólica”, por ser praticamente impossível a prova de meras intenções.
21.ª – Nessa situação a prova do facto essencial só pode fazer-se através da dedução do facto negativo a partir de factos circunstanciais, segundo as regras da experiência, a que se refere o n.º 4 do Artº 607º do CPC, de um homem normal, um bonus pater famíliae, a que se refere o Artº 236º do CC.
22.ª – Ora, resultou provado que:
a) – Em 7 de Outubro de 2011, Manuel outorgou, no Cartório da Notária A. D., em Viana do Castelo, testamento público, no qual declarou: “deixa F. S. (…),o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., prédio esse que é bem próprio dele testador”;
b) – O referido F. S. é filho da referida D. G..
c) – O testador Manuel, desde Setembro de 2007, passou a viver na mesma casa que a referida D. G., dormindo na mesma cama, com ela tendo relações sexuais sempre que o quisessem, comiam à mesma mesa, fazendo tudo como de marido e mulher se tratasse;
d) – A Autora é viúva do testador Manuel, falecido em 24 de Agosto de 2012, com quem foi casada desde 24 de Julho de 1976.
e) - Em data não concretamente apurada do ano de 2010, foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões.
f) - A referida D. G. cuidou de Manuel durante a convalescença, designadamente ministrando-lhe a medicação, a alimentação e fazendo-lhe a higiene pessoal;
g) - A referida D. G. apoiou Manuel no pagamento de todas as despesas relacionadas com tratamentos médicos, deu-lhe casa e alimentação até à sua morte; A referida D. G. gastou todas as suas poupanças.
23.ª – Assim, atentos os factos circunstanciais provados e ainda os que venham a ser fixados por este Venerando Tribunal da Relação, não pode deixar de se considerar provados os factos negativos ora em recurso, deve ser dado como provado que “A declaração testamentária não corresponde à real vontade do testador no que se refere à identidade da pessoa que o mesmo quis beneficiar com o testamento” e “O referido Manuel com aquela deixa testamentária quis beneficiar D. G.… que com ele se deslocou de França a Portugal para a feitura de tal testamento” e “O referido Manuel fez a disposição testamentária em questão a favor de F. S. apenas porque não o pode fazer a favor da sua mãe, com o acordo de ambos” e “Foi por causa da iminência da morte do testador e da impossibilidade legal de beneficiar a D. G. que aquele decidiu fazer este testamento a favor do Réu, com isso querendo enganar e prejudicar a herdeira Autora”.
24.ª – Em face dos factos provados e dos que vierem a ser declarados provados, estando preenchidos os requisitos da simulação previstos nos artigos 240º, 241º e 242º do CC, impõe-se a declaração de nulidade, nos termos dos Artigos 953º e 2.196 do CC (ver acórdão Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Proc.º n.º 2020/13.6TBVCT-A.G1, de 23 de Fevereiro de 2017, ainda não publicado, mas junto aos autos).

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, deve ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgue a acção procedente, em conformidade com as conclusões supra, assim se fazendo JUSTIÇA.
*
O réu contra-alegou.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, proferiu-se acórdão em que se deliberou, por maioria:

«Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, e, julgando procedente a acção, declaram nulo o testamento celebrado por Manuel no dia 7 de Outubro de 2011 no Cartório Notarial de A. D., em Viana do Castelo, constante do L.º 3 a fls. 58 desse Cartório.
Custas em ambas as instâncias pelo réu
Guimarães, 26-4-2018»
*
F. S., nas alegações do recurso de revista que interpôs para o STJ e por nós admitido, arguiu a nulidade do acórdão que proferimos, por excesso de pronúncia (conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento) e a nulidade do processado por ter considerado causa de pedir não alegada na petição inicial sem prévia concessão às partes do direito ao contraditório, relativamente a esses factos novos.

Nos termos do art.º 666º nº 2 do CPC a arguição das invocadas nulidades, foram decididas em conferência – art.º 617º nº 1 do CPC – imediatamente antes da subida do recurso ao STJ.

Na conferência deliberou-se:

Nestes termos acordam os juízes desta Relação em julgar verificada a arguida nulidade processual, decorrente de não se ter observado o contraditório previamente à apreciação da nulidade do testamento com fundamento no disposto no art.º 2198º do CC e, em consequência, anulam todos os posteriores actos processuais por ela afectados, incluindo o acórdão em crise, determinando a notificação de apelante e apelado para, querendo, pronunciarem-se, sobre esta questão jurídica.
Guimarães, 10-7-2018
*
Pronunciando-se sobre a referida questão jurídica veio o réu F. S. dizer que o Tribunal dela não poderia conhecer porque não só a autora não alegou que o réu não tinha descendentes, como alegou o seu contrário e, só por isso o réu não contrapôs à autora que D. G. (sua mãe) não era sua herdeira presumida. Mais alega que a autora não juntou certidão de nascimento comprovativa da filiação do autor. Junta agora certidões de nascimento dos seus filhos para comprovar que não se verifica a previsão do nº 2 do art.º 2198º do CC.
*
Por seu turno a autora sustentou que a mãe do réu é sua presumível herdeira para este concreto efeito, citando os acórdãos do STJ de 10.10.1976 in BMJ 220º, 159 e da RL de 7.10.1978 in BMJ 283º, 361.
*
Os autos foram novamente aos vistos.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

1- Em 7 de Outubro de 2011, Manuel outorgou, no Cartório da Notária A. D., em Viana do Castelo, testamento público, conforme consta do livro de notas n.º 3 a fls. 58 do referido Cartório (documento junto aos autos a fls. 7 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
2- No aludido testamento, o referido Manuel declarou: “deixa F. S. (…), solteiro, maior, natural de França, residente em Rue …, França, o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., prédio esse que é bem próprio dele testador”;
3- O referido F. S. é filho da referida D. G.;
4- O testador Manuel, desde Setembro de 2007, passou a viver na mesma casa que a referida D. G., dormindo na mesma cama, com ela tendo relações sexuais sempre que o quisessem, comiam à mesma mesa, fazendo tudo como de marido e mulher se tratasse;
5- O testador viveu desde Setembro de 2007 e até à sua morte junto da referida D. G., em ...;
6- A Autora é viúva do testador Manuel, falecido em 24 de Agosto de 2012, com quem foi casada desde 24 de Julho de 1976;
7- O testamentário F. S. vive com a sua família em ..., França;
8- Em data não concretamente apurada dos anos de 2010/2011 foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões;
9- A referida D. G. cuidou de Manuel durante a convalescença, designadamente ministrando-lhe a medicação, a alimentação e fazendo-lhe a higiene pessoal;
10- A Autora e Manuel separaram-se em Janeiro/Fevereiro de 2007 e não mais viveram juntos, não confeccionaram e tomaram junto as refeições, não pernoitaram nem permaneceram juntos, não mantiveram relações sexuais, não partilharam despesas e rendimentos, não se auxiliaram na doença e nos momentos de dificuldade, não dirigiram a palavra um ao outro;
11- Em 18 de Dezembro de 2006, o Manuel deu entrada de uma acção de divórcio contra a ora Autora;
12- A referida acção correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo com o n.º 4746/07.1TBVCT;
13- Na altura da separação mencionada em 10 dos factos provados o Manuel já não trabalhava e vivia com uma pensão de pré-reforma, no valor de € 1000,00;
14- A referida D. G. e o Réu ajudaram o Manuel e apoiaram-no na doença;
15- A referida D. G. apoiou Manuel no pagamento de todas as despesas relacionadas com tratamentos médicos;
16- Deu-lhe casa e alimentação até à sua morte;
17- A referida D. G. gastou todas as suas poupanças.

B) Factos julgados não provados:

A declaração testamentária não corresponde à real vontade do testador no que se refere à identidade da pessoa que o mesmo quis beneficiar com o testamento.

O referido Manuel, com aquela deixa testamentária, quis beneficiar D. G., residente em Rue … – França e que com ele se deslocou de França a Portugal para a feitura de tal testamento.

O referido Manuel fez a disposição testamentária em questão a favor do F. S. apenas porque não o pôde fazer a favor da mãe do referido F. S..
Tendo na realidade sido a referida D. G., com o acordo de seu filho F. S., quem o testador quis beneficiar.
Foi por causa da iminência da morte do testador e da impossibilidade legal de beneficiar a D. G. que aquele decidiu vir de França a Portugal com ela fazer esse testamento a favor do réu.
Ao assim procederem, sabendo o testador, a referida D. G. e o réu que tal negócio era proibido por lei, quiseram eles enganar e prejudicar a Autora. *
A Autora tomou conhecimento da existência do testamento em referência nos autos antes do dia 20 de Novembro de 2012.
No mês de Outubro de 2012, a Autora já tinha conhecimento da existência do testamento que constitui o doc. n.º 1, junto com a petição inicial.
Em Outubro de 2012, a Autora tinha também conhecimento dos factos que serviram de base a esta acção.
No dia 18 de Agosto de 2006, dia das festas de ..., a Ré foi para Viseu, de onde é natural, e aí ficou.
Deixou fechadas todas as portas da casa comum do casal, sita na Rua das …, em ..., e levou consigo as chaves.
Manuel e a Autora deixaram de viveram juntos desde o dia 18 de Agosto de 2006.
A acção que correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo com o n.º 4746/07.1TBVCT e culminou com desistência, por parte do Autor, dos pedidos aí formulados, a fim de ser instaurada nova acção, ao abrigo da nova lei do divórcio e de se evitar discussões quanto à culpa pelo divórcio.

Mais tarde foram instauradas outras duas acções de divórcio:

a) a acção de divórcio litigioso n.º 2168/10.9TBVCT, que corre termos no 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
b) a acção de divórcio que correu termos na Justiça Francesa.

Nessas acções, a Autora usou de expedientes dilatórios, com vista a impedir a prolação de decisão de divórcio, que lhe retiraria a qualidade de herdeira do Manuel.

A Autora não adoptou esse comportamento por pretender manter qualquer ligação ao Manuel, mas por questões puramente patrimoniais, designadamente, para não perder a referida qualidade de herdeira.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A apelante impugna a decisão da matéria de facto na parte em que julgou provados os factos nºs 10, 14 e 8, de cuja redacção diverge, propondo outra em sua substituição, bem como de parte da factualidade não provada.

Analisemos ponto por ponto tal impugnação, à luz da prova que indica e da que foi produzida nos autos

Em primeiro lugar a autora discorda do que consta do facto nº10 (A Autora e Manuel separaram-se em Janeiro/Fevereiro de 2007 e não mais viveram juntos, não confeccionaram e tomaram junto as refeições, não pernoitaram nem permaneceram juntos, não mantiveram relações sexuais, não partilharam despesas e rendimentos, não se auxiliaram na doença e nos momentos de dificuldade, não dirigiram a palavra um ao outro)

Efectivamente, da redacção deste facto infere-se que a separação foi por mútuo acordo (uma resolução conjunta) e de tal não se fez prova. Sabemos apenas que o Manuel deixou de viver com a autora, como aliás resulta do indicado depoimento da testemunha D. G. (acabou por deixar a esposa… As coisas não corriam bem… ele queria afastar-se um pouco da família).

Assim, em ordem a que a versão do facto seja isenta e conforme ao que se provou, alteramos a sua redacção para a seguinte:

Manuel deixou de viver com a autora em Janeiro/Fevereiro de 2007 e não mais viveram juntos, não confeccionaram e tomaram juntos as refeições, não pernoitaram nem permaneceram juntos, não mantiveram relações sexuais, não partilharam despesas e rendimentos, não se auxiliaram na doença e nos momentos de dificuldade, não dirigiram a palavra um ao outro.

No tocante ao facto 14º (A referida D. G. e o Réu ajudaram o Manuel e apoiaram-no na doença) Defende a apelante que o mesmo deve ser eliminado porque se trata de um conceito de facto genérico, porquanto não concretiza objectivamente em que se traduziu essa “ajuda” e “apoio”.

Relativamente à D. G., mãe do réu, concretiza-se noutros factos provados em que é que esse apoio consistiu (factos nºs 9, 15, 16 e 17), sendo desnecessário o que consta do facto nº 14.

A ajuda e o apoio que o réu terá prestado não estão traduzidos em qualquer concreta actuação a nível dos factos provados. Na motivação refere-se apenas que a prova destes factos se baseou no depoimento de parte do réu e no da testemunha, sua mãe.
Não se concretiza na motivação da decisão de facto, quais os factos instrumentais que permitiram concluir que o réu prestou esse apoio e ajuda.
Estamos assim perante uma conclusão fáctica sem factos que a sustentem.

Como tal o nº 14 será eliminado dos factos provados.

Igualmente se mostra inconformada a apelante com o teor do facto nº 8 (em data não concretamente apurada dos anos de 2010/2011 foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões”)
Efectivamente, como refere a apelante, da prova produzida resulta que o diagnóstico é anterior a 31 de Janeiro de 2011.
Nesse sentido temos as declarações do réu e o depoimento da testemunha sua mãe, D. G. que referiu: “Foi em fins de 2010 porque ele foi operado em 2011 … Novembro ou Dezembro de 2010”.
Provou-se por isso que “no final de 2010 foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões”.

A autora impugna igualmente os seguintes factos julgados não provados:

– O referido Manuel, com aquela deixa testamentária, quis beneficiar D. G., residente em Rue … – França e que com ele se deslocou de França a Portugal para a feitura de tal testamento.
– O referido Manuel fez a disposição testamentária em questão a favor do F. S. apenas porque não o pôde fazer a favor da mãe do referido F. S..
– Tendo na realidade sido a referida D. G., com o acordo de seu filho F. S., quem o testador quis beneficiar.
– Foi por causa da iminência da morte do testador e da impossibilidade legal de beneficiar a D. G. que aquele decidiu vir de França a Portugal com ela fazer esse testamento a favor do réu.
– Ao assim procederem, sabendo o testador, a referida D. G. e o réu que tal negócio era proibido por lei, quiseram eles enganar e prejudicar a Autora.

Como se refere na impugnação do primeiro destes factos, existe prova directa de que a referida D. G., com quem o falecido vivia maritalmente, o acompanhou na viagem que o mesmo fez a Portugal, com o propósito de lavrar testamento.

Nesse sentido a própria D. G. declarou, como testemunha, que veio com o Manuel de carro até Portugal, Viana, concretamente Meadela, onde tinham casa e o acompanhou ao cartório notarial.

Mais disse a testemunha que o Manuel já tinha escrito uma carta manifestando as suas intenções (ao advogado) e que o advogado lhe tinha dito que ele deveria passar pelo Notário, o que ele fez.

Foi ao notário, exarando testamento a favor do réu em 7 de Outubro de 2011, depois de, nas palavras da testemunha, já ter sido operado (Fevereiro desse ano) e faleceu no dia 24 de Agosto de 2012 em …, tendo a sua última residência na mesma região, em ….

Assim, de toda a referida factualidade apenas se provou que:

– O referido Manuel deslocou-se de França a Portugal, após se ter aconselhado com advogado e acompanhado da referida D. G., para a feitura de tal testamento.
A prova indirecta ou por presunção judicial tem de assentar nos demais factos provados.

Ora, face à parca factualidade provada e à ausência de prova documental ou testemunhal, que permita concluir no sentido do que mais consta da supra referida factualidade, não pode este Tribunal julgá-la provada.
Note-se que nem a prova produzida nem a factualidade provada no processo 2020/13.6TBVCT-A.G1, de 23 de Fevereiro de 2017, que a apelante cita nas suas alegações, aproveita a esta acção, em que as partes não são as mesmas (cfr. art.º 421º, 619º do CPC).
A nossa convicção forma-se com base na prova que aqui foi produzida, atentos os factos que nesta acção foram alegados.

O facto que a apelante pretende se dê como provado e que nem sequer alegou (“O testador Manuel declarou, ao tempo em que vivia maritalmente com a D. G., que nunca perdoaria às filhas a reacção que estas tiveram em relação à separação do pai e da mãe, ora Autora, pois que por isso elas deixaram de lhe falar”) pretensamente instrumental e que decorreria do próprio depoimento de parte do réu, de forma alguma permitiria, conjugado com os demais, concluir no sentido de julgar provados os referidos factos.
*
Consequentemente, na procedência apenas parcial da impugnação da decisão da matéria de facto, este Tribunal da Relação julga assente a seguinte factualidade:

1- Em 7 de Outubro de 2011, Manuel outorgou, no Cartório da Notária A. D., em Viana do Castelo, testamento público, conforme consta do livro de notas n.º 3 a fls. 58 do referido Cartório (documento junto aos autos a fls. 7 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
2- No aludido testamento, o referido Manuel declarou: “deixa F. S. (…), solteiro, maior, natural de França, residente em Rue ..., França, o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., prédio esse que é bem próprio dele testador”;
3- O referido F. S. é filho da referida D. G.;
4- O testador Manuel, desde Setembro de 2007, passou a viver na mesma casa que a referida D. G., dormindo na mesma cama, com ela tendo relações sexuais sempre que o quisessem, comiam à mesma mesa, fazendo tudo como de marido e mulher se tratasse;
5- O testador viveu desde Setembro de 2007 e até à sua morte junto da referida D. G., em ...;
6- A Autora é viúva do testador Manuel, falecido em 24 de Agosto de 2012, com quem foi casada desde 24 de Julho de 1976;
7- O testamentário F. S. vive com a sua família em ..., França;
8- No final de 2010 foi diagnosticado ao testador Manuel um cancro maligno nos pulmões;
9- A referida D. G. cuidou de Manuel durante a convalescença, designadamente ministrando-lhe a medicação, a alimentação e fazendo-lhe a higiene pessoal;
10- Manuel deixou de viver com a autora em Janeiro/Fevereiro de 2007 e não mais viveram juntos, não confeccionaram e tomaram juntos as refeições, não pernoitaram nem permaneceram juntos, não mantiveram relações sexuais, não partilharam despesas e rendimentos, não se auxiliaram na doença e nos momentos de dificuldade, não dirigiram a palavra um ao outro.
11- Em 18 de Dezembro de 2006, o Manuel deu entrada de uma acção de divórcio contra a ora Autora;
12- A referida acção correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo com o n.º 4746/07.1TBVCT;
13- Na altura da separação mencionada em 10 dos factos provados o Manuel já não trabalhava e vivia com uma pensão de pré-reforma, no valor de € 1000,00;
14- Eliminado;
15- A referida D. G. apoiou Manuel no pagamento de todas as despesas relacionadas com tratamentos médicos;
16- Deu-lhe casa e alimentação até à sua morte;
17- A referida D. G. gastou todas as suas poupanças.
18- O referido Manuel deslocou-se de França a Portugal, após se ter aconselhado com advogado e acompanhado da referida D. G., para a feitura de tal testamento.

B) APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

A nossa Ordem Jurídica permite a qualquer pessoa dispor dos seus bens em vida e para depois da morte, limitando contudo este direito no caso de existirem herdeiros legitimários, a uma parte desses bens (artºs. 2179º nº 1 e 2156º do CC).
O falecido Manuel deixou herdeiras legitimárias (a autora, sua viúva, e ao que dos autos resulta, também filhas).
Podia legar bens que representem um terço daqueles que integram a sua herança e, na medida em que o legado excedesse a sua quota disponível o mesmo seria reduzido (art.º 2169º do CC).

Assim, se estava desavindo com as filhas e com a mulher, nada o impedia de deixar a terceiros a sua quota disponível.

Contudo, a nossa lei contempla alguns casos de indisponibilidade relativa (artºs 2192º a 2198º e 953º do CC) – proibição de fazer disposições testamentárias e doações a favor de certas pessoas, cominando a respectiva nulidade.

Assim, o testador estava impedido de dispor por testamento (ou doação) dos seus bens a favor das pessoas indicadas nos artºs 2192º a 2198º do Código Civil.
No caso provou-se que o autor do testamento vivia maritalmente com D. G., mãe do réu. Ligação que, aquando do seu óbito, ainda não tinha perdurado por seis anos.

Estabelece o art.º 2196.º do CC, sob a arcaica epígrafe “Cúmplice do testador adúltero”:

1. É nula a disposição a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério.
2. Não se aplica o preceito do número anterior:
a) Se o casamento já estava dissolvido, ou os cônjuges estavam separados judicialmente de pessoas e bens ou separados de facto há mais de seis anos, à data da abertura da sucessão;
b) Se a disposição se limitar a assegurar alimentos ao beneficiário.

No caso em apreço o Manuel deixou de viver com a autora, sua mulher, em Janeiro/Fevereiro de 2007 e faleceu em 24.8.2012.
Não se divorciou nem separou judicialmente de pessoas e bens
Não se encontrava separado de facto há mais de seis anos.

Assim, qualquer disposição a favor da companheira D. G., salvo se se destinasse a assegurar-lhe alimentos [al.b)], seria nula.

Nas contra-alegações o apelado veio defender que a última parte da alínea a) deste art.º 2196º, face à alteração introduzida no art.º 1781º al. a) do CC, deverá ser interpretada no sentido de que também esse prazo de seis anos se reduziu para um ano.

Mais invocou, caso não se proceda a tal interpretação actualística da referida norma, a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 1 do art.º 26º da Constituição.
Entendemos, que, sendo hoje e desde 2008, admissível o divórcio sem consentimento do outro cônjuge com a amplitude, a nível de causas, constante do art.º 1781º – mormente a sua alínea d) – existirá sim fundamento para que se elimine a última parte da al. a), do nº 2 do art.º 2196º, por carecer de especial protecção essa situação no contexto do actual e muito facilitado do regime do divórcio.

Efectivamente, a interpretação pretendida deixaria praticamente sem conteúdo a norma, até porque a mesma já é interpretada restritivamente no sentido de que apenas “situações de união de facto ou de concubinato duradouro” serem geradoras da nulidade da doação, não bastando “um acto isolado de adultério, uma relação acidental e esporádica(1).

A questão da inconstitucionalidade deste artigo, embora relativamente a uma doação, foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 425/00, de 11.10.2000 em que se decidiu:Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação entre o disposto nos artigos 953º e 2196º do Código Civil”.

Também o S.T.J., no acórdão de 24.1.2002 (Col. Jur. — S.T.J. 2002, t. 1, p. 51), num caso em que fora arguida a inconstitucionalidade do art.º 2196.º, n.º 1, do CC, por violação dos artºs. 62.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, decidiu que o preceito não é inconstitucional.

Também nós não vislumbramos que o teor do art.º 2196º do CC afronte o disposto no n.º 1 do art.º 26.º da Constituição, antes encontrando assento constitucional no art.º 36º (protecção da família, casamento e filiação).
Note-se que nem a União de Facto é protegida pela lei quando exista “casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens.”(2)

Não existe assim fundamento para desaplicar tal normativo.

Posto isto, nos presentes autos não logrou a autora provar que o testamento foi simulado, no sentido de que, embora o Manuel tivesse declarado deixar o imóvel ao aqui réu, efectivamente o mesmo se destinava à D. G. sua mãe. Fosse esse o caso o negócio dissimulado seria nulo nos termos do citado artigo.

Contudo, no caso em apreço e em face dos factos provados, ponderamos a possibilidade da autora não ter de efectuar tal prova para o sucesso da sua pretensão.

Com efeito, no capítulo da indisponibilidade relativa, prevê-se no art.º 2198.º, sob a epígrafe “Interpostas pessoas”:

1. São nulas as disposições referidas nos artigos anteriores, quando feitas por meio de interposta pessoa.
2. Consideram-se interpostas pessoas as designadas no n.º 2 do artigo 579.º
Por seu turno o nº 2 do art.º 579º estabelece:

Entende-se que a cessão é efectuada por interposta pessoa, quando é feita ao cônjuge do inibido ou a pessoa de quem este seja herdeiro presumido, ou quando é feita a terceiro, de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a este a coisa ou direito cedido. (sublinhado nosso).

Sobre o conceito de herdeiro presumido nada nos adianta a referida norma, sendo que o mesmo não se mostra densificado no Código Civil, nem a jurisprudência, pelo menos a dos últimos 30 anos, a que tivemos acesso, se tem debruçado aprofundadamente sobre o assunto.

Encontramos apenas o acórdão do TRP de 6.7.2010 (proc. nº 1117/06.3TJPRT.P1) publicado in dgsi. pt, onde se lê: “Se o adquirente é filho de mandatário judicial interveniente no processo, para a interpretação do disposto no art.º 579° n°2 C.Civ., só a existência de filhos do adquirente afastaria a presunção de herdeiro, que se retira, na ausência de outros elementos de prova, das classes de sucessíveis na sucessão legítima — art.° 2133° n°1 als. a) e b) C.Civ. A presunção de herdeiro constitui, por sua vez, presunção “juris et de jure” quanto à condição de interposta pessoa - art° 579º nos 1 e 2 e 3 CCiv.”.

Seguindo o entendimento deste acórdão concluímos que a mãe do réu seria herdeira presumida deste, porque o mesmo, que foi identificado como solteiro no testamento, e declarou tal estado civil na procuração junta aos autos, não alegou ter filhos, pelo contrário, impugnou tal materialidade.

Esta conclusão foi posta em causa pelo apelado, que arguiu a nulidade do nosso anterior acórdão, invocando excesso de pronúncia (conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento) e a nulidade do processado por ter considerado causa de pedir não alegada na petição inicial sem prévia concessão às partes do direito ao contraditório, relativamente a esses factos novos.

Reconhecendo que se tratava de “apreciar questão jurídica susceptível de se repercutir, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão” e que a mesma poderia não ter sido perspectivada pelo réu durante o processo anulamos o acórdão e ouvimos as partes.

Na sequência veio o apelado juntar aos autos certidões de nascimento dos seus filhos, sendo certo que não era agora o momento próprio para o fazer.

Com efeito, a pretensão da autora era ver declarada a nulidade do testamento celebrado por Manuel no dia 7 de Outubro de 2011 no Cartório Notarial de A. D., em Viana do Castelo, constante do L.º 3 a fls. 58 desse Cartório. Subsidiariamente a anulabilidade desse mesmo testamento.

Fundou-se este pedido no facto de tal testamento ter sido celebrado a favor do réu, quando efectivamente o que se pretendia era beneficiar a mãe do réu (simulação). Como a mãe do réu convivia maritalmente com o testador e este era casado, a deixa testamentária a favor dela seria nula nos termos do art.º 2196º do CC. Por isso, apesar de a intenção do testador ser a de beneficiar a mãe do réu, em conluio entre eles (artºs 10º e 11º da P.I.), fez testamento a favor do réu, para assim lograrem enganar e prejudicar a herdeira (autora) titular do interesse que a proibição legal quis proteger (artºs 15º, 16º da P.I.).
Os factos alegados, na parte em que resultaram provados, permitiram outro enquadramento jurídico, concretamente a nulidade da disposição testamentária por ter sido realizada por interposta pessoa (art.º 2198º do CC).

Efectivamente, entendemos que tal era possível, pois o próprio réu negou ter filhos, ao impugnar por falso, o alegado no art.º 9º da P.I. (art.º 32º da contestação) e tal impugnação não respeita certamente ao facto de residir em “...”, pois a morada que fornece nos autos é precisamente nessa cidade, nem também restrita à parte final desse artigo da P.I., pois a impugnação é total, não é restrita a essa parte.

Note-se que o réu foi convidado a esclarecer o sentido da sua impugnação, na audiência final (acta de 25.9.2017, a fls. 142 verso), tendo então declarado “A expressão falso tem o mesmo significado e alcance prático que a locução não corresponde à verdade”.

Ora a impugnação dos factos, mormente tratando-se de factos pessoais, não se faz ao sabor das conveniências, nomeadamente consoante o enquadramento jurídico em que a autora fez assentar a sua pretensão.

Assim, atento o dever de boa fé (objectiva e subjectiva) que as partes devem observar no processo – art.º 8º e art.º 542º nº 2 als. a) e b) do CPC – não pode o réu, para afastar a existência do alegado conluio, por ausência de qualquer causa justificativa daquela disposição testamentária outra que a de prejudicar a autora e beneficiar a mãe do réu, impugnar, invocando a sua falsidade, factos pessoais, instrumentais, que aquela alegou nesse sentido e, agora, para afastar o enquadramento jurídico que os factos que resultaram provados permitem, pretender que os mesmos se provem.
O que se provou efectivamente é que o réu é filho da então companheira do testador e é solteiro (factos nºs 2 e 3 da sentença e do acórdão).

Sim, porque apesar do réu, aqui apelado, vir agora alegar que a autora não provou a sua filiação, não pode olvidar que essa factualidade se encontra assente sob o nº 3 dos factos provados da sentença.:

Efectivamente, poderia ter impugnado a decisão da matéria de facto neste ponto, como o permite o nº 2 do art.º 636º do CPC, mas não o fez.

Assim, mesmo nesta interpretação restrita do nº 2 do art.º 579º do CC, cremos que os factos, tal como resultaram provados, permitiriam concluir pela nulidade da disposição testamentária.

Contudo a apelante, quando também ouvida na sequência da anulação do nosso anterior acórdão, para se pronunciar sobre a possibilidade de o testamento ser declarado nulo com o fundamento previsto no art.º 2198º do Código Civil, veio defender que o nº2 do art.º 579º do CC abrange sempre a mãe, isto é, os ascendentes, existam ou não descendentes, invocando, entre o mais, a jurisprudência de dois acórdãos.

O acórdão do STJ de 10-10-1972, a que a apelante faz referência, está publicado no BMJ 220º, págs. 158 e segs., a que não tivemos acesso, sendo que do seu sumário, publicado em dgsi.pt (processo JSTJ00006249) resulta que a questão aí versada era uma venda de pais a filhos, que é situação bem distinta (3). Quanto ao da Relação de Lisboa, nem ao sumário tivemos acesso.

No propósito de aprofundarmos o sentido e alcance da norma, fomos à fonte, isto é aos trabalhos preparatórios do Código Civil, na parte respeitante ao direito das sucessões (4).

No anteprojecto apresentado em 31.12.1955 (também publicado no BMJ nº 54 de 1956, em separata do mesmo), a norma correspondia ao art.º 202º e dizia:

§2º: Presumem-se interpostas pessoas, sem possibilidade de prova em contrário, os parentes e afins em linha recta e no 1º grau da linha colateral e o cônjuge do incapaz (…)

A comissão revisora do anteprojecto, presidida pelo então Ministro da Justiça Antunes Varela e constituída pelos Professores Vaz Serra, Manuel de Andrade, Pires de Lima, I. Galvão Teles, Ferrer Correia, entre outros, pronunciou-se sobre esta norma (“interpostas pessoas”) na sessão de 11.01.1957 (acta nº9), em que estavam presentes Vaz Serra, Pires de Lima, Galvão Teles, Gomes da Silva, Braga da Cruz, entre outros.

A propósito da presunção inilidível, consta da acta nº 9 que Gomes da Silva e Pires de Lima eram de opinião que a sua redacção não era a melhor solução porque “muitas vezes as pessoas a que este parágrafo se refere, não funcionam realmente como interpostas pessoas, mas antes como reais beneficiários da deixa; no entanto esta deve ser inválida porque as captações exercidas pelo incapaz sobre o “de cuius” pode ter como objectivo que este deixe realmente os seus bens a qualquer daqueles parentes próximos. Por exemplo o médico pode influenciar o doente a fazer um testamento em que beneficie, não a ele, médico, mas um filho seu”.

Por isso pugnaram para que se mantivesse o parágrafo 1º (interpostas pessoas) como princípio geral e se consagrasse o §2, num novo artigo, declarando incapazes de beneficiar de deixa testamentária os parentes e afins na linha recta e o cônjuge das pessoas referidas nos art.º s 194º a 201º (hoje 2192º a 2197º do CC)

Das alterações propostas por Vaz Serra (1ª estabelecer-se uma presunção iuris tantum de interposição e 2ª excluírem-se os irmãos e cunhados do incapaz) só a segunda foi aprovada (5).

Na sequência surgiu o projecto do Código Civil, Livro V, Direito das Sucessões (6), em que a norma, sob a epígrafe “interpostas pessoas” correspondente ao art.º 2257 desse projecto, tinha a seguinte redacção:

É igualmente nula a disposição a favor de parentes ou afins na linha recta ou do cônjuge a quem as indisponibilidades previstas neste capítulo directamente se referem, bem como a disposição feita por meio de interposta pessoa.”

Teve-se assim em conta as dúvidas manifestadas por Antunes Varela quanto a estarmos perante um incapacidade ou uma indisponibilidade (págs 305 e 306 da obra citada na nota “4”), vingando esta última, bem como, ainda que parcialmente, a posição de Pires de Lima e outros, em que, independentemente de actuarem ou não como interposta pessoa, a deixa era nula quando feita a favor de ascendentes, descendentes ou cônjuge do inibido.

Na segunda revisão ministerial a norma surge-nos sob o art.º 2197º já com a actual redacção, isto é remetendo a definição de interposta pessoa para o nº 2 do art.º 579º do CC. E assim acabou consagrada no actual Código Civil sob o art.º 2198.

Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação a este artigo 2198º (Código Civil anotado, Volume VI, pág. 322 na reimpressão de 1998) remetem para o artigo 1773º do Código de Seabra, referindo que se manteve em linguagem actualizada o mesmo princípio.

Ora no Código de Seabra, no art.º 1783, estabelecia-se: “É aplicável às disposições testamentárias o que fica ordenado no art.º 1481º”. E neste prescrevia-se que “são havidas como interpostas pessoas os ascendentes, descendentes ou consortes dos inábeis”.

Assim, considerando o anteprojecto do actual Código Civil, a discussão sobre esta questão constante das actas da comissão revisora, o que referem Pires de Lima e Antunes Varela, ambos tendo integrado tal comissão, sendo um deles o respectivo Presidente e Ministro da Justiça que aprovou o actual Código Civil, temos de concluir que o nº 2 do art.º 579º do CC, que define o conceito de interposta pessoa a que alude o nº 2 do art.º 2198º, abrange o cônjuge, os ascendentes e os descendentes do inibido.

O Código Civil não ampliou o quadro dos abrangidos, como proposto por alguns dos membros da comissão revisora, aos parentes e afins da linha colateral, à semelhança do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, por exemplo no Código Civil Brasileiro (art.º 1802º), mas também não reduziu a abrangência do art.º 1481º do Código de Seabra, que se deve considerar transposta para o nº 2 do art.º 579º do CC, o qual, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “repetiu em linguagem actualizada o mesmo princípio”, como aliás ocorre nos demais ordenamentos jurídicos onde o legislador português foi “beber” (v.g. art.º 599º do Código Civil Italiano -“Persone interposte”).

Assim, a própria Lei dispensa a prova da simulação, presumindo iure et iure que o testamento foi efectuado por interposta pessoa (o réu) a favor da D. G., com quem o testador casado cometeu adultério.

Com efeito, como referem Pires de Lima e Antunes Varela em Código Civil Anotado, volume I, 3ª edição, pág. 565, em anotação ao citado nº 2 do art.º 579º: “Não é admissível prova em contrário”.

Tão nula é a deixa testamentária a favor da pessoa com quem o testador cometeu adultério, como a que for feita a favor do filho desta, no caso o aqui réu.

Concluímos assim que o testamento está ferido de nulidade, nos termos do art.º 2196º nº 1 do CC.

Não ocorre a invocada caducidade (questão não apreciada na sentença) pois que nos termos do art.º 2308º nº1 do CC, “a acção de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade”.
Resultando provado que o Manuel faleceu em 24.8.2012 e tendo a acção sido intentada em 21.11.2014, é manifesto que não ocorre a invocada caducidade mesmo que o prazo se contasse da data do testamento.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, e, julgando procedente a acção, declaram nulo o testamento celebrado por Manuel no dia 7 de Outubro de 2011 no Cartório Notarial de A. D., em Viana do Castelo, constante do L.º 3 a fls. 58 desse Cartório.
Custas em ambas as instâncias pelo réu
Guimarães,

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte

1. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira em “Curso de Direito da Família, 4ª ed., vol. I, Coimbra Editora, 2008, págs.. 74-75 e versão “e-book” pág. 86: “Tomada a disposição legal à letra, bastaria um ato isolado de adultério, uma relação acidental e esporádica, para tornar nula a doação que o cônjuge adúltero fizesse ao seu cúmplice; mas parece justificar-se uma interpretação restritiva do preceito, que só quererá abranger situações de união de facto ou concubinato duradouro.” http://www.centrodedireitodafamilia.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/eBook_-_Curso_de_Direito.pdf
2. Art.º 2º al. c) da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio
3. Como refere Raul Ventura em contrato de compra e venda no Código Civil, pág. 267; “A proibição de venda de pais ou avós a filhos ou netos tem uma função preventiva – colher casos em que frequentemente as vendas dissimulam doação – e quando essa seja a função da norma, só as vendas directas são atingidas, sendo irrelevantes as interposições de pessoas, que não provocam o mesmo perigo de simulação: «Enquanto, pois, as normas dos artºs 579º, 953º, 2192 e 2198º são normas de fundo (chamemos-lhes assim à falta de designação melhor), proibindo actos pelo que eles têm em si de criticável, os dos artºs 877 e 1714º nº 2 são meras normas instrumentais ou preventivas, que não reprovam propriamente os actos a que dizem respeito mas apenas pretendem acautelar o perigo de sob elas se acobertarem liberalidades subtraídas à incidência de certas cautelas”.
4. “Direito das Sucessões, Trabalhos Preparatórios do Código Civil, publicado em 1972 pelo Centro de Estudos de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (estudos e Documentos)
5. Obra citada em 4. pág. 305 a 308.
6. A primeira revisão ministerial deste Livro foi publicada no BMJ de 1963, nº 129, págs. 13 e segs.