Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
602/16.3GBVVD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
VALORAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ARTS. 128º E 129º DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valore contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido, por ser grosseiro, ostensivo e evidente, pela simples leitura da decisão, aos olhos do homem médio.

II - A testemunha tem conhecimento directo dos factos quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos, enquanto no chamado depoimento indirecto a testemunha refere, não imediatamente os próprios factos objecto de prova, mas outros meios de prova de que se apercebeu relativos a tais factos.

III - Da concatenação dos preceitos contidos nos arts. 128º e 129º do CPP resulta que, embora a regra seja a do testemunho directo, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos, fazendo depender a valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer da observância de certos procedimentos que visam assegurar o contraditório: a lei interdita a utilização como meio de prova e a valoração do depoimento indirecto, mas apenas se o juiz não diligenciar no sentido de chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal, já podendo, contudo, ser valorado sempre que a fonte não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

IV - Uma vez validamente produzido, o depoimento indirecto deve ser avaliado/valorado conjunta e conjugadamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme as regras da experiência comum e o princípio geral da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP.

V - Para ser ultrapassada a proibição de valoração do conteúdo do testemunho indirecto, enunciada no comando do citado art. 129º, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo - quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la -, não impondo a lei que esse conteúdo venha a ser confirmado pela fonte material originária de onde provinha o conhecimento dos factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No identificado processo, a arguida M. C. foi submetida a julgamento e condenada, por sentença proferida e depositada a 2/5/2019, como autora material de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 15,00 (quinze euros) e, ainda, a pagar a I. M., a título de indemnização por danos não patrimoniais a esta causados com a sua conduta, a quantia de € 200 (duzentos euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a data da decisão, até integral pagamento.

Inconformada com o decidido, a arguida interpôs recurso, pugnando pela sua absolvição, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (transcrição):

«(…) III. Ora o Tribunal deu como provada a referida factualidade exclusivamente com base em depoimentos indiretos, porquanto nunca nenhuma das testemunhas ouvidas afirma ter ouvido a arguida proferir as acusações de que está acusada.
IV. Nos termos do artigo 129º do CPP “Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”
V. O A. P. e o M. S. não foram ouvidos quer em sede de inquérito quer em audiência de julgamento, nem tão pouco o Tribunal ou o Ministério Público requereram a sua inquirição, pelo que o depoimento indirecto não pode ser valorado nessa parte.
VI. Acresce que, o F. S. foi ouvido em sede de audiência de discussão e julgamento e confirmou que a acusação era falsa, e que a irmã M. C. nunca lhe tinha dito nada do que constava na acusação,
VII. Assim como também a mencionada M. P., foi ouvida em audiência de discussão e julgamento, tendo negado de forma peremptória que a arguida alguma vez tenha dito que a assistente era ladra.
VIII. Logo, o Tribunal fez uma errónea aplicação do direito, porquanto desconsiderou o plasmado no artigo 129º do CPP, sendo certo que uma correcta aplicação da norma implicaria a não valoração dos depoimentos indirectos prestados pelas testemunhas G. P., A. P., pela própria assistente e até pelas testemunhas do pedido cível.
IX. A testemunha F. S., o ouvido por iniciativa da arguida, negou de forma cabal que alguma vez tenha questionado a assistente sobre a conta no Luxemburgo e negou também que alguma vez tenha dito ou ouvido dizer que esta alguma vez tenha chamado ladra à assistente - depoimento da testemunha F. S., gravado no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423163242_5589195_2870598.wma, minutos 01:20 a minutos 25:24
X. A testemunha M. P., que a sentença considerou provado ter dito à testemunha G. P. que a arguida tinha dito que a assistente era uma ladra, porquanto tinha acedido a uma conta dos pais no Luxemburgo de onde tinha retirado 6.000,00€, negou que a arguida alguma vez tenha proferido tal expressão - depoimento da testemunha M. P., gravado no sistema citius, dia 10/04/19 ficheiro 20190410164342_5589195_2870598.wma, minutos 01:10 a minutos 22:00
XI. Ora, se as próprias fontes de ciência negam alguma vez terem ouvido a arguida dizer as expressões de que vem acusada, assim como negam alguma vez terem dito à assistente ou a outras testemunhas que a arguida M. C. teria proferido tais expressões, nunca poderia o Tribunal dar como provada a factualidade constante dos pontos 1 e 2 dos factos provados.
XII. Acresce que, o Tribunal valorou o depoimento da testemunha G. P. como verdadeiro, quando a mesma prestou declarações manifestamente divergentes com as que havia prestado em sede de inquérito, motivando que o Exmo. Sr. Procurador requeresse a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito, atentas as discrepâncias evidenciadas. – cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 10-04-2019 e minutos 06:00 e seguintes do depoimento gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410152709_5589195_2870598.wma, minutos 00:44 a minutos 27:21
XIII. A necessidade de se confrontar uma testemunha com as declarações anteriormente prestadas em sede de inquérito, é realmente um factor que apenas pode ser interpretado como motivo de dúvida e desconfiança, contudo para o Tribunal recorrido foi interpretado exactamente ao contrário.
XIV. Acresce ainda que, essa mesma testemunha G. P. em sede de acareação entre si e a testemunha M. P. – gravado no sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410164342_5589195_2870598.wma, minutos 24:50 a minutos 26:56 – disse: “Eu estive contigo no rio malheira e disseste que a I. M. dizia mal de mim e que recebia um molho de notas assim, ..... E que tinhas que te levantar às seis da manhã, enquanto ela estava com o cu alapado na cama até ao meio dia, foi mesmo assim. Que foi buscar 5 mil euros ao Luxemburgo e que a M. C. disse que até as camas articuladas foi ela que as pagou.
XV. Ou seja, em momento algum a referida G. P. diz que a M. P. disse que a M. C. tinha dito, antes diz que a própria testemunha M. P. teria dito.
XVI. Realidade que se repetiu na acareação entre a testemunha G. P. e a testemunha F. S., gravada no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423163242_5589195_2870598.wma, minutos 29:11 a minutos 35:50, onde diz: “Sim, Dra. Juíza, eu ouvi o meu ex-marido ene vezes dizer em casa que a irmã era uma ladra que foi à conta do pai buscar 5 mil euros.”
XVII. E dessa acareação resultou ainda mais: “G. P.: É mentira, é mentira, eu só deixei de ter contacto em 2017, quando tu voltas-te a sair, mas já antes, 2015, 2014, 2013 eu ouvi essa conversa: a minha irmã é uma ladra, só quer dinheiro.
F. S.: Mas ouvis-te a dizer quem?
G. P.: Tu, tu...”
XVIII. Ouvindo com um mínimo de atenção as declarações prestadas pela testemunha G. P. em sede de acareação e percebemos de forma clara, evidente, simples e transparente que a mesma se limita a acusar, quer a testemunha M. P., quer a testemunha F. S., de terem sido os próprios a proferir afirmações referentes à assistente.
XIX. A testemunha G. P., em sede de acareação com a testemunha F. S., repete por diversas vezes que aquele F. S. dizia mal da I. M. e todos os outros. Mas nunca diz que o F. S. lhe disse que a M. C. tinha dito.
XX. Por outro lado, arguida M. C. negou a prática dos factos – depoimento gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410143917_5589195_2870598.wma, minutos 07:25 a minutos 19:00
XXI. Enquanto a assistente se limitou a dizer que outras pessoas lhe disseram que a arguida tinha dito, depoimento indirecto – depoimento gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410145903_5589195_2870598.wma, minutos 01:00 a minutos 27:21
XXII. E a já mencionada testemunha G. P. - depoimento gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410152709_5589195_2870598.wma, minutos 00:44 a minutos 27:21 – assumiu que estava de relações cortadas com a arguida.
XXIII. E repetiu aquela testemunha ainda (minuto 04:43 da mencionada gravação): “... e nesse contexto a gente às vezes chateava-se e ele dizia, ela é uma ladra, e até à conta do meu pai ela foi buscar dinheiro”.
XXIV. Apesar de instada pelo Exmo. Sr. Procurador: “Certo, o que lhe perguntei agora foi, o seu marido comentou consigo essas expressões, sem e consegue dizer quando é que elas tiveram lugar, poderia comentar consigo, olha encontrei-me com a Sra. M. C. ali ou acolá”
XXV. A testemunha G. P. não deixou margem para dúvidas: “ ahh não, não, não! Não tinha nada a ver com isso, tinha simplesmente a ver comigo e com ele. Ele não defendia a I. M., ele atacava a I. M., assim num contexto de conversa.” (minuto 05:01 da mencionada gravação)
XXVI. A arguida M. C. não pode ser condenada por aquilo que as testemunhas M. P. e F. S. possam ter dito da assistente, só porque esta se lembrou de imputar as afirmações de terceiros à arguida.
XXVII. Por último a testemunha M. S., marido da arguida, depoimento gravado no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423161014_5589195_2870598.wma, minutos 02:40 a minutos 17:50, esclareceu também que nunca a sua esposa proferiu a palavra “ladra” reportando-se à irmã I. M..
XXVIII. Revela-se assim evidente que os depoimentos das testemunhas G. P. (depoimento gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410152709_5589195_2870598.wma, minutos 00:44 a minutos 27:21), M. P. (gravado no sistema citius, dia 10/04/19 ficheiro 20190410164342_5589195_2870598.wma, minutos 01:10 a minutos 22:00), F. S. (gravado no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423163242_5589195_2870598.wma, minutos 01:20 a minutos 25:24) e M. S. (gravado no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423161014_5589195_2870598.wma, minutos 02:40 a minutos 17:50), as declarações da arguida (gravado sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410143917_5589195_2870598.wma, minutos 07:25 a minutos 19:00) e bem assim as duas acareações realizadas, uma entre a testemunhas G. P. e a testemunha M. P. (gravado no sistema citius, dia 10/04/19, ficheiro 20190410164342_5589195_2870598.wma, minutos 24:50 a minutos 26:56) e outra entre a testemunha G. P. e a testemunha F. S. (gravada no sistema citius, dia 23/04/19, ficheiro 20190423163242_5589195_2870598.wma, minutos 29:11 a minutos 35:50) impunham necessariamente que fossem considerados como não provados os pontos 1 e 2 dos factos provados.
XXIX. Sendo certo que como refere Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida,
XXX. Pelo que, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.
XXXI. Dado o exposto afigura-se evidente que as conclusões a que chegou o Tribunal a quo na sentença recorrida, são infundadas e sem qualquer suporte factual, pelo que devem os pontos 1 e 2 serem considerados não provados e em consequência ser a sentença revogada e substituída por outra que absolva a arguida do crime de que vem condenada e também do pedido de indemnização civil.».

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 347.

A assistente respondeu ao recurso dizendo que deve ser negado provimento ao mesmo, porquanto não existe qualquer erro quer quanto à decisão sobre a matéria de facto quer quanto à decisão de direito.
O Ministério Público, em 1ª instância, também respondeu ao recurso, pugnando pela sua total improcedência, por entender que todos os elementos de prova que serviram para formar a convicção do tribunal foram congruentes e credíveis, sustentando cabalmente todos os factos que ficaram a constar da sentença recorrida, que se mostra devidamente fundamentada, não tendo havido violação de qualquer preceito legal, designadamente do preceituado no artigo 129º, n.º1, do Código de Processo Penal, nomeadamente, no que concerne aos factos dados como provados nos pontos 1 e 2, decorrente da alegada valoração exclusiva, para o efeito, de depoimentos indirectos, sustentando que o Tribunal “a quo” cumpriu, escrupulosamente, o consignado em tal preceito e, por isso, não merece qualquer censura.
E, neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, remetendo para o argumentado em 1ª Instância, pugnando, assim, pela improcedência total do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, e efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito (1), no recurso suscitam-se as seguintes questões:

1- O erro notório na apreciação da matéria de facto;
2- O erro de julgamento sobre a matéria de facto (pontos 1 e 2) e a valoração de depoimento indirecto.
*
Para apreciar e decidir tal questão, deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida e a fundamentação que incidiu sobre a mesma (sic):

Factos provados

1. Em dia não concretamente apurado, no mês de agosto de 2016, a assistente foi confrontada pelos seus irmãos A. P., F. S. e M. S., os quais lhe relataram que a arguida M. C. lhes afirmara que a identificada assistente, “tinha acedido a uma conta dos pais no Luxemburgo, de onde tinha retirado € 6.000,00”.
2. No decorrer do mencionado mês de agosto de 2016, também a sua cunhada G. P. contou à assistente que M. P. (unida de facto com o irmão da assistente, M. S.), lhe disse que a sua irmã M. C., referindo-se à pessoa da assistente, afirmou que a mesma “era uma ladra, porquanto tinha acedido a uma conta dos pais no Luxemburgo, de onde tinha retirado €6.000,00”.
3. A arguida ao proferir tais factos e imputando os mesmos à assistente, formulando sobre ela juízos ofensivos da sua honra e consideração, agiu deliberada e conscientemente, com a manifesta intenção e propósito de ofender a honra, dignidade, o bom nome e consideração social de que goza a assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. A arguida não tinha qualquer fundamento para imputar tais factos à assistente que não fosse com o intuito de a difamar, o que logrou conseguir.
5. A conduta da demandada causou à demandante abalo moral, vexame, desgosto e vergonha.
6. A demandante sentiu-se humilhada e enxovalhada perante as pessoas que ouviram tais factos e tiveram conhecimento dos mesmos, contribuindo para o abalo moral, revolta, vergonha e vexame.
7. A conduta da demandada causou à demandante revolta, pelo facto de a demandada lhe imputar factos quando é a demandante que cuida da mãe, da melhor forma possível, tentando que nada lhe falte, preocupando-se com o seu bem-estar.
8. M. C. reside com o marido em casa própria, em França, vêm a Portugal, pelo menos, três vezes por ano, possuem uma loja, um apartamento que está arrendado auferindo € 227,00 de renda e uma vivenda em Portugal. Possuem um veículo de marca «Audi», modelo «A5», de 2012/2013 e um veículo de marca «Peugeot», modelo «308», de 2010. O marido aufere uma reforma mensal de cerca de € 3 600,00. Tem o 10.º ano de escolaridade.

Factos não Provados

Artigos 3.º a 6.º da acusação particular.

A motivação:

O Tribunal atendeu às declarações da própria arguida, da assistente e das testemunhas ouvidas, concatenadas com as regras da experiência.
A arguida relatou que, há cerca de 13 ou 14 anos viu um extrato bancário da conta do seu pai, com mais de cinco mil euros.
Admite que em 2014 ou 2015 falou na existência desse dinheiro. Instada, disse que desde 2014 não fala com as testemunhas A. P. e G. P..
Não circunstanciou o teor dessa conversa, tendo o seu Ilustre Mandatário interrompido o interrogatório dirigido pela signatária de modo a impedir tal esclarecimento.
Ainda que a arguida tenha prosseguido as suas declarações, contra conselho do seu Ilustre Mandatário, acabou por não esclarecer os exatos termos da conversa ocorrida sobre este tema.
I. M. relatou que no mês de agosto de 2016, quando os seus irmãos, que residem todos no estrangeiro, vieram visitar a sua mãe, o A. P. disse que as irmãs M. C. e Maria andavam a dizer que ela tinha ido buscar dinheiro à conta do Luxemburgo, que era uma ladra. Instada disse não se recordar se falaram em € 5 000,00 ou € 6 000,00.
Noutra ocasião, perguntou ao irmão M. S. se tal era verdade e ele confirmou.
Perguntou ainda à cunhada G. P., que lhe disse que a M. C. já lhe tinha dito que a assistente tinha ido à conta dos pais no Luxemburgo.
Instada disse que em 2-11-2015 teve uma zanga com a arguida.
G. P. disse ter ouvido a arguida dizer a frase descrita na acusação, designadamente numa altura em que a sogra teve um AVC, dizendo «A I. M. é uma ladra, só se importa com dinheiro, foi à conta do Luxemburgo buscar € 5 000,00». Tal facto ocorreu em casa da arguida.
O seu ex-marido F. S. disse-lhe que a M. C. lhe dissera também que a assistente fora à conta do Luxemburgo buscar dinheiro e que era uma ladra.
Instada contou que a M. P. (mulher do M. S., que é irmão de arguida e assistente) lhe disse, no rio da Malheira, que a arguida lhe tinha dito que a I. M. foi buscar dinheiro à conta dos pais, no Luxemburgo.
Instada quanto ao contexto em que tal conversa surgira referiu que, quando a mãe da arguida sofreu o AVC ficou acamada, dizendo a I. M., que já tomava conta do pai, que não conseguia tomar conta, sem ajuda, de dois acamados, solicitando que fosse contratada uma empregada para a ajudar. Os irmãos não queriam pagar a empregada e foi nessa sequência que a arguida disse que a assistente já tinha dinheiro porque o tinha ido buscar à conta dos pais, do Luxemburgo e, ainda assim queria mais dinheiro, apelidando-a de ladra.
Nessa altura a testemunha chegou a tomar conta da sogra durante um mês e a irmã da arguida, Maria, outro mês.
Um dia encontrou a assistente a chorar, em casa, que lhe contou que os irmãos andavam a dizer que ela roubara o dinheiro da conta do Luxemburgo, tendo a testemunha confirmado que já os ouvira dizer isso. Relatou que a assistente estava revoltada e arrasada.
A. P. é pai de uma ex-cunhada de arguida e assistente (a testemunha G. P.) relatando que estava em casa da arguida, no verão, há cerca de três anos, e ouviu-a dizer que a I. M. tinha ido levantar dinheiro da conta bancária do pai no Luxemburgo.
No verão de 2017, em sua casa, recebeu o M. S. e a M. P., tendo esta dito que a arguida dissera que a I. M. é uma ladra, só quer dinheiro e tinha ido buscar dinheiro à conta do pai. O seu ex-genro F. S. também confirmou este facto. Instado disse que o F. S. saiu de casa há dois anos (contudo saiu por duas vezes) e que a assistente se sentiu incomodada com as palavras ditas pela arguida.
A. B. é filha da assistente relatando que o tio M. S. foi jantar a sua casa e a assistente perguntou-lhe se ouvira algum comentário sobre o dinheiro do Luxemburgo, ele confirmou que a arguida andava a dizer aos irmãos que ela roubara cinco ou seis mil euros da conta do avô ou da avó, no Luxemburgo. Instada disse que tal conversa ocorreu após arguida e assistente se terem zangado em novembro.
Numa visita a sua casa, o seu tio F. S., dirigiu-se à sua mãe dizendo: «Então andas a roubar dinheiro da conta dos pais, com autorização de quem?».
Instada disse que a assistente se sentiu mal com o assunto.
D. B. é filho da assistente referindo que, no verão, após a zaragata que ocorreu entre a I. M., a Maria e a M. C., em sua casa, os tios F. S., M. S. e A.P. disseram que a M. C. lhes dissera que a assistente andava a roubar dinheiro das contas dos avós.
M. M. é companheira do irmão de arguida e assistente, de nome M. S., frisando desde logo que nunca ouviu a arguida dizer que a assistente «é uma ladra».
Instada disse que a arguida referiu que tinha visto uma carta com dinheiro dos pais numa conta, no Luxemburgo. Essa conversa ocorreu após a zaragata ocorrida entre as irmãs, no verão, em casa da arguida, no sequência de a assistente não lhes permitir ver a mãe.
Em sede de acareação, G. P. e M. M. mantiveram as suas versões, esclarecendo G. P. que ouviu a ex-cunhada contar a conversa da arguida, no verão de 2016, no rio da Malheira, tendo a M. P. ido depois jantar a sua casa, onde comeram douradas, que foram pagas pela M. P.. G. P. disse ainda que a M. P. tinha dito que a M. C. tinha dito que até as camas articuladas tinha pago.
M. S. é marido da arguida, dizendo que nunca ouviu tais expressões, que nunca ouviu falar em dinheiro que havia no Luxemburgo, ou que a I. M. pegou ou não.
Em 19 de agosto de 2014 foram almoçar em casa da G. P. e do A. P., gerando-se uma discussão e não voltou a casa deles, nem eles voltaram a sua casa.
Em 2016 viram a mãe da arguida entre os dias 4 e 8 de agosto, depois a assistente levou a mãe para o Algarve até ao fim do mês. Instado confirmou que a M. P. esteve cá em agosto 2016, pois encontrou-a numa festa em Covas, Terras de Bouro. Em 2015 o P. pôs o F. S. fora de casa e a testemunha deu-lhe alojamento.
F. S. é irmão de arguida e assistente dizendo que nunca questionou a I. M. sobre a conta, nunca houve discussão sobre contas. Afirmou que em 2015 o sogro o pôs fora de casa, esteve três meses a viver em casa da M. C. e depois regressou. Não consegue dizer de forma perentória se em agosto de 2016 esteve em casa da G. P.. Nunca ninguém falou do dinheiro.
Em sede de acareação com G. P., esta esclareceu que em 1 de maio de 2015 tiveram uma discussão e ela saiu da casa do seu pai, onde viviam, com os filhos, durante dezoito dias, regressando quando o arguido foi proibido, pelo Tribunal de ali permanecer. O arguido esteve cerca de dois meses em casa da arguida, regressou a sua casa, de onde saiu definitivamente, em março de 2017. A conversa em casa da M. C. ocorreu em agosto de 2015.
O depoimento de G. P. foi desinteressado e espontâneo, merecendo credibilidade, até pela forma como confrontou as testemunhas M. P. e F. S. em sede de acareação, por outro lado, não denota interesse no desfecho do processo, pois nada a move contra a arguida.
O depoimento de A. P. foi confuso, não obstante desinteressado, atenta a falta de objetividade do mesmo, não se mostrou fiável.
A assistente, A. B. e D. B., não obstante interessados no desfecho do processo depuseram de modo sereno, coerente e objetivo.
M. S., F. S. e M. M. depuseram de forma interessada. M. S. negou factos que a própria arguida admitiu, o de se ter conversado sobre o dinheiro dos pais da arguida. M. M. apresentou-se nervosa e alterada, com um discurso preparado, preocupada em negar que tenha falado no assunto ou que a arguida tenha dito as palavras aqui em questão. F. S. entrou em contradição, durante o depoimento foi contido, exaltando-se quando acareado com G. P., procurando fugir ao assunto. Mesmo após terminar o seu depoimento, dirigiu-se a G. P., ainda dentro da sala de audiências, procurando provocá-la. Não mereceu qualquer credibilidade.
A toda esta apreciação dos depoimentos cumpre aditar o que indiciam as regras da experiência. Manifestamente a arguida falou com os irmãos sobre uma conta bancária que os pais possuíam no Luxemburgo, ainda que as testemunhas M. P., M. S. e F. S. tenham procurado fugir ao assunto, sendo que M. M. foi a única a admitir tal conversa. Também é notório que havia problemas pelo facto de a assistente estar a tomar conta dos pais, sem ajuda dos irmãos, já tinha havido desentendimentos por causa do pagamento do IMI, ocorreram desentendimentos pelo facto de a mãe da assistente pretender dar-lhe a casa onde moravam, ocorreram desentendimentos quando a assistente sugeriu a contratação de uma empregada para a ajudar. Assim, qual seria o fito da arguida ao invocar uma carta que havia lido anos antes, a propósito do dinheiro dos pais? Se a sua intenção fosse inocente teria mencionado esse assunto junto de todos os irmãos, ou junto da assistente que é quem está a gerir o dinheiro da mãe, contudo, fê-lo nas suas costas. Por outro lado, também resulta das regras da experiência que tal assunto não se ficou pelo mero constatar da existência de dinheiro na conta bancária dos pais, naturalmente que a conversa teve que ir mais além, sob pena de se tornar uma conversa absurda e sem sentido. A quantia depositada na conta seria entre € 5 000,00 e € 6 000,00, pelo que se afigura consentânea, com as regras da experiência o arredondamento para os € 6 000,00. A única versão coerente é a que decorre da versão apresentada pela assistente, foi confrontada pelo A. P. e, a partir desse momento confrontou os outros familiares com tal assunto, obtendo larga confirmação. Assim, a concatenação dos depoimentos de G. P., A. B. e D. B., com as declarações de arguida e assistente e as regras da normalidade, foram concludentes na determinação da matéria de facto provada. A matéria dos artigos 3.º a 6.º da acusação não obteve prova suficiente, uma vez que apenas A. P. se referiu expressamente a tal facto, sendo o seu depoimento de frágil credibilidade.
Relativamente à situação sócio-económica da arguida o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pela mesma e pelo seu marido em sede de audiência de julgamento, mas sobretudo na informação junta aos autos em sede de audiência de julgamento, por ser imparcial.
*
III- O Direito.

1. O erro notório na apreciação da prova.

No corpo da motivação do recurso, a recorrente alude ao “erro notório na apreciação da prova” de que enfermaria a matéria de facto assente e inserta nos pontos 1 e 2. Assim, embora não explicite suficientemente a sua impugnação nessa vertente, tudo leva a crer que a recorrente teria em mira atacar a decisão sobre a matéria de facto pela via mais restrita consentida pelo art. 410º, n.º 2, do CPP, por deficiente apreciação dos meios de prova indicados em tal motivação.
Todavia, a recorrente acabou por não transpor para as conclusões do recurso essa sua (suposta) pretensão à impugnação da matéria de facto por tal via.
Logo, uma vez que são as conclusões do recurso que delimitam o objecto deste e, por isso, as questões cognoscíveis pelos tribunais superiores, não pode essa putativa impugnação da matéria de facto ser apreciada, sendo certo que este Tribunal, ex officio, também não detecta a existência de qualquer dos vícios formais previstos no citado preceito, nomeadamente o aludido pela recorrente.
Com efeito, num pequeno parêntesis, dir-se-á que quanto aos vícios formais previstos nesse art. 410º, n.º 2, seria suposto que a impugnação incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, na injustiça ou na desadequação da decisão proferida ou na sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (2). Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão sobre a matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (3).
A jurisprudência tem relacionado o vício contemplado na alínea c) de tal preceito apenas aos erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (4). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (5). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido (6).
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que a recorrente lhe pretenderia assacar, pois não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado as regras da experiência comum.
A recorrente parece incorrer num equívoco frequente, confundindo aquilo que segundo ela deveria ter sido considerado provado e não provado com o erro notório na apreciação da prova.
Como a jurisprudência tem insistentemente sublinhado, a discordância entre o que a recorrente entende que deveria ter sido dado como provado e o que na realidade o foi pelo tribunal nada tem a ver com o vício do erro notório na apreciação da prova, tal como estruturado na lei (7).
Em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa é que a recorrente não se conforma com a circunstância de o tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, aí fazendo radicar o aludido vício a aludiu e que expressamente apodou de erro notório na apreciação da prova.

2. O erro de julgamento.

Sustenta a recorrente que o tribunal a quo deu como provada a factualidade inserta nos pontos 1 e 2 exclusivamente com base em depoimentos indirectos, pois, nenhuma das testemunhas inquiridas afirmou ter ouvido a arguida a proferir a expressão pela qual acabou por ser condenada.
Mas não tem razão.
Como se sabe, constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (art. 124º, n.º 1, do CPP), aqui se incluindo, naturalmente, os factos relevantes alegados pela acusação e pela defesa bem como os resultantes da discussão da causa e, ainda, os factos dos quais podem ser inferidos aqueles outros.
Com efeito, para que se possa atribuir a alguém a responsabilidade de um acto com relevância penal, tal circunstância está dependente da demonstração da sua participação no acontecimento através da produção da prova. E nos termos do art. 341º C. Civil “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.
Como sublinha Figueiredo Dias, a verdade processual – a resultante da prova – é uma verdade subtraída à influência que sobre ela acusação e defesa pretendam exercer, através dos respectivos comportamentos processuais, e, também, uma verdade que, não sendo absoluta, há-de ser uma verdade judicial, prática e, sobretudo, uma verdade processualmente válida, não obtida a todo o preço (8).
Nesta decorrência, afirmando o princípio da legalidade da prova, dispõe o art. 125º, do CPP, que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. Ao invés, são proibidas – nulas – as provas obtidas mediante métodos proibidos de prova (art. 126º), sendo admissíveis, por outro lado, todos os meios de prova que não sejam vedados por lei.
E de harmonia com o disposto no art. 127º, do mesmo diploma as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador sendo necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência.
Acresce que, em regra, todas as pessoas têm capacidade para depor como testemunhas e são admitidas a depor sobre quaisquer factos controvertidos que interessam à decisão da causa, a não ser que exista qualquer limite formal, decorrente da incapacidade ou inabilidade para depor.
Não está em causa nenhuma dessas limitações, mas sim a suposta violação de normas de direito probatório material, concretamente a formação da convicção do tribunal com base em depoimentos indirectos.
Realmente, dispõe o art. 128º, n.º 1, do CPP que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, sendo que, anteriormente, já tivemos o ensejo de mencionar quais os factos que constituem o objecto da prova.
Mas, por outro lado, o art. 129º, n.º 1, do CPP, estatui: «Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».

Segundo o acórdão do STJ, de 3 de Março de 2010 (9), «O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova, e não aos factos objecto de prova, pois que o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento”.
A testemunha tem conhecimento directo dos factos quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos, enquanto no chamado depoimento indirecto «a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos» (10).
Também para o Prof. Costa Pinto (11), «O depoimento indirecto consiste na revelação processual de factos que não foram objecto do conhecimento directo da testemunha que os descreve, tendo antes origem numa informação que lhe foi transmitida por outra pessoa».
Da concatenação dos citados preceitos resulta que, embora a regra seja a do testemunho directo, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos: a lei interdita a valoração do depoimento indirecto, a sua utilização como meio de prova, mas apenas se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal, já podendo, contudo, ser valorado sempre que a fonte não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.
Ou seja, a valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam assegurar o contraditório.
Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do CPP, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum (neste sentido, entre outros, o precedente acórdão desta Secção de 11/02/2019 (p. 7/16.6GTVCT.G1) (12).
Como também se afirma no acórdão desta Secção (13) «Como é sabido, na fase de transição que mediou entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, os textos nacionais que estiveram na génese do novo regime apontavam genericamente para a proibição do testemunho de ouvir dizer [cfr. Parecer do Prof. Costa Andrade publicado na Colectânea de Jurisprudência (CJ), ano VI, 1981, tomo 1, págs 5-11, Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português”, in AAVV, Para uma nova justiça penal, Coimbra editora, 1983, págs. 207-209 e 219 e o parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81 que esteve na base da resolução do Conselho da Revolução n.º 146/81, que declarou inconstitucional o artigo 439.º do CPP de 1929)]. A proscrição de testemunhos de outiva ou de ouvir dizer, na linha dos direitos de raiz anglo-saxónica que proibiam a “hearsey evidence”, não foi, porém, consagrada de forma absoluta.
É hoje unânime o entendimento segundo o qual o Código português consagrou um regime de “admissibilidade condicionada” (cfr. Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e Arguido”, in Revista do CEJ, n.º2, 1º semestre 2005, págs. 131-133, Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra editora, 2011, pág. 520 e Costa Pinto, Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa, cit., págs 1043 e ss).
Na síntese de Dá Mesquita (A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, cit., pág. 532):«O regime português do depoimento indirecto não compreende uma política preventiva que obste à admissão do ouvir dizer, o depoimento faz emergir os deveres procedimentais do tribunal (determinação da fonte e chamamento a depor da mesma) e as proibições não derivam do processo inferencial gerado pelo ouvir dizer, mas traduzem restrições por força do procedimento adoptado. Proibição irrestrita, no caso da fonte indeterminada e dependente do achamento a depor no caso da fonte determinada que não foi inquirida, admitindo-se excepções em que aquela não tem que ser chamada».
Costa Pinto (14) sintetizou este tema do seguinte modo : «Se a fonte for chamada a depor, a prova do facto indirectamente conhecido acabará provavelmente por se fazer através do depoimento desse terceiro, que é a fonte primária do conhecimento directo relevante para o processo: o depoimento da testemunha de-ouvir-dizer é, neste caso, fundamentalmente um conhecimento de investigação que permite chegar à fonte primária da informação e, além disso, um factor de credibilidade das declarações prestadas por esta (pela possível congruência dos dois depoimentos».
Ora, apesar de o exame da motivação da decisão que incidiu sobre a matéria factual permitir inferir que foram produzidos depoimentos indirectos, que a julgadora distinguiu, de forma clara, dos depoimentos directos, e que foi a conjugação de todos eles que serviu para alicerçar a sua convicção e para dar como provados os factos questionados, procedemos à audição integral do registo gravado das declarações produzidas pela arguida e pela assistente e depoimentos das demais testemunhas, para poder solucionar a questão suscitada pela recorrente.
Assim, não existe qualquer dúvida de que nos autos foram produzidas declarações com segmentos contendo depoimentos indirectos, nomeadamente o relato feito pela assistente ao que lhe foi transmitido pelos seus irmãos A. P., M. S. e F. S. quanto ao facto de a arguida lhes ter dito que aquela tinha ido buscar dinheiro a uma conta dos pais sediada no Luxemburgo, bem como à informação que lhe foi prestada pela testemunha G. P. de que a arguida afirmou, referindo-se à sua pessoa, que “era uma ladra, porquanto tinha acedido a uma conta dos pais no Luxemburgo, de onde tinha retirado €6.000”.
A questão que urge solucionar consiste precisamente em saber se as declarações da assistente e da testemunha G. P. poderiam ou não ser valoradas pelo Tribunal, nos segmentos contendo depoimentos que devem reputar-se como indirectos.
A recorrente entende que não, desde logo, porque, segundo aduz, não foram chamados a depor como testemunhas o A. P. e o M. S. e as testemunhas F. S. e M. P. negaram que alguma vez tivessem ouvido a arguida a utilizar a expressão que ficou a constar dos factos provados.
Tal argumentação não colhe, desde logo, porque foram identificadas as “testemunha-fonte”, ou seja, a fonte material de onde provinha o conhecimento dos factos. Além disso, prestaram depoimento na audiência duas dessas testemunhas, F. S. e M. P., pelo que, quanto a estes, foi respeitado o mencionado princípio do processo criminal, porque, não obstante terem negado que alguma vez tivessem ouvido a arguida a proferir a expressão em causa, foi assegurado o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório quer da testemunha de ouvir dizer quer da testemunha fonte.
É incontestável que essas testemunhas negaram os factos reportados por “ouvir dizer”.
Porém, a lei não impõe que a fonte originária, para além de identificada, chamada a depor, comparecer em audiência e prestar depoimento de acordo com as exigências legais, venha a confirmar o conteúdo do testemunho indirecto para que este possa ser valorado. Foi o que esclareceu o acórdão desta Relação anteriormente citado na nota 13, inclusivamente, a propósito da hipótese de a testemunha fonte se recusar a prestar depoimento: para tal valoração, a lei não exige a prestação efectiva de depoimento, nem a confirmação da conversa mantida com a testemunha de ouvir dizer, nem tão pouco a coincidência de conteúdo na descrição do facto probando.
Igualmente se elucida no citado acórdão: «A jurisprudência do TEDH admite a validade dos testemunhos de ouvir dizer desde que a ausência do testemunho directo esteja devidamente justificada (cfr. Sentenças do TEDH 19 de Dezembro de 1990, Delta c. França, § 37, de 19 de Fevereiro de 1991, Isgro c. Itália, § 35 ; de 26 de Abril de 1991, Asch c. Austria , § 28, de 28 de agosto de 1992, Artner c. Austria , §§ 22-24 e de 14 de Dezembro de 1999, A.M . c. Itália , § 25) e desde que a condenação não seja fundamentada (...) uniquement ou dans une mesure déterminante (...) sur des dépositions faites par une personne que l’accusé n’a pu interroger ou faire interroger ni au stade de l’instruction ni pendant les débats (CEDH 27 de Fevereiro de 2001, Lucà c Itália, § 40). Esta última regra dita “de la preuve unique ou déterminante » foi abandonada pelo Ac da Grande Câmara de 15-12-2011, n° 26766/05 et 22228/06, Al-Khawaja e Tahery v. Reino Unido (cfr. detalhadamente, Nicolas Hervieu, Admissibilité des preuves par ouï-dire et droit de contre-interrogatoire en matière pénale, in licithttp://combatsdroitshomme.blog.lemonde.fr), abandono reafirmado no Ac. Schatschaschwili c. Alemanha , n.º 9154/10, de 15 de Dezembro de 2015.».

Assim, a lei limita-se a impor que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte, cessando a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do CPP com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma. Para ser ultrapassada a proibição de valoração enunciada nesse comando, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo, quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la para depor.
Neste caso, a circunstância de as testemunhas-fonte F. S. e M. P. terem negado o afirmado nos depoimentos de “ouvir dizer”, quanto aos factos descritos nos pontos 1 e 2, respectivamente, não obsta a que o Tribunal a quo tivesse valorado, como fez, os seus depoimentos no conjunto com os demais elementos de prova produzidos em audiência, relativamente a tais factos.
Também não colhe a tentativa da recorrente para descredibilizar o depoimento da testemunha G. P., alegando uma suposta divergência, com que foi confrontada, entre as declarações que a mesma prestou em sede de inquérito e na audiência de julgamento.
Escutado tal depoimento, dele ressalta que a testemunha fez um depoimento escorreito e perfeitamente seguro, circunstanciando no tempo e no espaço as conversas que descreveu, tendo esclarecido de quem as ouviu, bem como que, no decurso do inquérito, não foi questionada sobre outros factos para além dos que narrou nas declarações que então produziu e daí que as mesmas tenham um conteúdo mais restrito do que o depoimento que realizou na audiência.
Realmente, a testemunha em causa não prestou declarações divergentes, assim como também não tem correspondência com a verdade o afirmado pela recorrente quanto à acareação desta testemunha com a testemunha M. P. e o da testemunha F. S.: a recorrente não pode pretender socorrer-se, como fez, de pequenos excertos descontextualizados para fazer valer a sua posição interessada dos factos, olvidando que a prova tem que ser analisada na sua globalidade.
Ora, a Sra. Juíza não se limitou a descrever, genericamente, o que cada um dos depoentes e testemunhas transmitiu na audiência de julgamento, antes revelou as razões pelas quais os concretos meios de prova foram geradores da convicção que adquiriu sobre a realidade dos factos tidos por provados e a inveracidade dos demais, apoiando-se nas regras de experiência comum.
É o que resulta do que consignou: «(…) Manifestamente a arguida falou com os irmãos sobre uma conta bancária que os pais possuíam no Luxemburgo, ainda que as testemunhas M. P., M. S. e F. S. tenham procurado fugir ao assunto, sendo que M. M. foi a única a admitir tal conversa. Também é notório que havia problemas pelo facto de a assistente estar a tomar conta dos pais, sem ajuda dos irmãos, já tinha havido desentendimentos por causa do pagamento do IMI, ocorreram desentendimentos pelo facto de a mãe da assistente pretender dar-lhe a casa onde moravam, ocorreram desentendimentos quando a assistente sugeriu a contratação de uma empregada para a ajudar. Assim, qual seria o fito da arguida ao invocar uma carta que havia lido anos antes, a propósito do dinheiro dos pais? Se a sua intenção fosse inocente teria mencionado esse assunto junto de todos os irmãos, ou junto da assistente que é quem está a gerir o dinheiro da mãe, contudo, fê-lo nas suas costas. Por outro lado, também resulta das regras da experiência que tal assunto não se ficou pelo mero constatar da existência de dinheiro na conta bancária dos pais, naturalmente que a conversa teve que ir mais além, sob pena de se tornar uma conversa absurda e sem sentido. A quantia depositada na conta seria entre € 5 000,00 e € 6 000,00, pelo que se afigura consentânea, com as regras da experiência o arredondamento para os € 6 000,00. A única versão coerente é a que decorre da versão apresentada pela assistente, foi confrontada pelo A. P. e, a partir desse momento confrontou os outros familiares com tal assunto, obtendo larga confirmação. Assim, a concatenação dos depoimentos de G. P., A. B. e D. B., com as declarações de arguida e assistente e as regras da normalidade, foram concludentes na determinação da matéria de facto provada. A matéria dos artigos 3.º a 6.º da acusação não obteve prova suficiente, uma vez que apenas A. P. se referiu expressamente a tal facto, sendo o seu depoimento de frágil credibilidade.»
Independentemente do grau de adesão que suscite o estilo da fundamentação assim expressa, o certo é que flui da sua formulação, quanto aos segmentos questionados pela recorrente a sua falta de razão e a inexistência de qualquer obstáculo para a formação da convicção da Julgadora. Quer isto significar que não merecem reparo as conclusões fácticas a que o Tribunal a quo chegou. Assentam em prova válida, não proibida, tendo a apreciação desta sido efectuada de acordo com as regras do entendimento correcto e normal, ou seja, em consonância com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
De facto, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Como tem vindo a referir o T. Constitucional (15), «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».
Concordamos, pois, integralmente com a leitura feita pela Tribunal a quo: atendendo aos termos em que a Senhora Juíza nos apresenta a formação da sua convicção, não podemos deixar de aderir aos seus fundamentos e manter integralmente a decisão recorrida.

Em conclusão, nenhuma censura merece a decisão recorrida, ao assentar também no exame do dito contributo das testemunhas nos segmentos em que reproduziram depoimentos de ouvir dizer para considerar que a recorrente proferiu a expressão que ficou a constar dos factos provados.

Assim, improcede o recurso na sua totalidade.
*
IV. Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por M. C. e em manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 17/12/2019

Ausenda Gonçalves
Maria José Matos


1 Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995
2 Nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço aos princípios jurídicos aplicáveis. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, a recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
3 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
4 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
5 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
6 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
7 Cfr., v.g., os Acs. do STJ de 24-3-1999, BMJ n.º 485, pág. 281, de 12-12-1998, BMJ n.º 476, pág. 253 e de 16-4-1998, BMJ n.º 481, pág. 325.
8 Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, pág. 193 e ss.
9 Proc. 886/07.8 PSLSB.L1.S1., rel. por Santos Cabral.
10 Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 3ª Ed., 158.
11Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa”, in Estudos e homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra editora, 2010, págs. 1047-1048.
12 Com o seguinte sumário: «VII - A testemunha é inquirida sobre factos que constituam objecto da prova e de que possua conhecimento directo (art. 128º, n.º 1, do CPP), i. é, que a mesma percepcionou através dos seus próprios sentidos, de forma imediata e não intermediada, enquanto no chamado depoimento indirecto a testemunha refere aquilo de que se apercebeu por outros meios de prova relativos aos factos: embora a regra seja a do testemunho directo, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos, apenas interdita a sua valoração se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal, já podendo, contudo, ser valorado sempre que a fonte não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (art. 129º, n.º 1, do mesmo código). VIII - Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do CPP, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.»
13 Proc. n.º 3202/17.7T8GMR rel. por Cruz Bucho.
14Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa”, obra cit, pág. 1051.
15 Designadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004.