Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4660/21.0T8BRG.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: CONTRATO PROMESSA
BENS COMUNS DO CASAL
PARTILHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando a decisão recorrida é correcta e está bem fundamentada, a Relação não precisa (nem deve) procurar uma fundamentação paralela para chegar ao mesmo resultado.
2. Um contrato promessa de partilha, no qual as partes elencaram como bens comuns do casal, entre outros devidamente determinados e identificados, “os bens móveis que compunham o recheio da casa de morada de família” é um contrato em que o objecto material não está, nessa parte, determinado.
3. E não é determinável porque estando em causa bens móveis, não é possível saber se os mesmos não foram já movimentados de lá para fora, ou outros levados para lá.
4. Cabia às partes no contrato terem previsto um mecanismo que permitisse determinar quais os bens móveis que faziam parte do recheio à data da celebração do contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da ré no sentido de serem atribuídas ao autor as fracções autónomas e bens móveis que integram uma delas.
Para tanto, alega, em síntese, que autor e ré foram casados entre si, tendo o divórcio sido decretado em .../.../2021; ainda em data anterior ao divórcio, subscreveram um documento que configura uma promessa bilateral de partilha do património comum do casal, que a ré não cumpre.

Devidamente citada, a ré contestou, por impugnação e por excepção.
Respondeu o autor à matéria de excepção.

Finda a fase dos articulados, entendeu o Tribunal que o processo devia findar no despacho saneador, por já estar em condições de conhecer do mérito.
Assim fez, considerando que a única questão a dirimir era saber se é nulo o contrato promessa, nomeadamente, se está determinado ou é determinável o objecto do contrato prometido.
E foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1- No contrato promessa celebrado entre o autor e a ré, encontra-se devidamente identificado o contrato prometido e discriminados os bens que compõem o património comum do ex casal.
2- A identificação dos bens a partilhar constante do contrato promessa permitia a execução das obrigações assumidas com a outorga do referido contrato promessa.
3- Ainda que se perfilhasse o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa mencionado pelo tribunal a quo na sentença, sempre se chegaria à conclusão de que o contrato promessa em questão tinha descritos os seus elementos mínimos essenciais.
4- A sentença recorrida procede a um incorrecto julgamento da matéria de direito, fazendo uma errada interpretação dos artigos 410º e 830º do Código Civil, ao atribuir ao contrato promessa de partilha pressupostos que não estão previstos na lei.
5- O contrato promessa celebrado entre o autor e a ré preenche todos os requisitos previstos na lei, devendo por isso ser considerado válido.

Não foram oferecidas contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a questão a decidir consiste em saber se o contrato promessa celebrado pelas partes é nulo, por indeterminação do objecto do contrato prometido.

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:

A) A O autor e a ré contraíram casamento civil no dia 9 de Abril de 2007, no regime da comunhão de adquiridos.
B) O autor e a ré desentenderam-se e em 2013 decidiram separar-se de facto.
C) O autor e a ré celebraram um contrato promessa de partilha, no qual elencaram como bens comuns do casal os seguintes:
-prédio urbano composto de fracção autónoma, tipo T2, destinado a habitação, designada pela letra ..., correspondente ao ... andar, sito em Travessa ..., ... ..., ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...70 da freguesia ...;
-prédio urbano composto de cave, destinado a garagem, designado pela letra ..., sito em Travessa ..., ... ..., ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...70 da freguesia ...;
-veículo automóvel de marca ..., modelo ... ..., com matrícula SZ ...... (CH);
-bens móveis que compunham o recheio da casa de morada de família;
-dívida ao Banco 1..., correspondente à aquisição do prédio destinado a habitação.
D) Desse contrato ficou a constar que ambos os prédios urbanos seriam adjudicados ao autor, devendo a ré entregar-lhe as respectivas chaves.
E) A dívida ao Banco respeitante à aquisição do prédio urbano ficou também ela prometida adjudicar ao autor.
F) A ré ficaria com o veículo automóvel que pertencia ao casal.
G) No decurso do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o autor e a ré aceitaram converter o divórcio em mútuo consentimento.
H) Nessa altura, ambos declararam inexistirem bens comuns do casal e casa de morada de família.
I) O divórcio entre o autor e a ré foi decretado por sentença datada de 10 de Março de 2021.
J) A ré opõe-se a realizar a partilha de acordo com o contrato promessa que outorgou.

IV
Conhecendo do recurso.

Está aqui em causa um contrato promessa de partilha celebrado entre autor e ré, ou seja, “a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato” (art. 410º,1 CC). Os contraentes querem comprometer-se para o futuro sobre a forma como a partilha vai ser feita. Dizendo de outra forma, querem deixar a partilha logo feita naquele momento, embora só surta os seus efeitos após o divórcio.
Como escreve Guilherme de Oliveira, in RLJ, nº 3870, anotação ao acórdão do TRC de 28/11/1995, “os cônjuges pretendem comprometer-se a dividir os bens comuns de uma certa forma e esperam que depois da dissolução do casamento, ambos celebrem a escritura prometida. Como é óbvio, os efeitos reais só se produzem por força deste contrato, embora esses efeitos estejam predeterminados, prometidos, pelo contrato-promessa feito antes do trânsito em julgado da sentença de divórcio.
A vontade real dos cônjuges formulada num contrato-promessa de partilha de bens há-de ser pesquisada no texto e no contexto do próprio contrato (Acórdão TRL de 20/5/2008).
Recorrendo aqui ao auxílio de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in obra citada, fls. 442 e seguintes, “o simples contrato promessa de partilha é válido, independentemente de os cônjuges se encontrarem em processo de divórcio. Ao celebrarem um contrato-promessa de partilha de bens comuns, os cônjuges nem alteram as regras que valem acerca da propriedade dos bens, dentro do seu casamento, nem modificam as normas aplicáveis à comunhão (contra o art. 1714º,1); e também não modificam o estatuto de qualquer bem concreto (contra o art. 1714º,2, e contra o entendimento amplo do princípio da imutabilidade). Aquele negócio tem apenas como efeito a promessa de imputar os bens comuns concretos, que o casal tem à data do acordo, na meação de cada cônjuge. Depois de realizado o contrato-promessa, todos os bens comuns do casal continuam bens comuns do casal, e todos os bens próprios de cada cônjuge continuam como dantes. Nenhuma das massas patrimoniais do casal se modifica. Assim, nem os cônjuges correm perigo, nem os terceiros que se encontrem relacionados com eles. Nenhum cônjuge perde qualquer dos seus bens próprios nem vê diminuída a sua meação nos bens comuns. (…) Apesar de tudo, sempre pode recear-se que, através do contrato-promessa, um cônjuge que goze de ascendente psicológico force o outro a aceitar como integrantes da sua meação os bens que menos interessariam a este, deixando livres, para preencher a meação do primeiro, os bens que este teimosamente pretende. Com prejuízo também dos credores do cônjuge “fraco”, cujos direitos poderão ficar garantidos com bens relativamente mais difíceis de vender. Porém, cremos que o modo como esta repartição é projectada não parece merecer um controlo específico da ordem jurídica. Isto é: deve apenas ficar submetida aos mecanismos gerais de defesa de um contraente contra o outro. Assim, o contrato-promessa de partilha poderá ser anulado por coacção, por estado de necessidade, por erro, etc, tal como outro negócio jurídico qualquer, no caso de se verificarem os respectivos requisitos. Já não se pode dizer o mesmo se o contrato-promessa servir para projectar uma partilha de tal modo que um dos cônjuges venha a receber um valor maior do que o outro. Imagine-se um contrato promessa em que se promete uma divisão do património comum em partes desiguais. Este contrato-promessa seria nulo por força do art. 1730º, nº 1 CCiv[1]. Segundo esta norma, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso. (…) Sendo estes acordos nulos, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo, e apenas tem o ónus de provar, nos termos gerais, que o contrato-promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade[2].
Para saber se um determinado contrato promessa faz uma divisão desigual do património comum é preciso que todos os bens que o integram sejam descritos, individualizados e contemplados no texto do contrato. Só assim é possível aferir a equidade da divisão.
E aqui entronca a questão concreta que importa agora decidir: saber se, como decidiu a sentença recorrida, o contrato promessa é nulo por indeterminação do objecto.
A sentença recorrida entendeu, em traços largos, que o contrato prometido tem de ser identificável no contrato-promessa, tem de ficar aí descrito nos seus elementos essenciais; nomeadamente, têm de ficar descritas as prestações de cada uma das partes no futuro contrato que se promete realizar, a sua natureza gratuita ou onerosa, o objecto mediato do contrato prometido. Não há contrato sem conteúdo, sem objecto imediato e mediato.

Vejamos melhor do que estamos a falar.
O art. 280º,1 CC dispõe que “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
Na interpretação desta norma, vamos buscar auxílio aos clássicos.

Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil anotado, escrevem: “é fisicamente impossível o objecto do negócio que envolve uma prestação impossível no domínio dos factos: entregar a lua, transportar uma pessoa de um lugar para o outro a uma velocidade que os meios de transporte estejam longe de ter atingido na altura da execução do contrato, etc. É legalmente impossível, por exemplo, o objecto da promessa de celebração de um contrato que o direito não consente, da promessa de venda de uma coisa do domínio público, etc”.
Não é o caso destes autos, pois nos exemplos que aqueles Mestres dão, o objecto é determinável e determinado, concreto até, mas física ou legalmente impossível.
Continuam: “apenas se consideram nulos os negócios jurídicos de objecto indeterminável, mas não os de objecto indeterminado. São de objecto indeterminado, por exemplo, as obrigações genéricas ou alternativas”.
Estes Mestres, porém, não avançam mais na determinação do que é um objecto negocial indeterminável.
Se recorremos agora ao apoio de Luís Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, 1983, II volume, fls. 245 veremos que este Professor identifica como o “terceiro requisito da idoneidade do objecto do negócio que este seja determinado, ou pelo menos determinável. A indeterminabilidade pode reportar-se tanto ao objecto material -coisa ou prestação- como ao objecto jurídico”. E continua: “no primeiro caso, o objecto é determinado se se mostra devidamente individualizado no negócio jurídico. Por exemplo, num contrato de compra e venda, identifica-se o prédio rústico vendido por todos os elementos de localização, identificação fiscal e registral, etc… Será indeterminado se apenas se fizer ao objecto uma referência vaga, ou genérica – um prédio, um anel, etc. O objecto pode não ser determinado, desde que, pela aplicação das regras legais supletivas ou das regras contratuais, a sua determinação seja possível. A este respeito interessa ter presente o disposto no art. 400º do Cód. Civil, que estabelece os meios através dos quais se pode obter a determinação da prestação que não seja logo determinada no negócio”.
Ora, dito isto, é para nós evidente que um contrato promessa de partilha, no qual as partes elencaram como bens comuns do casal, entre outros devidamente determinados e identificados, “os bens móveis que compunham o recheio da casa de morada de família” é um contrato em que o objecto material não está, nessa parte, determinado, nem é sequer determinável.
Costumamos seguir uma regra básica, segundo a qual quando a decisão recorrida é correcta e está bem fundamentada, a Relação não tem de procurar uma fundamentação paralela para chegar ao mesmo resultado. Por isso, vamos dar por reproduzida a argumentação da sentença recorrida, com total concordância:
Uma declaração genérica em que se promete partilhar os bens comuns, sem identificação rigorosa desses bens comuns, nomeadamente, quanto ao alegado recheio, o respectivo valor, as eventuais tornas a pagar, não reúne as condições para ser executada, em acção de execução específica, por indeterminação e indeterminabilidade do seu objecto. O contrato prometido, «objecto mediato do contrato-promessa, deve ficar logo negociado, isto é, determinado e/ou determinável no seu conteúdo, nos seus elementos, sob pena de nulidade do pactum de contrahendo (arts. 294º e 280º do Código Civil). É o que resulta do grande princípio-regra do regime do contrato-promessa, o chamado princípio da equiparação, por força do qual são aplicáveis ao contrato-promessa as disposições legais relativas ao contrato prometido (…) e, portanto, também as exigências legais referentes ao objecto negocial (art. 280 e ss. do Código Civil).» - João Calvão da Silva, «Negociação e formação de contratos», in Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Almedina, 1996, pp. 29-75 (p. 53). No contrato celebrado entre as partes não estão descritos os bens móveis e não há forma de saber que tornas o A. deveria dar à R., o que por si só impossibilitaria a execução específica. A execução específica de um contrato promessa consiste na obtenção de uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso (art. 830º do CC); para que o tribunal possa produzir essa sentença, é necessário que a declaração negocial em falta esteja suficientemente explicitada no contrato promessa o que, como vimos, não é o caso. Concluindo, o contrato promessa não pode ser objecto da presente execução específica, pois o contrato prometido a celebrar não está descrito nos seus elementos mínimos essenciais”.
Com efeito, a referência aos “bens móveis que compõem o recheio da casa de morada de família” deixa-nos completamente em branco sobre de que bens estamos a falar, e qual o seu valor. Basta imaginar que entre esses bens podem estar jóias ou quadros valiosos, para de imediato não ser possível fazer uma avaliação da igualdade na partilha. Ou podem não estar. Ou podem estar muitos outros bens valiosos, ou de pouco valor. Não sabemos.
As conclusões do recurso não nos trazem qualquer argumento que possa invalidar esta apreciação. Limitam-se a afirmar, como se fosse um postulado, que “no contrato promessa celebrado entre o autor e a ré, encontra-se devidamente identificado o contrato prometido e discriminados os bens que compõem o património comum do ex casal”.
Como acabámos de ver, não é assim.
Na conclusão 3ª avança-se com a ideia que, não obstante, “o contrato promessa em questão tinha descritos os seus elementos mínimos essenciais”.
Ora, salvo melhor opinião, não existe aqui esse conceito de “elementos mínimos essenciais”. Não estamos a avaliar se o contrato celebrado entre as partes contém as características necessárias para ser qualificado como um contrato de promessa. O que estamos a analisar é o objecto material do contrato prometido. Os cônjuges quiseram, com esse contrato, obrigar-se mutuamente a fazer a partilha de determinada maneira. Era imprescindível que essa maneira estivesse determinada no contrato sem margem para dúvidas. Ora, o uso da expressão vaga e vazia que acima mencionámos, impede que o Tribunal perceba como a partilha iria ser feita. Podem estar, como estão, identificados no contrato outros bens comuns, nomeadamente imóveis. Mas basta que uma das cláusulas seja genérica e vazia, como é o caso, para que não seja de todo possível, como a sentença recorrida afirma, ponderar a execução específica, pois o contrato prometido a celebrar não está descrito nos seus elementos mínimos essenciais.
E o objecto material do contrato prometido não só não está determinado no contrato: é indeterminável. O momento da sua determinação veio e passou. Foi o momento da celebração do contrato promessa, em que as partes chegaram a acordo para a celebração do contrato. Esse acordo deixou de fora uma parte (que nem sequer sabemos se era considerável ou não, pelo menos em termos de valor), dos bens a partilhar. Não será agora, em pleno conflito judicial, que vão chegar a acordo e identificar os bens que deveriam ter identificado no momento certo. Qualquer acordo a que chegassem agora seria um outro acordo, não a concretização do acordo que celebraram.
Poder-se-ia aceitar que escapasse à cominação de nulidade um contrato de promessa em que as partes se referissem, como aqui fizeram, aos bens móveis que compõem o recheio da casa de morada da família, mas de forma tal que esses bens fossem determináveis não só à data da celebração do contrato como à data em que se colocasse judicialmente a questão da sua execução específica. Por exemplo, estando acordado que tais bens estavam dentro de um determinado imóvel, totalmente fechado, selado e inacessível a qualquer das partes. Aí ainda seria possível determinar que bens eram esses, indo ao local, abrindo o mesmo e fazendo a lista descritiva dos mesmos. Não é o caso destes autos, em que nenhum desses cuidados foi sequer alegado. E, como é evidente, por natureza os bens móveis que estão dentro de uma casa podem ser movimentados para fora dela, e outros movimentados lá para dentro.
Cabia às partes no contrato terem previsto um mecanismo que permitisse determinar quais os bens móveis que faziam parte do recheio à data da celebração do contrato.
Nada disso fizeram.

Na Jurisprudência esta solução é, ao que cremos, pacífica.

Veja, por exemplo, o Acórdão deste TRG de 25.5.2012 (Relator – Pereira da Rocha), no qual se escreve: “1) – É indeterminável o objecto mediato do contrato promessa, consistente na compra e venda duma vivenda dentre as dez vivendas a construir em loteamento de igual número de vivendas, por não constarem do contrato promessa elementos que permitam individualizar aquela vivenda e por as partes não haverem estipulado nele o critério para sua posterior individualização. 2) – Esta indeterminabilidade do objecto do contrato promessa é causa da sua nulidade e esta pode ser conhecida, oficiosamente, sem qualquer limite temporal. É irrelevante a alegada vontade das partes no sentido da eficácia entre elas do contrato promessa, por a decretada nulidade dele constituir um dever funcional do julgador, prescrito pelos artigos 280.º, n.º 1, 286.º do CC e 660.º, n.º 2, parte final, e 664.º do CPC”.

Ou o Acórdão do TRL de 6.12.2018 (José António Moita), num caso bastante parecido com o destes autos. Aí se pode ler: “O contrato-promessa de partilha, a par de qualquer outro contrato-promessa, está sujeito, como sucede com todo o tipo de contratos definitivos, às regras gerais de validade do negócio jurídico, pelo que o contrato-promessa de partilha deve definir o conteúdo do contrato prometido de modo a que não se tornem necessárias negociações subsequentes para completar a definição dos termos do futuro contrato definitivo a celebrar. Conforme se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 20/01/2005 (in CJ, 2005,1º-8), “O objecto do contrato definitivo tem de se encontrar determinado ou ser determinável nos termos do contrato–promessa“. Na mesma esteira veio a decidir-se, por seu turno, no acórdão desta mesma Relação de Lisboa de 13/12/2007, (Procº 10340/2007.6, relator Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt e www.ecli.pt), que, no contrato-promessa tem de se “definir o conteúdo do contrato prometido nos mesmos termos em que haveria que fazê-lo se se estivesse já a celebrar este. O conteúdo do contrato prometido deve ficar logo convenientemente precisado, de maneira que não se tornem necessárias subsequentes negociações. É mister, sob pena de nulidade do contrato–promessa que este se apresente exequível por si, sem necessidade de completar a definição dos termos do contrato futuro a celebrar“. E ainda sufragando idêntico entendimento surge-nos o Acórdão também desta Relação de Lisboa de 15/04/2010 ( in CJ , 2010 2º - 113 ), onde se decidiu que: “o conteúdo do contrato prometido deve ficar logo precisado, nos termos gerais, no contrato – promessa, de maneira que não se tornem necessárias subsequentes negociações, sob pena de não se poder considerar concluído o contrato – promessa “, precisando ainda este aresto que “É nulo, por indeterminabilidade do objecto, o contrato–promessa de compra e venda de “ todo o património existente em certa moradia “ em termos de não permitir saber qual o objecto do contrato prometido,  pois o património é um conceito jurídico, não uma coisa“.

Seguidamente, o Acórdão centra a sua atenção na cláusula 3ª do contrato-promessa de partilhas, que traduz o objecto mediato do mesmo: “Refere-se que os bens comuns do casal integram o “recheio da casa de morada de família sita em ...“, um “automóvel marca ... , propriedade da sociedade F... “ e “participações sociais em diversas sociedades ligadas à actividade do segundo contraente“. Na decisão recorrida entendeu-se que esta descrição do objecto mediato do contrato-promessa é “lacónica“, imprecisa, inadequada, não concretizando de forma individualizada esse objecto, traduzindo-se mesmo em conteúdo indeterminado e indeterminável. Quanto ao “recheio da casa de morada de família“, pese embora se trate de uma fórmula que desde há muito é adoptada na elaboração de relações de bens comuns do casal, quer no âmbito de acções de divórcio, quer em sede de inventários instaurados em consequência de divórcio, a mesma é notoriamente vaga, imprecisa, susceptível de equívocos desde logo porque abrangendo em regra uma diversidade de bens móveis, muitos deles facilmente transportáveis pelas suas reduzidas dimensões e peso , o seu elenco, não raras vezes, altera-se entre o período que medeia a outorga do contrato-promessa de partilha e o momento da realização desta. Como tal, fazer uso da expressão “recheio“ ( sem sequer lhe atribuir um valor global como sucede no caso), peca por notória indefinição dos bens que se pretenda contemplar, não se distinguindo da expressão “património“ aludida no acórdão proferido neste mesmo Tribunal da Relação em 15/04/2010, que acima trouxemos à colação”.
E acrescenta-se ainda: “Relembre-se, porém, que não é suficiente para relevar ao nível do vicio da nulidade que o objecto mediato, ou conteúdo, do contrato-promessa de partilha seja apenas indeterminado. Ele tem, ainda, que ser indeterminável. Sucede, porém, que, como bem se refere na decisão recorrida, da análise do contrato-promessa de partilhas em causa não resulta qualquer indicação quanto a mecanismos que de forma indirecta permitam a necessária especificação dos elementos não clarificados, integrantes do conteúdo do contrato-promessa de partilhas, acima apontados, quer através de conexão com meios futuros, quer pela própria atribuição às partes da faculdade de determinar posteriormente o que clausularam em termos indefinidos. Conforme ensina o Prof. Carlos Ferreira de Almeida (Contratos V 2017, Almedina, pag. 181), “O objecto é indeterminável se o contrato se referir a acções de uma sociedade não identificável. “Dito isto, somos em crer que o contrato-promessa de partilhas em causa nestes autos tem de facto um conteúdo (ou objecto), indeterminado e indeterminável, o que acarreta a inexequibilidade do mesmo , enfermando deste modo de invalidade, ou seja “não produção de efeitos resultante de uma falta quanto aos elementos intrínsecos do negócio “ (“Das Invalidades Atípicas- Esboço de uma Teoria Geral “, Ana Paula Ribeiro, Usus Editora, pág. 18 ). A dita invalidade encontra-se prevista no artigo 280º, nº 1, do C.C., que estatui que: “ É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável“.

Como tal, a sentença recorrida fez a aplicação correcta da lei, à luz da Jurisprudência comum na matéria, e não merece censura, antes confirmação.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 20.4.2023

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


[1] Destaque nosso.
[2] Destaque nosso.